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1 A memória positiva sobre o regime militar no Espírito Santo: Os caminhos do consentimento (1968-1978) DAVI ELIAS RANGEL SANTOS * 1 A construção da memória São os passados presentes (Andreas Huyssen) que necessitam de representações materiais ou imateriais que tenham significado para o grupo social. São os lugares de memória na expressão consagrada por Pierre Nora que diz: “o lugar da memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações”. Os lugares, as imagens e as lembranças compõem os quadros sociais da memória. Eles são fundamentais na reconstituição do passado e sua identificação com determinada sociedade. Por conseguinte, a memória coletiva envolve as memórias individuais que carregamos por sermos seres individuais. Em todo ato de memória existe como premissa a consciência individual que nada mais é que a memória individual apoiada sobre a memória coletiva. E a lembrança é essencial para significação histórica de qualquer acontecimento social, pois ela pode ser emprestada como diz Halbwachs: “Elas ocupam um lugar na memória da nação. Porém eu mesmo não os assisti. Quando eu os evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros... Carrego comigo uma bagagem de lembranças históricas... Mas é uma memória emprestada e que não é minha...”. Nossas memórias são limitadas no tempo e no espaço. Eis o ponto em que a memória e a História se encontram. A História como reconstrução incompleta do passado, daquilo que não existe mais busca auxilio na Memória como representação sempre atual, vivida por grupos no presente. Na verdade a História se apresenta como uma recodificação do passado, ou seja, seu objeto é o que já aconteceu enquanto que a memória se dispõe dos seus objetos por associação através dos lugares de memória. A conciliação entre a História e a Memória se dá quando:

evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos … · 2017-08-21 · questão é: Há espaço de ... é predominante porque representa o grupo social hegemônico;

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A memória positiva sobre o regime militar no Espírito Santo: Os caminhos do consentimento

(1968-1978)

DAVI ELIAS RANGEL SANTOS*

1 – A construção da memória

São os passados presentes (Andreas Huyssen) que necessitam de representações materiais ou

imateriais que tenham significado para o grupo social. São os lugares de memória na expressão

consagrada por Pierre Nora que diz:

“o lugar da memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado

sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de

suas significações”.

Os lugares, as imagens e as lembranças compõem os quadros sociais da memória. Eles são

fundamentais na reconstituição do passado e sua identificação com determinada sociedade. Por

conseguinte, a memória coletiva envolve as memórias individuais que carregamos por sermos seres

individuais. Em todo ato de memória existe como premissa a consciência individual que nada mais

é que a memória individual apoiada sobre a memória coletiva. E a lembrança é essencial para

significação histórica de qualquer acontecimento social, pois ela pode ser emprestada como diz

Halbwachs:

“Elas ocupam um lugar na memória da nação. Porém eu mesmo não os assisti. Quando eu os

evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros... Carrego comigo uma

bagagem de lembranças históricas... Mas é uma memória emprestada e que não é minha...”.

Nossas memórias são limitadas no tempo e no espaço. Eis o ponto em que a memória e a História se

encontram. A História como reconstrução incompleta do passado, daquilo que não existe mais

busca auxilio na Memória como representação sempre atual, vivida por grupos no presente. Na

verdade a História se apresenta como uma recodificação do passado, ou seja, seu objeto é o que já

aconteceu enquanto que a memória se dispõe dos seus objetos por associação através dos lugares de

memória. A conciliação entre a História e a Memória se dá quando:

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*Aluno Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (ES).

“... a História se esforça por criar uma história científica a partir da memória coletiva... História

que fermenta a partir do estudo dos “lugares” da memória coletiva: lugares topográficos, como

arquivos, as bibliotecas e os museus.... Estas memórias têm a sua história...” (Jacques Le Goff).

A lembrança, a memória é a reconstrução do passado com dados e questionamentos feitos no

presente. Ela é essencial para significação histórica de qualquer acontecimento social. É a imagem

ligada a outras imagens que remetem ao passado. Toda memória coletiva tem por base um grupo

limitado no tempo e no espaço. É importante entender que a memória não restitui o passado; ela se

baseia nas diferenças das lembranças do grupo que serão recontadas através da História. A grande

questão é: Há espaço de ação para essas diferentes lembranças de cada grupo na sociedade em que

estão inseridos?

Micheal Pollack analisa esse tema ao abordar com extrema felicidade a memória oficial, aquela que

é predominante porque representa o grupo social hegemônico; e as memórias subterrâneas que

permanecem vivas no seio da sociedade através da transmissão oral que passa de geração a outra,

representando uma forma de resistir aos discursos oficiais. A permanência dessas memórias entre os

grupos minoritários representa um passado esquecido, silencioso, porém não morto.

As razões do silêncio dessas memórias podem ser relacionadas com a falta de interesses políticos,

de pessoas que ouçam aquilo que está sendo dito e muitas vezes motivações pessoais que as

impedem de vir à tona. Porque elas geralmente são traumáticas e mexem com a vida e o imaginário

das pessoas. Sofrimentos, tragédias familiares como guerras, atentados, massacres étnicos,

ditaduras, torturas entre outras guardam consigo lembranças marcantes do período vivido e que

contrastam com o discurso oficial.

“Em face dessa lembrança traumática, o silêncio parece se impor a todos aqueles que querem

evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas... preferem, elas também, guardar o silêncio” (Michael

Pollack)

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Por exemplo, um período marcado por traumas na história nacional foi a Ditadura Militar no Brasil

(1964-1985) que simboliza bem esse quadro de silenciamento da memória. Os governos e grupos

sociais dominantes tentaram manter cristalizados apenas uma memória oficial ao tentar calar as

outras memórias desse período através da utilização da censura a imprensa, a Lei da Anistia e o

“perdão” para todos que cometeram crimes nesse contexto repressivo, a demora em disponibilizar

os arquivos públicos para à pesquisa para que a História pudesse fazer o seu papel de recodificar o

passado.

São situações reais que representam uma tentativa de silenciar o passado e todos os conflitos que ele

traz consigo. Quando essas memórias escondidas começam a ganhar o espaço público reivindicando

sua presença na memória coletiva ocorrem as disputas de memória que colocarão em lados opostos,

grupos sociais os quais representam.

“Esses acontecimentos geraram o que Giovanni Contini muito bem descreveu como uma “memória

dividida”... uma memória “oficial”, que comemora o massacre como um episódio da Resistência e

compara as vítimas a mártires da liberdade; e por outro lado, uma memória criada e preservada

pelos sobreviventes, viúvas e filhos, focada quase que exclusivamente no seu luto, perdas pessoais e

coletivas”.

Com base nessa discussão levantada por Alessandro Portelli sobre “memória dividida” é possível

perceber como a memória vai se moldando com o passar do tempo histórico em função das

mudanças do grupo social dominante, da política vigente e por questões ideológicas que permeiam

as relações sociais no tempo e espaço.

Daí levou-nos a pensar em um objeto de pesquisa que trata justamente da análise dos conflitos

silenciosos entre a memória oficial, linear, positiva e as memórias “subterrâneas”, sobre o Regime

Militar brasileiro no estado do Espírito Santo, num recorto de tempo histórico que percorre os anos

de 1968 a 1978. Esse tema carece de mais análise e de uma pesquisa sistemática para entender o

porquê da vitória dessa memória que se tornou oficial, sendo, porém esta parcial e pertencente a

grupos sociais minoritários dominantes, política e economicamente.

A natureza seletiva da memória nos permite levantar interpretações diferenciadas sobre

determinado período histórico que se quer pesquisar. Cabe ao historiador pensar, analisar, discutir

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com as fontes, os documentos do período analisado, interpretando-os criticamente, tendo a

consciência de que essas memórias são fragmentadas, múltiplas e que estão atreladas ideológica e

culturalmente a determinados grupos sociais.

Nessa perspectiva, se faz necessário compreender, estudar e analisar os instrumentos de consenso e

de consentimento que deram legitimidade aos governos estaduais e desempenhou papel crucial na

construção de uma memória “positiva” sobre Regime Militar no Espírito Santo que ainda é

predominante nos dias atuais. Haja vista, as passeatas de março de 2015 na capital Vitória (ES)

onde no meio de centenas de milhares de pessoas, em protesto contra o governo federal, foi possível

identificar vários cartazes, vozes pedindo intervenção militar, sugerindo a volta da ditadura militar

no país como se esta tivesse sido positiva para a nação.

2 – “Zonas Cinzentas”

Para análise e discussão sobre os usos políticos da memória na história, o historiador francês Pierre

Laborie ao refletir sobre o contexto social da França no período da República de Vichy (1940-1945)

durante a II Guerra Mundial cunhou o conceito de “’zonas cinzentas” para analisar os tipos de

comportamentos sociais, heterogêneos e complexos da sociedade francesa, num momento de grave

crise política, econômica e cultural que colocaram em evidência as relações conflituosas inseridas

naquele contexto e que, por conseguinte, serviram de parâmetro para reflexão sobre outros

contextos históricos em países que viveram regimes não democráticos.

Ele propõe a discussão sobre o meio termo entre a relação binária consagrada pela memória que, em

momentos traumáticos, coloca em lados opostos os resistentes e os colaboracionistas, sem levar em

consideração os tipos de consenso e as formas de consentimento que permeiam a complexidade

social e que justifica a longevidade desses regimes.

Daí a ideia que ele propõe de ambivalência, isto é, o pensar duplo que é justamente uma

característica daquele homem que é um e outro ao mesmo tempo. Ou seja, é capaz de apoiar, aderir,

consentir com o autoritarismo e ao mesmo tempo se posicionar contrário a partir de suas

experiências pessoais ou sociais. Isso diz respeito as formas de consenso em regimes não

democráticos, segundo o qual o homem pode ser colaboracionista e/ou resistente ao mesmo tempo.

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Com base neste pensamento que mergulha nas relações intrínsecas entre as sociedades e os regimes

autoritários, se faz necessário olhar a ditadura civil militar (1964-1985) para além da ótica da

Resistência ou da Colaboração, sem negligenciar o modo de pensar e de viver dos seus

contemporâneos. Laborie afirma que essa característica do duplo pensar é uma forma de resposta

social a situações de extrema privação, um ajuste entre o desejável e o possível, pois num estado de

exceção, de autoritarismo há uma necessidade de se adaptar ao meio, a dura realidade vivida. Por

isso, importante estabelecer uma breve reflexão sobre as formas de adaptação da sociedade alemã e

italiana aos seus respectivos regimes autoritários.

3 – Breve análise sobre os casos italiano e alemão

3.1 - O Fascismo

Na Itália os partidos de oposição, antifascistas construíram o mito da resistência por meio da

memória. O fascismo enquanto sistema político autoritário fez alianças com a monarquia, o

exército, o judiciário e a igreja católica contribuindo para o consenso na sociedade italiana. Os

cargos, as funções administrativas e educativas ficaram a cargo das pessoas que faziam parte das

fileiras doo partido fascista.

Segundo Didier Musiedlak, o consentimento só poderia ser aceito caso fosse de forma consciente e

deliberadamente aceita pela sociedade. O fascismo possuía uma base sólida capaz de integrar quase

toda população ativa do país. Era percebido como uma estrutura nova, com base social capaz de

converter os espíritos. Fato é que o regime fascista italiano despertou fascinação nos jovens em

virtude das esperanças que vendiam. Assim, o regime se beneficiou de um imenso consenso ao

chegar ao poder.

Na década de 1930 o fascismo era visto pelos cidadãos italianos como um “modelo moral”

amplamente aceito e sem foco de oposição na sociedade. Foi capaz de despertar nas pessoas uma

livre vontade de participar, uma adesão espontânea que supera a ideia de obediência cega e

passividade. O autor diz que “o sucesso de um regime político se dá quando o indivíduo interioriza

as normas, as regras e age dentro dos limites impostos pelo sistema”. O próprio carisma do chefe,

do líder desempenha um papel importante no consenso, na adesão social ao regime.

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A dimensão religiosa contribuiu para a construção do consentimento da sociedade italiana ao

regime. Em favor da construção do consenso italiano a igreja católica se tornou peça chave a ser

reintroduzida no Estado italiano através do Acordo de Latrão em 1929. Além disso, este adotou

medidas assistencialistas à população durante a década de 1930, tais como serviço de previdência

social, programas de apoio às camadas mais pobres. Um dos principais objetivos do fascismo era

“fascistizar” as futuras gerações de italianos.

A imagem construída em torno do DUCE visava ampliar as bases de apoio junto às massas,

consolidando o seu poder através da legitimação do consenso. A imprensa contribuiu para reforçar a

popularidade de Mussolini junto à sociedade ao apresentá-lo como um homem acima da média. Ele

se tornou agente do consenso e do consentimento no regime fascista. A dimensão carismática mais

o projeto revolucionário pregado pela doutrina fascista de caráter religioso e a vontade de regenerar

os homens, foram elementos que fascinaram os intelectuais ao discurso fascista. Por isso, muitos

intelectuais abraçaram a causa espontaneamente assumindo o papel de homem duplo, ou seja,

militante e burocrata, produtores e difusores de sentidos. O consenso era o resultado de tudo aquilo

que contribuía para manter o equilíbrio da sociedade.

3.2 - O Nazismo

O historiador Marc Ferro analisou o ressentimento como um processo acumulativo histórico que

marcou os povos, influenciou suas organizações sociais e políticas, determinou conflitos e fez surgir

guerras e regimes autoritários. O ressentimento, segundo o autor, é fruto das promessas não

cumpridas, violência sofrida, feridas abertas tanto no indivíduo quanto na sociedade. A existência

dele representa o elo entre o passado e o presente. Por exemplo, um dos elementos que fizeram o

nazismo chegar ao poder na década de 1930 na Alemanha foi o ressentimento da sociedade em

virtude dos termos estabelecidos pelo Tratado de Versalhes pós 1ª Guerra Mundial, cujos efeitos

foram sentidos pelos alemães nas décadas seguintes.

Essa grave crise econômica, associados aos milhões de desempregados, o declínio moral e cultural

da sociedade alemã, contribuíram para a eleição de Hitler na década de 1930. As mudanças

implantadas pelos nazistas avançaram em sintonia com o que a grande maioria da população queria.

Por exemplo, o historiador alemão Robert Gellately faz uma reflexão sobre a perseguição que os

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nazistas implantaram na sociedade alemã a dois tipos de “marginais sociais” (outsiders):

criminosos, prostitutas, bêbados e judeus.

Hitler tinha consciência de que para formar autoridade era preciso investir em sua popularidade.

Assim, o reforço na construção da sua imagem mais a força militar transformará seu governo numa

“ditadura de consenso”. Gellately afirma que é equivocado classificar o governo nazista como um

“regime de terror”, pois houve uma base social de apoio e de consenso em torno do seu governo que

incluía comunistas, socialistas entre outros. Com a retomada do emprego e o crescimento

econômico, Hitler vai conquistar os trabalhadores, facilitando o consenso na sociedade alemã.

Alguns questionavam, outros percebiam a tentativa de destruir a democracia e o estado de direito

por parte dos nazistas, porém a grande maioria apoiou ou simplesmente ignorou de forma

consciente. Houve um consenso social em favor do nazismo na Alemanha.

Hans-Ulrich Wehler disse que havia “disposição para o consenso” na sociedade alemã, pois o povo

estava pronto para o nazismo. Os campos de concentração formados por Hitler a partir de 1933

tiveram ampla divulgação e forte apoio das cidades onde eles foram construídos. O regime nazista,

segundo Jeremy Noakes, teve sucesso junto a sociedade alemã porque “esta tinha valores,

princípios e preconceitos que o nazismo defendia”. Portanto, o regime era reflexo dos anseios da

própria sociedade e não estranhos a ela. Hans-Ulrich Wehler disse que a “concordância dos

cidadãos com o regime se deu pelas suas experiências positivas, exitosas com o nazismo,

expressando uma força de vontade de ambos os lados”.

O maior obstáculo enfrentado pela resistência ao regime nazista era a enorme popularidade de

Hitler. Muitos que viveram o período de 12 anos do III Reich tiveram uma impressão positiva do

governo devido às festas cívicas, as promessas de um futuro próspero, o combate aos

marginalizados sociais, a manutenção da lei e da ordem. A maioria silenciosa e não silenciosa

apoiou o regime nazista.

3 – O Regime Militar brasileiro

O silêncio em torno das marcas expostas deixadas pelo regime civil militar no Brasil contribuiu

para esconder os traumas do passado, por meio de um pacto social estabelecido entre governos

militares e sociedade, que relegou ao esquecimento os dramas sofridos por parcelas da sociedade e

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que se fazem presentes no atual contexto histórico, pois, segundo Marc Ferro “o ressentimento é

uma força latente, pulsante na história”.

O historiador Carlos Fico desenvolveu um trabalho de pesquisa com o foco voltado para a questão

do otimismo numa perspectiva política. Segundo Fico, esse otimismo foi forjado pela propaganda

política militar através de um discurso que tinha por objetivo criar uma identidade, ressignificar as

representações sociais. Para tanto, investigou os meandros da informação/comunicação e os vários

sentidos que elas adquiriram no contexto militar em prol do controle e da dominação.

Nesse aspecto da propaganda, os brasileiros se diferenciaram dos métodos empregados pela

propaganda nazi-fascista nos aspectos doutrinários, na personalização do líder e nas poucas

referências oficiais. A visão otimista do regime militar foi um fenômeno de curta duração que se

relaciona com a tradição de longa duração no Brasil de otimismo tanto quanto de pessimismo. Neste

período, vários grupos econômicos, instituições públicas e privadas contribuíram ativamente na

fabricação e na comercialização de uma imagem positiva do país. No campo das representações os

governos autoritários criaram um projeto de nação, frágil e duvidoso, porém real, que mexia com o

imaginário social: “Brasil grande”, “país do futuro”, “ninguém segura este país”, ideologias que

encobriam os reais problemas nacionais.

Essa visão otimista de longa duração reforçada pela propaganda política durante o regime militar foi

uma tentativa de alicerçar a convicção dos brasileiros de que “tudo vai dar certo” uma visão mítica

e otimista do futuro. A grande dificuldade dos historiadores, segundo Fico, é entender que as

imagens positivas não estão associadas a ações coordenadas de forma intencional; e sim que são

frutos de um processo mais complexo dentro de um sistema de representações. Isto é, a imagem de

que a propaganda política do regime militar como uma “máquina de controle ideológico” ou

“instrumento de manipulação” criado para reagir aos movimentos civis contrários ao regime, não se

sustenta.

Carlos Fico afirma que a invenção da tradição brasileira foi à invenção do otimismo. Este está

associado à certeza de que o Brasil está predestinado ao sucesso. Por intermédio do “Milagre

Econômico” que coincidiu com o “espírito modernizante”, vários setores médios e industriais do

país viveram um clima de grande otimismo. Foi a época dos grandes projetos na área da construção

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civil, como a Transamazônica, Ponte Rio-Niterói, Hidrelétrica de Itaipu. Essas grandes obras

relacionavam-se com uma perspectiva otimista de futuro calcada num presente de realizações. Ou

seja, a ideia de “Brasil potência” atendia aos anseios das elites interessadas no desenvolvimento e

na segurança, representações muito bem trabalhadas pelo Regime Militar.

A historiadora Janaína Cordeiro, ao pesquisar os discursos oficiais otimistas do Governo do General

Médici (1969-1974) e, sobretudo, a visão analítica sobre as comemorações cívicas organizadas no

ano do Sesquicentenário (1972) que representou o auge do regime, da popularidade do então

presidente e a produção de uma legitimidade num regime não democrático, se debruçou sobre os

conceitos teóricos que abordavam o consenso e consentimento, valendo-se do pensamento de

autores que discorreram sobre o assunto.

O consenso na visão de Nobert Bobbio é “o acordo compartilhado pela e na sociedade; ponto de

vista de princípios, valores e normas comuns que estabelecem um acordo entre o regime político

vigente e a sociedade”. O consentimento versa com os comportamentos sociais, pois estas são as

formas pelas quais o acordo se manifesta socialmente.

O objetivo era compreender como se manifestava o consenso em sociedades não democráticas, haja

vista, ser ela uma categoria que teoricamente só poderia ser aplicada em regimes democráticos. Por

isso, a autora utiliza-se do pensamento do historiador francês, Pierre Laborie, que aborda o

consenso em regimes não democráticos como uma “zona cinzenta”, ambivalente e que caracteriza o

pensar duplo do homem.

Assim ela avançou na discussão binária sobre estado opressor x sociedade vitimada, sustentada

pelos lugares comuns da memória que consagrou a ideia de resistentes de um lado e colaboradores

do outro em vários regimes não democráticos, ao analisar apoio dado pela sociedade brasileira, de

formas múltiplas e heterogêneas, ao regime militar brasileiro. Houve um pacto social pós 1964 que

sustentou o regime militar por 21 anos e que ainda alimenta uma memória positiva sobre o ele no

presente. Somente a repressão, a coerção, a censura, não são capazes de dar sustentação a regimes

autoritários.

Os regimes autoritários produzem orgulho, encantamento que fascinam a maioria da sociedade onde

já possui traços conservadores e autoritários em sua gênese. Sob essa ótica é possível compreender

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porque alguns segmentos sociais, pessoas das mais diversas camadas pedirem a volta da ditadura

nas passeatas contra o governo petista (2015-2016) e que culminaram com o impedimento da

presidente Dilma Russeff.

A historiadora Janaína relata que no lugar comum da memória, os “anos de chumbo” ficaram

consagrados, porém, essa realidade de violência, perseguição e tortura foi vivida por uma pequena

parcela da sociedade brasileira. Para a grande maioria esse período representou “anos de ouro”.

Vários segmentos sociais passaram a largo do sistema repressivo e experimentaram uma

prosperidade intensa, segurança, estabilidade e alívio em função da ação do estado contra a ameaça

terrorista comunista.

A ideia da “construção do novo” trazida no bojo pelo Milagre Econômico foi capaz de criar

expectativas positivas, patrióticas, nacionalistas, mobilizando grande parte da sociedade. Ela

dialogou com a tradição otimista nacional numa perspectiva de longa duração enraizada na

sociedade. O êxito desse discurso se deu por conta da coerção e do consentimento. A multidão

silenciosa que vivenciou esse período e que acompanhava as festividades das comemorações cívicas

consentiu com o regime militar. Isso mostra as formas diversificadas dos comportamentos sociais

que representam o consentimento. Há necessidade de compreender a ditadura como produto da

sociedade brasileira que se manifestou favoravelmente de forma ativa, militante, engajada e também

de forma silenciosa.

A autora sugere que novas pesquisas acadêmicas superem as batalhas pela memória. Por exemplo,

Médici foi o presidente mais popular do país desde Juscelino Kubitschek, segundo pesquisa

realizada pela revista veja a época e também o presidente que mais rápido caiu no esquecimento.

Conforme Michel Polack: “memória, esquecimento e silêncio fazem parte da dinâmica social”.

Porém, ele entrou para a história como um presidente soturno, sério, violento que viveu seus

últimos dias no ostracismo. Isto é, na batalha pela memória a que venceu foi a do anti-herói.

A memória não se opõe ao silêncio. Segundo a autora, a sociedade não esqueceu Médici, o que

ocorreu foi à determinação das memórias de acordo com as circunstâncias do presente. O que se

deve ser lembrado e o que de ser silenciado passa por uma escolha coletiva. Para Pierre Laborie o

silêncio não é a perda de memória, não é esquecimento. É sim uma forma de lembrar, de se

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posicionar diante das situações no passado e que não se fazem mais urgentes no presente. Silêncio é

a incapacidade de assumir coletivamente os erros do passado.

Esse sucesso só foi possível porque o regime fascinou a maioria dos grupos sociais. Para essa

discussão a autora usou o historiador alemão Peter Reichel que ao analisar o nazismo afirmou que o

regime nazista foi capaz de fascinar o povo alemão. Esse conceito de fascinação em regimes não

democráticos não se traduz em manipulação ou passividade. Simboliza antes de tudo uma tomada

de posição consciente que encontra eco nos anseios e expectativas das pessoas.

A ditadura civil militar foi capaz de fascinar muitos segmentos da sociedade por dialogar com

tradições antigas, valores presentes no imaginário social como o otimismo, o conservadorismo e o

próprio autoritarismo. Segundo Peter Reichel, todo regime ditatorial possui duas facetas opostas,

porém complementares: a face terrível, violenta, da repressão; e a face bela, graciosa, espetacular. O

governo Médici soube capitalizar os ganhos políticos ao potencializar o lado harmonioso do regime

ao conceder festas cívicas, eventos esportivos, propagandas oficiais que reforçavam as esperanças

da sociedade com o governo. Houve aprovação, identificação, consentimento representado pela

espetacularização da ditadura.

O consenso foi estabelecido através de um pacto social entre a sociedade e o regime militar em

função de várias políticas públicas, da propaganda oficial, das comemorações cívicas, do otimismo

gerado pelas grandes obras públicas que foram capazes de estabelecer um equilíbrio social. Este só

foi possível ser conquistado em razão das tradições, dos valores e cultura política da sociedade

brasileira que foram atendidas pela capacidade do estado ditatorial em dialogar com esses valores

que passavam pela presença do elemento militar.

Os estudos, as pesquisas sobre o consenso social precisam superar a bipolarização inserida nas

batalhas pela memória que silenciam as variáveis complexas, o meio termo, a ambivalência, a

chamada “zona cinzenta”. A memória oficial consagrou a ideia dos traumas vividos pelas vítimas

do Estado. Essa visão predominou em detrimento dos silêncios das memórias de grupos que de

forma heterogênea apoiaram, sustentaram, consentiram com o regime civil militar. No papel da

fascinação, a sociedade exerceu um papel ativo, de protagonista e não de massa de manobra ou

seduzidos inocentemente pelo governo autoritário.

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4 – O Espírito Santo e a construção do consenso

Este trabalho tem por objetivo estabelecer a relação entre otimismo, enraizado no imaginário social

brasileiro numa perspectiva de longa duração, com o conceito de memória positiva numa

perspectiva regional, no caso o estado do Espírito Santo, visando compreender como essa memória

positiva sobre a ditadura militar no ES se fez e ainda se faz presente em nossos dias e de quais

formas ela se sustenta em pleno século XXI. Como os mecanismos que determinam a consolidação

de certa memória em detrimento de outras foram fundamentais para substituição da memória do

triunfo pela memória do trauma em solo capixaba.

Com base nesta análise, é necessário investigar quem produziu e quem patrocinou a memória oficial

no ES nos anos de 1968 a 1978 e os interesses políticos e econômicos ligados ao poder autoritário

para compreender como se construiu o discurso oficial do Regime Militar em solo capixaba e os

caminhos trilhados pela comunicação/informação dos governos estaduais neste recorte histórico. O

aspecto da propaganda política utilizada pelos governos estaduais capixabas como forma de

comunicação com a sociedade requer uma reflexão sobre como elas foram utilizadas, como

conseguiram ocultar a realidade das prisões, torturas, perseguições e mortes, indicando uma

possível indiferença da própria sociedade. Este consentimento pode ter influenciado a forma como

os discursos dissonantes foram tratados no Espírito Santo.

Outra questão relevante é entender como essa classe média urbana e as elites, inclusive a

intelectualizada, viam e se relacionavam com os governos de Cristiano Dias Lopes Filho, Arthur

Carlos Gerhardt Santos, Élcio Álvares, pois a ideia de prosperidade que tomou conta do Brasil no

governo Médici pode ter gerado uma onda de otimismo que também se fez sentir também no

Espírito Santo. Qual era a imagem, a visão que a sociedade capixaba tinha dos seus governadores

entre 1968-1978? Qual deles, neste período de 68-78, foi capaz de despertar a atração, fascinação

entre os capixabas?

Um norte para ampliação dessa pesquisa são s grandes obras realizadas no ES na década de 70 e o

clima de otimismo que elas produziram em torno da visão de um estado forte e próspero, em

sintonia com discurso oficial do governo federal de “construção do novo”. Elas apontam para o

enraizamento de uma memória positiva sobre esse período histórico e que ecoa no presente como

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foi possível constatar nas manifestações contrárias ao governo federal no ano de 2015 na capital

Vitória.

Esse otimismo em relação ao crescimento econômico, a “prosperidade” do Estado capixaba nos

anos entre 1968-1978, pode não ter sido percebido por todos os segmentos sociais. Então é

imperativo compreender da parte de quais grupos vinham esse clima positivo sobre a Ditadura.

Relevante também é identificar a presença do consentimento, na perspectiva discutida pela

historiadora Janaína Cordeiro com base em Laborie e outros teóricos, sobre as formas de

comportamentos sociais tais como: a indiferença, o silêncio, a apatia, fascinação, adesão declarada,

submissão declarada, que favoreceu a construção do consenso entre a sociedade capixaba e a

ditadura militar.

Para tal fim, se torna essencial uma análise sobre o consenso social no período de 68-78 em

território capixaba que supere os embates, as batalhas pela memória que produziram e ainda

produzem uma bipolarização entre dominadores e vítimas que é frágil e limitadora, pois escondem

as variáveis complexas e heterogêneas sociais, definidas pelo historiador francês Pierre Laborie

como “zonas cinzentas”.

Numa visão de longa duração, na perspectiva discutida por Carlos Fico que concluiu a invenção da

tradição no Brasil como sendo a invenção do otimismo, se faz necessário refletir sobre o atual

momento de crise política, econômica e institucional que se instalou no Brasil, na metade da

segunda década do século XXI, e analisar se essa crise é capaz de trazer ao coletivo social uma

memória positiva, otimista de um passado não muito distante que tenha experimentado um clima de

otimismo e esperança como a Ditadura Militar.

Porque ela foi capaz de fascinar (com base na definição de fascinação de Peter Reichel) segmentos

sociais capixabas ao que tudo indica. Estabeleceu um diálogo com tradições antigas e presentes no

imaginário social a ponto de despertar otimismo entre diversos grupos sociais. Essa perspectiva de

longa duração de uma visão otimista do país pode ter relação com as justificas apresentadas para

participação de vários grupos sociais nas passeatas pelos grandes centros capixabas, em protestos

legítimos contra o governo petista da presidente Dilma Russeff, que pediam intervenção militar no

país e compreender as representações sólidas construídas no imaginário coletivo social que trouxe a

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cena atual do jogo político capixaba, uma memória positiva sobre a Ditadura Militar em pleno

século XXI.

Isso sugere uma análise sobre os discursos amplamente produzidos pela mídia sobre os desvios

éticos, morais do governo federal no tempo histórico recente (2015-2016) e que estiveram presentes

na mobilização da classe média urbana e industrial brasileira e, no caso analisado, a capixaba

ressoando em vários segmentos, cujo resultado final foi o consenso em torno do Impeachment da

então presidente do Brasil.

As formas de percepção do poder por parte das elites capixabas no período de 68-78, Como a

sociedade capixaba via o poder autoritário do Regime Militar através dos governos estaduais, quais

os símbolos, as imagens, a que eles utilizam no Espírito Santo e que representavam a aparição do

poder no imaginário coletivo social são espaços vazios que precisam ser resgatados para uma

compreensão mais abrangente da complexidade da sociedade capixaba.

A própria forma de comunicação permite questionar quem eram os responsáveis pela propaganda

política dos governos estaduais no Espírito Santo. Como atuaram os órgãos ou agências de

propaganda criadas pelos governos capixabas com a finalidade de projetar esse discurso sobre o

futuro otimista na década de 1970. As grandes obras públicas no estado apontam para uma relevante

contribuição para “reinventar” o otimismo num contexto de falência da do sistema econômico do

Regime Militar no estado.

O sistema educacional estadual também merece atenção, pois é uma vertente que se mostrou útil

para vários regimes não democráticos, como espaço apropriado para a propagação e difusão de

valores patrióticos, do nacionalismo, do otimismo que foi utilizado para a construção do consenso

social. Os órgãos de propaganda dos governos capixabas valeram-se da educação para

disseminarem a ideologia autoritária do regime militar, o que configuraria o estabelecimento de um

pacto social e que deram sustentação ao regime autoritário.

Nessa perspectiva, este trabalho de pesquisa analisa os instrumentos de conciliação, de consenso e

de consentimento utilizados pelos governos autoritários que não só deram legitimidade ao regime

na década de 70, como foram essenciais para construção de uma memória “positiva” do Regime

Militar no Espírito Santo e que dá indícios de que ainda é predominante nos dias atuais. Para tanto,

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um olhar sobre as passeatas de março de 2015 realizadas na capital Vitória, em meio a centenas de

milhares de pessoas em protesto contra o governo federal, foi possível identificar vários cartazes,

vozes pedindo intervenção militar, sugerindo a volta do regime autoritário no país como se este

tivesse sido “positivo” para a nação.

O Regime Militar brasileiro (1964-1985) é um período que nos mostra indícios de várias relações

complexas entre a sociedade civil e o regime autoritário em solo capixaba, que carece de maior

compreensão e estudo para trazer à tona as realidades vividas e sentidas pelo povo, as relações de

poder constituídas entre os atores políticos e econômicos que estavam em cena naquele contexto

ditatorial.

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