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281 EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE * por Manuel Monteiro Guedes Valente** 1. Introdução I. O título da nossa exposição é «evolução social da criminalidade», contudo falarmos de evolução social sem abordarmos a evolução jurídica face ao crime, seria um desafio aleijado, pelo que modestamente procura- remos aferir a análise da evolução criminal segundo dois factores essen- ciais: o social, onde poderemos enquadrar a problemática económica e cultural; e o jurídico, onde se enquadram todos os anteriores factores. Falarmos de crime nos nossos dias é falarmos de nós, do nosso bair- ro, da nossa aldeia, da nossa vila, da nossa cidade, do nosso país. É falar- mos também da nossa família, da nossa profissão, em suma, da nossa so- ciedade. Já lá vai o tempo em que o crime era preocupação exclusiva dos juristas, de juizes e de polícias. Não nos podemos esquecer de que a sociedade estrutura-se numa di- nâmica de presumível respeito pelas regras sociais e jurídicas, estatuídas pelos seus membros como cedência de liberdade para que usufruam de cer- ta tranquilidade e segurança 1 . Pois, a sociedade surge como meio de satis- * O texto corresponde à intervenção no Seminário «Segurança nos Centros Comerciais», em Lisboa, no Hotel Vila Rica, em Dezembro de 2002. ** Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e Universidade Moderna. 1 Quanto a este assunto, o nosso estudo “A Publicidade da Matéria de Facto”, in Direito e Justiça – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica, Vol. XV, 2001. Tomo 1, pp. 207/208. Hoc sensu PHILIPPE ROBERT ao afirmar que “a vida social requer também a ARQUIPÉLAGO • HISTÓRIA, 2ª série, VIII (2004) 281-308

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE · 281 EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE* por Manuel Monteiro Guedes Valente** 1. Introdução I. O título da nossa exposição

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EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICADA CRIMINALIDADE*

porManuel Monteiro Guedes Valente**

1. Introdução

I. O título da nossa exposição é «evolução social da criminalidade»,contudo falarmos de evolução social sem abordarmos a evolução jurídicaface ao crime, seria um desafio aleijado, pelo que modestamente procura-remos aferir a análise da evolução criminal segundo dois factores essen-ciais: o social, onde poderemos enquadrar a problemática económica ecultural; e o jurídico, onde se enquadram todos os anteriores factores.

Falarmos de crime nos nossos dias é falarmos de nós, do nosso bair-ro, da nossa aldeia, da nossa vila, da nossa cidade, do nosso país. É falar-mos também da nossa família, da nossa profissão, em suma, da nossa so-ciedade. Já lá vai o tempo em que o crime era preocupação exclusiva dosjuristas, de juizes e de polícias.

Não nos podemos esquecer de que a sociedade estrutura-se numa di-nâmica de presumível respeito pelas regras sociais e jurídicas, estatuídaspelos seus membros como cedência de liberdade para que usufruam de cer-ta tranquilidade e segurança1. Pois, a sociedade surge como meio de satis-

* O texto corresponde à intervenção no Seminário «Segurança nos CentrosComerciais», em Lisboa, no Hotel Vila Rica, em Dezembro de 2002.

** Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e UniversidadeModerna.

1 Quanto a este assunto, o nosso estudo “A Publicidade da Matéria de Facto”, in Direito eJustiça – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica, Vol. XV, 2001. Tomo 1,pp. 207/208. Hoc sensu PHILIPPE ROBERT ao afirmar que “a vida social requer também a

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fação de necessidades individuais e colectivas, enraizada quer em umaordem jurídica, que ao ser violada implica a verificação de mais um crimeou de um ilícito civil, administrativo ou contra-ordenacional, provocandoum sentimento de que a cedência de liberdade em troca de segurança nãoestá a ser cumprida por uma das partes contratualizantes. Logo, a análise docrime além de ser interdisciplinar, terá de ser interprofissional e societal.

II. Como sabemos, o legislador tem pautado a sua intervenção pena-lística com o maior rigor, procurando obedecer aos princípios da interven-ção penal, cujo primado máximo é o da ultima ratio. Mas, não nos é de to-do desconhecido «as fugas para a frente», ao criminalizar certas condutasrecrimináveis socialmente e descriminar outras, quer despenalizando-as2

quer descriminando-as em sentido técnico ou restrito, ou seja, mantendo asua proibição como ilícito de mera-ordenação social3. Políticas criminaisque necessariamente são o reflexo do pendor social, cultural e económicoda opinião da maioria, que terão os seus efeitos a curto e a longo prazo.

Estes fluxos de alteração legislativa quanto a condutas ora incrimi-nadas e posteriormente descriminalizadas de facto ou em sentido técnicoalteram completamente a própria análise da evolução criminal – pois oque hoje é crime amanhã já poderá não ser.

Todavia, não é só a alteração legislativa que nos obriga a ponderar naanálise da evolução criminal, pois também devemos ter em conta que o que écrime para um pode não sê-lo para outro4. Chamo aqui a atenção para uma re-portagem que há dias passou num canal de televisão5 sobre duas jovens meno-

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aceitação ou a constituição de um elemento de coerção sob a forma de modos de pensar e de agirtidos como legítimos, cuja inobservância é passível de sanção”. Vide PH. ROBERT, O Cidadão,O Crime e O Estado, (tradução de Josefina Castro), Editorial Notícias, 2002, pp. 163 e ss..

2 Como aconteceu com a descriminalização dos cheques sem provisão com valor inferior a12.500$00 (€62,35) e com os cheques pré-datados, com o DL n.º 316/97, de 19 de Novembro.

3 Como aconteceu com a descriminalização do consumo de drogas pela Lei n.º30/2000, de 29 de Novembro, regulamentada pelo DL n.º 130-A/2001, de 23 de Abril.

4 O agente do crime muitas das vezes actua pensando que a sua conduta está de acordo com asnormas e valores da sua sociedade. Contudo a sua sociedade tem uma cultura e regras próprias, aoque os Profs. FIGUEIREDO DIAS e MANUEL DA COSTAANDRADE designam de subcultu-ra do delinquente, na qual “o crime resulta da interiorização e da obediência a um código de con-duta ou cultura que torna a delinquência imperativa.(...) À luz destas teorias, não é só o delinquen-te que é visto como normal. Igualmente normal é o seu processo de aprendizagem, socialização emotivação. Com efeito, ao obedecer às normas subculturais, o delinquente mais não pretende doque corresponder à expectativa dos outros significantes que definem o seu meio cultural e funcio-nam como grupo de referência para efeitos de status e de sucesso”. Vide Criminologia – O homem

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res de 14 e de 16 anos que mantinham uma relação com um homem com maisde 60 anos de idade. Da relação cada uma das menores tinha o seu filho. Nes-sa reportagem ficou patente que segundo a cultura daquelas famílias – de fra-cos recursos, certamente – e da própria aldeia – do norte – era admissível queaquela relação perdurasse. Pois, para elas, família e cidadãos daquela aldeia nãoconsideravam que estávamos perante o crime de abuso sexual de menores.

Esta situação fez-nos lembrar um princípio de que NAPOLEÃO searrogou na ordenação do direito francês: unir o que é igual e separar e man-ter o que é diferente. Não sabemos até que ponto as «cifras negras» podemser a resposta de não censurabilidade de certas tipologias criminais, apesarde termos consciência de que muitas delas, como afirmam os Profs. NEL-SON LOURENÇO e MANUEL LISBOA, são o resultado da “autoavali-ção da gravidade do acto, do sentimento de que nada pode ser feito, da con-vicção de que a polícia não teria capacidade de solucionar o caso, da von-tade de o manter em esfera privada, (...), do receio de represálias ou, ainda,do querer resolver a situação como um assunto pessoal”6, como muitas dasvezes acontece, principalmente quando o infractor é da família.

III. A evolução da criminalidade acompanha sempre a evolução dasociedade, as suas regras sociais e jurídicas, os seus valores morais e éti-cos, os seus princípios. Se a sociedade é fria e calculista, o crime cada vezmais será frio e calculista. Se somos desconhecidos uns dos outros, facil-mente o crime passa despercebido e desconhecido das entidades oficiaisde controlo e de prevenção7. Como afirma o Prof. PHILIPPE ROBERT,“o anonimato facilita a depredação; impele à generalização da queixa; eao mesmo tempo, paradoxalmente, dificulta a reacção pública”8.

Tudo reside no ser humano, no homem que é, como afirmava HOB-BES9, o lobo do próprio Homem. Pois, enquanto existirem dois homens àface da terra, um terá de ser CAÍM e outro ABEL.

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Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra Editora, 2.ª Reimpressão, 1997, p. 191. 5 Se não estamos errados, a reportagem foi apresentada pela TVI, no Jornal Nacional,

no dia 21 de Novembro de 2002.6 Vide NELSON LOURENÇO e MANUEL LISBOA, Dez anos de Crime em Portu-

gal – Análise longitudinal da criminalidade participada às Polícias (1984-1993), CEJ--GEJS, 1998, p. 23. Itálico nosso.

7 Sobre esta perspectiva e a teoria do anonimato, PHILIPPE ROBERT, Op. Cit., pp. 161 e ss..8 Ibidem.9 Apud REINOLD ZIPPELIUS, Teoria Geral do Estado, (tradução de Karin Praefke-

Aires Coutinho), Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 162.

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O modus operandi dos infractores acompanha o desenvolvimento tec-nológico da comunidade. Hoje, não nos é licito falar apenas do crime visí-vel, aquele que os nossos olhos e ouvidos facilmente percepcionam – comoos crimes contra a vida, contra o património, contra os valores e a vida emsociedade e alguns contra o Estado. Pois, a nova (aparente) criminalidade éuma realidade sofisticada que causa prejuízos enormes à sociedade e aoEstado, pondo em causa a sua segurança, a sua credibilidade e a sua autori-dade. Dessa criminalidade falaremos mais em pormenor num ponto à parte.

A evolução do crime acompanha os movimentos da população,quer na sua deslocação física, quer na sua desenvoltura sociocultural. Co-mo sabem, tempos houve em que os duelos eram permitidos como justi-ficação do «lavar da sua honra», hoje um duelo poderá culminar na práti-ca de um homicídio ou de ofensas à integridade física ou, mesmo até, nocrime de participação em rixa.

Pois, hoje temos mais consciência da verificação de actos crimino-sos devido à massificação da informação, da própria evolução tecnológi-ca das instâncias de controlo e da tomada de consciência por parte das ví-timas de que a comunicação de um crime é prevenção nas suas váriasperspectivas: primária, secundária e terciária; geral e especial; activa epassiva; social e situacional10. Ser-nos-á impossível determinar se hojeexiste mais crime ou não do que no início do século XX ou durante o séc.XIX. Mas, dos relatos históricos podemos afirmar que, nos finais do séc.XVIII e meados do Séc. XIX, o crime era mais sangrento e mais violentoe fortemente situado nas Cidades de Lisboa e do Porto. Basta pensarmosnas medidas tomadas por PINA MANIQUE, na cidade de Lisboa, paranos apercebermos da realidade criminal da época.

Relembro aqui os textos de MASCRENHAS BARRETO: “Em Janeiro de 1783, travou-se uma verdadeira batalha entre polí-

cias e bandidos, muitos deles desertores e civis, armados pelos cúmplicesdos quartéis, com armas de calibre proíbido por lei, desde 1610; tambémpor marginais que já haviam sido presos, mas que andavam em liberdadecondicional, com «alvarás de fiança» e «cartas de seguro», por não haverlugar nas prisões onde só se mantinham os que não tinham dinheiro comque «afiançar-se». Os «presos» em liberdade continuavam praticando todaa espécie de crimes, dando o seu exemplo ânimo a que outros os imitassem,por fraqueza dos juizes e ligeireza das penas. Quando um malfeitor partia

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10 Sobre as várias perspectivas de prevenção o nosso Consumo de Drogas – Refle-xões Sobre o Novo Quadro Legal, Almedina, 2002, pp.47 a 53.

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para um assalto, deixava um procurador, com o dinheiro da fiança, prestesa intervir e a assegurar a liberdade, em caso de malogro com a polícia”11;

Um outro trecho analisa a situação do crime na década de 30 doSéc. XIX:

“O escritor liberal, filo-maçónico, Maximiano Lemos, relata: «Por to-do o País, bandos armados saqueavam e matavam ferozmente, sem que nin-guém os estorvasse. Em nome da Liberdade, florescia o bandoleirismo (...).Em nome da Liberdade(...) encheram-se até à saciedade. Os próprios magis-trados roubavam escandalosamente”. Chegava-se a assassinar toda uma fa-mília, incluindo as crianças, pela obtenção do benefício de um testamento”12.

IV. A análise da evolução do crime tem-se baseado nas estatísticasdo MJ ou em inquéritos de vitimação, quer uns quer outros demonstramque há sempre uma variação crescente na sua globalidade, podendo exis-tir um decréscimo em um ou em outro tipo de crime, quer real – porqueos actos que consubstancia aquela conduta como crime deixaram mesmode ser praticados – quer fictício – porque se despenalizou a conduta ouporque os cidadãos deixaram de comunicar essas condutas às autoridadespor inoperância ou inutilidade das sanções.

Como afirmam NELSON LOURENÇO e MANUEL LISBOA13,ao falarmos de criminalidade teremos de falar em três tipos de criminali-dade: a real – «conjunto de infracções efectivamente cometidas por umapopulação numa época determinada»; a aparente ou participada – a «de-nunciada à polícia ou do conhecimento desta»; e a legal – «a que resultado número de casos julgados e objecto de condenação judicial».

Se fizermos uma análise restritivamente jurídica só podemos consi-derar como crime aqueles casos em que houve julgamento com condena-ção. Contudo, seria uma análise errada de uma doença. Pois, seria como omédico que apenas diagnosticou uma constipação sem se perguntar senão seria uma pneumonia. Todavia, para compreendermos melhor o fenó-meno crime impende sobre nós o dever de fazermos uma pequena abor-dagem jurídica do crime.

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11 Vide MASCARENHAS BARRETO, História da Polícia em Portugal, Braga Edi-tora, 1979, p. 111.

12 Idem, p. 151.13 Vide Op. Cit., p. 22.

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2. A evolução jurídica face ao crime

I. As políticas criminais, face à crescente criminalidade, muitasdas vezes centrada em certas tipologias, impõem uma evolução do iuspuniendi do Estado, quer quanto às condutas puníveis, quer quanto às fi-nalidades da sua punibilidade. Como referíamos anteriormente, a censu-rabilidade das condutas dependem dos tempos que mais não são do queo reflexo do ideário vivido. Recordando KARL LARENZ, afirmamoscom ele que “ a lei vale para todos os tempos históricos, mas em cadamomento da forma como este a entende e desimplica, de acordo com aconsciência jurídica”14.

Se estivermos perante um direito punitivo baseado na retribuição, acriminalidade passará a ser um objecto de trabalho dos polícias e dos juristas– advogado e juizes. Se olharmos para o Código Penal de 1886, cuja finali-dade das penas não se erguiam na prol primária da prevenção geral e espe-cial, mas na ideologia de retribuição, os detentores da sua moldação e da suaaplicação concreta preocupavam-se com a resolução do caso em mãos de mo-do a que a segurança do Estado – ordem e tranquilidade públicas – estivessea salvo. Os instrumentos baseavam-se em uma ideia de repressão, também es-pelhando-se assim a própria ideologia política em vigor.

Todavia, desde 1963 sentia-se necessidade de um Código Penal no-vo, mais ajustado à realidade vigente. Como em todo o mundo, o crimedeixava de ser caseiro e limitado, para ser transfonteiriço e ilimitado, querquanto aos agentes da infracção quer quanto às novas tipologias desvian-tes que punham em causa a estrutura do Estado. Pois, é na década de 50que se verifica um dos maiores saltos da tecnologia, consequência da trá-gica Segunda Grande Guerra e das ‘rebeliões’ nas colónias europeias. Pa-ra caracterizar esta fase da história da humanidade relembramos aqui oprovérbio popular «a necessidade aguça a arte e o engenho», acrescentan-do quer para o bem quer para o mal.

Dos projectos do saudoso Prof. EDUARDO CORREIA – da partegeral de 1963 e da parte especial de 1966 – nasceu o Código Penal de1982, cuja parte geral está vincada por «uma visão unitária, coerente, mar-cadamente humanista e em muitos aspectos profundamente inovadora»15.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

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14 Apud o nosso Consumo de Drogas..., p. 33.15 Vide Introdução constante do Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que apro-

vou o Código Penal de 1982.

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II. Tendo como fundamento axiológico a culpa concreta e atribuin-do àquela uma reprovação, o CP/82 preconiza como finalidades a pre-venção geral – negativa e positiva – e a prevenção especial com o fimprimeiro e último da ressocialização ou recuperação do delinquente, cujofracasso ou sucesso são, também, imputáveis às instâncias formais de con-trolo da delinquência e de execução da pena privativa da liberdade, assimcomo das penas não privativas da liberdade, cuja preferência16 deve per-tencer ao ideário do intérprete e do aplicador da lei penal.

O sentido pedagógico e ressocializador das penas, conjugado com asentimento de que a prisão não é o antibiótico mais adequado para o crime,o mesmo Código preconiza a redução da pena de prisão ao mínimo indis-pensável e se for possível a sua substituição por pena não privativa da liber-dade e com o maior grau de probabilidade de reinserção do delinquente: co-mo a multa, a admoestação ou o trabalho a favor da comunidade.

Sabendo que de nada significa educar sem moral e exemplo, a po-sição jurídica do recluso passa pela concretização do princípio estruturan-te do Estado de direito democrático – o respeito da dignidade da pessoahumana – e pelo sentido de responsabilidade que é necessário incutir nodelinquente. Como afirma CESARE BECCARIA «a atrocidade das pe-nas (...) seria, ainda assim, contrária não só às virtudes benéficas geradaspor uma razão esclarecida, que prefere comandar homens felizes a um re-banho de escravos (...), mas seria contrária também à justiça e à naturezado próprio contrato social”17.

O CP/82 consagra a designada «tríade punitiva: Estado-Delinquen-te-Vítima»18. Esta passa a ter igual dignidade aos demais sujeitos, pois pre-vê-se a responsabilidade civil emergente do crime (art. 128.º) e a indemni-zação dos lesados (art. 129.º). Preconizava-se que a indemnização fosseprática através da faculdade do «tribunal atribuir ao lesado, a seu requeri-mento, os objectos apreendidos ou o produto da sua venda, o preço ou va-lor correspondente a vantagens provenientes do crime pagos ao Estado outransferidos a seu favor por força dos artigos 107.º a 110.º, e as importân-cias das multas que o agente haja pago (artigo 129.º, n.º 3)»19. A ressalva

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16 Vide art. 71.º do CP/82.17 Vide CESARE BECCARIA, Dos Delitos e das Penas, (tradução de Lucia Guidici-

ni e de Alessandro Berti Contessa), Martins Fontes, 1991, p. 47.18 Vide o ponto 17 da Introdução constante do Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de Setem-

bro, que aprovou o Código Penal de 1982.19 Ibidem.

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dos valores e interesses da vítima tentam «evitar que o sistema penal, porexclusivamente orientado para as exigências da luta contra o crime, acabepor se converter, para certas vítimas, numa repetição das agressões etraumas do próprio crime»20.

III. O CP/82, na parte especial, caracteriza-se por duas tendências:uma de descriminalização de determinadas condutas; e outra de neo-cri-minalização, principalmente quanto a crimes de perigo comum. Este ajus-te penalístico deve-se à mutação social e ao surgimento de novas tecnolo-gias capazes de porem em perigo a pessoa e a comunidade.

Como forma de salvaguardar a família e/ou outros interesses maisíntimos e tendo como vector a ultima ratio do direito penal, o CP/82 mo-dificou a natureza do crime - de público para semipúblico e até mesmopara particular -, retirando assim a legitimidade da acção penal querecaía sobre o Ministério Público – ex vi n.º 1 do art. 221.º da CRP,actual 219.º.

Como inovação verifica-se a criminalização da participação em ri-xa (art. 151.º do CP) e quanto aos crimes de perigo comum – como incên-dio, explosão, libertação de gases tóxicos, inundação e avalancha, difusãode epizootias, violação de regras de segurança das comunicações – real-ça-se a primazia que se dá ao perigo e não ao dano.

Houve uma maior consciencialização quanto às organizações terro-ristas e quanto a toda a criminalidade que a elas se interligam ou fomen-tam. No âmbito dos crimes contra o património, surge um novo tipo decrime – a infidelidade (art. 319.º) – que visava punir as situações que ti-vessem como intenção provocar um grave prejuízo patrimonial; além dese afastar a determinação da medida da pena de acordo com «o montan-te do valor real do objecto da acção».

IV. Como sabemos o CP/82 foi revisto em 1995 pelo DL n.º48/95, de 15 de Março. Erguendo os seus arautos na dignidade da pes-soa humana, preocupou-se em relevar «a importância da prevenção cri-minal nas suas múltiplas vertentes: a operacionalidade e articulaçãodas forças de segurança e, sobretudo, a eliminação de factores de mar-ginalidade através da promoção da melhoria das condições económicas,sociais e culturais das populações e da criação de mecanismos de inte-gração das minorias”, sem que se menosprezasse o silogismo de que «o

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20 Ibidem. Negrito nosso.

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combate à criminalidade não pode deixar de assentar numa investiga-ção rápida e eficaz e numa resposta atempada dos tribunais»21.

Sendo um «repositório de valores fundamentais», o CP consagrauma hierarquia de molduras penais face aos valores a tutelar, sem se es-quecer do privilégio de se optar pelas penas não privativas da liberdade,tendo em conta os princípios da necessidade, da proporcionalidade e daadequação da determinação da pena. Tendo em conta os desideratos daprevenção geral e especial, jamais a pena poderá em concreto ultrapassara culpa, para que se verifique a reintegração do agente na sociedade e aprotecção de bens jurídicos22.

A possibilidade da substituição da pena de multa pela prestação detrabalho a favor da comunidade não afastou o legislador de dar dignidadeà pena de multa ao lhe dar um carácter punitivo efectivo e fomentando-acomo dissuasora através de um aumento significativo quer na duraçãotemporária quer no montante máximo.

Na Parte Especial há a realçar a integração dos crimes sexuais noTítulo dos crimes contra as pessoas, face à liberdade e autodeterminaçãosexual como bens eminentemente pessoais, abandonando-se a concepçãomoralista subjacente na sistematização de 1982. O crime sexual praticadocontra menor sofreu uma dupla agravação: quer pela elevação geral dasmolduras penais dos crimes de violação e de coacção sexual; quer pelaagravação estabelecida para os casos em que a vítima é menor de 14 anosde idade, atendendo-se à natural «vulnerabilidade da vítima»23.

Nos crimes contra o património, abandonou-se os conceitos indetermi-nados e «optou-se por uma definição quantificada de conceitos como valorelevado, consideravelmente elevado e diminuto», além do crime de furto sim-ples ter deixado de ser crime público e passar a ser crime semipúblico.

Nos crimes contra o Estado, verificou-se a descriminalização de in-fracções contra a segurança do Estado – como os p. e p. pelos artigos 340.º(auxílio a medidas hostis a Portugal), 347.º (violação da confiança de re-presentantes de Portugal junto de Estado estrangeiro ou organização inter-nacional) e 348.º (correspondência e comércio em tempo de guerra comsúbdito ou agente de Estado inimigo) – e contra a autoridade pública – co-mo os p. e p. pelos artigos 385.º (ofensa a funcionário), 387.º (resistênciacom motim) – por se considerar que «num Estado de direito democrático es-

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21 Vide Preâmbulo do DL n.º 48/95, de 15 de Março. Negrito nosso.22 Vide Preâmbulo do DL n.º 48/95, de 15 de Março, e art. 40.º do CP.23 Ibidem.

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tabilizado a tutela penal deve restringir-se a atentados que impliquem24 orecurso indevido a violência ou formas análogas de actuação»25.

O CP/95 neocriminaliza condutas cuja tutela se revela importantequer quanto a novos bens jurídico-penais ou de novas modalidades deagressão ou perigo quer quanto a compromissos internacionais:

* propaganda ao suicídio – art. 139.º;* perturbação da paz e do sossego – art. 190.º, n.º 2;* burla informática – art. 221.º;* abuso de confiança de cartão de garantia e de crédito – art. 225.º;* tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos

(artigos 243.º e 244.º;* instrumentos de escuta telefónica – art. 276.º;* danos contra a natureza – art. 278.º;* poluição – art. 279.º.

V. Quer em 1982 quer em 1995, o legislador optou por deixar paradiplomas avulsos certo tipo de criminalizações, como por exemplo os de-litos antieconómicos, o tráfico de droga, o branqueamento de capitais, acriminalidade informática, os atentados contra a integridade e identidadegenética, o regime jurídico do cheque sem provisão.

O agravamento das penas, como se tem sentido diariamente, nãofez recrudescer a criminalidade. Cumpriu-se a tese de Montesquieu26, querespondeu aos que pediam mais agravamento das penas da seguinte for-ma: A causa de todos os relaxamentos – leia-se delitos – vem da impuni-dade, não da moderação das penas. A certeza da impunidade conduz aque, como nos finais do Séc. XVIII e início do Séc. XIX, se dê ânimo aosdemais para infringir. Se a prevenção geral não alcança os seus intentos,muito menos os alcançará a prevenção especial.

Contudo, verificou-se ao longo destes anos que a despenalização oudescriminalização têm funcionado como tentativa de libertar os tribunaisde bagatelas judiciais, acompanhando a própria evolução da criminalida-de, apesar de se constatar que cada vez mais os tribunais estão “entupidos”com processos. Uma política criminal economicista poderá dar ‘frutos po-dres’ quer a pequeno quer a longo prazo. Política que se afasta da essên-cia da verdadeira e pura política criminal

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

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24 Ibidem.25 Ibidem.26 Apud JEAN LARGUIER, La Procédure Pénale, Presses Universitaires de France,

4.ª Ed., 1973, p. 5.

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3. A evolução do crime

Neste ponto iremos fazer uma breve análise da evolução do crime,que se baseará na criminalidade aparente ou participada, correndo assimo risco de não demonstrar a variação real do crime. Contudo, preferimoscorrer esse risco com base nas denuncias às autoridades policiais, constan-tes das Estatísticas Criminais do MJ, do que nos basearmos em deduçõesretiradas das notícias da imprensa ou da opinião pública, que, como afir-ma KARL POPPER, acarreta «plurimos mitos»27.

a) Breve análise de 1993 a 2000

Nesta alínea fazemos duas análises da evolução do crime. Uma cen-trada na totalidade dos crimes – Gráfico 1 – e outra centrada na evoluçãodos crimes de acordo com certas tipologias que influenciam o aumento eo decréscimo da criminalidade – Gráfico 2.

Gráfico 1Evolução do crime entre 1993-200028

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

291

27 Vide o nosso Consumo de Drogas ..., p. 31.28 Dados recolhidos nas Estatísticas Criminais do Ministério da Justiça de 1997,

1998, 1999 e 2000.

300000

310000

320000

330000

340000

350000

360000

370000

380000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

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Como podemos ver, de 1994 até 1997 há uma descida do númerototal de crimes registados pelas autoridades policiais, curva que se invertea partir de 1998, provocando uma variação final em relação a 1993 de18,2%.

Apesar de em 1998 existir um decréscimo dos crimes contra o pa-trimónio devido à famosa despenalização da emissão de cheques sem pro-visão com valor inferior a 12.000$00 (€62,35), operada pelo DL n.º316/97, de 19 de Novembro, fazendo descer de 22 528 crimes por emis-são de cheque sem provisão em 1997 para 6 677 em 1998, não se verifi-cou um decréscimo da criminalidade.

A despenalização de uma conduta não influência a evolução docrescimento da criminalidade.

Gráfico 2Evolução de certas tipologias criminais entre 1993-200029

Homicídio voluntário

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

292

29 Dados recolhidos nas Estatísticas Criminais do Ministério da Justiça de 1997,1998, 1999 e 2000.

200

225

250

275

300

325

350

375

400

425

450

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Variação-42%

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Ofensas à integridade física voluntárias

Furto

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

293

30000

31000

32000

33000

34000

35000

36000

37000

38000

39000

40000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Variação+21,5%

135000

140000

145000

150000

155000

160000

165000

170000

175000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Variação+22%

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Tráfico de estupefacientes

Condução de veículo sob o efeito de álcool

Como podemos verificar, nos crimes de homicídio voluntárioconsumado há uma quebra significativa, acompanhada unicamente pelocrime de tráfico de estupefacientes que registou, também, um decrésci-

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

294

3000

3500

4000

4500

5000

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Variação-21,2%

2000

3500

5000

6500

8000

9500

11000

12500

14000

15500

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Variação+647%

(+13 451)

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mo relevante. Quanto ao tráfico de droga realçamos variações de subi-da – de 1993 para 1994 e de 1997 para 1999 – e de descida – de 1994para 1997 e de 1999 para 2000. Vários factores podem estar em jogo:descida de consumidores, menos procura, menos exposição do trafi-cante; elevado número de detenções no ano anterior; investigações emcurso; etc....

Os crimes que provocam um maior sentimento de insegurança, co-mo a ofensa à integridade física voluntária e o furto, apresentam um cres-cimento muito idêntico: 21,5% para OIFV e de 22% para F. Quanto ao cri-me de OIFV verifica-se um decréscimo de 1998 para 1999, tendo au-mentado deste para 2000. Quanto ao crime de F houve um aumento de1993 para 1994 e deste ano para 1995 há um decréscimo. De 1995 até2000 existiu sempre um aumento da verificação do crime.

Surpreendente é o registo das infracções relativas à condução deveículo sob influência de álcool (taxa igual/superior a 1,2g/l). De 1993 até2000 o crime aumenta 647%. Em apenas 7 anos o crime aumenta quase 7vezes. Vários factores podem estar relacionados com este aumento, comoa consciencialização por parte das autoridades da problemática do álcoole dos seus malefícios na condução, provocando assim um aumento de fis-calização preventiva - proactiva - dos condutores; ou devido ao aumentode acidentes diários que provoca a designada fiscalização reactiva, o queobriga a uma maior detecção de condutores com taxa de alcoolemia supe-rior à permitida por lei.

b) Breve análise de 1998 a 2000

Nesta alínea iremos fazer uma análise mais restritiva da evoluçãoda criminalidade segundo os títulos do Código Penal e a Legislação PenalAvulsa.

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

295

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Gráfico 3Evolução de certas tipologias criminais entre 1998-200030

Como podemos aferir pelos dados acima expostos, os crimes contra opatrimónio são os que têm uma maior acentuação na sua evolução crescente,assim como os crimes p. e p. pela legislação avulsa: tráfico de droga (quecomo já acima referimos, tem revelado uma diminuição); emissão de chequessem provisão, apesar de manifestar um decréscimo desde 1999 devido àdespenalização; branqueamento de capitais; crimes contra direitos de autore propriedade industrial (com um aumento de 523 de 1998 para 618 de1999); crimes fiscais e aduaneiros; crimes contra a economia; condução semhabilitação legal (que aumentou de 11 638 em 1999 para 13 515 em 2000).

No contexto global pode-se afirmar que existiu um aumento acentua-do do crime, em especial das tipologias que mais influenciam o sentimentode insegurança31: o crime contra o património e os crimes contra as pessoas,mais propriamente as ofensas à integridade física quer simples quer graves.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

296

30 Dados recolhidos nas Estatísticas Criminais do Ministério da Justiça de 1997, 1998,1999 e 2000.

31 Quanto aos crimes que mais influenciam o sentimento de insegurança, N. LOURENÇOe M. LISBOA, Op. Cit., p. 15.

100

50100

100100

150100

200100

1998 1999 2000

Contra o Património

Contra as Pessoas

Contra a Vida em Sociedade

Crimes p. e p. em LegislaçãoAvulsa

Contra o Estado

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4. A incidência urbana do crime

I. Como podemos constatar o crime que mais se identifica com ossentimentos de insegurança – crimes contra as pessoas e contra o patrimó-nio32 – têm maior incidência nos centros urbanos, sendo de realçar asgrandes urbes como Lisboa e Porto.

Apesar de nos consciencializarmos de que, por meio da comunica-ção social, nos últimos dois anos, há um aumento de crime violentos – co-mo roubos com o recurso a armas de fogo a bombas de gasolina e a pes-soas isoladas, como furtos qualificados de armas em armeiros – podemospraticamente assegurar que a criminalidade mais violenta ou que mais im-pacto tem na sociedade em geral está centrada junto ou nas áreas limítro-fes das grandes áreas metropolitanas.

Como nos têm demonstrado as estatísticas do MJ desde 1997, o cri-me urbano densifica-se com os movimentos de pessoas – onde há direitohá sociedade e onde há sociedade há conflito, que pode alcançar vários es-calões conforme o grau da violação da norma.

No mesmo sentido, PHILIPPE ROBERT33 defende que “as regiõesrurais estão subexpostas e os agricultores parecem particularmente poucosujeitos” às predações. Pois, a “cidade concentra presas que são, ao mes-mo tempo tentadoras e facilmente acessíveis: autênticas procissões deviaturas são deixadas à mercê de todos, na rua ou em áreas deestacionamento, e as habitações ficam normalmente vazias durante o dia”.Ou seja, o crime é favorecido pelo “actual estilo de vida urbano”.

No mundo rural de Portugal, a par de um ou outro homicídio, a parde uma ou outra ofensa à integridade física, de um ou outro crime de fur-to qualificado, verificamos que o crime praticado mais divulgado pelosórgãos de comunicação social (OCS) é o de burla, cuja maior incidênciase manifestou aquando da mudança do escudo para o euro.

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

297

32 Hoc sensu N. LOURENÇO e M. LISBOA, Op. Cit., p. 15, e PHILIPPE ROBERT,Op. Cit., p. 125 e ss.. O Prof. PHILIPPE ROBERT apresenta um quadro em que a nívelnacional, em França, em 1997, o crime contra o património – crimes de danos e as preda-ções – atinge 77,8% da criminalidade total, (Vide Op. Cit., p. 127). Em Portugal, no mes-mo ano, o crime contra o Património, segundo as estatísticas do MJ, alcança cerca de 64%da criminalidade e o crime contra as pessoas cerca de 23% (Vide Estatísticas Criminais--Estatísticas Oficiais 1997, MJ-GEPMJ, p. 9).

33 Vide Op. Cit., pp. 139/140.

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II. O crime urbano tem-se manifestado mais no âmbito doscrimes contra as pessoas, maxime integridade física, contra opatrimónio, maxime furtos simples, qualificado e roubo, cujo grau deviolência tem vindo a aumentar34. Como exemplo podemos apontar oano de 1998, em que dos 96 079 crimes comunicados às autoridadespoliciais na área da Grande Lisboa, 60 637 são crimes contra opatrimónio, ou seja, cerca de 67% dos crimes denunciados ou de que asautoridades tiveram conhecimento. O mesmo fenómeno se regista noGrande Porto, em que dos 53 375 crimes, 37 888 são contra opatrimónio, ou seja, cerca de 71% da criminalidade.

Não nos podemos esquecer de que são nestes dois locais citadi-nos que se situam os sobejamente conhecidos supermercados da droga,cujos nomes são de todos nós conhecidos, apesar de não ser a razãofundamental destes números.

Da análise da criminalidade aparente ou participada demonstra--se que os crimes contra o património obtêm maiorias esmagadoras. Sóse exceptua esta tese em algumas zonas: a do Cávado, em que os crimescontra o património atingem cerca de 47,8%, mas os crimes contra aspessoas alcançam um resultado surpreendente de 32%; e a do Tâmega,em que os crimes contra o património atingem os 48,6%, mas os crimescontra as pessoas atingem os 33,4%; na Cova da Beira os crimes con-tra as pessoas são de 37% e os crimes contra o património são de 40%;no Pinhal Interior Norte os crimes contra as pessoas são de 34,2% econtra o património são de 40%. Resultados idênticos se verificam naszonas mais interiores e agrícolas do país, podendo-se arriscar em afir-mar que a tese de PHILIPPE ROBERT, de que as predações são umcrime urbano35, encontra materialização no nosso país.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

298

34 Neste sentido, o Dr. FERREIRA LEITE – DNA da PJ – numa entrevista ao Cor-reio da Manhã, defendeu que os crimes têm aumentado em escala de violência.

35 Vide PHILIPPE ROBERT, Op. Cit., pp. 139 e ss..

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Gráfico 4Crimes contra as pessoas e contra o património nas áreas da

Grande Lisboa, Grande Porto, Cávado, Tâmega,Cova da Beira e Pinhal Interior Norte

Os crimes contra as pessoas nas zonas mais rurais alcançam resul-tados duplicados do que na Grande Lisboa (18,8%) e no Grande Porto(17,2%).

Nos anos de 1999 e de 2000 mantém-se a mesma tendência comum aumento dos crimes contra o património: na Grande Lisboa cerca64,5% em 1999 e 64,4% em 2000 dos crimes participados; no GrandePorto cerca de 72,8% em 1999 e 71,2% em 2000. Quanto aos crimescontra a vida mantêm as mesmas percentagem, excepto no GrandePorto no ano de 1999, em que houve um significativo decréscimo paraos 15%.

Significativo também é a incidência criminal nas Regiões Autóno-mas:

Nos Açores podemos verificar o seguinte:

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

299

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

GrandeLisboa

GrandePorto

Cávado Tâmega Cova daBeira

PinhalInteriorNorte

Contra o Património

Contra as Pessoas

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Gráfico 5Crimes contra as pessoas e contra o património nas Regiões

Autónomas dos Açores e da Madeira

Verifica-se que nas duas tipologias criminais há decréscimo signi-ficativo da criminalidade, apesar de haver um aumento total dacriminalidade. Justifica-se pelo aumento dos crimes previstos em legis-lação avulsa, como se pode verificar pelos dados disponíveis nasEstatísticas do MJ.

Na Região Autónoma da Madeira os crimes contra as pessoas têmuma incidência muito próxima com a dos crimes contra o património.

III. Outro tipo de crimes urbanos são os constantes de diplomasavulsos como os respeitantes a estupefacientes. Dos 7 043 participadospelas autoridades, 3663 ocorreram nas Grandes Lisboa e Porto e Penínsu-la de Setúbal, ou seja, 52% dos respectivos crimes. Se juntarmos a zonado Algarve, a percentagem sobe para os 59,5% deste tipo de criminalida-de no ano de 1998. Nos anos de 1999 verifica-se que há um aumento sig-nificativo, pois dos 8226 crimes respeitantes a estupefacientes, 6345 sãoregistados na Grande Lisboa, Grande Porto, Península de Setúbal e Algar-ve, ou seja, 77% deste tipo de crime.

Em 2000, verifica-se uma diminuição significativa deste tipo de cri-me. Dos 6534 crimes participados, 3895 registam-se nas áreas acima re-feridas, ou seja, 59,6%.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

300

0,00%

20,00%

40,00%

60,00%

1998 1999 2000

Contra o Património - Açores Contra as Pessoas - Açores

Contra o Património - Madeira Contra as Pessoas - Madeira

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Gráfico 6Crimes relativos a estupefacientes nas áreas da Grande Lisboa,

Grande Porto, Península de Setúbal e Algarve

IV. A incidência criminal citadina situa-se essencialmente nas de-signadas, por ROBERT, predações – crimes contra o património que en-volve furtos simples e qualificados, roubo, furto de veículos.

Gráfico 7Crimes de roubo com recurso a arma de fogo

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

301

40,0%

45,0%

50,0%

55,0%

60,0%

65,0%

70,0%

75,0%

80,0%

1998 1999 2000

548579

676646

400

450

500

550

600

650

700

750

800

1997 1998 1999 2000

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Nesta incidência, empiricamente se deduz que a violência aumen-ta com o passar dos anos, pois o recurso a armas de fogo tem sido umaconstante desde 1997 até 2000: de 1249 para 1507. O aumento maissignificativo centra-se no roubo na via pública que passa de 326 para573 roubos com o recurso a arma de fogo. A arma de fogo também foiusada na prática de outros roubos, sendo o seu uso em 1997 de 548crimes, em 1998 de 579 crimes, em 1999 de 676 crimes e em 2000 de646 crimes de roubo.

Gráfico 8Crimes de roubo com recurso a arma branca

Os agentes do crime de roubo recorrem maioritariamente às armasbrancas para a sua prática, quer na via pública quer em outro tipo, poden-do-se dizer que, em 1997, 2728 crimes de roubo foram cometidos comarmas brancas, e, em 2000, foram cometidos 3285.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

302

3285

3144

2476

2728

2200

2400

2600

2800

3000

3200

3400

1997 1998 1999 2000

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Gráfico 9Crimes cometidos com recurso a armas ou

outros instrumentos (veneno ou produtos químicos)

Num total de uso de armas ou de instrumentos (como veneno ououtro produto químico) na prática de crimes, de 1997 a 2000, há um au-mento de 8989 para 12018.

Gráfico 10Crime – Roubo na via pública

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

303

12018

11519

91018989

7.000

8.000

9.000

10.000

11.000

12.000

13.000

1997 1998 1999 2000

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A violência do crime quer contra as pessoas quer contra o patrimó-nio tem vindo a agudizar-se, o que poderá ter efeitos perversos no futuroquer quanto à reacção pública quer quanto a uma reacção privada docrime: por um lado, pode-se legitimar o uso da força por parte do poderpúblico que sabemos como começa, mas não sabemos quando e comoacaba; e por outro lado, podemos assistir a um recurso por parte dos par-ticular a meios de auto defesa – uns legais como os alarmes, a segurançaprivada, os sistemas de videovigilância em propriedades de domínio pri-vado; mas outros, mesmo que legais, podem trazer consequências anti-jurídicas muito relevantes como p. e. o recurso à arma de fogo comoinstrumento de defesa privada.

5. A nova (aparente) criminalidade

I. Como já nos apercebemos a evolução do crime acompanha a evo-lução do Homem inserido na sociedade hodierna onde o imediato é valo-rizado e o mediato esquecido, onde a imagem é premiada e o conteúdo es-carnecido. Como há dias afirmávamos, a evolução do Homem apresenta--se-nos como uma espada de dois gumes, por um lado procura-se desco-brir a cura de imensas doenças, por outro procura-se explorar essesesforços e conhecimentos para fins inidóneos.

A enfermidade alastra-se desde o momento em que o crime deixoude ser local, regional, nacional e passou a ser transfronteiriço, transnacio-nal e internacional. Chegou, minhas senhoras e meus senhores, a globali-zação do crime. A globalização, fenómeno de metamorfose do Homem,produziu dois efeitos controversos: por um lado apresenta-se benéfica noplano económico e cultural; mas por outro lado, nos planos da cidadaniae da segurança, a globalização tem proporcionado o desrespeito pelos di-reito, liberdades e garantias e fomentado ou facilitado o crime organizado– pondo em causa a segurança dos cidadãos36.

Falamos dos crimes que, hoje, convivem connosco, dormem aonosso lado, cruzam-se na rua por nós, e que nos provocam elevados pre-juízos: crimes tributários, crimes contra a economia, a corrupção activa e

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

304

36 Sobre a globalização do crime, o nosso estudo “Cooperação Policial: ViagemInacabada”, apresentado em Varsóvia, no dia 13 de Setembro de 2002, no âmbito doprojecto Grotius II Penal, que será publicado numa revista da Faculdade de Direito deSalamanca.

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passiva, os crimes de jogo, sem nos esquecermos do branqueamento de capi-tais. Quanto a esta última tipologia, subscrevemos a tese de NUNOBRANDÃO que defende que “o branqueamento de capitais é como que olado negro do processo de globalização, da liberalização das trocas inter-nacionais e dos movimentos de capitais, da abertura dos mercados finan-ceiros, da maciça informatização e do comércio electrónico”37.

O crime organizado, em especial o crime financeiro, quer a nívelmundial quer a nível da União Europeia, quer a nível nacional tem as por-tas abertas e facilitadas à sua propagação, ramificando-se e instalando-seem cada país de diversas formas. A liberdade de circulação de capitais38

abre a janela a novas oportunidades de fraude e, consequente, de branquea-mento de capitais e de todas as outras tipologias criminais que se corre-lacionam: p. e. corrupção.

Não nos podemos esquecer de que a designada nova criminalidade, emespecial o branqueamento de capitais produz efeitos prejudiciais quer no planoeconómico, quer nos planos político e social39. No plano económico o bran-queamento de capitais poderá afectar a macroeconomia – ao provocar umairracionalidade nas políticas dos sistemas financeiros, afectando a estabilidadedas economias mais vulneráveis; uma instabilidade monetária devido àsinfluências negativas que impendem sobre as taxas de juro e de câmbio, pro-movendo distorções no mercado e colocando em risco o desenvolvimentoeconómico; uma descredibilização da praça financeira, pois este tipo de opera-ções afasta quem investe com «transparência e respeito pelas regras e códigosde conduta estabelecidos» – e a microeconomia – estes crimes têm um efeito«extremamente negativo, originando situações de concorrência desleal e per-turbando a circulação dos bens no mercado»40, pelo elevado fluxo de fundoseconómicos permite aos seus agentes um desafogo financeiro, o que lhesfacilita a colocação de bens a um preço muito mais baixo e o empreendimen-to de políticas comerciais de difícil execução para a concorrência. .

EVOLUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DA CRIMINALIDADE

305

37 Vide NUNO BRANDÃO, Branqueamento de Capitais: O Sistema Comunitário dePrevenção, Coimbra Editora, Colecção Argumentum, n.º 11, 2002, p. 16. Itálico nosso.

38 Não defendemos que só a liberdade de circulação de capitais promove e facilita ocrime organizado, pois as liberdades de circulação de pessoas, de mercadorias e de servi-ços são, inevitavelmente, factores de influência e de facilidade para que a criminalidadeorganizada se desenvolva rápida e eficazmente.

39 Hoc sensu N. BRANDÃO, Op. Cit., p. 20 e ss.. 40 Idem, p. 22. Como afirma JUANA DEL CARPIO DELGADO, a licitude dos bens

que circulam no mercado é um dos pressupostos essenciais ao seu bom funcionamento eà ordem socio-económica. Apud NUNO BRANDÃO, Op. Cit., p. 22, nota 22.

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Os alicerces da democracia apodrecem, os seus pilares corroem ea sua estrutura desaba. O sentimento geral é de descrédito face à inexis-tência de desenvolvimento económico e à constatação de que o dinheiro éque move o mundo e não os valores, os princípios, as regras, as normas ecódigos de conduta. A economia ilícita domina o mercado dos países maispobres e em vias de desenvolvimento41, permitida e facilitada pelos polí-ticos corrompidos pelas organizações mafiosas.

II. Esta nova criminalidade, que cada vez mais afecta o Estado, asociedade e o indivíduo – a que é desenvolvida por redes bem organiza-das e de pouco conhecimento das autoridades policiais e judiciais, comopodemos verificar nas estatísticas do MJ – cresce como um cancro: silen-ciosa, fria, rápida e mortal. Mortal para as democracias recaindo nos maispobres o sofrimento dos seus tentáculos: pois se não pagamos impostos,não haverá dinheiro para se construir hospitais, escolas, estradas, domí-nios públicos de acesso livre.

As manifestações desta criminalidade que açambarca o tráfico dedroga, de armas, de seres humanos, de veículos furtados, falsificação demoeda, fraudes fiscais e financeiras, crimes informáticos, começam hojea preocupar o cidadão quer por curiosidade quer por sentimento de injus-tiça para consigo quer por questões de segurança, uma vez que muitas des-tas tipologias poderão afectar o seu bem-estar por um lado e o seu patri-mónio e integridade física por outro. Pois, este tipo de crimes sobrevive àcusta de crimes primários, principalmente os perpetrados contra as pes-soas e contra o património.

Estamos perante uma criminalidade sofisticada quer em recursoshumanos, quer em recursos materiais – financeiros e tecnológicos. A suaevolução é perspicaz e rápida, características que a tornam complexa. Asua prevenção e repressão precisa de um novo olhar mais audaz e maisconsciencioso para que o 11 de Setembro não se repitam.

MANUEL MONTEIRO GUEDES VALENTE

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41 Todavia, desta maleita sofrem outros países desenvolvidos, como a Itália. Vide N.BRANDÃO, Op. Cit., p. 23, nota 26.

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6. Conclusão

É tempo de concluir. Face à realidade criminal evolutiva e cuja actuação jurídica se apre-

senta tardia, pelo que inútil, nas palavras de BECCARIA, concluímoschamando à pedra um trecho da Prof. Doutora ANABELA MIRANDARODRIGUES:

“A criminalidade constitui um fenómeno evolutivo e complexo,sendo evidente uma relação íntima entre a criminalidade em geral e a cri-minalidade organizada e transnacional. A prevenção da criminalidade dizrespeito a todos estes tipos de criminalidade e deve levar em conta, nomea-damente, os danos causados pelo crime, seja a nível pessoal ou patrimo-nial, seja a nível da segurança ou do funcionamento das instituições pú-blicas”42.

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42 Vide ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “Que Política de Prevenção da Crimi-nalidade para a Europa”, in Conferência de Alto Nível Sobre a Prevenção da Criminali-dade, Edição do MJ – GRIEC, 2001, p. 103.

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