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Ano XI, n.01 Janeiro/2015 -NAMID/UFPBhttp://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica
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Ex Machina e o zeitgeist ps-11 de Setembro nos EUA
Victor Souza PINHEIRO1
Resumo
Este artigo examina como a srie norte-americana de histria em quadrinhos Ex
Machina, criada por Brian K. Vaughan e Tony Harris, representa o zeitgeist social e
poltico gerado aps o ataque terrorista que derrubou as torres gmeas do World Trade
Center em 11 de setembro de 2001, inclusive a crise de liderana que atingiu os Estados
Unidos ao longo da ps-traumtica cadeia de eventos. Focando-se na leitura crtica dos
dez volumes que renem toda a obra publicada pelo selo Wildstorm, da DC Comics, e
com contribuies tericas de Pustz, Habermas e Eco, entre outros, o estudo analisa
como os autores de Ex Machina se valem de elementos arquetpicos recorrentes da
mitologia do super-heri americano para conceber uma reflexo contundente sobre o
ethos dos EUA ps-11/9, com um protagonista que admite o fracasso do super-herosmo
face inevitabilidade do desastre e, tornando-se um poltico, incorpora a descrena em
se trazer mudana real para um sistema intricado e vicioso.
Palavras-chave: Quadrinhos. Super-heris. 11 de Setembro. Ex Machina.
Abstract
This paper examines how the American comic book series Ex Machina, created by
Brian K. Vaughan and Tony Harris, represents the social and political zeitgeist
generated after the terrorist attack that brought down the World Trade Center twin
towers on September 11, 2001, including the crisis of leadership that hit the United
States along the post-traumatic chain of events. Focusing on the critical reading of the
ten volumes that collect the entire series published by the DC Comics imprint
Wildstorm, and with theorical contributions of Pustz, Habermas and Eco, among
others, the study analyzes how the authors of Ex Machina betake recurring archetypical
elements of the American superhero mythology to conceive a scathing reflection on the
post-9/11 USA ethos, with a protagonist who admits the failure of superheroism faced
with the inevitability of disaster and, having become a politician, incorporates the
disbelief in bringing real change to an intricate, vicious system.
Keywords: Comics. Superheroes. September 11. Ex Machina.
1 Mestrando pelo Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal da Paraba
(PPGC/UFPB). E-mail: [email protected]
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Introduo
Estudos acadmicos produzidos ao longo das ltimas dcadas j evidenciaram o
equvoco reducionista explcito na noo, cristalizada no senso comum, de que histrias
em quadrinhos (ou HQs, como tambm sero referidas neste presente artigo) constituem
uma subliteratura infantil (ou para massas infantilizadas) sem qualquer valor artstico
que transcenda a aparente superficialidade com a qual se desenrolam suas diegeses.
Obviamente essa perspectiva generalizante ignora a concepo contempornea das HQs
como meio de comunicao que ganhou fora com as contribuies tericas de Eisner
(1989) e McCloud (1995) , evocando metonimicamente os quadrinhos para referir-se a
um de seus gneros, (quase sempre) o de super-heris, tornado estandarte desta mdia
graas popularidade que lhe angariou com a criao do Superman e a profuso de
publicaes posteriores ao sucesso deste personagem em meados do sculo XX, tendo
os Estados Unidos como epicentro.
Concebido por Joe Shuster e Jerry Siegel, o heri tambm chamado Homem de
Ao estreou na revista Action Comics n. 1, da atual DC Comics, em junho de 1938 para
sacramentar uma frmula que uniria a fixidez emblemtica (ECO, 2006, p. 251) do
arqutipo heroico a um desenvolvimento narrativo tipicamente romanesco,
consolidando a estrutura prototpica bsica dessas aventuras fantsticas cuja produo
em srie buscaria primordialmente saciar a fome de redundncia (Ibid., p. 269) de um
leitor preguioso (Ibid., p. 252), interessado apenas no gozo de um escapismo
alienante proporcionado por um esquema de narrao previsvel em sua iteratividade,
mero suporte para a reafirmao cotidiana (peridica) de mitos modernos para consumo
imediato.
Entretanto, apesar da ausncia de pretenses artsticas para alm de sua funo
mercadolgica como entretenimento de massa, mesmo essas primeiras peripcias
constituem artefatos de alguma relevncia cultural e histrica, especialmente se
evidenciarmos como o faremos mais adiante os vnculos de suas origens com o
perodo da Grande Depresso econmica de 1929, nos EUA, e a ascenso nazifascista
na Europa. Deve-se tambm reconhecer o carter basilar das histrias produzidas
durante a chamada Era de Ouro dos Quadrinhos norte-americanos (como se
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convencionou aludir ao perodo entre 1938, com a gnese do Superman, e o incio da
dcada de 1950) para a consolidao do gnero dos super-heris e sua rica mitologia
cuja marca no inconsciente coletivo norte-americano ao longo das dcadas seguintes
consagraria esses superseres como instituies simblicas do American way of life,
personificaes exuberantes de seu patriotismo.
Adotando-se ento um olhar mais atento para uma anlise contextualizada
mesmo de obras no transcendentes no imediatismo de sua lgica de produo e
consumo, possvel assumir o potencial das revistas de HQs, em sua condio de
produtos culturais de massa, como encapsuladores de zeitgeist ou esprito do tempo
, simulacros da realidade qual se oferecem primariamente como fuga.
Partindo dessa noo, este artigo analisa como a srie de quadrinhos Ex
Machina, de Brian K. Vaughan e Tony Harris, explora no apenas esse carter
documental inerente natureza das HQs enquanto registros, ainda que pelo prisma da
mdia massiva, de cultura e historicidade de um povo e uma poca , como tambm o
prprio gnero de super-heris para refletir criticamente o zeitgeist social e poltico que
caracterizou o perodo ps-traumtico seguinte ao ataque terrorista s torres gmeas do
World Trade Center, em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001. Intenciona-se,
inclusive, evidenciar aqui que tal obra centrada no retrato da degradao moral de um
super-heri eleito prefeito da cosmpole norte-americana aps evitar a segunda coliso
no WTC exemplar da maior liberdade autoral concedida pelas grandes editoras de
quadrinhos nos EUA a partir dos anos 1980, permitindo um tipo de abordagem crtica e
autorreflexiva (transcendente, enfim) do gnero super-heroico, voltada a um pblico
mais maduro e relativizando o estigma, recado sobre as HQs comerciais produzidas no
pas, de entretenimento manipulador a servio de um imperialismo cultural.
HQs, super-heris e historicidade norte-americana
Apesar de poder-se estabelecer conexes histricas com manuscritos pr-
colombianos, pinturas egpcias e tapearias francesas, sem esquecer as contribuies de
pioneiros como o suo Rodolphe Tpffer e sua literatura de estampas (MOYA, 1993,
p. 7), est nos jornais, mais especificamente nas tiras seriadas, a origem dos quadrinhos
como meio de comunicao moderno de linguagem singular caracterizado pela
justaposio de imagens pictricas para a criao de uma narrativa grfica que pode ou
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no se utilizar tambm da palavra escrita, conforme definio proposta por McCloud
(1995: 9) e produto cultural de massa submetido lgica da produo industrial para
satisfazer necessidades de consumo.
Criada por Richard Outcault para o suplemento dominical do jornal New York
World, em 1895, a srie Hogans Alley, protagonizada pelo clebre Yellow Kid, foi um
marco na gnese dos quadrinhos como veculos de narrativas seriadas que gravitam em
torno de personagens fixos, mas sua importncia histrica tambm reside na
evidenciao do gene jornalstico que compe as HQs, principalmente as tirinhas
humorsticas tradicional gnero que herda da obra de Outcault a stira poltica e social
do cotidiano, conforme fazia o autor atravs das frases irreverentes que estampavam o
camisolo amarelo de sua famosa criatura, permeadas por grias urbanas e crticas aos
costumes da poca.
Assim, desde seu nascimento no seio da indstria cultural, ainda que
condicionadas a discursos pessoais ou corporativos de seus polos de produo, as HQs
tm se reafirmado como registros histricos de seu tempo e espao, contendo inclusive,
como apontado por Pustz (2012), grande potencial para o ensino de Histria e o
desenvolvimento da habilidade do pensamento histrico nos leitores ideia que ainda
hoje assustaria pais e professores de jovens mundo afora. Gerador de uma conscincia a
partir do conhecimento de experincias constitutivas de uma determinada cultura
histrica, o pensamento histrico
involves a real, meaningful comprehension that life was different in the past,
that people were different in the past, that those differences are determined
by certain historical factors that are shaped by complex causes and effects
that are driven by actual human beings actively working (but not always
consciously working) to change society. (PUSTZ, 2012, p. 4)2
Mesmo as revistas de quadrinhos dos super-heris norte-americanos, cuja
referncia realidade fora do papel no est sempre exposta de forma clara e direta
como costuma ser nas tiras (esquematizadas para provocar efeito imediato, do alvio
cmico reflexo crtica, por meio de aluses geralmente frontais ao mundo real),
revelam fragmentos da historicidade humana como filhos de tempos difceis, conforme
2 Traduo livre: envolve uma compreenso real e significativa de que a vida era diferente no passado,
que as pessoas eram diferentes no passado e que essas diferenas so determinadas por certos fatores
histricos modelados por causas e efeitos complexos guiados por seres humanos reais trabalhando
ativamente (mas nem sempre trabalhando conscientemente) para mudar a sociedade.
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lembra Silva (2012) afinal, o gnero super-heroico nasceu e deu seus primeiros passos
entre o processo de recuperao da Crise de 1929 e o ingresso dos EUA na Segunda
Guerra Mundial. A propsito, ambos os eventos, marcantes na Histria norte-americana
e mundial, foram respectivamente pano de fundo para o surgimento de dois dos maiores
cones das HQs e da cultura popular daquele pas: o Superman, concebido no embalo
das polticas do New Deal para personificar, segundo anlise de Lund (2012), o
regozijante modelo do cidado norte-americano trabalhador, obediente lei e engajado
no reerguimento social e econmico da ptria; e o Capito Amrica, fruto de uma
anteviso editorial, como pontua Bandeira (2007), que o tornou smbolo, em 1940, da
ento iminente campanha militar dos EUA contra a escalada do nazifascismo na
Europa, contagiando a nao com chauvinismo e histeria blica.
Nesse sentido, alm das revistas de super-heris tambm poderem instigar o
pensamento histrico reconhece-se que the presence of the superhero and readers
identification with him enhances the narrative impact of the historical information
(PUSTZ, 2012, p. 2)3 , sua condio como unidade fundamental de um profuso e
competitivo mercado (capitaneado, nos EUA, pelas editoras DC e Marvel Comics) lhes
permite mais que isso: integrando um sistema de retroalimentao peridica de
consumo, os quadrinhos super-heroicos no so apenas produtos, mas desempenham o
papel de produtores culturais, criadores de mitos reiterados cotidianamente por meio
da periodicidade fixa de publicao e do esquema iterativo de suas narraes para
gerar lucros refletindo e fomentando anseios coletivos ideologicamente direcionados.
Tem-se, dessa forma, as HQs de super-heris como artefatos culturais
embebidos da mentalidade histrica de sua poca, representaes simblicas de mundo
social e temporalmente influenciadas que emprestam recursos narrativos dos romances
de folhetim, arqutipos da mitologia grega e perspectivas visuais da linguagem
cinematogrfica para produzir um delrio extravagante de apelo universal, em cujo
fundo moral subjaz a ideologia dos produtores de contedo como ocorre com qualquer
outra representao artstica.
Consolidado em tempos de mobilizao blica contra as Potncias do Eixo, o
arquetpico Super-heri Americano se cristalizou no imaginrio coletivo como um
3 Traduo livre: a presena do super-heri e a identificao dos leitores com ele aprimoram o impacto
narrativo da informao histrica.
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carismtico porta-voz do discurso oficial, com o poder de seduo do mito e a carga
ideolgica de uma propaganda governamental, defendendo e difundindo os valores de
uma idealizada democracia capitalista enquanto personificava sonhos de poder e
transcendncia do homem urbano massacrado pela rotina. As editoras do gnero,
alinhadas agenda geopoltica da administrao nacional, ergueram seu panteo de
semideuses modernos a partir dessa combinao de patriotismo e mitologia,
convenientemente acolhida pelo prprio governo o Capito Amrica, por exemplo, foi
explorado como garoto-propaganda oficial durante a Segunda Guerra Mundial,
chegando a ter sua revista distribuda entre as tropas que desembarcavam na Europa
como forma de apoio moral (BANDEIRA, 2007, p. 30).
A herana ideolgica permaneceu patente nas HQs norte-americanas de super-
heris ao longo das dcadas, manifestando-se com maior veemncia em momentos de
tenso poltica e militar internacional envolvendo os EUA, como a Guerra Fria
cenrio em que nasceu o Homem de Ferro, magnata industrial e gnio da cincia que
desenvolve uma armadura hipertecnolgica para apoiar seu pas durante a campanha no
Vietn; e onde o Capito Amrica encarnou uma polmica fase macartista, como
registra Bandeira (2007), perseguindo os traidores que levavam a ameaa vermelha
do comunismo nao-lder do bloco capitalista.
Os super-heris no ps-11 de Setembro
Como cones nacionalistas de to evidente valor afetivo no imaginrio popular
dos EUA, os super-heris no deixariam de partilhar do luto que tomou o pas aps o
ataque terrorista a Nova York em 11 de setembro de 2001, atribudo organizao
fundamentalista islmica Al-Qaeda. Personagens como o Homem-Aranha, Superman e
Hulk foram destacados por suas editoras para, em plena comoo dos primeiros meses
aps o atentado, cumprirem seu dever cvico de oferecer consolo populao e
devolver-lhe esperana e orgulho patritico, muitas vezes transparecendo um discurso
revanchista, como registra Lewis (2012), consonante com o plano poltico-militar que
culminaria na invaso do Afeganisto e do Iraque sob o nome de Guerra ao Terror. Tais
histrias, melhor representadas pela edio Homem-Aranha Especial4 que retrata o
4 The Amazing Spider-Man n. 36 nos EUA.
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personagem-ttulo em um monlogo por entre os escombros das torres gmeas do WTC
, se caracterizaram como mensagens mobilizadoras e convocatrias, um clamor
grandiloquente e ufanista de exaltao dos cidados norte-americanos como uma
espcie de povo prometido, heris natos da liberdade. Nos dizeres do Homem-
Aranha,
em dias como este nascem inmeros heris como ns. Os verdadeiros heris
do sculo 21. Cada um de vocs, seres humanos singulares. Vocs, que so
mais nobres do que pensam e mais fortes do que imaginam. Vocs. Os heris
deste momento particular da Histria. (STRACZYNSKI; ROMITA Jr., 2002,
p. 26)
Com o tempo, porm, alm da tradicional defesa do discurso ideolgico oficial,
a abordagem das repercusses do ataque terrorista pelos quadrinhos super-heroicos
abriu espao para questionamentos e mesmo crticas diretas administrao de George
W. Bush, um contraponto poltico incomum ao gnero, demonstrando que aquele
governo no gozava de unanimidade entre editores e roteiristas do segmento. Assim,
entre as HQs de super-heris que exploraram o ambiente de tenso poltica e paranoia
de vigilncia instalado nos EUA ps-11/9, como os eventos crossover5 da Marvel
Guerra Secreta (2004-2005), Guerra Civil (2006-2007) e Invaso Secreta (2008), h
aluses claras ao ento presidente do pas, refletindo a divergncia de opinies entre os
prprios norte-americanos em relao Doutrina Bush. Conforme constata Bandeira
(2007), mesmo o Capito Amrica ressurgiu, em 2002, amargurado com seus lderes em
uma nova srie, recusando chamados oficiais para participar da Guerra ao Terror e,
frente a antagonistas como um terrorista rabe e um ndio americano, admitindo o
histrico de intervencionismo genocida dos EUA, para reafirmar em seguida seu dever
de proteger a populao norte-americana alheia ao jogo poltico predatrio de seus
governantes.
Consistindo em curiosos registros histricos e tpicos retratos de poca que nos
revelam como uma influente indstria de entretenimento assimilou um trauma sem
precedentes na Histria de seu pas, tentando manter-se relevante para um pblico
enlutado e moralmente abatido, as HQs de super-heris ps-11/9 encontram seu mais
emblemtico expoente numa srie original criada especificamente para refletir, sem o
5 Narrativas que se desenvolvem simultaneamente em vrias sries diferentes, reunindo os protagonistas
destas em um nico enredo.
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verniz patritico tradicionalmente vinculado ao gnero, a turbulenta realidade social,
poltica e cultural dos EUA nos anos imediatamente posteriores ao colapso do WTC.
Trata-se de Ex Machina, obra discutida a seguir.
Ex Machina: espelho alegrico dos EUA ps-11/9
Publicada em 54 edies lanadas entre 2004 e 2010 em seu pas de origem (e
posteriormente compilada em dez volumes encadernados), Ex Machina herdeira de
uma eminente linhagem de quadrinhos que remonta ao incio dos anos 1980, quando
ttulos como V de Vingana (1982) e American Flagg! (1983) se propuseram a explorar
questes entre herosmo, poltica e crtica social sem o maniquesmo caricato das
aventuras evasivas originais. A obra de Brian K. Vaughan e Tony Harris tambm
descende da chamada Era Sombria dos Quadrinhos6, informalmente nomeada por
estudiosos e crticos da indstria como o perodo iniciado por Watchmen (1986) e
Batman O Cavaleiro das Trevas (1986), estreando uma abordagem mais cerebral e
desconstrutivista do gnero super-heroico e exigindo, assim, maior engajamento
intelectual dos leitores maduros aos quais se dirigiam. A partir de ento, as editoras
perceberam, com a concesso de maior liberdade autoral aos roteiristas, o potencial
comercial e artstico de se explorar narrativamente, atravs de sries distintamente
voltadas ao pblico adulto, o que pode acontecer se all this dumb, wonderful, four-
color stuff has real emotional weight and depth, and it means more than it literally
means (GAIMAN apud GRAVETT, 2005, p. 77)7.
Ex Machina nasce, ento, dessa abertura do mercado para obras um tanto mais
experimentais e perspectivas de potencial inovador, explorando e evidenciando uma
qualidade dos quadrinhos definida por Pustz:
the immediacy of comics is what also helps it to be able to record events and
emotions directly and personally. Comics as a medium is inherently
expressionistic. As art, it is created, sometimes as a representation of reality
and sometimes as an expression of emotion. (PUSTZ, 2012, p. 6)8
6 No h unanimidade quanto ao desfecho deste perodo; para alguns, ele se estende at hoje, enquanto
outros o consideram terminado em meados dos anos 1990, com o surgimento da editora Image Comics,
fundada por autores dissidentes da Marvel. 7 Traduo livre: toda essa coisa boba, maravilhosa e de quatro cores [referncia s cores de impresso
primrias] tem profundidade e peso emocional real, e significa mais do que literalmente significa. 8 Traduo livre: o imediatismo dos quadrinhos tambm o que os ajuda a serem capazes de registrar
eventos e emoes direta e pessoalmente. Quadrinhos como um meio so inerentemente expressionistas.
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Dessa forma, a srie publicada pelo selo Wildstorm, da DC, extrai da fora
expressiva das HQs e seu imediatismo reverberante as ferramentas para constituir-se
como uma contundente representao da realidade norte-americana ps-11 de Setembro,
desvelando uma viso pessoal a respeito dos efeitos colaterais daquele trauma histrico,
tanto sobre o ethos dos EUA quanto sobre uma das maiores instituies da cultura
popular do pas: o super-heri de quadrinhos.
Com a contribuio decisiva da arte fotorreferencial de Tony Harris, que
estabelece uma caracterizao sbria e ambientao realista, adequadas reviso crtica
do gnero super-heroico proposta por Vaughan, Ex Machina narra a saga do engenheiro
civil Mitchell Hundred, eleito prefeito de Nova York graas a uma providencial
interveno num fielmente reimaginado 11 de setembro de 2001, quando,
paramentado como seu alter ego, o vigilante alado A Grande Mquina, recorre ao dom
de manipular mquinas verbalmente que adquiriu aps ser exposto exploso de um
desconhecido artefato tecnolgico para desviar o segundo voo sequestrado pela Al-
Qaeda, evitando a queda da Torre Sul do WTC.
Assim, j em suas primeiras edies a HQ contempla, como um espelho
alegrico, algumas problemticas evidentes dos EUA ps-11/9: a destruio de um
cone da imagem familiar da nao norte-americana[...] com sua marca insubstituvel
na silhueta de Manhattan e sua poderosa corporificao de fora econmica e projeo
para o futuro (HABERMAS apud BORRADORI, 2004, p. 40), tendo o impacto
simblico de provocar o chamado collapse of a planned life (KENNY apud GEERS,
2012, p. 251)9, e portanto desestabilizando uma viso de mundo culturalmente
predominante pela intruso do desastre numa realidade fragilmente preservada, faz
com que a populao vitimada pelo trauma subsequente recorra em desespero a
personificaes de mitos que ela mesma aprendeu a cultivar. Dessa forma, em um
momento de impotncia coletiva e pnico generalizado, o salvamento de uma das torres
gmeas por um super-heri o suficiente para garantir-lhe a prefeitura de Nova York,
assim como as encarnaes heroicas de Arnold Schwarzenegger no cinema o
credenciariam, em 2003, ao governo da Califrnia cargo que o ator de Hollywood
Como arte, so criados algumas vezes como uma representao da realidade e outras como uma
expresso de emoo. 9 Traduo livre: colapso de uma vida planejada.
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ocupou at 2011.
Vaughan, nesse sentido, concebe a apario to milagrosa quanto absurda de um
salvador no fatdico 11/9 (da a aluso ao recurso narrativo deus ex machina10 no nome
da srie) para criticar o messianismo potencializado no imaginrio cotidiano por uma
indstria cultural que espetaculariza o real como fico a que se submete a massa
amedrontada, especialmente em tempos de crise. Como argumenta Chomsky, a
Doutrina Bush oportunamente se alimentou deste cenrio de suscetibilidade popular no
ps-11 de Setembro para instituir medidas impopulares sob o disfarce de combate ao
terror, explorando sempre a atmosfera de medo e o apelo ao patriotismo
(CHOMSKY, 2011, p. 159).
Por outro lado, o fato de Hundred ter salvado apenas metade do WTC
sintomtico de uma das mais proeminentes mensagens de Ex Machina: a falibilidade do
Super-heri Americano ante as tragdias do mundo real, sugerindo que mesmo em um
contexto onde tais seres fantsticos fossem realidade, no poderiam ser infalveis a
ponto de prever e evitar estratagemas obscuros subjacentes s dinmicas globais de um
panorama cuja volatilidade move-se por conflitos polticos e interesses econmicos.
Nesse sentido, com a deciso de ingressar na vida poltica, acreditando que
poderia contribuir bem mais estando dentro do sistema do que acima da [lei]11,
Hundred simboliza a rendio do idealismo super-heroico ao pragmatismo poltico,
evidenciando a inadequao do herosmo solitrio quando se busca uma real
transformao social (antes da interveno no 11/9, A Grande Mquina mostra-se um
desastrado patrulheiro autnomo, inbil com seus prprios poderes, chegando a ser
perseguido como criminoso pela polcia nova-iorquina).
No ltimo tero da srie, Vaughan se aprofunda ainda mais na desconstruo
desse popular gnero de HQs: ao retratar a crise moral que metamorfoseia seu
protagonista num governante maquiavlico e corrupto capaz de cometer males
necessrios como fraudes eleitorais e assassinato de amigos ntimos em nome de um
bem maior , Ex Machina desmascara a base ideolgica sobre a qual foi concebido o
Super-heri Americano, levando ao palco da poltica sua defesa apaixonada da
10
Literalmente, deus na mquina. Uma pessoa ou fora que vem providenciar uma soluo improvvel para uma situao impossvel, batizada assim devido aos dispositivos mecnicos usados pelos
dramaturgos gregos a fim de fazer descer no palco atores que interpretavam divindades. (VAUGHAN; HARRIS, 2005, p. 5) (Em Ex Machina: Estado de Emergncia). 11
VAUGHAN; HARRIS, 2012, p. 55 (em Ex Machina: Truque Sujos).
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democracia capitalista e, assim, revelando a ambiguidade de um altrusmo e senso de
justia evocados para exaltar o American way of life e endossar a superioridade militar e
econmica dos EUA.
Ao mesmo tempo, a trgica degenerao tica de Hundred pode ser vista como
uma enftica crtica administrao de Bush, estendendo-se implicitamente agenda
poltica, militar e econmica que historicamente consolidou a hegemonia dos EUA no
panorama geopoltico internacional. Mantendo a postura de timoneiro da nao, o
inescrupuloso anti-heri incorpora o unilateralismo mal disfarado de uma
superpotncia insensvel (HABERMAS apud BORRADORI, 2004, p. 39) atribudo ao
lder republicano no ps-11 de Setembro. Seu autoritarismo e poder manipulador
espelham a truculncia blica e a coao intimidante praticados pelos EUA para levar a
cabo a Guerra ao Terror, ignorando a no aprovao do Conselho de Segurana da
Organizao das Naes Unidas, e envolver seus aliados na campanha.
Essa perspectiva negativa com que Vaughan expe a transformao de seu
protagonista reflete ainda outro trao marcante do zeitgeist daquele contexto: a crise de
liderana que atingiu os EUA na cadeia de eventos seguintes ao desastre, incluindo,
alm das controversas invases ao Afeganisto e ao Iraque (com o alegado objetivo de
desbaratar a Al-Qaeda e apreender supostas armas de destruio em massa), a
instituio do Patriot Act, impopular decreto federal que permite ao governo a prtica
de espionagem domstica contra nativos e estrangeiros, como a quebra de sigilo de
informaes pessoais de indivduos considerados suspeitos de terrorismo. Tais
polmicas medidas, justificadas atravs de um j decadente discurso nacionalista, so
ironizadas pelo ceticismo implcito na caracterizao do prefeito Hundred, que
corrobora a desiluso generalizada no senso comum sobre a corruptibilidade e a retrica
falaciosa da classe poltica, sentimento palpvel nos EUA ps-11/9 com a queda de
prestgio do governo Bush e do apoio popular Guerra ao Terror.
Esta histria[...] pode parecer um gibi12, mas na verdade uma tragdia13,
adverte Hundred logo na primeira cena da srie. Sozinho, em um local que somente nas
ltimas pginas da obra seria identificado como a residncia oficial do vice-presidente
norte-americano (cargo que conquista nas eleies de 2008, na chapa do conservador
12
Termo muito utilizado no Brasil para referir-se a revistas de quadrinhos, popularizado devido
publicao nacional homnima lanada pela editora Globo no final dos anos 1930. 13
VAUGHAN; HARRIS, 2005, p. 6 (Em Ex Machina: Estado de Emergncia).
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John McCain), o personagem dirige-se ao leitor para relatar sua trajetria com um claro
tom de amargura e resignao, como se reconhecesse os desvios de carter que
marcaram sua ambiciosa carreira at ali. L-se, nas entrelinhas do monlogo que abre e
encerra a obra, uma espcie de confisso do mitolgico Super-heri Americano, que
admite a culpabilidade dos EUA sobre retaliaes extremas de adversrios polticos e
ideolgicos, assumindo a hipocrisia de uma Guerra ao Terror capitaneada por um
Estado lder do terrorismo (CHOMSKY, 2011, p. 17), cujo intervencionismo
predatrio alimenta uma reserva de ressentimento e raiva (Ibid., p. 13) por parte, por
exemplo, de populaes que vivem sob regimes opressores apoiados pelo governo
norte-americano.
Consideraes finais
Tal como as grandes obras da literatura de fico cientfica, de George Orwell a
Philip K. Dick, Ex Machina recorre potncia alegrica da fantasia para oferecer um
novo olhar crtico sobre a idiossincrtica sociedade contempornea. Trata-se de um
representativo produto cultural ps-11 de Setembro, absorvendo, sombra dos ataques
terroristas, o desencanto com o mito do super-heri como soluo dos males do mundo;
primeiro com A Grande Mquina, que simboliza o fracasso do super-herosmo face
inevitabilidade do desastre, e posteriormente com o prefeito Mitchell Hundred,
manifestao da descrena em se trazer mudana real para um sistema intricado e
vicioso.
Vaughan e Harris concebem, dessa forma, uma autocrtica metalingustica dos
quadrinhos super-heroicos enquanto convidam seus leitores ao vislumbre de
problemticas reais, nos EUA dos anos 2000, metaforizadas em um simulacro to
divertido quanto provocativo. Mais do que retratar a crise do Super-heri Americano no
ps-11 de Setembro, Ex Machina traz uma mensagem poltica que transcende aquela
conjuntura sociotemporal, assimilando, atravs da representatividade simblica de seu
super-heri-poltico, a impossibilidade de absolvio moral para o Estado norte-
americano aps um longo histrico de arbitrrias prticas poltico-militares que
levantam a bandeira da expanso internacional da democracia para dissimular objetivos
de ampliao de sua influncia econmica pelo globo.
Tendo herdado da srie Watchmen a crtica utilidade e eficincia do super-
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heri como agente de segurana e bem-estar social, a obra ainda sintetiza e aprofunda
questes levantadas por outros quadrinhos do gnero no ps-11/9, marcados em certo
momento, como nota Lewis (2012), por conflitos entre o idealismo de protagonistas
relutantes em participar de esforos de guerra, como o Capito Amrica e o Superman, e
o pragmatismo insensvel de avatares do discurso poltico, como o general Nick Fury
em Guerra Secreta e Lex Luthor, presidente dos EUA em Our Worlds At War (2002)14.
A metamorfose de Mitchell Hundred, nesse contexto, representa, mais do que a
rendio da aparente pureza moral do Super-heroi Americano ante a coao da
beligerncia estatal, a decadncia de um herosmo patritico subserviente aos interesses
polticos da nao.
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______. Ex machina: limite de mandato (n. 10). Barueri: Panini Brasil, 2012.
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______. Ex machina: os sinos da despedida (n. 9). Barueri: Panini Brasil, 2012.
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