Evolução do controle da atividade administrativa pelos Tribunais José de Ribamar Barreiros Soares

Embed Size (px)

Citation preview

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    1/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 93

    Sumrio

    1. Aspectos gerais. 2. O controle da discri-cionariedade administrativa. 3. O controle daadministrao pblica no Brasil-Colnia. 4. Ocontrole da administrao pblica no Brasil-Imprio. 5. O controle da administrao pblicano Brasil-Repblica. 6. Definio da matriana Constituio de 88. 7. A viso da doutrinaclssica. 8. O conceito moderno de controle daatividade administrativa. 9. Sistemas de controleda atividade administrativa. 10. Concluso.

    1. Aspectos gerais

    Desde o sculo XIX, aparece na Frana oque se chamaria de recurso por excesso depoder, momento esse em que se comea alimitar a discricionariedade administrativado agente pblico, independentemente desua hierarquia administrativa.

    O primeiro passo o controle do ato ad-ministrativo a partir do vcio de incompe-tncia, que diz respeito prtica do ato porquem no tem autoridade legal para tanto.Sendo o rgo que dita o ato incompetente,anula-se tal ato. Este, o primeiro avano nocontrole do ato administrativo.

    O segundo passo atine com a forma doato administrativo. No se encontrandodentro dos parmetros legais quanto

    forma de que se deve revestir o ato, faz-sepresente a possibilidade de sua anulao.O terceiro passo o controle do ato por

    meio da tcnica do desvio de poder. Assim,

    Evoluo do controle da atividadeadministrativa pelos Tribunais

    Jos de Ribamar Barreiros Soares

    Jos de Ribamar Barreiros Soares, doutoran-do em Cincia Poltica pelo Instituto Universi-trio de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ eDiplme dtudes Politiques Gnrales pelaUniversit Paris I - Panthon Sorbonne, Con-sultor Legislativo da Cmara dos Deputados,

    Advogado, ex-Professor Assistente de Direitoda Universidade de Braslia, ex-Assessor Jur-dico da Procuradoria-Geral da Repblica e doTribunal Superior do Trabalho.

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    2/32

    Revista de Informao Legislativa94

    a discricionariedade controlada, perden-do sua caracterstica de insindicabilidade. Opoder discricionrio passa a ser visto comoliberdade conferida administrao para

    atingir o fim desejado pelo legislador. Se oadministrador se descia dessa finalidade,seu ato anulado por desvio de poder.

    Ao final do sculo, o recurso passa aser utilizado para coibir qualquer viola-o de lei, direta ou indireta. A violaode lei vem a ser entendida no sentido deviolao no apenas da lei, mas tambmdos princpios dessa finalidade, seu ato anulado por desvio de poder. Assim, um

    verdadeiro arsenal tcnico foi colocado disposio no combate arbitrariedadeadministrativa, tornando-se marcante opapel desempenhado nesse sentido peloConselho de Estado francs.

    2. O controle da discricionariedadeadministrativa

    No que tange ao tema da discriciona-

    riedade, h de se mencionar, ainda, noDireito francs, a anlise dos conceitosindeterminados, em que a administraodispe de liberdade para adotar os crit-rios de interpretao na prtica dos atosadministrativos. Em relao a esses temas,o Conselho de Estado francs efetua o con-trole mximo, a saber, o da adequao dadeciso aos fatos. Assim, examina no ape-nas a questo da legalidade, mas tambm

    se a deciso tomada pela administrao a mais adequada.Quando falamos em administrao

    pblica, logo pensamos em gesto de in-teresses coletivos, interesses pblicos. Defato, o atendimento ao interesse pblico o objetivo maior, a razo de ser da admi-nistrao pblica. Nesse sentido, vale citaro argumento de Gisele Cittadino (2002, p.25-26), que transcrevo, in verbis:

    Parece no haver dvida alguma deque o sistema de direitos fundamen-tais se converteu no ncleo bsico doordenamento, constitucional brasilei-

    ro. Ao estabelecer, no Ttulo I Dosprincpios constitucionais , os fun-damentos (art. 1o) e os objetivos (art.3o) do Estado Democrtico de Direito,

    privilegiando, tanto em um como emoutro, a dignidade da pessoa huma-na, determinados princpios forampositivamente incorporados Cons-tituio. Como os princpios so con-siderados mandamentos nuclearesde um sistema (cf. Mello, 1980:230)ou ordenaes que se irradiam eimantam os sistemas de normas (f.Silva, 1989:82), e neles se expressam

    os valores constitucionais, os nossosconstituintes criaram as chamadasnormas-princpios, que formamos preceitos bsicos da organizaoconstitucional. Pela primeira vez nahistria brasileira uma Constituiodefiniu os objetivos fundamentaisdo Estado e, ao faz-lo, orientou acompreenso do sistema de direitosfundamentais. Em outras palavras,

    a dignidade humana, traduzida nosistema de direitos constitucionais, vista como o valor essencial que dunidade de sentido Constituio Fe-deral. Espera-se, conseqentemente,que o sistema de direitos constitucio-nais, visto como expresso de umaordem de valores, oriente a interpre-tao do ordenamento constitucionalem seu conjunto.

    A atuao da administrao pblica estlimitada por preceitos jurdicos e morais,visando-se, desse modo, ao bem comum.Os princpios constitucionais, os direitos egarantias fundamentais e o Estado Demo-crtico de Direito so bases inafastveisna formulao de polticas pblicas e noexerccio da atividade administrativa noBrasil.

    Essa nova viso do Direito Constitucio-

    nal e do Direito Administrativo leva ne-cessidade de uma reformulao da prticaadministrativa e a uma nova conceituaode discricionariedade administrativa, no

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    3/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 95

    mais se admitindo a existncia de um cam-po de atuao administrativa insindicvel eisenta de apreciao judicial. No , pois, dese estranhar que a atividade judicial tenha

    sofrido uma evoluo considervel, ao lon-go dos anos, e que a ingerncia do juiz naatuao do administrador pblico tenha-seexpandido, ao ponto de abranger a conveni-ncia e oportunidade do ato administrativo,o chamado mrito administrativo.

    Enquanto, no passado, se defendia, comtanta veemncia, o isolamento do mritoadministrativo da apreciao e do controle

    judicial, na modernidade, no mais se sus-

    tenta essa soluo, uma vez que a soberaniado povo deve sobrepor-se liberdade doprncipe, do administrador, pois, de outromodo, o poder no emanaria do povo, masdo soberano. O interesse privado deve-sesubmeter ao interesse da coletividade e ointeresse privado do soberano nem mes-mo pode ser admitido, uma vez que a suafuno precpua a satisfao do interessecoletivo, como lhe impe o regime demo-

    crtico.

    3. O controle da administraopblica no Brasil-Colnia

    Nessa poca, encontram-se todos ospoderes concentrados no monarca, a ma-gistratura revela-se submissa s decisesdo governo, acatando aquilo que o onipo-tente rei decidisse como sendo o interesse

    pblico, j que este era, em ltima anlise,fruto da reflexo do prprio rei e, assim,suas decises eram sempre consoantes aointeresse pblico.

    4. O controle da administraopblica no Brasil-Imprio

    Nessa poca, funcionava o Conselho deEstado como rgo superior do contenciosoadministrativo, criado pelo Decreto de 18de fevereiro de 1821, do Rei Dom Joo VI.A seguir, instituiu-se o Conselho de Procu-radores-Gerais das Provncias do Brasil, por

    meio do Decreto de 16 de fevereiro de 1822,de Dom Pedro I, sendo esse rgo extintoem 20 de outubro de 1823. Aps isso, cria-se o Conselho de Estado, pelo Decreto de

    13 de novembro de 1823. A Constituiodo Imprio, de 1824, do Captulo VII, dis-ciplinava a estrutura e funcionamento doConselho de Estado.

    5. O controle da administraopblica no Brasil-Repblica

    Com a Constituio de 1891, ficou abo-lido o pretenso contencioso administrativo

    do Brasil-Imprio. Em seu art. 60, instituiua competncia dos Juzos ou TribunaisFederais para processar e julgar:

    a) as causas em que alguma das partesfunda a ao, ou a defesa, em disposio daConstituio Federal;

    b) todas as causas propostas contra oGoverno da Unio ou Fazenda Nacional,fundadas em disposies da Constituio,leis e regulamentos do Poder Executivo,

    ou em contratos celebrados com o mesmogoverno;c) as causas provenientes de compen-

    saes, reivindicaes, indenizao deprejuzos ou quaisquer outras propostaspelo Governo da Unio contra particulares,ou vice-versa.

    Assim, as causas envolvendo a adminis-trao pblica passarem competncia da

    Justia Federal, confirmando-se a unidade

    de jurisdio, em que o Judicirio o nicoPoder competente para julgar os conflitos,tanto os comuns como os de natureza ad-ministrativa. Esse sistema foi preservadopelas Constituies posteriores, cabendoao Poder Judicirio examinar todas ascausas em que se alegue leso ou ameaaa direitos.

    6. Definio da matria na

    Constituio de 88O princpio do controle da adminis-

    trao pblica pelo Judicirio encontra-se

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    4/32

    Revista de Informao Legislativa96

    explicitado no art. 5o, XXX, da Constituiode 1988, que reza: A lei no excluir daapreciao do Poder Judicirio leso ouameaa a direito.

    Dessa forma, observa-se que o sistemade controle da administrao pblica, noBrasil, o de uma jurisdio, em que oslitgios envolvendo a administrao sode competncia dos tribunais comuns,e no de um Conselho de Estado. Toda-via, com a expanso do controle dos atosadministrativos, atingindo-se o mritodo ato administrativo, com a anlise damoralidade e da eficincia administrativa

    pelo Poder Judicirio, o sistema brasileiroaproximou-se da justia administrativa,com uma abrangncia caracterstica daque-le, o que representa um avano do EstadoDemocrtico de Direito.

    7. A viso da doutrina clssica

    De acordo com a doutrina clssica, ocontrole judicial do ato administrativo est

    limitado, nos casos concretos, questo dalegalidade, no podendo o Poder Judicirioadentrar o mrito do ato administrativo.Desse modo, no aceita a doutrina clssicaa interferncia do Poder Judicirio no quediz respeito convenincia e oportunida-de do ato administrativo, no podendo omrito do ato administrativo ser objeto decontrole judicial.

    Quanto questo da legitimidade,

    entendem alguns autores que ela noabrange apenas a conformao do ato coma lei, mas, tambm, sua adequao com amoralidade administrativa e o interesse p-blico, elementos estes que devem permeartodos os atos do administrador pblico.Assim, aqueles atos que vo de encontro moral administrativa ou no satisfazem aointeresse coletivo, atendendo a interessesprivados de indivduos, grupos ou par-

    tidos, devem ser considerados ilegais ouilegtimos, sendo passveis de anulao. incumbncia do Poder Judicirio examinaros aspectos relacionados legitimidade do

    ato administrativo, a fim de decidir quantoa sua nulidade ou no.

    A legalidade do ato administrativo subexame pelo Judicirio abrange no apenas

    a competncia para a prtica do ato e desuas formalidades extrnsecas, mas aindaos requisitos substanciais do ato, bem comoos pressupostos de fato e de direito, quan-do esses aspectos estejam previstos em leicomo vinculados ao ato administrativo. Asrestries impostas ao controle jurisdicionaldo ato administrativo teriam por objetivosubtrair a administrao pblica predo-minncia do Judicirio, ameaadora da

    atuao da administrao e de sua ativida-de peculiar. Assim, controle judicial do atoadministrativo estaria restrito ao aspecto dalegalidade, sendo vedado ao Poder Judici-rio apreciar o mrito administrativo, isto ,sua convenincia e oportunidade.

    A Constituio de 1934 dispunha, no art.68: vedado ao Poder Judicirio conhecerde questes exclusivamente polticas. ACarta de 1937, em seu art. 94, trazia a mes-

    mo vedao. A respeito de tais atos e suaorigem histrica, assim nos relata Garciade Enterria (1990, p. 497-498):

    Historicamente, a doutrina dos atospolticos foi introduzida pelo Con-selho de Estado francs (talvez umadas escassas mculas de sua histriaexemplar) no momento crtico da Res-taurao bourbnica, quando estavaem risco, como criao napolenica,

    a subsistncia da grande instituio ede suas funes. O Conselho se negousistematicamente a conhecer aquelasreclamaes que tinham relao comos problemas polticos derivados daextino do regime napolenico (porexemplo, arrt Laffite, 1822) e maisadiante com os que se referiam s dis-tintas mudanas e conflitos polticosque se sucederam. Chegou-se assim

    teoria do mbil poltico, segundoo qual, fosse qual fosse o objeto ma-terial do ato, sempre que os gover-nantes o ordenassem em funo de

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    5/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 97

    um fim poltico, tornava-se com issoisento do contencioso administrativo.O sistema funcionou com todos os re-gimes at 1875. Nesta ltima data, j

    estabelecido o sistema de jurisdicodelegada (desde 1872), que reconhe-ceu ao Conselho de Estado toda asua independncia, pela primeira veztomando conhecimento da reclama-o do prncipe Jernimo Napoleocontra sua suspenso como generalde diviso. O critrio se mantm em1880, a propsito de assuntos relacio-nados com a expulso dos jesutas, e

    em 1887, arrtPRINCE DOrlans ePrince Murat. Desde ento se mantmainda a tese dos atos polticos ou degoverno unicamente enquanto se re-firam a um lista concreta de matrias,que a jurisprudncia posterior foireduzindo. Esta lista, j desvinculadapor completo da origem da doutrina,compreende hoje as relaes inter-nacionais, as relaes interconstitu-

    cionais do Executivo com os demaispoderes e as questes de perdo eanistia. A iseno jurisdicional des-tas hipteses explicvel por razesprprias, pelo que a arcaica doutrinados atos de governo se declara hojeintrouvable (Virally).

    De acordo com a doutrina clssica, taisquestes polticas no poderiam ser objetode exame pelo Poder Judicirio. No direito

    francs, surgem com fundamento na dou-trina do mvel ou do fim; o ato poltico,desse modo, teria finalidade mvel, denatureza poltica. Vistos por esse aspecto,os mveis polticos poderiam ser aplicadosa qualquer ato administrativo e, consequen-temente, dada a dificuldade de averiguar,no caso concreto, o motivo ltimo do ato,poder-se-ia chegar subtrao da maiorparte dos atos administrativos do controle

    pelo Judicirio.Essa possibilidade levou o Conselho deEstado francs a substituir essa teoria pelados atos de governo, considerando-se sua

    natureza. Os atos de governo so aquelesassim designados pela jurisprudncia, sen-do esta complementada pela enumeraocontida em lei, como: defesa do territrio

    nacional, relaes internacionais, seguranainterna do Estado, mando e organizaomilitar.

    Entretanto, no h como se pretendera insindicabilidade desses atos polticos,sob pena de se admitir que o administra-dor detenha um poder arbitrrio no quetange a essas matrias, passando por cimados direitos fundamentais dos cidados,sem que estes possam ingressar perante o

    Judicirio para exigir o respeito lei. A dou-trina dos atos de governo foi superada nodireito francs. Restaram como limitaesao controle judicial as relaes governo-parlamento e as relaes internacionais,ficando os demais atos chamados polticosou de governo sujeitos sindicncia pelo

    Judicirio.Como bem lembra Cristina M. M. Quei-

    roz (1990, p. 199), em sua obra Os actos

    polticos no Estado de Direito,essa mudana funcional observadanos direitos fundamentais no detipo meramente nominal. Indica, pelocontrrio, que a relao que intercedeentre o Estado e a sociedade, regula-da pelos direitos fundamentais, nopode j ser descrita adequadamenterecorrendo-se s categorias abstractase formais da autoridade do Estado,

    de um lado, e da submisso doscidados, do outro. Como observa,com grande penetrao intelectual,Peter Hberle, h que se colocar acabea do absolutismo tardio sob psdemocrticos, ou seja, que os direitosfundamentais inerentes pessoahumana no podem ser unilateral-mente reduzidos a uma dimensosupratemporal de validade absoluta,

    antes se ordenam em funo de esfe-ra de vida social que se manifestamcomo especialmente necessitadasde proteco. Da que as formas e

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    6/32

    Revista de Informao Legislativa98

    os conceitos jurdicos transmitidosnem sempre sejam suficientes paracaracterizar de forma mais adequadaa situao actual. o que se passa, por

    exemplo, com a clusula do Estado dedireito democrtico da Constituioda Repblica.

    O aperfeioamento do Estado de Direi-to implica a diminuio da esfera de atospolticos juridicamente insindicveis. verdade que h conflitos de natureza pura-mente poltica, alheios ao controle jurdicodo Judicirio. Outros, entretanto, escapama essa abrangncia, transcendem o mbito

    meramente poltico, para sujeitar-se aocontrole judicial. necessrio, contudo, que, no controle

    jurdico dos atos polticos que a ele se su-jeitarem, o magistrado aja com certa dosede autoconteno, a fim de no incidir emuma usurpao de poderes. Nesse sentido,citamos mais uma vez os comentrios deCristina M. M. Queiroz (1990, p. 218), nosseguintes termos:

    O jogo recproco entre a direo nor-mativa do processo poltico e as reac-es das idias e fora polticas queconstituem a ordem normativa realou constituio efectiva no podemser suprimidos nem para um ladonem para o outro. No conflito entreo princpio do Estado de direito e odireito de governar, a mxima mon-tagem de controles inter-orgnicos

    no significa sempre um resultadotimo. A institucionalizao de me-canismos de controle jurdico do po-der apresenta-se como um elementonecessrio e indefectvel do Estadode Direito. Mas seria puro enganopressupor que o manejo de todo esseinstrumentrio jurdico pudesse algu-ma vez resolver todos os problemasconcernentes justiciabilidade do

    poltico. Numa ordem constitucionallivre e democrtica, o controle jur-dico no tudo. Controles sociais epolticos tambm se desenvolvem

    como desde h muito foi notado.Defensores da Constituio so todosos rgos constitucionais e todos oscidados com vontade de Consti-

    tuio.No mais se pode conceber que o mritodo ato administrativo fique completamentefora de controle judicial, diante dos princ-pios da moralidade e eficincia insculpidosno art. 37 da Constituio. A Constituiode 1988 instituiu a moralidade e a efici-ncia como princpios autnomos. O atoadministrativo, para que seja tomado comovlido e eficaz, deve tambm se sujeitar

    aos princpios da boa administrao. Afim de garantir o atendimento ao interessee aos anseios da coletividade, bem comoa obedincias lei por parte do adminis-trador pblico e ao bem comum, os atosadministrativos se subordinam ao controledo Poder Judicirio.

    8. O conceito moderno de controle daatividade administrativa

    Modernamente, existem diversos direi-tos e garantias fundamentais que tm con-dicionado a construo e consolidao dademocracia atual. Em face desses direitos egarantias fundamentais, o Judicirio passaa ter novo papel na ordem democrtica,tendo em vista a necessidade de propiciaraos cidados o respeito a esses direitosconstitucionalmente estabelecidos, diante

    do que a discricionariedade administrativasofre mais um golpe, diminuindo-se seucampo de incidncia.

    No h qualquer discricionariedade embenefcio do administrador ou do PoderPblico. A discricionariedade deve sempreser pautada pelo interesse pblico, pela so-berania popular, pela democracia, de modoque toda ao administrativa respeite inte-gralmente a vontade do povo que elegeu

    seus representantes para exercer os atos davida pblica em seu nome e proveito. por isso que a Constituio estabelece

    um quadro extenso de princpios, quer

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    7/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 99

    explcitos quer implcitos, de modo quetoda atividade administrativa seja por elesregulada, da poder-se falar em ato vincula-do e elementos discricionrios do ato. No

    existe a rigor nenhum ato discricionrio,no campo da atividade administrativa p-blica. Os atos administrativos so, por suavez, todos vinculados. Todavia, na prticadesses atos, verificam-se alguns procedi-mentos, algumas particularidades de cunhodiscricionrio, que, entretanto, ao final, setransformaro em elementos vinculados,pois faro parte de um todo que ser sem-pre vinculado, e nunca discricionrio. O

    ato a totalidade, o elemento discricionrio uma frao, uma parte desse todo. Porisso, ao final com o todo se confundir e aele estar estreitamente ligado, assumindosuas feies legais e normativas, ou seja, deato vinculado.

    O mrito do ato administrativo dizrespeito valorao intrnseca do ato comvistas delimitao da convenincia eoportunidade, podendo o administrador

    optar, inclusive, entre ao ou absteno,tendo em vista o atendimento ao interessepblico. Nesse sentido, a lio do professorCelso Antnio Bandeira de Mello (1992, p.82), para quem

    o mrito do ato administrativo nopode mais que o crculo de liberda-de indispensvel para avaliar, nocaso concreto, o que convenientee oportuno luz do escopo da lei.

    Nunca ser liberdade para decidir emdissonncia com este escopo.Na apreciao da convenincia e opor-

    tunidade, o agente pondera sobre a hora,o lugar, justia, economicidade, razoabili-dade, moralidade, utilidade, eficincia, pro-bidade, obedincia aos princpios da boaadministrao e, sobretudo, o atendimentoao interesse pblico. O estudo do mrito doato administrativo no se restringe apenas

    ao aspecto jurdico: vai alm deste, invadin-do o campo da Filosofia, da Sociologia e daMoral. Isso acontece porque, no mbito domrito administrativo, o agente administra-

    tivo procede a um juzo de valor. O examedo mrito do ato administrativo envolveuma abordagem axiolgica da realidadesocial e administrativa, envolvendo uma

    noo no do ser, mas do dever ser.O mrito administrativo diz respeito aelementos no vinculados do ato adminis-trativo, situando-se, assim, no campo dosatos administrativos discricionrios, emque a lei confere administrao pblica aescolha e valorao dos motivos e do objetodo ato. Refere-se o mrito conveninciae oportunidade do ato, elementos estessubmetidos apreciao do administra-

    dor pblico. Ao decidir sobre o mrito, oadministrador pblico aprecia o critrio deconvenincia, oportunidade, razoabilidade,

    justia, economia, acerto, utilidade, boaadministrao e moralidade. Trata-se devalorao, de juzo de valor.

    A oportunidade do ato administrativoatina ao momento, ao melhor tempo parasua prtica, dadas as circunstncias que oenvolvem. Neste ponto, cabe a apreciao

    subjetiva do administrador para determi-nar qual o momento mais adequado, maisoportuno, para a prtica do ato. Dessemodo, resulta que um ato tido por oportu-no, em dado momento e em certa circuns-tncia, pode revelar-se incuo e inoportunoem poca e situaes distintas.

    No que tange convenincia, esta re-sulta da apreciao quanto quilo que adequado, justo, razovel, eficaz, eficiente,

    apropriado e moral. O vcio de mrito dizrespeito inoportunidade e inconvenin-cia do ato, resultantes da apreciao equi-vocada dos fatos, em face dos fins visadospelo legislador. Assim, mesmo que tais atosse ajustem ao campo estrito da legalidade,no sero hbeis ao atendimento do inte-resse pblico tutelado pelo ordenamento

    jurdico.Segundo ensinamento de Vitta (apud

    DIEZ, 1961, p. 246), o vcio de mritoabrange o procedimento administrativoque se revela em oposio aos preceitosde equidade, havendo injustia manifesta

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    8/32

    Revista de Informao Legislativa100

    no ato administrativo. A inconveninciae inoportunidade do ato, neste aspecto,revela-se por meio da m valorao, daanlise equivocada dos fatos, tendo como

    parmetro os fins objetivados pela lei.H de se notar, ainda, a estreita relaoexistente entre o mrito administrativo eos princpios de boa administrao. Estesimpem ao administrador pblico o de-ver de alcanar o mximo de vantagens ebenefcios com o mnimo de sacrifcio dosdireitos e interesses dos administrados.Encontra-se, implcito no conceito de m-rito administrativo, um sentido teleolgico,

    finalstico, ligado satisfao do fim perse-guido pelo legislador, o que se perfaz coma eleio, pelo administrador, dos meiosidneos mais eficientes para atender aointeresse pblico.

    O administrador est obrigado, portan-to, obedincia, observncia ao princpioda boa administrao, procedendo a umaapreciao adequada dos fatos, para con-cretizar o atendimento ao interesse pblico,

    dentro das diretrizes que lhe foram traadaspelo legislador, relacionadas aos poderesdiscricionrios da administrao pblica.Quando o administrador decide se deveou no praticar o ato, qual o momentooportuno e como deve ser realizado, deveavaliar os fatos e as circunstncias que oenvolvem, com vistas ao contedo do ato,tendo sempre como parmetro o interessepblico. Nesse sentido a lio de Manuel

    Maria Diez (1961, p. 414-415), que assim sepronuncia sobre a questo:Frente al vicio de legitimidad estel vicio de mrito que implica lainoportunidad del acto. La inoportu-nidad o inconveniencia significa umaapreciacin errnea de los hechosem relacin com los fines que la leyse h propuesto, excluidos los casosconsiderados como de desciacin de

    poder. El acto no es entonces idneopara cumplir los fines sealados porel legislaro aun quando no pueda serconsiderado como contratio e ellos.

    Se trata de la apreciacin que debehacer el bueno administrador sobrela eficacia del acto. Seala Fiorini quelos vicios em mrito se refiren a los

    actos que realiza la administracinem el ejercicio de sus facultades dis-crecionales, ya que no pueden incidirsobre las normas de la actividad legis-lativa, porque ello implicaria valorarcondicionamentos juridicos em losque la administracin h intervenidoem su creacin.La administracin, em ejercicio desus facultades discrecionales, puede

    resolver que debe hacerse, como debehacerse. Los resultados de esta apre-ciacin se valoran teniendo n cuentael el contenido del acto.El acto ineficaz, vale decir com vi-cios de mrito, puede ser tambinilegitimo, sin que ello implique umaidentificacin entre el mrito y lalegitimidad. Entiende Ranelletti queel acto administrativo com vicio de

    mrito es invlido.A doutrina italiana aborda os vcios dosatos administrativos, indicando aqueles demrito como espcie distinta dos vcios delegitimidade, entendendo-se como mritoo campo da convenincia e utilidade do atoadministrativo, bem como aspectos relacio-nados com sua adaptao obteno dosfins genricos e especficos a serem alcan-ados pelo administrador, no uso de suas

    faculdades discricionrias. Na concepode Fiorini (1969, p. 213),el juicio de mrito fluye del acto ad-ministrativo como uma consecuencianecesaria del mismo, e no surge delproceso de lavoluntad formadora.El acto es meritorio cuando satisfacepleenamente los valores de oportuni-dad, conveniencia, utilidad y justiciaem la realizacin de los fines pbli-

    cos. Puede econtecer que nasciendomeritorio deja de serlo al correr deltiempo. Los valores sobre el mritodel acto deben siempre jugarse em

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    9/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 101

    congruencia com los fines pblicosque satisface. El mbito donde secotejan los valores de mritos circuns-cribe en los intereses pblicos; los

    intereses particulares no concurrenpara fijar el criterio de apreciacindel mrito. ste siempre se regula emfuncin del inters pblico.

    A administrao pblica, no mbitocompleto de sua atuao, est vinculada lei. O administrador pblico no pode fazeraquilo que a lei permite, mas apenas o queela determina, na forma, tempo e moldespor ela traados. Nisso reside um ponto es-

    sencial de distino entre o agente pblico eo sujeito privado. Mesmo nos atos discricio-nrios, a legitimidade deve permear a con-duta do administrador pblico, de formaque as normas pertinentes sua atuao,bem como a finalidade e o interesse pblico,sejam plenamente atendidos na realizaodo ato administrativo, alcanando-se asexigncias do bem comum.

    Caso a administrao pblica desrespei-

    te as normas legais, agrida o ordenamentojurdico, desconsidere os preceitos bsicosda administrao, desborde da sua compe-tncia, desvie-se da finalidade, o ato admi-nistrativo estar inquinado e, consequen-temente, sujeito anulao pela prpriaadministrao ou pelo Poder Judicirio,por meio da ao adequada. O Estado deDireito pressupe a fixao da competnciade seus rgos e agentes e a determinao

    dos tipos e formas de controle dos atos,em prol da defesa da administrao e dosdireitos e garantias individuais.

    O Estado possui deveres e direitos emrelao aos indivduos, os quais, por suavez, desfrutam de direitos e possuem obri-gaes em face da atuao do Estado. Nodesenrolar dessas relaes, podem surgirviolaes de direitos, por ao ou omisso,ocupando os indivduos e o Estado posies

    antagnicas.Todos os atos da administrao, noEstado de direito, encontram-se subordi-nados ao imprio da ordem jurdica, ao

    princpio da reserva legal, bem como aosprincpios da soberania do interesse popu-lar e da sua indisponibilidade. O controledo ato administrativo impe-se por fora

    dos princpios da soberania do interessepopular sobre o interesse dos particulares eda indisponibilidade de tais interesses pelaadministrao pblica.

    A soberania do interesse popular sobreo dos particulares e sua indisponibilidadepor parte da administrao pblica tm-serevelado como pilares bsicos da relao

    jurdica da administrao pblica com osadministrados. Tal soberania do interesse

    popular postulado inarredvel e neces-srio construo do sistema do DireitoAdministrativo, por meio do qual se ga-rantem e resguardam as necessidades p-blicas tuteladas, os direitos e interesses dacoletividade administrada. Disso decorreque todo e qualquer privilgio concedidopelo ordenamento jurdico administraopblica no em prol do administrador,como se fora um privilgio pessoal, mas

    dos administradores.A situao de autoridade e de comandoem que se encontram a administrao pe-rante o particular tem como objetivo, to-somente, proporcionar-lhe os meios ade-quados para gerir os interesses pblicos damelhor forma. O administrador pblico, noexerccio de suas funes administrativas,est obrigado a se valer dos instrumentoscolocados ao seu alcance, com a finalidade

    nica de realizar os interesses pblicos, dese desincumbir, da melhor forma possvel,de suas responsabilidades como agente deum poder cujo titular o povo, do qualemana e em cujo nome exercido, na formado que dispe a Constituio Federal.

    O interesse administrado, gerido, no o do administrador pblico, mas o dacoletividade, do povo, do titular do poder:o interesse pblico. Todas as prerrogativas

    que decorrem do princpio da soberania dointeresse popular sobre o do particular sse explicam e justificam, na medida em quepostas a servio, nica e exclusivamente,

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    10/32

    Revista de Informao Legislativa102

    dos interesses populares, e no para atin-gir fins diversos, como, por exemplo, asatisfao de interesses e convenincias daadministrao ou do prprio administrador

    pblico.Aqui se apresenta a eficincia da ati-vidade administrativa como vetor funda-mental, no sentido de eliminar os modelosultrapassados, as frmulas arcaicas, que seperpetuam como tradio administrativa,sem qualquer benefcio aos jurisdicionados.Em relao a esse aspecto da ao admi-nistrativa, o pronunciamento de Dromi(1998, p. 35) se mostra bem apropriado

    para a compreenso do princpio da efici-ncia administrativa, conforme passamosa transcrever:

    Outra seal que orienta la Consti-tucin de lo que llamamos la con-cepcin eficientista, es que ellaabandona y elimina aquellos modelosde gobierno y modelos de cotrol querespondan a frmulas arcaicas delmanejo de la administracin, del

    funcionamiento de la justicia, de lastareas parlamentarias. A su vez evitaconvertir al control em uma simplepieza de museo como alguna vezse dijo. El control, como elementoesencial de la organizacin poltica,no puede quedar em lo meramenteformal, sino que la Consitucin loinstaura d tal modo que lo transformaem uma herramienta real y efectiva,

    diseando um sistema eficaz, integra-do y confiable (...) La eficiencia es umrequisito vital, pues va implcitmenteligada a las clusulas del progresotradicional de la sociedad (...) y a lasclusulas del nuevo progreso eduta-tivo, cultural, tecnolgico, personal,cientfico y humano que debe procu-rar la comunidad(...) Va ntimamentevinculada a la prontitud, a la transpa-

    rencia del hacer gubernativo...Quanto indisponibilidade dessesinteresses populares pela administraopblica, princpio que protege os bens,

    direitos e interesses pblicos da livredisposio da vontade do administrador.A administrao pblica no dispe dosinteresses pblicos tutelados, antes revela-

    se verdadeiro instrumento utilizado peloEstado, para a realizao da vontade po-pular, para o atendimento s necessidadespblicas da coletividade.

    9. Sistemas de controle daatividade administrativa

    O controle judicial pode evidenciar-sede duas maneiras: por intermdio da ju-

    risdio comum e por meio de jurisdioespecial. Na primeira hiptese, o controledos atos administrativos feito pelo Poder

    Judicirio. Trata-se de um controle exercidopelos tribunais. O sistema de jurisdioespecial pressupe a existncia de tribunaisespecialmente institudos com a finalidadede examinar as contendas surgidas entrea administrao pblica e os indivduos. o chamado contencioso administrativo.

    Nesse caso, conta o Estado com uma justi-a prpria, a qual no faz parte do PoderJudicirio.

    Esse sistema originrio da Franae adotado atualmente em outros pases,como a Itlia, o Uruguai e a Alemanha. Oavano do controle judicial sobre o mritoadministrativo permite uma aproximaodo sistema brasileiro com o sistema de jus-tia administrativa, diante do que faremos

    algumas consideraes a seguir a respeitodessa modalidade de controle da adminis-trao pblica.

    10. Concluso

    Todos os poderes conferidos adminis-trao pblica esgotam-se no atendimentodo interesse pblico, em conformidade comos princpios da soberania dos interesses

    populares e da indisponibilidade de taisinteresses pela administrao pblica. O atoadministrativo tem por base a lei e dentrode sua orientao, diretrizes, limites e prin-

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    11/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 103

    cpios que se deve exercer, para que possaser considerado legtimo. Qualquer atitudetomada pelo administrador pblico que noseja conforme lei ou aos seus princpios

    ser injurdica e passvel de anulao.O princpio da legalidade, regente detodos os atos da administrao lei. Paraque essa submisso se torne efetiva, umarealidade concreta, e no apenas um prin-cpio em abstrato, torna-se necessrio quea ordem jurdica estabelea mecanismoshbeis de controle das atividades da ad-ministrao pblica. O controle judicial realizado pelo Judicirio, exclusivamente,

    competindo a este o exame dos atos admi-nistrativos dos Poderes Executivo, Legisla-tivo e do prprio Judicirio, nos casos emque este realiza atividade administrativa.

    Os atos discricionrios no esto isentosdo controle pelo Judicirio, cabendo a esteo seu exame, a fim de constatar se tais atos,em vez de discricionrios, desbordam parao campo da arbitrariedade. Assim, havercontrole judicial do ato administrativo

    sempre que o Judicirio for provocadoa apreciar as lides entre a administraopblica e os administrados. Visa-se, comisso, a proteger os direitos e garantias dosindivduos diante da atuao do Estado.

    Referncias

    CITADINI, Antnio Roque. Controle externo da adminis-trao pblica. So Paulo: Max Limonad, 1995.

    CITTADINO, Gisele. WERNNECK VIANNA (Org.).A democracia e os trs Poderes no Brasil. Belo Horizon-

    te: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ,2002.

    DIEZ, Manuel Maria. El acto administrivo. BuenosAires: Tipogrfica Editora Argentina, 1961.

    FIORINI, Bartolome A. Teoria juridica del acto adminis-trativo. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1969.

    DROMI, Roberto. Derecho administrativo. 7 ed. actual.Buenos Aires, 1998.

    GARCIA DE ENTERRA, Eduardo; FERNANDEZ,Thoms-Ramn. Curso de Direito Administrativo. 3 ed.So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.

    GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho.Justia administra-tiva. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1986.

    MEDAUAR, Odete. Controle da administrao pblica.

    So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993.MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direitoadministrativo. So Paulo, 1994.

    ______. Discricionariedade e controle jurisdicional. SoPaulo: Malheiros Editores, 1992.

    QUEIROZ, Cristina M. M. Os actos polticos no estadode direito: o problema do controle jurdico do poder.Coimbra: Livraria Almedina, 1990.

    TATE, C. N. Why the expansion of judicial power? In:VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-

    pansion of judicial Power: the judicialization of politics.New York University Press, 1995.

    VALLINDER; TATE, Torbjorn; C. Neal. The global ex-pansion of judicial Power: the judicialization of politics.New York University Press, 1995.

    WERNECK VIANNA, Luiz (Org.).A democracia e ostrs poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG;Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002.

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    12/32

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    13/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 207

    Sumrio

    1. Metodologia e instrumental da teoria dajustia. 2. O objeto da teoria da justia. 3. A listade bens primrios tutelados. 4. A aplicao dosprincpios de justia estrutura bsica. 5. Con-sideraes finais.

    1. Metodologia e instrumentalda teoria da justia

    O ponto de partida de Rawls o con-tratualismo, e isso algo que fica claro

    j nas primeiras linhas de sua primeiragrande obra (cf. RAWLS, 1993a, p. 19-23).Por meio do conceito de contratualismo doqual se socorre junto tradio filosfico-poltica liberal, Rawls prope-se estabelecerprincpios a partir dos quais se possa fazerderivar algumas concepes sobre o justoque denominar princpios de justia. Ela-borados na posio original, eles orientamas relaes que viro a ser travadas nomarco das organizaes e instituies so-ciopolticas informadas pela justia, bemcomo a prpria estrutura delas.

    Para alcanar seus propsitos, Rawlsbusca construir sua prpria teoria ideal,ou seja, tem em vista caracterizar o queseja uma boa e justa organizao para que

    todos exeram suas prprias concepesdo bem na vida em sociedade. Essas con-cepes de bem, no entanto, no podem serentendidas como livremente exercveis por

    O mtodo de construo da teoria dajustia e a posio original

    Roberto Bueno Professor da Faculdadede Direito da Universidade Federal de Uber-lndia.

    Roberto Bueno

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    14/32

    Revista de Informao Legislativa208

    todos os cidados. Ao contrrio, sua limi-tao encontra-se no quadro proposto peloordenamento legal derivado dos princpiosde justia. Portanto, como diz Grondona

    (2000, p. 148), o bem deve ser obtido noquadro do direito, nunca fora dele e issoporque altssimo o risco de abandonar ainterpretao do que seja o bem queles quedetm o poder de em ltima anlise dizero direito. Desde logo, isso seria fugir tra-dio filosfico-poltica da manuteno datutela s liberdades que consiste na defesada primazia do legal sobre o bom.

    Esse um ponto importante da teoria

    rawlsiana da justia, angular mesmo, namedida em que, segundo ele, a justia a primeira das virtudes das instituiessociais (RAWLS, 1993a, p. 19). Ela repre-senta para uma teoria social o mesmo que averdade representa para todo aquele que seocupe das questes cientficas. Trata-se deum valor inerente ao prprio exerccio desua funo de terico da sociedade.

    Para deixar patente esse princpio da

    justia como virtude das instituies so-ciais e, por conseguinte, a necessidade deocupar-se dela, o harvardiano sustenta noimportar que as leis e instituies estejamordenadas e sejam eficientes; se elas so in-

    justas, tero de ser reformadas ou abolidas(cf. RAWLS, 1993a, p. 19). O fundamento detudo e tambm a preocupao primeira ,portanto, a organizao justa sobre a qualas instituies sero erigidas.

    Tudo isso serve para ilustrar um dosaspectos importantes de sua teoria, a saber,que se trata de um ponto de partida idealalicerado na criticidade da analtica socialconcreta e no de uma pura proposiotranscendental inaplicvel s vicissitudesdo mundo emprico. Nesse sentido, hquem argumente que o aparato rawlsianoapresenta uma estrutura de base ideal mascuja perfeita justia de que fala o filsofo

    harvardiano no denota seno a condiode possibilidade para o desenvolvimentode uma teoria impura passvel de apli-cao a todas as sociedades imperfeitas

    realmente existentes (cf. BIDET, 1995, p. 14).No restam dvidas de que a teoria da jus-tia de Rawls no uma justia perfeita,mas, antes e precisamente, representa uma

    justia possvel de realizao entre osseres racionais e humanos que habitam associedades histricas. Segundo Bidet, a teo-ria de Rawls torna-se, assim, um parmetroideal para uma teoria real ou concreta, aqual cabe aplicar diretamente ao mundo.Isso significa precisamente a tentativa deproceder a uma substituio no mbito daFilosofia Poltica da mtica figura do Leviatpela da Justia (cf. HFFE, 1991, p. 16).

    Antes de seguir adiante com a aborda-gem da teoria da justia propriamente dita, necessrio destacar uma das expressesque Rawls frequentemente utiliza: socie-dade bem organizada. Para Rawls, umasociedade pode receber o adjetivo de bemorganizada quando sua estrutura bsicaest projetada no s para promover o bemde seus membros como tambm se encontraregulada por uma concepo de justia.

    Desse modo, a sociedade bem organi-zada de Rawls apresentar os seguintesrequisitos:

    a) que cada um dos indivduos aceitee saiba que os outros aceitam os mesmosprincpios de justia (aqui j est implcitaa ideia que desenvolver dos princpios depublicidade e reciprocidade);

    b) que as instituies bsicas satisfaam,em regra, esses princpios (cf. RAWLS,

    1993a, p. 21).A ideia bsica de Rawls (1993a, p. 21)nesse ponto de que, quando os indiv-duos, que, por definio, so socialmentegeradores de conflitos, possam todos re-conhecer alguns pontos de vista como devalia e interesse em comum ao que julguemcapaz de dirimir suas contendas, eles ser-viro como garantidores da convivnciasocial segura e, consequentemente, sero

    o trao caracterstico de uma sociedadebem organizada. Nesse sentido, a tradi-o rawlsiana parece permitir estabelecerdilogo com Carnelutti em sua defesa do

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    15/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 209

    direito como um instrumento de mediaode conflito quando o italiano sustenta quedove conflitto di interesi no c, ivi nonpuo essere diritto perc ivi non bisogno

    di diritto. Non existe fenomeno giuridico,alla radice del quale lanalise non rintraccitale conflito (CARNELUTTI, 1940, p. 71).Para o eminente processualista italiano, oconflito passa a ocupar o centro do direito,elemento para o qual todo o ordenamento

    jurdico est voltado.Em Rawls (1999d, p. 61), embora sob

    outro enfoque, a ideia apresentada porCarnelutti se fazia presente j em um de

    seus primeiros escritos, o artigo Outlineof a decision procedure for ethics (1951), noqual, j em suas primeiras linhas, deixavaclara a existncia de concepes e interessesrivais que ensejam conflitos. No se trata,exatamente, de um tema novo. Ainda emseus ltimos anos, Bobbio (2005, p. 11-13)retomava o tema para mencionar tratar-se de um antigo assunto que envolvia asrelaes entre moral e poltica.

    No fundo, quando Rawls menciona aproblemtica que envolve os conflitos emsociedade, o que faz reconduzir ao centrodo debate a questo hobbesiana da ani-mosidade natural dos seres humanos quenecessitam de uma instncia pacificadora,bem ao contrrio da percepo rousseau-niana do doce homem vivente no estadode natureza (cf. ROUSSEAU, 1990, p. 170).Ao contrrio do filsofo de Malmesbury, no

    entanto, sua alternativa no a da constitui-o de um poder forte, seno, ao contrrio, aconstruo de uma opo racional por meioda ao de homens livres que, ao procurartutelar seus interesses, no podero menosdo que proteger os interesses de toda asociedade em que vivero.

    Uma das formas de reduzir essa tenso a que Rawls encontra na retomada do argu-mento humeano derivado do convenciona-

    lismo que sustenta que os homens podemencontrar-se propensos a pacificar suasrelaes quando eu me dou conta de queredundar em meu proveito o fato de que

    eu deixe que outra pessoa desfrute da possede seus bens, dado que esta pessoa atuarda mesma maneira contigo (HUME, 1992,p. 659). Como se observa, essa uma formu-

    lao bastante prxima daquilo que propeRawls no primeiro princpio de justia logoacima enunciado.

    A ao poltica desses seres racionaisparte de pressuposto caro teoria liberalclssica de que a completa liberdade decontradizer e desaprovar nossa opinioconstitui a condio que nos justifica assu-mir sua validade para fins prticos (MILL,1991, p. 91). Essa teoria aplicada filosofia

    rawlsiana implica que intervenham emdilogo para criar princpios de justiacompartilhados por meio de um convniosocial que lhes permita aplic-los a umaestrutura bsica que ser o marco de suaconvivncia cotidiana, dentro da qual asdiversas concepes morais (tomada essaexpresso em sentido amplo) podero en-contrar lugar para expressar-se.

    Rawls oferece sua ideia de sociedade

    bem organizada mas, no obstante, estatento ao fato de que essas caractersticasexistem muito raramente, pois as socieda-des existentes esto, em regra, a discutiro que justo ou injusto, e os homens emdesacordo sobre quais so os princpios quedevem definir basicamente sua sociedade.Assim, necessrio recorrer ideia de umaposio original em que se faz constar umconsenso sobre ideias basilares e fundamen-

    tais como, por exemplo, a noo do justo.

    2. O objeto da teoria da justia

    Atribumos o adjetivo justo ou injustoa uma diversidade considervel de obje-tos, entre os quais as leis, as instituies,os sistemas sociais e as aes particularesde cada um dos indivduos ou, mesmo,de grupos. Tudo o quanto se disse, diga

    e venha a ser dito sobre esse tema aindaconter profunda carncia de detalhamen-tos e continuar a apresentar brechas quemantero graves problemas insolveis,

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    16/32

    Revista de Informao Legislativa210

    entre os quais a tentativa das teorias deexplicar como ela poder tornar operativaem sociedade um determinado conceitode justia, seja ele qual for, haja vista ser

    unnime entre os tericos a inopernciade qualquer sistema ou regime poltico queabra mo dessa ideia1.

    Queramos resumir o objeto da teoriada justia em nada mais do que uma linhae talvez devssemos dizer que se trata decolocar os fundamentos para uma sociedadebem organizada (cf. MAFFETTONE, 1983, p.13) a partir de uma concepo de justia.

    Embora as definies preliminares in-

    teressem, h necessidade de um conceitooperativo de justia, pois, ainda que provi-srio, as sociedades necessitam dele. Esse um bom motivo para que Rawls faa seu otema da justia social que visa determinarcomo as instituies sociais procedero distribuio de direitos e deveres funda-mentais, assim como s vantagens prove-nientes da vida cooperativa em sociedade2.(Cf. RAWLS, 1993a, p. 23)3

    No que concerne necessidade da vidaem sociedade, encontramos um ponto queRawls herda diretamente da tradio con-tratualista. Mesmo com um dos utilitaris-tas com cuja obra dialogou intensamente,

    1Autor que transita em linha paralela de Rawlse, por isso mesmo, insuspeito de corroborar suas te-ses, Hayek (1988, p. 119) dedica todo o captulo oitode um de seus livros para sublinhar a importnciado conceito de justia como fundamental ponto departida de qualquer esquema legal [assim] como de

    sua adequada limitao.2No resta dvida de que fora apenas por esseaspecto e todos que vivemos em sociedades profun-damente desigualitrias e, em certa medida, tambmprofundamente injustas, conquanto no disponi-bilizadoras de oportunidades similares a todos, jdisporamos de razes suficientes para nos ocupar dopensamento filosfico poltico de Rawls.

    3Por outro lado, tambm interessa sublinharque a necessidade de promover a distribuio temantecedente terico em Aristteles. Quando estefaz referncia a que os bens devem ser desfrutadosproporcionalmente, mesmo pelo governante, pe as

    bases argumentativas para o debate de uma sociedadeem que a ilimitada desigualdade no um bem em si,mas sim, ao contrrio, que o valor igualdade deve serlevado em considerao.

    Mill, Rawls apresenta proximidades. Millsustenta, por exemplo, que os homens sen-tem necessidade de porem-se salvo dasmaiores injrias, que se interessam pela

    cooperao como forma de atingir seusobjetivos e, por conseguinte, no tendo emvista to somente interesses individuais,mas segundo a orientao de um inte-resse coletivo4. Tal orientao no excluia perspectiva dos interesses individuais,pois conclama a interveno da noo dereciprocidade, a qual, em Rawls (1996, p.41), no apenas entendida como mtuavantagem mas, antes, como uma relao

    entre cidados em uma sociedade bem or-denada [...], expressada por sua concepopoltica pblica da justia.

    Muito embora apresente que se trata demera condio para a cooperao social, ofato que a proposta em si da sobreposi-o do interesse social ao individual comoponto de chegada, e tambm de partida,desconstitui as possibilidades de realizaode uma teoria da justia voltada ao cidado.

    No obstante, o prprio Rawls (1993, p.396) quem reconhece nos seres humanosuma inclinao para que seu bem-estarencontre a devida complementao nosucesso e alegria dos demais concidados.Com isso, a teoria rawlsiana delineia umperfil de pessoa humana que foge a um cor-te predominantemente egostico ou, pelomenos, que lhe reconhece outras dimensesque exercem um papel importante na de-

    terminao das estruturas sociais vigentesque transcendem com sobras uma meraconcepo individualista atomizada pre-ponderante na maioria das sociedades oci-dentais democrticas contemporneas5.

    4Conforme foi ressaltado no captulo II, item 4, emque trato da filosofia liberal e utilitria de Mill, seu libe-ralismo possui uma argumentao que, por vezes, abreas portas para as prticas socialistas, e nesse momentoem que apresenta a argumentao da necessidade desobrepor o interesse coletivo ao individual nos depa-ramos com um exemplo cabal desta leitura.

    5Desde logo, no o escopo deste trabalhoaprofundar nessa questo, mas interessaria explorara questo de como a publicidade refora o papel doindivduo, e no o das relaes coletivas (e quando a

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    17/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 211

    Nesse contexto, torna-se valiosa a ob-servao de Day (1996, p. 221) quanto aoobjetivo de Rawls no consistir na elabo-rao de uma teoria geral mas, isso sim, na

    formulao de princpios de justia social,expresso cujo alcance o da promoo dedireitos, deveres e vantagens na sociedade.O conceito de justia na sociedade implica,fundamentalmente, em como esses bens se-ro distribudos (Idem). Parte-se, portanto,de uma ideia visceralmente distinta da deHayek (1988, p. 131), por exemplo, que sus-tenta no existir princpio algum capaz deorientar condutas individuais que configu-

    rem um modelo de distribuio que, nessaqualidade, possa receber o adjetivo justo.6

    Mas a que vem o desenvolvimento deuma teoria da justia para uma sociedade

    justa, estvel e democrtica? A respostaparece ser a de que vem para tornar poss-vel existir durante um tempo prolongadouma sociedade de homens livres e iguais, os

    publicidade foca o grupo o faz tendo em mira a decisodo indivduo) que tem lugar em sociedade. Interessariatabular em um trabalho interdisciplinar envolvendo apsicologia, a sociologia e a cincia poltica, entre outrosramos do saber, qual o impacto das peas publicitriasna formao da percepo do hiperdimensionamentoda figura do indivduo na sociedade e da formao deuma sociedade hedonista radical.

    6Desde logo, Rawls no poder passar ao largode argumentos desse tipo e muito embora no esta-belea o debate aberto com a obra hayekiana em seustrabalhos, isto sim, encontra-se implcito em seu pen-samento assim como em todos os seus interlocutoresuma srie de problemas levantados pelo mestre viens

    (1899-1992). Desde logo, do ponto de vista cronolgico,no teria existido impedimento para o estabelecimen-to do dilogo entre ambas as obras. No tendo sidodireto, como apontei, ocorre por via dos discpulos deHayek e de sua alimentao teoria liberal por meiode seus trabalhos, alis, justamente em seu perodode maturidade em que encontram-se localizadas suaspreocupaes com a economia poltica, com filosofiapoltica e com a filosofia do direito, consagrando seupensamento econmico como voltado s grandesquestes scio-polticas. Talvez o marco dessas preo-cupaes polticas possa ser dado com seu clssico emuito popular livro Road to serfdom (1944), obra que

    conta com diversas tradues para o portugus. Umadelas HAYEK, (1994). Para uma brevssima e bemcolocada biografia de Hayek ver: .

    quais, no obstante, permanecem divididospela defesa de diferentes doutrinas (cf. RA-WLS, 1996, p. 29). Ainda resta por esclarecerquais so as instituies mais importantes

    que devem ser protegidas, e Rawls no ambguo a esse respeito: constituiopoltica e as principais disposies econ-micas e sociais. Assim, a proteo jurdicada liberdade de pensamento e de conscin-cia, a competio mercantil, a propriedadeprivada dos meios de produo e a famliamonogmica [...]. (RAWLS, 1993a, p. 23)

    Para Rawls (1993a, p. 23), contudo, aaplicao do conceito de justia tem como

    objeto de primeira preocupao7

    sua apli-cao de uma estrutura bsica da sociedadeantes (ver item 3.2) que a concesso deprioridade a qualquer grau importante deigualitarismo8. Essa sua ateno estruturaprimria diz respeito s pr-condies paraa estabilidade social e, por conseguinte,para a existncia pacfica dos indivduosem sociedade, os quais, naturalmente,podem ser tomados como proclives seno

    a comportamentos egosticos, pelo menos,tendentes proteo de seus interessespessoais. Ao assumir esse ponto de vistae, portanto, distanciando-se de Mill9, Rawls

    7A esse respeito, o ator bastante claro quando for-mula j nas primeiras linhas de Uma teoria da justia quea justia a primeira virtude das instituies sociais[...] no importa que as leis e as instituies estejamordenadas e sejam eficientes: se forem injustas elas tmde ser reformadas ou abolidas (RAWLS, 1993a, p. 19).Nesse sentido, discorda Parekh (2005, p. 137), argu-

    mentando que a justia no a primeira das virtudessociais porque parte de um conjunto de outras virtudesnas quais est inserida, e porque sua existncia no ,seno, uma das muitas condies prvias necessriaspara garantir a estabilidade social e poltica.

    8Como diz Day (1996, p. 239), trata-se aqui de umclssico do egalitarianism, mas no de um igualita-rismo absoluto, o qual, desde logo, renega.

    9 Mill direto quando sustenta uma posioantropolgica menos pessimista ou realista do que ade Rawls, mais proclive ao hobbesianismo. SegundoMill (1976, p. 28), no h necessidade intrnseca deque qualquer ser humano seja um interessado egosta,

    divorciado de todo o sentimento ou cuidado que se nocentre na sua prpria e miservel individualidade.Mas ao que Mill liga tal comportamento socialmenteinteressado? Segundo o autor, ainda que em graus

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    18/32

    Revista de Informao Legislativa212

    tomar como ponto de partida, como dizHabermas (1991, p. 161), uma posio ori-ginal em que necessitar colocar restriesde ordem normativa sob as quais os indi-

    vduos livres, iguais e racionais intervirona eleio dos princpios de justia queinterviro em suas vidas por meio de suaaplicao estrutura bsica da sociedade.

    O que o liberalismo poltico tem porobjetivo em sua proposta de uma justiacomo imparcialidade o da elaborao deuma concepo poltica da justia, isto ,uma de tal tipo que possa angariar o apoiode um consenso por sobreposio das dou-

    trinas razoveis presentes na sociedade,tanto em matria religiosa como filosficae moral. Nesse ponto, o que Rawls realiza a construo do equilbrio reflexivo, o qualconsiste na assuno de que h questesmorais cujo consenso invivel e, portanto,a nica chave para deslindar o problema partir para a realizao de juzos pondera-dos. Segundo Dworkin (1989, p. 241), deacordo com o equilbrio reflexivo

    a tarefa da filosofia moral propor-cionar uma estrutura de princpiosque fundamente essas convices

    desiguais de interesse, possvel esperar que os indi-vduos nutram verdadeiro interesse pelos destinos dasociedade, isto , apresentem-se genuinamente ocupa-dos com o bem pblico desde que se lhe possa qualificarcomo um ser humano rectamente educado (Ib.). Aquih dois pressupostos intrnsecos tese de que parte oargumento milliano. O primeiro, filosfico, inextrica-velmente ligado s promessas do Iluminismo quanto

    ao desenvolvimento moral do ser humano. O outropressuposto, de que a educao no apenas exerce umpapel determinante nas opes morais do ser humanocomo, ainda, que o fato de que ele realmente tenha in-teresse nos assuntos pblicos algo realmente virtuoso.O que dizer, ento, de uma opo moral e poltica dedesinteresse pelos assuntos pblicos? Poderamos de al-guma forma desestimular tal tipo de concepo de vidae forma de experincia vital? Parece difcil aceitar essaproposta. Rawls, com certeza, no mbito de sua pro-posta de consenso por sobreposio, no argumentarde forma similar. As excluses de formas de vida queprope no tm por objetivo atingir enormes plancies

    axiolgicas, antes pelo contrrio, apenas aqueles que sedemonstrem ampla e irreconciliavelmente como norazoveis, irracionais ou, como chega a dizer, loucas.(RAWLS, 1993b, p. 17)

    imediatas sobre as quais estamos maisou menos certos, tendo em vista doisobjetivos. O primeiro que esta estru-tura de princpios deve explicar as con-

    vices demonstrando os pressupostossubjacentes que refletem. Em segundolugar, deve proporcionar orientaopara aqueles casos a respeito dos quaisno temos convices, ou quando es-sas so dbeis ou contraditrias.

    Essa argumentao apresentada signifi-ca trabalhar com os pontos de convergnciaentre os intervenientes no debate de sorte air ampliando essa zona de convergncia ti-

    ca. Dessa maneira, como diz Oliveira (2003,p. 15), evita-se resolver os problemas defundamentao moral, como nos modelosmetafsicos tradicionais, mas apenas apre-senta argumentos razoavelmente defen-sveis e, ao evitar tal sorte de problemasfilosficos de fundo, abrimos as portas paraa possibilidade do dilogo pblico.

    Nesse contexto, devemos entender pordoutrinas razoveis aquelas que aceitam

    que os indivduos so seres livres e iguais,concedendo-se um statusde independnciaao mbito do poltico. Por outro lado, soreputadas como no razoveis aquelas dou-trinas que assim no entendem a posiodo homem no mundo, adjetivando-se-lhescomo irracionais ou, como chega a dizerRawls (1993b, p. 17), loucas. No obstan-te, Nozick (1988, p. 319), por exemplo, nodefende ideia demasiado distinta sobre a

    existncia de indivduos protegidos em suadignidade. Ao final de seu mais celebradolivro sustenta que

    [...] o Estado mnimo nos trata comoindivduos inviolveis, que nopodem ser usados por outros comomeios, ferramentas, instrumentos ourecursos, mas nos trata como pessoasque tm direitos individuais como adignidade [...] Que nos tratem com

    respeito relativamente aos nossosdireitos nos permite, individualmen-te ou com quem escolhamos decidirnossa vida, alcanar nossos fins e

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    19/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 213

    nossa concepo de ns prprios,tanto como possamos, ajudados pelacooperao voluntria de outros quepossuam a mesma dignidade.

    Decididamente, muito do que se encon-tra presente nessas ltimas linhas da obravisceralmente crtica Rawls no divergede muitos propsitos de Rawls e, ainda,celebra um de seus pontos centrais, a saber,a influncia da tica kantiana. Mas as dife-renas afloram medida que consideramosos meios de que lana mo Nozick emsua obra para alcanar esses mesmos fins.Ademais, a concepo de indivduos in-

    violveis de Nozick parte de pressupostosbastante diversos da de Rawls. Em Nozick,nada h que fazer em sentido contrrio objeo de Berlin quanto injustia dasextremadas misrias e desigualdades quea vida em sociedade pode proporcionar (cf.BERLIN, 1996, p. 194).

    Rawls toma s aes desses indivduoslivres e racionais como seu ponto de partida.Isso torna claro como apenas cumprindo tal

    suposto necessrio que se poder aplicara ideia de justia social a uma sociedadeque se queira bem ordenar ou regular. Esseobjeto da teoria da justia, contedo queRawls denominaria no desenvolvimento deseu trabalho como liberalismo poltico.

    Nesse contexto, surge uma questoque cobra prioridade no que tange ao seuesclarecimento. Trata-se do entendimentoacerca do que Rawls compreende por

    estrutura bsica da sociedade. Segundo ofilsofo harvardiano, esse conceito deveser apreendido como o modo em que asinstituies sociais mais importantes distri-buem os direitos e deveres fundamentais edeterminam a diviso das vantagens pro-venientes da cooperao social. (RAWLS,1993a, p. 23)10

    Quando Rawls se refere a instituiessociais mais importantes, na verdade,

    10Nesse primeiro momento, fica posta essa pri-meira aproximao ideia de estrutura bsica que,contudo, carece de maior detalhamento, conformevoltaremos a ver no decorrer do livro.

    remete constituio poltica de uma socie-dade, a qual deve ser alvo de ateno porparte das instituies, devendo estimular oscidados a reinterpretarem continuamente

    suas concepes abrangentes de justia luz daquela concepo poltica de justia jelaborada na posio original pelas partesdeliberantes racionais. Essa constituiopoltica mantm estritos laos com as prin-cipais instituies econmicas e sociais queregem a sociedade.

    Dentro dessas instituies se encontraa proteo jurdica da liberdade de pen-samento e de conscincia, a propriedade

    privada dos meios de produo, algo con-siderado por Rawls como indispensvelao avano econmico e, enfim, para tornaroperativo o segundo princpio da justia,isto , aquele que melhora a situao dosmenos favorecidos quando os mais bemsituados tambm obtm melhoras para siprprios por meio da melhor organizaoe produtividade de suas atividades. Almdos elementos que vinham sendo citados

    no perodo imediatamente antecedente,tambm necessrio mencionar a compe-tio comercial.

    Especialmente quanto ideia de queele considera a competio comercialcomo uma das instituies sociais maisimportantes e, logo, protegidas j desdea proposio da estrutura bsica, avalioexistir uma aporia em seu pensamento,pois bem adiante em sua obra diria que

    toda sua teoria da justia compatvel tantocom o capitalismo como com o socialismo.H entre ns quem, como Mller, em seusprimeiros estudos, veja em nosso autoruma espcie de liberal-igualitrio, quide forma no muito dissimile daquela aque muitos tambm tentaram ver ao pen-samento de Bobbio.

    Ainda outro aspecto a ressaltar sobre amencionada competio comercial que

    Rawls a entende como indispensvel aoavano econmico e, enfim, para tornaroperativo o segundo princpio da justia,melhorando, assim, a situao dos menos

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    20/32

    Revista de Informao Legislativa214

    favorecidos. Alm desses elementos com-ponentes da estrutura bsica que merecema ateno dos princpios de justia, entreeles tambm includa a famlia mono-

    gmica, assim como outros componentesdas instituies da estrutura bsica dasociedade que visceralmente interferemnas perspectivas de vida de cada um dosmembros da sociedade.

    Rawls (1993a, p. 23) concede importn-cia capital ideia de aplicar a justia social a definir mais adiante qual o significadoque essa expresso cobra em seu pensamen-to estrutura bsica porque, quando esta

    define os direitos e deveres dos homens,acaba por influir em suas perspectivas devida, quando ento mostra quo profundosso os seus efeitos. Acaso pensemos emuma sociedade justa, haver que mitigaros efeitos da loteria natural, seja ela relati-va aos lugares que a sociedade lhe atribuiou quelas outras vantagens derivadas detalentos ou capacidades naturais. Nesseparticular, interessante a crtica de Parekh,

    segundo quem a teoria de Rawls apresenta-se pouco convincente devido ao fato de quenem todas as teorias sociais (em sentidoamplo) ou religiosas compartilham da visodo filsofo de Harvard sobre a necessidadede combater o mrito, uma vez que tantohindustas, budistas, jainitas e outros [...]pensam que os talentos naturais so o pro-duto de atos meritrios do agente em umavida passada e, por tanto, indubitavelmente

    merecidos (cf. PAREKH, 2005, p. 139).Devido a esses argumentos, ento, po-demos sustentar que a doutrina de Rawlsd suficientes mostras de ser abrangente(comprehensive moral doctrine) quando pre-cisamente apresenta-se como combativadela e procurando consensos sobrepostos.Enfim, a crtica de Parekh (2005, p. 139) secentra em que Rawls exige que os demais seabstenham da defesa de suas teorias abran-

    gentes (compreensivas) mas, no entanto,retm e capitaliza injustamente as suas.Precisamente no que concerne ao ata-

    que ao triunfo do talento e do mrito que

    Rawls torna explcito um problema quemais adiante tratar de combater ao aplicara noo de justia social (o que realiza aolanar mo de seus princpios de justia)

    estrutura bsica da sociedade, na qual,originariamente, encontramos imperfei-es agudas no que concerne situaode partida para que cada indivduo possadedicar-se persecuo de seus planos devida, o que se materializa por meio dasdiferentes oportunidades iniciais na vida,quer sejam postas pela natureza quer pelasinstituies sociais ou, ainda, por ambas ouapenas reforada pelas ltimas.

    Rawls sustenta que todos os cidadosdispem de uma noo intuitiva, qual seja,a de que a estrutura bsica das sociedades jexistentes contm vrias posies sociais eque os homens nascidos em posies sociaisdiferentes tero diferentes expectativas navida, em suma, de alcan-las. Este fatoque se deve tanto ao sistema poltico vigentecomo a circunstncias econmicas e sociais.Dessa maneira, a concluso bvia: temos

    instituies sociais que favorecem certasposies iniciais em detrimento de outras.Esse favorecimento inicial que as ins-

    tituies sociais concedem a alguns cida-dos em detrimento de outros no podefundamentar-se em noes de mrito oudemrito, ao menos no quando o quetenhamos em vista seja organizao deuma sociedade segundo parmetros de

    justia. J a seu tempo, Mill (1976, p. 83)

    advertia que uma pessoa tem direito aoque possa ganhar em honesta competioprofissional, porque a sociedade no devepermitir que qualquer pessoa estorve osseus esforos para ganhar dessa maneiratudo quanto possa. Ainda no contextodessa mesma questo, Mill sugere analogiacom uma associao industrial cooperativa.Sobre ela questiona se ou no justo que otalento ou a habilidade dem direito a uma

    remunerao mais elevada? (MILL, 1976,p. 88). A isso Mill (Idem) no hesita emresponder que a resposta negativa apoia-se em que todos os que fazem o melhor

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    21/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 215

    que podem tm igual merecimento e nodevem, com justia, ser colocados numaposio de inferioridade por faltas de queno sejam culpados.

    O primeiro desse par de argumentosexpostos em favor da meritocracia poderiair bem, mas apenas superficialmente, poisno resistiria a uma segunda vista, mais de-talhada. Por sua vez, o segundo, melhor ex-posto, parece convergir um pouco mais como pensamento redistributivista de Rawls aono colocar a questo da distribuio dos re-cursos no caso o da retribuio pelo talentoou habilidade como algo indissociado

    da aplicao do melhor de si prprios,e no unicamente ligados ao talento e/ouhabilidade que a loteria natural lhes tenhaconferido ou, ento, os arranjos sociais lhestenham possibilitado de modo diferenciadoao acesso concedido a outras pessoas. Maso prprio Mill reitera que esse o princpioabstrato mais elevado da justia social eredistributiva (cf. MILL, 1976, p. 93).

    Bem mais prximo aos nossos dias

    surgem argumentos de uma esquerda decarter nacionalista-desenvolvimentistaque no se distancia disso. Jaguaribe, porexemplo, defende que o conceito em si dedesenvolvimento e o de crescimento eco-nmico diferem. Seu raciocnio se conectacom a teoria rawlsiana na medida em queesta, ao buscar justia, tende promoo derecursos e, por seu turno, Jaguaribe (1969, p.13), ao diferenciar desenvolvimento de cres-

    cimento econmico, o faz por meio da ideiade que o primeiro conceito envolve umaperfeioamento qualitativo da economia,feito atravs de melhor diviso socialdo trabalho [ideia que em Rawls poderiaencontrar-se representada pela igualdadede acesso s oportunidades], do empregode melhor tecnologia e da melhor utilizaodos recursos naturais e do capital11.

    11 interessante sublinhar que Jaguaribe autor

    que dialogou com a cultura norte-americana dos anossessenta e, por conseguinte, no passou distante deuma srie de doutrinas que, direta ou indiretamente,dialogaram com o pensamento de Rawls, muito embo-

    Desde logo, como Mill responderia questo acerca da competio em igual-dade de condies mas que no tiveracomo pressuposto um equnime ponto

    de partida entre os competidores ou, ain-da, como poderia resolver a questo dasincomensuravelmente maiores chancesdos mais bem posicionados ou, mesmo,privilegiados quanto a elementos abso-lutamente decisivos como o acesso edu-cao? Efetivamente, o liberal-utilitarismode Mill no respondeu satisfatoriamentea essas questes, seno que as deixou emaberto. Sua resposta claramente insatis-

    fatria desde uma perspectiva rawlsiana,por exemplo, quando atribui sociedade odever de no permitir que qualquer pessoaestorve os esforos de cada um por ganhartudo quanto possa. Este um princpioclaramente anti-intervencionista que casa perfeio com os preceitos de uma teoria(neo)liberal como a de Hayek, mas no comos preceitos enunciados por Rawls em seusegundo princpio da diferena12.

    ra no tivesse ainda surgido sua obra mxima quandoda publicao desse livro de Jaguaribe, cuja edionacional foi publicada to-somente em 1969 e cujaprimeira edio encontrou lugar em Stanford, onde opensador brasileiro trabalhava poca, em 1967. Noobstante certa possibilidade de acercamento, restatodavia por sublinhar a ntida maior proximidade de

    Jaguaribe do pensamento de esquerda. O que se depre-ende desse seu perodo sessentista que se apresentamais prximo, por exemplo, do desenvolvimento per-passado por certa planificao econmica, antes do quepor um maior grau de atuao das foras de mercado

    (JAGUARIBE, 1969, p. 17). O autor no nega o quechama de desenvolvimento espontneo, conceitoaproximado ao da mo invisvel smithiana. Contudo,sua tese de que esta uma hiptese estatisticamenteremota (Idem). A inclinao esquerda de Jaguaribe(1969, p. 18) exposta em sua preferncia pelo modelointervencionista (dirigista moderado?) do tpico mo-delo de Estado francs e alemo, dos quais diz que, aomenos, pode admitir-se que suas economias sofreramalguma dose de condicionamento poltico.

    12Esse um ponto que deve ficar bastante claro,pois se trata de dois tipos bastante diversos de libe-ralismo. O liberalismo de Hayek, conhecido como

    neoliberalismo e, por outro lado, o de Rawls, cujoliberalismo tem o sentido que desfruta a expressonos EUA, a saber, o corte das filosofias polticas queinspiram o pensamento democrata norte-americano.

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    22/32

    Revista de Informao Legislativa216

    Por outro lado, Mill (1976, p. 88) pa-rece antecipar consideravelmente algunsaspectos do pensamento de Rawls e, emalguns momentos, at mesmo seu linguajar,

    quando sustenta que a sociedade que al-meja o ttulo de justa necessita compensaros menos favorecidos por esta imerecidadesigualdade de vantagens, de prefernciaa agrav-la. Contrariar essa tese implicaaceitar o princpio de que o trabalhador querende mais ou, em outros termos, maiseficiente, deve mesmo obter maior retornofinanceiro por seu trabalho, quer seja peloempregador direto ou pela sociedade (cf.

    MILL, 1976, p. 88)13

    .Assim, Rawls (1993a, p. 23) conclui demodo taxativo que a estas desigualda-des da estrutura bsica de toda sociedade,provavelmente inevitveis, s quais sedevem aplicar em primeira instncia osprincpios de justia social. O filsofo noataca as razes da desigualdade com o fitode extirp-las mas, isto sim, com o escopode ameniz-las. Como diz Grondona (2000,

    p. 146), Rawls compreendeu que a desigual-dade uma condio para o progresso eque, no limite, a igualdade e o progressoexcluem-se de modo recproco. Desdelogo, essa ltima ideia de Grondona podeser subscrita sempre e quando entendamosque o limite ao qual se refere seja o deuma sociedade em que triunfe a igualdadeplenamente abrangente, a saber, total eirrestrita em todas as dimenses possveis.

    Isso no seria compatvel com a liberdadenem com o progresso econmico14.Pela iniciativa de aplicar os princpios

    de justia social estrutura bsica, a ten-

    13Acerca de uma possvel rea de dilogo do uti-litarismo com a teoria da justia rawlsiana, uma obrabastante til a de Maffettone (1983).

    14A esse respeito cabe acrescer que a igualdadetorna-se incompatvel com o desenvolvimento e pro-gresso econmico bem antes dessa curva que terminaem estabilizao que revela a plenitude da igualdade,

    cujo exemplo histrico so os pases socialistas, que,embora longe de configurar uma sociedade plenamen-te igualitria, fizeram ruir seus respectivos sistemaseconmicos.

    dncia a produo de justia nas circuns-tncias da vida concreta. Acaso pensemosem sociedade justa, haver que mitigar osefeitos da loteria natural (seja dos lugares

    que a sociedade lhe atribui ou aquelasoutras vantagens derivadas de talentos oucapacidades naturais (cf. RAWLS, 1967-1968, p. 132).

    guisa de concluso, perceptvel quepara Rawls a concepo de justia socialconcebida na posio original deve pro-porcionar uma pauta terica que supere asdiversas, e individuais, concepes sobrea justia. Nesse sentido, Rawls supe que

    os homens podem fazer mais do que agirmeramente guiados por seus instintos ou,ainda, conforme uma pauta egostica. Suasuposio de que os homens so seresmorais e da deriva a possibilidade de quepossam realizar escolhas com transcendn-cia moral e retratando instituies de con-vvio que reflitam a moralidade intrnsecaa todos os cidados, resguardando-lhesdireitos essenciais como a liberdade e a

    dignidade, tomada esta em sentido amploque abrange direitos diversos, tais como aeducao, a igualdade de oportunidadesetc.

    Como recorda Waldron (1999, p. 89), ajustia social no apenas algo que pode-mos fazer por ns prprios mas, isto sim,que temos de realizar em conjunto, e umaao em conjunto demanda que tenhamosvalores compartilhados desde os quais

    possamos tornar os valores uma prticapoltica concreta. Essa ideia ilustra quedevemos valorar os aspectos distributivosinerentes aos debates que se pem na es-trutura bsica da sociedade, algo a que vaiunido o conceito de justia observe-setratar de algo aristotlico (ver ARIST-TELES, 1952, p. 155-161)15 ao qual cabedesignar direitos e deveres e definir asvantagens sociais segundo os termos de

    justia concebidos.15H algo de aristotlico na argumentao rawl-

    siana, ainda que ele no adote exata ou explicitamentealgumas posies do estagirita.

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    23/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 217

    3. A lista de bensprimrios tutelados

    A tradio de reflexes filosfico-polti-cas acerca do atendimento s necessidadeshumanas, assim como s suas organizaesinstitucionais que lhe deem lugar, remeteaos clssicos do contratualismo modernomas, tambm, a pensadores no expressa-mente mencionados, como Khaldun, se-gundo quem as necessidades fundamentaisencontraram, historicamente, maior aten-o nas sociedades nmades. Uma vez feitaa transmigrao para as cidades, sustenta,teve lugar a satisfao de outras necessida-des, a saber, aquelas oriundas do luxo e deaperfeioar tudo o que se relaciona com oseu estado e modo de viver (KHALDUN,1958, p. 207). Mas temos de admitir que oscidados das urbes contemporneas nose satisfazem com os mesmos itens que oscampesinos aos quais se referia Khaldunnem com aquilo solicitado por outros.

    O ponto de partida da argumentaoem torno a quaisquer selees possveisde bens que entendamos por primriosou, se se preferir, vitais, creio que deve sera compreenso de que este tipo de bensnecessrios vida so escassos, e isso no serefere to somente queles indispensveis vida humana. Mesmo quando temos bensque garantem a vida, d-se o fenmenoda insaciabilidade dos bens necessrios aoesprito. Em seu tempo, Hume (1992, p. 656)recordava que nunca se tem uma quanti-dade tal de bens que satisfaam a cada umde nossos desejos e necessidades.

    Desde logo, a pergunta que emerge por que se importar em alguma medidacom a satisfao dos cidados? Isso tema ver com a busca da felicidade? Se tem,deve ela ser puramente individual, dirigidapelo governo ou apenas parametrizadapor ele? Mill (1976, p. 95), por exemplo,

    sugere que todos tm direito felicidade,mas, para que isso se torne real, h de sermaterializado o direito igual a todos osmeios de a alcanar. Quando Rawls pe

    em pauta a elaborao de listagem combens primrios (primary goods), visa atacaro problema que se centrar na abordagemque Mill reserva felicidade, e que a tra-

    dio, de Locke a Jefferson e aos FoundingFathers, de uma ou outra forma tambmse preocupara. Rawls o faz, como diz Day(1996, p. 230), para promover a distribuioequitativa na sociedade desses bens prim-rios que o conjunto da sociedade auxiliarna produo.

    Mas Rawls, ao ocupar-se do tema, evitaa determinao do sentido substantivo dafelicidade, o que efetivamente seria incon-

    gruente com uma teoria moral abrangente(comprehensive moral doctrine), como a quedefende em seus escritos de maturidade.Sua perspectiva a de promover a distribui-o desses bens primrios ou bsicos paratodos, de sorte que seus planos de vida ouconcepes de bem possam ser realizadaspor cidados que, em sua totalidade, naqualidade de livres, possuem capacidademoral para nutrir uma concepo do bem

    (cf. RAWLS, 1996, p. 51). Enfim, se tratadaquilo que Day (1996, p. 230) diz ser ascoisas que todas as pessoas especialmentevalorizam para atingir seus fins, concep-es essas que so variveis no decorrer davida conforme os fins que so igualmentealterveis.

    A teoria rawlsiana parte de um con-junto de princpios de justia elaboradosracionalmente e em definitivo; a sociedade

    emprica haver que contar com o apoiodos cidados concretos. Isso dependerem boa parte no apenas da racionalidadedos atores que colocaram os princpios de

    justia que so aplicados sobre a estruturabsica sobre a qual vivem os cidados con-cretos, mas, em boa parte, tambm devido aderncia desses cidados histricos, algoque depende fundamentalmente de como,com o passar dos tempos, alteraro seus

    planos de vida, suas perspectivas e, mesmo,as doutrinas compreensivas.Parece que devemos reconhecer que os

    cidados realmente j no se satisfazem

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    24/32

    Revista de Informao Legislativa218

    to-somente com o atendimento das necessi-dades bsicas e dito seja de passagem quetodavia muitos Estados no lograram cum-prir com funes bsicas, que permanecem

    amplamente desatendidas e com o atendi-mento de outras necessidades, tais como asque Khaldun denomina luxuosas. As de nos-so tempo so necessidades superiores queora conjugam essas enunciadas por Khaldunora as transcendem, apontando a dimensesabstratas e de autorrealizao. Esses sovalores importantes para a realizao deuma teoria da justia e, por conseguinte, daproposta de uma sociedade bem organizada,

    como encontramos em Rawls.Realizada a observao de que a ausn-cia de uma proteo mnima importar emprejuzos e danos de distinta monta s par-tes deliberantes (livres, racionais e iguais,alm de morais) e prpria estrutura bsicade uma sociedade justa que pretenda erigir,eis que elas se relacionam no momento deelaborar princpios de justia, de forma acooperar na suplantao de circunstncias

    impeditivas afirmao de bens primriossocialmente compartilhveis. Esse umprincpio de justia cuja efetiva proteodepender de que em momentos poste-riores (fase constitucional, legislativa ou

    judiciria)16sejam encontrados mecanismospara resolver o problema posto.

    A filosofia jurdica que perpassa o es-prito dos seres racionais deliberantes noos insere em uma tradio prxima a ver-

    tentes jusnaturalistas. Ao contrrio, Rawlssustenta que a sociedade bem organizadasupe que seus cidados no pensam nemesto condicionados por antecedentes finssociais que justifiquem seus pontos de vistae da forma como a sociedade deva vir aser organizada. Isso se d diferena demuitas sociedades do passado nas quaisos valores e fins que informavam as vidase a sociedade condicionavam o direito e o

    statusdos indivduos e classes, assim como16A definio dessas trs etapas encontra-se em

    diversos trechos da obra de Rawls. Apenas a ttuloexemplificativo, ver RAWLS (2000, p. 153).

    os papis desempenhados por cada umdeles na busca por seus fins (cf. RAWLS,1993b, p. 41).

    Mas e o que so, do ponto de vista

    conceitual, os bens primrios? SegundoRawls (2000, p. 165), eles so bens geral-mente necessrios como condies sociaise como meios polivalentes que permitams pessoas buscar suas concepes deter-minadas do bem e desenvolver e exercer asduas faculdades morais17. Eles permitem,em suma, que cada um busque seus finsltimos na medida em que constituemum mnimo denominador entre as di-

    versas moralidades e planos de vida quecoexistem em um determinado momentohistrico. Temos como exemplo disso asnoes de autorrespeito (self-respect) ede autoestima (self-esteem), que se fazemainda acompanhar das liberdades bsicas,rendas e direitos educao e sade. To-dos esses so bens cuja instrumentalidade patente e se tornam comuns para que aspessoas atinjam seus fins e cumpram seus

    planos de vida. Isto sim, todos realizamuma calibragem desses bens medidaque resultam proveitosos segundo suasconcepes morais e seus planos de vida.A mescla deles , parafraseando Nozick,uma mescla original.

    Segundo Rawls (2000, p. 165), media-namente claro por meio de sumria anliseque os projetos racionais de vida possuemuma certa estrutura e, por conseguinte,

    essa estrutura que deve procurar serprotegida quando da listagem dos bensprimrios.

    Ser com essa finalidade que Rawlsdesenvolver boa parte de seus trabalhosacadmicos. Ele intervm sugerindo quea questo pode, no sem esforo, ser resu-mida em assegurar bens sociais primriosque representam um mnimo denominador

    17As duas faculdades morais (as quais Rawls de-

    nominaria os dois casos fundamentais, aparecem naseo VII do artigoAs liberdades bsicas e sua prioridade)so a capacidade de ser razovel e a capacidade de serracional (RAWLS, 2000, p. 162-163).

  • 8/13/2019 Evoluo do controle da atividade administrativa pelos Tribunais Jos de Ribamar Barreiros Soares.

    25/32

    Braslia a. 46 n. 184 out./dez. 2009 219

    de bens que so no apenas de interessegeral como necessrios generalidade daspessoas. Eles so bens-meiose bens-fins, isto, utilizveis para obter outro dos quais

    todos os humanos necessitam ou, no se-gundo caso, aspiramos por nossa prpriacondio, do que exemplo a liberdade18,e que todos compartilharo em igualdadede condies.

    Na relao desses bens sociais primrios,podem ser listados direitos tais como liber-dades, igualdade de oportunidades, igualacesso ao exerccio e/ou disputa pelo poder,obteno de receita, possibilidade concretade ter acesso e desenvolver o autorrespeitoou, como prefiro denominar, de estruturassciopsquicas de autoestima. Esses sobens que, segundo a linguagem do consti-tucionalismo, podem ser considerados ina-lienveis. Dessa forma, mesmo o indivduomenos privilegiado jamais poder ver-sealijado do desfrute desses bens. esse o tetomnimo proposto por Rawls para a sua teo-ria da justia como equidade19que, por suavez, o utilitarismo no possui e que, qui,possa entender-se como sendo o seu tendode Aquiles enquanto teoria da justia.

    Em sntese, pode ser dito que bens so-ciais primrios so todos aqueles conferidospela sociedade bem organizada e, portanto,

    justa, a partir da compreenso de que ne-nhum indivduo pode viver sem eles e quedevem, portanto, receb-los de forma equi-tativa seu processo de distribuio. Enfim,na teoria da justia como equidade [...] as

    18Encontro-me proclive a admitir que a liberdade tanto um bem-meio (instrumento apto a que alcancemosdiversos objetivos) como um bem-fim (desfrutvel em simesma) do qual no podemos abrir mo quando temosem vista um projeto de vida ao qual apreciamos, sejaele qual for, e temos em vista seu cumprimento.

    19Interessa recuperar nesse momento a advertnciaque com muita propriedade realizou Bittar acerca dacompleta distino existente entre o conceito de equi-dade em seu sentido clssico, aristotlico, e tal comoele aparece em Rawls. Segundo o jusfilsofo ptrio, emAristteles, o conceito se encontra relacionado comosendo um corretivo da lei, isto , como algo superiora um tipo de justia, justia legal (dikaou nomimn),e utilizada como corretivo da mesma (epanpthomanommou dikaou). (BITTAR, 2004, p. 382).

    liberdades bsicas iguais para todos so asmesmas para cada cidado [...] (RAWLS,2000, p. 177), cuja importncia fica marcadapelo fato de realizar-se sua tarefa protetora

    j nos arranjos sociais iniciais por meio dosprincpios de justia. Sem embargo, desde uma perspecti-

    va histrica e terica, trata-se menos deaceitar que a sociedade atribua direitosdo que em compreender que eles provmdo entendimento de que os homens osconquistaram por meio da evoluo dasrelaes sociopolticas. Por outro lado, ecom o intuito de melhor caracterizar osbens sociais primrios, pode ser dito queeles constituem todos aqueles que, emoposio aos que a natureza pode atribuirdiretamente aos homens, tais como certadosagem de inteligncia (ou grau de ha-bilidade mental especfica, de fora fsicaetc.), eles esto alicerados firmemente emuma teoria que vislumbra a necessidadede que o homem intervenha no processolegislativo, de sorte a corrigir disfunes einjustias socialmente provocadas e moral-mente insustentveis.

    Uma vez que, como disse Rousseau(1990, p. 7), o esprito tem suas necessi-dades assim como o corpo e ambas so ofundamento da sociedade. Tal espcie deabordagem terica se sustenta em deter-minados princpios, os quais aparecem nateoria da justia como equidade de Rawls.Nela sobressai, por exemplo, o quanto soaceitveis a utilizao dos princpios de

    justia como instrumentos para a realizaode qualquer plano racional de vida que con-sidere igualmente o mesmo respeito pelosplanos alheios (e/ou concorrentes) de vidaracional,