11
Curso de Direito Professor: Adriana de Góes dos Santos 1 Direito do Consumidor 1. Evolução Histórica do Direito do Consumidor: Não se pode falar, propriamente em consumo como o que entendemos hoje, com a produção e o comércio de produtos em massa e mais recentemente, na chamada sociedade pós-industrial, alcançando a difusão dos serviços, tendo tais bens circulação através de contratação massiva, sem nos reportarmos ao período histórico anterior à Revolução Industrial, assim devemos fazer alguns registros históricos da preocupação dos legisladores sobre o fenômeno da utilização de produtos e serviços. Faremos um breve apanhado desta evolução em nível internacional e depois em nível nacional 2 . Em nível internacional, pode-se dizer que existem registros antiguíssimos de normas sobre aspectos relativos ao consumo de produtos e serviços, podendo serem citados, por exemplo, os Códigos de Hamurabi e de Manu, que tratavam sobre aspectos ligados à quantidade, qualidade e preço de produtos e serviços, bem como de aspectos relativos à prestação dos serviços de profissionais. No Direito Romano se encontram manifestações também destas idéias, como a responsabilidade sobre os vícios ocultos, por exemplo. Podemos citar, ainda, a regulamentação sobre adulteração de alimentos que consta da legislação da França ainda na Idade Média, condenando os adulteradores a banhos escaldantes. Desta forma se pode falar em verdadeiro nascimento do consumo e de movimentos de defesa do consumidor somente já ao final do século XIX, quando a industrialização, a utilização de novas 1 O material disponibilizado foi elaborado com auxilio e orientação do professor Julio Francisco Caetano Ramos. 2 Grande parte das informações que serão utilizadas no texto, relativas à evolução histórica do direito do consumidor, foram retiradas da página do Procon/SP na internet. Para tanto consulte-se www.procon.sp.gov.br/insthistorico.asp . e também foram utilizadas informações obtidas junto ao livro Curso de Direito do Consumidor do Professor Rizzatto Nunes.

evolução_histórica_1

  • Upload
    lolijeh

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Direito do ConsumidorEvolução HistóricaAnhanguera Educacional

Citation preview

Page 1: evolução_histórica_1

Curso de Direito

Professor: Adriana de Góes dos Santos1

Direito do Consumidor

1. Evolução Histórica do Direito do Consumidor:

Não se pode falar, propriamente em consumo como o que entendemos hoje, com a produção e o comércio de produtos em massa e mais recentemente, na chamada sociedade pós-industrial, alcançando a difusão dos serviços, tendo tais bens circulação através de contratação massiva, sem nos reportarmos ao período histórico anterior à Revolução Industrial, assim devemos fazer alguns registros históricos da preocupação dos legisladores sobre o fenômeno da utilização de produtos e serviços.

Faremos um breve apanhado desta evolução em nível internacional e depois em nível nacional2.

Em nível internacional, pode-se dizer que existem registros antiguíssimos de normas sobre aspectos relativos ao consumo de produtos e serviços, podendo serem citados, por exemplo, os Códigos de Hamurabi e de Manu, que tratavam sobre aspectos ligados à quantidade, qualidade e preço de produtos e serviços, bem como de aspectos relativos à prestação dos serviços de profissionais.

No Direito Romano se encontram manifestações também destas idéias, como a responsabilidade sobre os vícios ocultos, por exemplo.

Podemos citar, ainda, a regulamentação sobre adulteração de alimentos que consta da legislação da França ainda na Idade Média, condenando os adulteradores a banhos escaldantes.

Desta forma se pode falar em verdadeiro nascimento do consumo e de movimentos de defesa do consumidor somente já ao final do século XIX, quando a industrialização, a utilização de novas tecnologias de produção, transporte e comunicação e, conseqüentemente, com o avanço do capitalismo, começaram a surgir manifestações populares na busca de proteção dos interesses dos consumidores, principalmente nos Estados Unidos.

Neste contexto Rizzatto Nunes3 afirma que:

1 O material disponibilizado foi elaborado com auxilio e orientação do professor Julio Francisco Caetano Ramos.2 Grande parte das informações que serão utilizadas no texto, relativas à evolução histórica do direito do consumidor, foram retiradas da página do Procon/SP na internet. Para tanto consulte-se www.procon.sp.gov.br/insthistorico.asp. e também foram utilizadas informações obtidas junto ao livro Curso de Direito do Consumidor do Professor Rizzatto Nunes.

3 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor: com exercício. – 4ª. ed. rev., modif e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009.

Page 2: evolução_histórica_1

Anote-se nessa observação: nos Estados Unidos, que hodiernamente é o país que domina o planeta do ponto de vista do capitalismo contemporâneo, que capitaneia o controle econômico mundial (cujo modelo de controle tem o nome agora de globalização), a proteção do consumidor havia começado em 1890 com a Lei Shermann, que é a lei antitruste americana. Isto é, exatamente um século antes do nosso CDC, numa sociedade que se construía como sociedade capitalista de massa, já existia uma lei de proteção ao consumidor. (2009, p. 02).

Nesta fase, se apresentava uma união de interesses e reivindicações entre trabalhadores e consumidores, que através de boicotes, greves e outras manifestações coletivas, exigiam o reconhecimento de direitos como trabalhadores, como consumidores e como pessoas humanas.

Ora, eram os próprios trabalhadores que produziam que também queriam consumir produtos e serviços adequados e a preços razoáveis.

Em 1891 Josephine Lowel funda a “New York Consumers League” (Liga dos Consumidores de New York) - hoje “Consumers Union”, movimento de defesa dos interesses e direitos dos consumidores, movimento este que se expandiu pelo mundo.

Em virtude das pressões e do reconhecimento da necessidade de regulamentação do consumo, surgem às primeiras normas regulamentadoras nos E.U.A., principalmente relativas à carne, alimentos, medicamentos e até cosméticos.

Em 1960 é fundada a IOCU – International Organization Consumers Union, hoje CI - Consumers International – alcançando países como a Austrália, Bélgica, E.U.A., Holanda e Reino Unido, também presente no hoje no Brasil pelo IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Como se percebe existe todo um movimento no sentido de criação e respeito a normas que consagrem os direitos dos consumidores.

Um dos marcos no reconhecimento aos direitos dos consumidores é o discurso, proferido em 15/03/1962, pelo Presidente Norte-Americano Jonh F. Kennedy, encaminhando projeto ao Congresso Americano, no qual eram reconhecidos os direitos básicos dos consumidores relativos à segurança, informação, escolha e ao direito de ser ouvido. Foi tão importante tal manifestação que é neste dia que se comemora o Dia Mundial dos Consumidores.

Os fatos vão ocorrendo, como, por exemplo, os casos de falta de segurança em automóveis ocorridos nos E.U.A. em 1965, ficando patente a necessidade do reconhecimento dos direitos dos consumidores.

Então o movimento de proteção aos consumidores começa a se organizar também em países em desenvolvimento, como ocorreu em 1965 na Malásia, onde se constituiu a primeira organização de defesa dos consumidores em países em desenvolvimento.

Ao mesmo tempo, surgem, principalmente a partir de 1970, juntamente com o movimento na busca de reconhecimento e proteção dos

Page 3: evolução_histórica_1

direitos dos consumidores, também os questionamentos sobre a questão ambiental, que, como se pode perceber no próprio CDC, ainda caminham em vários aspectos de forma conjunta.

Em 1985 ocorre o reconhecimento internacional pela Assembléia Geral da ONU, através da Resolução 39-248, dos direitos dos consumidores, ao serem aprovadas as Diretrizes para a Proteção dos Consumidores, a serem levadas a efeito pelos Governos dos Estados, através de políticas intervencionistas de defesa.

Em nível nacional, também podemos alinhar algum desenvolvimento histórico do Direito do Consumidor no Brasil.

No Brasil podemos citar várias manifestações legislativas prevendo alguns direitos que podemos arrolar como de consumidores, como por exemplo, o direito à informação no contrato de transporte no Código Comercial de 1850; a responsabilidade civil de construtores no Código Civil de 1916; a Lei Delegada no. 4. de 1962 sobre a livre distribuição de produtos. Também podem ser citadas medidas administrativas como a Criação de Órgãos de Defesa dos Consumidores, como o Procon – Grupo Executivo de Proteção aos Consumidores.

Também com o passar do tempo e o enfretamento de vários problemas em comum em matéria de consumo de produtos e serviços, surgem várias associações de consumidores, como as de inquilinos, mutuários, moradores, pais e alunos, sendo de se salientar também a criação do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Desta forma, começa a se fazer presente a participação efetiva dos consumidores em vários assuntos ligados ao consumo, com reconhecimento dos governos e empresários da necessidade e imprescindibilidade da efetiva participação dos consumidores na criação de políticas públicas sobre o assunto.

2. A proteção do consumidor na Constituição Federal de 1988

Marco verdadeiramente fundamental no nascimento do Direito do Consumidor no Brasil é a previsão de proteção dos consumidores como direito fundamental na CF de 1988, em seu art. 5o. inciso XXXII, bem como a previsão da defesa dos consumidores como princípio da ordem econômica no art. 170, V, da CF de 1988. Além disso, na própria CF de 1988 é prevista a responsabilidade por danos art. 24, inciso VIII, e em seu art. 48 do ADCT é prevista a edição de legislação sobre defesa dos consumidores, o que se dá através do CDC – Lei no. 8078/90.

A Republica Federativa do Brasil é formada por fundamentos como a cidadania, a dignidade da pessoa humana e, como os elencados no inc. IV do art. 1º4, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

4 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituiu-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I- A soberania;II- A cidadania;III- A dignidade da pessoa humana;IV- Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;V- O pluralismo político; Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Page 4: evolução_histórica_1

A livre iniciativa num primeiro momento nos traz a idéia de conceito amplo e irrestrito, porém esta limitada aos valores sociais do trabalho, vejamos que um fundamento da Republica é ligado ao outro de forma aditiva “e” e não de forma excludente “ou”, como erroneamente tem se interpretado.

Nas palavras de Rizzatto Nunes “Logo, a interpretação somente pode ser que a Republica Federativa do Brasil está fundada nos valores sociais do trabalho e nos valores sociais da livre iniciativa, isto é, quando se fala em regime capitalista brasileiro, a livre iniciativa sempre gera responsabilidade social. Ela não é ilimitada.” (2009, p.07).

Com efeito, o CDC se apresenta como a concretização de um dever de proteção e defesa instituído com direito fundamental e princípio da ordem econômica pela CF de 1988 ao Estado, sendo que o CDC oxigenou em muito vários aspectos das relações travadas na sociedade brasileira.

O Código de Defesa dos Consumidores (CDC) é uma legislação contemporânea, tendo sofrido várias influências em sua redação, principalmente da Resolução da ONU 39/248; do Projeto de Código de Consumo Francês; das Leis Gerais sobre Consumo da Espanha, Portugal, México, Alemanha e Québec; do Direito Comunitário Europeu através das Diretivas e do Direito Norte Americano.

3. Consumo e sociedade de consumo:

Podemos conceituar consumo como todo e qualquer processo de acesso a produtos e serviços que tenha por finalidade a satisfação de uma necessidade, sendo de se salientar que, todavia, nem sempre o produto ou o serviço venha a ser efetivamente consumido no sentido de gasto ou esgotado, mas apenas utilizado.

No século XX o homem vive em função de um novo modelo de associativismo, que é a chamada sociedade de consumo, onde há um número crescente de produtos e serviços e onde existe a própria criação de necessidades crescentes de consumo através do crédito e marketing, ficando patente a necessidade de defesa dos consumidores.

Os novos processos tecnológicos de produção, comunicação e transporte, a globalização e o neoliberalismo, a expansão econômica e o domínio das grandes empresas, construindo um mercado global financeirizado, onde são utilizados fartamente os instrumentos de marketing e crédito, fazem com que a necessidade de proteção aos consumidores se torne ainda mais gritante.

Na verdade, os fornecedores acabam por ditar as regras na sociedade de consumo através de contratos de adesão, cláusulas gerais de contratos, colocando os consumidores em posição de vulnerabilidade, de fragilidade frente a este poderio econômico, técnico, jurídico e social.

Antes da legislação protetiva, prevalecia a regra do pacta sunt servanda, ou seja, os pactos devem ser respeitados. “Acontece que isto não serve para as relações de consumo. Esse esquema legal privatista para interpretar contratos de consumo é completamente equivocado, porque o consumidor não se senta a mesa para negociar cláusulas contratuais.” (Nunes, 2009, p. 05).

Como bem asseverou Fábio Konder Comparato, no sistema capitalista a “realidade primária a ser levada em consideração, na

Page 5: evolução_histórica_1

análise do mercado, não são as necessidades individuais dos consumidores e sim o poder econômico dos organismos produtores, públicos ou privados”, desmistificando-se a idéia de que é o consumidor que determina o mercado, pois ele não é o lado ativo, mas sim passivo da demanda.

Desta forma, reconhecida a vulnerabilidade dos consumidores no mercado, nasce à necessidade de proteção através da intervenção estatal, com a limitação da autonomia privada e o reconhecimento de novos princípios que devem atuar nas relações travadas na sociedade, como os da boa fé objetiva, confiança, transparência, eqüidade, equilíbrio e dignidade da pessoa humana.

Assim, a vulnerabilidade é a verdadeira pedra de toque para o reconhecimento do dever de proteção aos consumidores, tendo elas diversas causas (econômicas, técnicas, jurídicas e sociais), havendo a necessidade de proteção integral de todos os aspectos da relação de consumo, tanto de produtos como de serviços, além da regulação dos instrumentos de marketing e crédito.

Assim, nas sociedades industriais está presente o fenômeno da massificação, ou seja, produção em massa, distribuição em massa e consumo em massa de produtos e serviços, com a utilização pelos fornecedores dos instrumentos do marketing e do crédito. Hoje, nas chamadas sociedades pós-industriais, apesar da produção adequada para determinados consumidores e predomínio dos serviços (sociedade de serviços), as características acima, das sociedades industriais, continuam presentes embora em outra roupagem.

Desta forma, diante de tal realidade, alguns autores falam do pós-modernismo jurídico, que se apresenta na proposta de EriK Jaime várias características, como: a) pluralismo de fontes (várias fontes legislativas a regular o mesmo fato, vários sujeitos e interesses a proteger, despersonalização e relações multifacetadas); b) comunicação (direito como instrumento de comunicação, informação, valorização do eterno e transitório, congelar momentos para proteger os mais fracos e grupos, consentimento informado e esclarecido, internacionalidade das relações e harmonização); c) narrativa (normas que não criam deveres, mas descrevem valores, objetivos, princípios, finalidades, explicitando motivos) e d) retorno aos sentimentos (valorização dos direitos humanos, vista por Tepedino como reação à globalização selvagem).

Desta forma, surge toda a normativa consumerista, tendo como razão reequilibrar a relação de consumo através da proteção do consumidor, protegendo-o no mercado em virtude de sua vulnerabilidade e, conseqüentemente, limitando a atividade dos fornecedores.

Nesta busca de normatização do mercado, segundo padrões de respeito aos consumidores, podemos falar de dois processos de adequação ou purificação do mercado, conforme duas possibilidades:

a) auto-regulamentação: exercida de forma privada pelos próprios interessados, consumidores e fornecedores, através de convenções coletivas de consumo e de manifestações coletivas como os boicotes;

b) sem descartar a auto-regulamentação a hetero-regulamentação: exercida através da intervenção estatal, com a edição de normas imperativas, de ordem pública e interesse social,

Page 6: evolução_histórica_1

através de leis específicas (crédito, publicidade, etc.) ou leis sistemáticas como o CDC.

Como dito acima, tais instrumentos não são excludentes, mas podem ser utilizados conjuntamente, ficando certo, todavia, que a utilização apenas da auto-regulamentação não consegue alcançar o patamar adequado de proteção e defesa dos consumidores, sendo necessária a hetero-regulamentação.

4. O direito de defesa dos consumidores como direito fundamental:

A evolução e o reconhecimento dos direitos fundamentais estão ligados diretamente à evolução da sociedade e dos tipos estatais construídos, sendo necessária uma breve incursão em tal matéria.

No Estado Liberal Clássico, o chamado Estado de Direito, não cabia falar em direito de proteção de uma determinada classe ou categoria de pessoas, pois todos eram vistos como iguais (igualdade meramente formal) e, assim, ao Estado não cabia a intervenção nas atividades dos privados, apenas lhe sendo cabível a função de proteção às liberdades formais e da propriedade. Neste tipo Estatal o princípio fundamental é o da legalidade, com a clássica divisão dos três poderes e tendo por regra a não intervenção em questões econômicas e sociais5.

A evolução da sociedade e do direito ao voto, os vários movimentos de reivindicação dos trabalhadores e outros grupos pelo reconhecimento de direitos e a melhoria das condições de vida e a crise instaurada principalmente após a 1a. Grande Guerra Mundial, fazem ruir o modelo liberal de Estado e tem nascimento o Estado Social ou de Bem-Estar, que se afigura mais preocupado com a liberdade efetiva, com igualdade substancial e não somente formal. Assim, este tipo estatal se apresenta como intervencionista, protegendo os mais fracos, os trabalhadores e os consumidores, como exemplos, agindo, ainda, como verdadeiro empresário, através das empresas estatais e congêneres, bem como mediador da sociedade.

Devido a vários episódios, como o choque do petróleo nos idos de 1970, e a incapacidade do Estado de Bem Estar de financiar todas as suas atividades, além de um certo desencantamento pelas promessas não cumpridas, este tipo estatal entra em crise, reaparecendo no cenário fortes correntes ideológicas que buscavam a restauração de um Estado Liberal sob as vestes de um Neo-Liberalismo.

Talvez possamos dizer que do choque entre estas correntes (do Estado de Bem Estar Social e do Neo-Liberalismo) tenha resultado o chamado Estado Democrático de Direito, uma evolução do Estado Social, onde se postula e se quer a participação efetiva do povo na condução dos assuntos públicos e onde os direitos humanos fundamentais são reconhecidos como princípios atuantes, estando tanto o Estado como os particulares submetidos aos Direitos

5 Com efeito, salientamos que a regra era a não intervenção, pois esta, de fato, embora pontual se fazia presente. Como bem lembra FACHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Ingo Wolfgang Sarlet – Organizador. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2003, p. 19, nota 12, a separação total das esferas públicas e privadas nunca existiu de fato, pois o Estado Liberal intervinha nas relações privadas fixando tarifas, dirigindo o mercado através dos meios fiscais, estabelecendo barreiras alfandegárias e intervindo nas relações familiares e nos contratos através das noções vagas de ordem pública e bons costumes.

Page 7: evolução_histórica_1

Fundamentais. Neste tipo estatal, do qual nossa CF de 1988 é exemplo, a valorização da Dignidade da Pessoa Humana como valor e princípio fundamental ganha em importância e relevo.

Dito isto, é interessante que façamos algumas diferenciações que nos parecem acertadas, diferenciando-se os chamados direitos humanos dos direitos humanos fundamentais ou apenas direitos fundamentais, para só então tentarmos encontrar a posição ocupada pelo direito defesa dos consumidores.

Os chamados direitos humanos estão em uma instância abstrata, de direitos inalienáveis que tem sua origem na própria natureza humana e que aspiram à validade universal, sem estarem adstritos a uma determinada ordem constitucional, sendo previstos em documentos internacionais, não possuindo, em regra, meios jurídicos eficazes para sua exigência.

Já os direitos fundamentais são aqueles direitos humanos que estão consagrados e positivados, têm previsão mais precisa e restrita, estando em consonância com uma determinada ordem constitucional, existindo em caso de violação a previsão de um recurso judicial para sua exigência e sua concretização prática6.

Observada esta diferenciação, parece mais precisa, então, a denominação direitos fundamentais ou direitos humanos fundamentais.

Os direitos fundamentais têm sido enquadrados em várias dimensões7, cada uma representando uma gama de conquistas da pessoa humana, sendo que, alguns autores entendem hoje estarem caracterizadas quatro dimensões8 de direitos fundamentais e outros entendem que hoje se vislumbram cinco dimensões de direitos fundamentais9.

6 Ver neste sentido a posição de SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Segunda Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 33 e 34. Ver, também HECK, Luís Afonso. Direitos Fundamentais E Sua Influência No Direito Civil. Artigo extraído de palestra apresentada no evento das Jornadas Preparatórias do XVII Congresso Argentino de Direito Civil, 1998. Este Autor aponta que a distinção entre direitos fundamentais e direitos humanos surgiu no século XVIII, quando do surgimento das declarações de direitos. O Autor afirma: “Se os direitos fundamentais encontram sua validade teórica nos direitos humanos, então sua validade prática, seu significado prático, depende disto, que quando violados disponha o seu titular de uma via processual adequada para o seu restabelecimento e, com isso, obtenham, além de seu enunciado normativo, sua realização na vida da coletividade e solidifiquem uma democracia em liberdade que pressupõe cidadãos autônomos.”

7 Alguns autores preferem falar em gerações de direitos fundamentais. Optamos por utilizar a expressão dimensões de direitos fundamentais, visto que aquela expressão pode dar a impressão de alternância entre as várias dimensões de direitos, como se uma substituísse a outra, quando, na verdade, o reconhecimento de novos direitos fundamentais tem um aspecto de complementaridade, de cumulação, onde uma dimensão vem a se somar à outra em um processo de positivação de liberdades. Ver sobre o assunto, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Segunda Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 49.

8 Neste sentido ver BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 12a. edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 516 e seguintes. O Autor refere os direitos de primeira dimensão como os direitos de liberdade, que tem por titular o indivíduo frente ao Estado, que são os direitos clássicos de resistência ou de oposição ao Estado. Já os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais, econômicos, coletivos ou de coletividades, abraçados ao princípio da igualdade. Os direitos de terceira dimensão estão ligados à fraternidade, e são os direitos ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. Já os direitos de quarta dimensão são os direitos à democracia, à informação e o direito ao pluralismo.

9 OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades. Teoria Jurídica e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 99 e 100. O Autor concorda com Bonavides no tocante aos direitos de primeira, segunda e terceira dimensões, sendo que, como de quarta dimensão o Autor enquadra os direitos de manipulação genética, relacionados com a biotecnologia e bioengenharia. Já os de quinta dimensão seriam os direitos de realidade virtual.

Page 8: evolução_histórica_1

Diante destas categorizações, os direitos dos consumidores são colocados entre os direitos de terceira dimensão ou de solidariedade.

Com efeito, a proteção dos consumidores ganhou o patamar de direito fundamental em nosso ordenamento jurídico ao ser previsto no inciso XXXII do art. 5o. da CF de 1988 que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, estando, assim, tal categoria protegida pelo § 4o., inciso IV, do art. 60 da CF de 1988.

Este fenômeno de reconhecimento de direitos fundamentais dos consumidores não é nacional, mas internacional.

A Carta dos Direito Fundamentais da União Européia, de 07.12.2000, em seu art. 38 consagra que “as políticas da União devem assegurar um elevado nível de defesa dos consumidores”.

Assim existe o firme propósito de garantir visibilidade aos Direitos Fundamentais, para reforçar “a proteção dos direitos fundamentais, à luz da evolução da sociedade, do progresso social e da evolução científica e tecnológica”.

Ao serem previstos como direitos fundamentais, tais direitos vão ter reflexos hermenêuticos (interpretação, integração e aplicação), com uma forte carga de conteúdo de ordem pública e interesse social e de prevalência, prima facie, a direitos de base infra-constitucional, devendo ser observada a harmonização e ponderação como os demais direitos constitucionais, devendo ser buscada a sua máxima efetivação.

O direito de defesa dos consumidores, tal como previsto em nossa CF de 1988, se apresenta como direito fundamental à proteção, na categorização de Robert Alexy, sendo que, assim, demandam que o Estado passe a tutelá-los e garanti-los frente aos particulares e ao próprio Estado, não podendo, assim, o Estado ficar em posição de omissão.

Desse reconhecimento da defesa dos consumidores como direito fundamental, se apresenta a eficácia própria dos direitos fundamentais à prestação: aptidão de revogação dos atos normativos anteriores que lhes são contrários; vinculação permanente do legislador; determinação da inconstitucionalidade, por via de ação ou exceção, dos atos normativos posteriores a si; geram posições jurídico subjetivas em sentido amplo e não só de direitos subjetivos individuais de fruição da prestação; determinam a proibição de retrocesso social e podem gerar efeitos de natureza defensiva.

Tendo em conta isso, foi editado o CDC, que em seu art. 1o. prevê que suas normas são de ordem pública e interesse social, como realização do comando constitucional, visto a eficácia limitada da referida norma constitucional, se apresentado tais normas como de caráter preferencial prima facie às demais normas que regulem os aspectos ligados às relações de consumo.

Desta forma, se exige a proteção dos consumidores frente aos fornecedores, com uma aparente quebra do princípio da igualdade nestas relações privadas. Realmente aparente, pois o que se quer é justamente igualar, pois se reconhece que a igualdade formal, no mito dos sujeitos abstratamente livres e iguais do Estado Liberal, que podiam se manifestar através de contratos, é falsa. Desta forma, através de uma desigualação jurídica se procura igualar desiguais na medida de suas desigualdades. Se reconhece a desigualdade fática que pode resultar de várias causas, não só econômicas, mas também

Page 9: evolução_histórica_1

sociais, técnicas e jurídicas, e se protege a quem necessita de tal proteção.

Ora, existe uma necessidade humana existencial de consumir na sociedade de consumo, devendo tal situação resultar protegida.

5. O Código de Defesa do Consumidor

O Código de Defesa do consumidor além de disciplinar a Política Nacional de Proteção e Defesa do Consumidor, cuida da política de Relações de Consumo, dispondo sobre os princípios que devem nortear o Setor. (Almeida, 2010, p.33). A legislação que protege o consumidor possuiu como seu fim máximo a harmonização das relações de consumo.

O objetivo principal desta legislação é trazer uma melhor qualidade de vida a população, por meio da proteção a exposição de gentes nocivos a sua saúde e segurança, o que viria a onerar a máquina pública.

O código de defesa do consumidor inaugurou um novo modelo de lei, até então inexistente no ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, possui natureza principiológica.

Sobre o conceito merece ser lembrada a explanação de Rizzatto Nunes “Como lei principiológica entende-se aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que seja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional”. (2009, p. 66).

Ainda, o Autor traz como exemplo, o caso de um contrato de seguro de automóvel que após a edição da lei consumerista continua regulado pelo Código Civil e pelas normas editadas pelos órgãos governamentais como Susep, Instituto de Resseguros, etc, porém os princípios e regras protecionistas incidem diretamente neste contrato podendo inclusive anular as cláusulas que confrontarem o diploma.

Assim, a Lei consumerista surge como efetivação dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988, concretizando as garantias previstas na nossa lei maior, por meio do respeito a saúde, a segurança, a proteção dos interesse econômicos, melhoria da qualidade de vida e transparência e harmonia das relações de consumo, conforme dispõe o caput do art. 4º.

Dessa forma, tal norma prevalece sobre as legislações que com ela colidirem, ainda que especiais.