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1 Centro Universitário de Brasília – UniCEUB Faculdade de Ciências Jurídicas e Ciências Sociais – FAJS Graduação em Direito ALEXEI KALUPNIEK “EX UNO, PLURES” (“A PARTIR DE UM, VÁRIOS”): diglossia e ressignificação no direito romano BRASÍLIA 2012

“EX UNO, PLURES” (“A PARTIR DE UM, VÁRIOS”)repositorio.uniceub.br/bitstream/235/4063/1/Alexei Kalupniek RA... · 2.2. O legado de Roma ... 4.7. O direito romano clássico

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Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia ndash UniCEUB Faculdade de Ciecircncias Juriacutedicas e Ciecircncias Sociais ndash FAJS Graduaccedilatildeo em Direito

ALEXEI KALUPNIEK

ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano

BRASIacuteLIA

2012

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ALEXEI KALUPNIEK

ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano

Monografia a ser apresentada como requisito para conclusatildeo do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia

Orientador Prof Me Luiz Patury Accioly Neto

BRASIacuteLIA 2012

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)

Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC

Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)

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RESUMO

Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica

Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo

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ABSTRACT

Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy

Keywords Roman law diglossia ressignifation

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SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

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descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

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adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

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direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

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fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

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pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

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com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

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J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

2

ALEXEI KALUPNIEK

ldquoEX UNO PLURESrdquo (ldquoA PARTIR DE UM VAacuteRIOSrdquo) diglossia e ressignificaccedilatildeo no direito romano

Monografia a ser apresentada como requisito para conclusatildeo do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitaacuterio de Brasiacutelia

Orientador Prof Me Luiz Patury Accioly Neto

BRASIacuteLIA 2012

3

AGRADECIMENTOS

Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)

Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC

Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)

4

RESUMO

Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica

Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo

5

ABSTRACT

Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy

Keywords Roman law diglossia ressignifation

6

SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

3

AGRADECIMENTOS

Ao professor Luiz Patury pela orientaccedilatildeo in meliora per aspera (para melhor apesar das dificuldades)

Agrave professora Bistra Apostolova pela orientaccedilatildeo carinho e dedicaccedilatildeo ao projeto do PIBIC

Ao colega Matheus Muniz que discorreu sobre histoacuteria de Roma ad nauseum (ateacute o enjocirco)

4

RESUMO

Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica

Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo

5

ABSTRACT

Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy

Keywords Roman law diglossia ressignifation

6

SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

4

RESUMO

Autores como Antocircnio Manuel Hespanha consideram que nos manuais tradicionais de ensino juriacutedico a histoacuteria do direito romano eacute apresentada de forma a causar uma falsa impressatildeo de continuidade Para eles a ruptura entre presente e passado eacute acobertada com o objetivo de legitimar a ordem juriacutedica estabelecida Este trabalho tem como objetivo apresentar indiacutecios de que a necessidade de um simulacro de estabilidade juriacutedica eacute um fenocircmeno em si mesmo essencialmente romano Para isso contribuiccedilotildees teoacutericas de Foucault e Derrida serviram como ferramentas de anaacutelise e desconstruccedilatildeo discursivas Mas o principal instrumento metodoloacutegico utilizado foi o emprego do conceito linguiacutestico de diglossia situaccedilatildeo de convivecircncia entre registros de fala diferentes sendo uma delas a ldquooficialrdquo Assim falamos de uma diglossia juriacutedica na qual o direito posto convive com soluccedilotildees juriacutedicas com ele conflitantes de uma diglossia discursiva presente na invenccedilatildeo da histoacuteria de Roma pelos proacuteprios romanos de uma diglossia de Estado que se daacute com o processo de esvaziamento e perda de poder real das instituiccedilotildees republicanas A primeira expressatildeo de diglossia eacute ilustrada com cinco exemplos histoacutericos a segunda eacute apresentada a partir de uma observaccedilatildeo dos discursos de Ciacutecero a terceira se daacute com a anaacutelise da ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustus A conclusatildeo eacute a de que os proacuteprios romanos ressignificaram seu direito histoacuteria e instituiccedilotildees com o propoacutesito de legitimaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da ordem vigente Se haacute uma tradiccedilatildeo seria a da proacutepria administraccedilatildeo e acobertamento da ruptura Podemos ser de certa forma herdeiros dos romanos na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica

Palavras-chave direito romano diglossia ressignificaccedilatildeo

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ABSTRACT

Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy

Keywords Roman law diglossia ressignifation

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SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

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descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

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fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

5

ABSTRACT

Some authors like Antocircnio Manuel Hespanha consider that in traditional law text books Roman legal history is presented as to give a false impression of continuity For them any disconnection between past and present is covered up in order to legitimize the establishment This research aims to present some evidence that the need for a legal stability simulacrum is essencially a Roman phenomenon Theoretical contributions from Foucault and Derrida were used as tools for speech analises and desconstruction However the main methodological tool was the application of diglossia a concept originally from linguistics in the field of law history Diglossia in linguistics is the coexistence of two different speech registers of which one is taken as official In law history one can talk about a legal diglossia in which law coexists with solutions to specific cases that contradict it a speech diglossia present in the invention and reinvention of Roman history by the Romans themselves a State diglossia which takes place during the process of loss of real power of Republican institutions This paper presents five historical examples of the first type of diglossia an observation of the second type in Cicero speeches and an analysis of Cesar Augustus restored republic that shows occurence of the third type One could conclude that the Romans themselves ressignified their own legal system If there is a tradition it lies in the very covering of historical gaps and ruptures We probably are somehow heirs of Rome when it comes to the the very fiction of an unshakeable legal legacy

Keywords Roman law diglossia ressignifation

6

SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

6

SUMAacuteRIOPREAcircMBULO 8

1 INTRODUCcedilAtildeO 11

11 Tema objeto e objetivo 11

12 Abordagem 13

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA 16

21 Continuidade e ruptura 16

211 Continuidade 16

212 Ruptura 17

213 Metodologias 19

22 O legado de Roma 21

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente 21

222 Direito romano segundo Miguel Reale 26

223 Instrumentalidade 28

224 Direito romano e democracia 30

225 A centralidade das leis no direito romano 31

226 Oriente e ocidente 32

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA 34

31 Anaacutelise do discurso em Foucault 34

32 O desconstrutivismo de Derrida 35

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo 35

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo 37

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 41

41 Origens 41

42 Os remeacutedios juriacutedicos 44

43 A lei natural e o ius gentiun 47

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero 49

45 O impeacuterio 51

46 Diglossia de Estado 52

47 O direito romano claacutessico 53

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

7

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS 57

6 CONCLUSOtildeES 58

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 59

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

8

PREAcircMBULO

O que eacute o tempo ldquoSe ningueacutem me pergunta eu sei mas se quiser explicar

a quem indaga jaacute natildeo seirdquo1 afirma Santo Agostinho O tempo mundano para ele eacute

fluxo e movimento eacute o presente que se transforma em passado e daacute lugar ao futuro

Ao tempo eacute necessaacuterio que passe porque caso contraacuterio natildeo haveria presente mas

em seu lugar algo inconcebiacutevel a eternidade Logo - e paradoxalmente - ldquoo que nos

permite afirmar que o tempo existe eacute justamente a sua tendecircncia para natildeo existirrdquo2

O que eacute histoacuteria O discurso histoacuterico pode ser entendido como um exemplo

daquilo que Agostinho chama de ldquomemoacuteria das coisas ausentesrdquo3 de algo que se

apresenta jaacute natildeo por si proacuteprio mas pela sua imagem sua representaccedilatildeo

Representaccedilatildeo que eacute por sua vez uma construccedilatildeo histoacuterica Os romanos eram uma

sociedade que celebrava o passado daiacute a importacircncia de se invocar a tradiccedilatildeo Daiacute

a importacircncia tambeacutem de se viver o presente levando-se em conta a posteridade E

essa memoacuteria sabia ser seletiva - como disse Secircneca acerca do imperador Tibeacuterio

ldquoera sua prerrogativa se esquecerrdquo (ldquooptanda erat obliviordquo)4 Uma das sanccedilotildees do

direito exercido no principado era o damnatio memoriae a aniquilaccedilatildeo de todo e

qualquer registro do condenado Uma morte civil que incluiacutea a destruiccedilatildeo de retratos

estaacutetuas e inscriccedilotildees

Em Roma o passado definia o presente mas ao mesmo tempo e de forma

complementar cabia aos vivos compor a voz poacutestuma dos mortos A realidade

histoacuterica era expressada principalmente por intermeacutedio das artes Um poema eacutepico

1 AGOSTINHO Santo Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret 2008 p 267 2 Ibidem p 225 3 Ibidem loct cit 4 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

9

descrevendo certa batalha uma peccedila teatral um discurso repleto de elementos

retoacutericos tinham tanta ou maior credibilidade do que a descriccedilatildeo dos fatos feita por

um observador in loco Eacute ldquoum fenocircmeno que transcende distinccedilotildees de gecircnero [entre

digamos literatura e histoacuteria] deixando lsquodesconfortaacuteveisrsquo os pesquisadores

modernosrdquo5

Portanto para os romanos natildeo eacute relevante nossa distinccedilatildeo contemporacircnea

entre o que eacute ldquoficccedilatildeordquo e ldquorealidaderdquo Poreacutem eacute impossiacutevel para o historiador

contemporacircneo a anaacutelise de um objeto sem seu recurso metodoloacutegico sem a

representaccedilatildeo como instrumento necessaacuterio Haacute duacutevidas mesmo se eacute possiacutevel a

compreensatildeo da proacutepria histoacuteria vivida desprovido da distacircncia e perspectiva dadas

por um extenso transcurso do tempo Assim o historiador Eric Hobsbawm

assomado pelo o medo de que o ldquocontemporacircneordquo sobrepujasse o ldquoestudiosordquo

confessa ter evitado discorrer sobre seu proacuteprio seacuteculo6

Paradoxalmente dada a dificuldade de se falar sobre o presente uma boa

maneira de fazecirc-lo seja talvez analisar nosso discurso sobre o passado Porque na

tentativa de construir um discurso sobre o outro acabariacuteamos por revelar noacutes

mesmos Assim de posse pelo menos em parte de nosso contexto inerente

poderiacuteamos nos aproximar um pouco mais de uma apreensatildeo histoacuterica cuja

substacircncia consista ldquonas experiecircncias pelas quais o homem alcanccedila a compreensatildeo

de sua humanidade e simultaneamente de seus limitesrdquo7

O direito romano verdadeiro ldquosupermercado de ideiasrdquo8 eacute um exemplo

excepcional de processos de reconstruccedilatildeo de significados obtido a partir de visotildees e

revisotildees sobre o que teria sido o passado Eacute um conteuacutedo juriacutedico que apropriado

de forma utilitarista logrou obter as mais diversas soluccedilotildees legais nos mais

diferentes contextos sociais e histoacutericos Daiacute a percepccedilatildeo de que essas ideias teriam

5 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9 6 HOBSBAWM Eric A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Paulo Companhia das Letras 1995 p 9 7 VOGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia 1982 p 66 8 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

10

adquirido tamanha forccedila que de certa forma transcenderiam a ordem temporal

ordinaacuteria Em uma metaacutefora de inspiraccedilatildeo claacutessica o legado juriacutedico de Roma natildeo

seria mais regido por Kronos (o tempo do reloacutegio) - mas por Kairos - o filho do

deus que representa o tempo das estaccedilotildees e das oportunidades9 Assim o direito

romano teria se tornado por seus proacuterpios meacuteritos um ldquoelemento de nossa

civilizaccedilatildeordquo10

Discute-se se juridicamente somos de fato herdeiros dos romanos ou se

pelo contraacuterio essa continuidade do direito ocidental foi e eacute em grande parte

forjada Haacute indiacutecios de que somos sim herdeiros Mas da ficccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo

juriacutedica estaacutevel e inalterada Talvez o legado ldquokairoloacutegicordquo apresente de fato um

sentido oportuniacutestico a utilizaccedilatildeo desse corpus juridicus material e simboacutelico como

estrateacutegia de legitimaccedilatildeo Essa abordagem utilitarista jaacute se mostra presente em

Roma onde os discursos sobre o passado foram moldados pelos desafios impostos

pelo presente Esses discursos e seus determinantes satildeo o objeto deste trabalho

9 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 10 Ibidem Loc c

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

11

1 INTRODUCcedilAtildeO

11 Tema objeto e objetivo

O projeto teve como origem a necessidade de se explicar o aparente fenocircmeno

contemporacircneo de ressurgimento e revitalizaccedilatildeo do direito romano (DR) O

processo parece se dar neste momento principalmente em relaccedilatildeo agraves formas de

harmonizaccedilatildeo juriacutedica dentro da Uniatildeo Europeia A necessidade de unificaccedilatildeo de

ordens normativas diferentes leva agrave busca de um elemento comum de um ponto de

origem Assim a matriz de ontem acaba por ser o fator de unificaccedilatildeo de hoje

fazendo com que o DR ressurja como fonte viva do direito

O escopo de pesquisa se mostrou de iniacutecio extremamente amplo Durante

dois mil e quinhentos anos O DR eacute tatildeo utilizado e possui tantas ressignificaccedilotildees que

eacute chamado por um dos autores pesquisados de ldquoverdadeiro supermercado de

ideiasrdquo11 O estudo poderia englobar toda a histoacuteria de formaccedilatildeo do DR seus

diversos ressurgimentos (entre eles - na Europa medieval na Franccedila positivista na

Holanda protestante e na Alemanha do seacuteculo XIX) aleacutem dos processos de

harmonizaccedilatildeo legais de hoje que se datildeo principalmente em relaccedilatildeo ao direito civil e

agrave constituiccedilatildeo comum dos paiacuteses da Uniatildeo Europeia Como eacute natural o objeto de

estudo no decorrer da pesquisa bibliograacutefica se restringiu e o ldquorecorterdquo de anaacutelise

se evidenciou de forma mais precisa

Percebemos que antes da compreensatildeo dos processos de ressignificaccedilatildeo

exoacutegena do DR - sua adaptaccedilatildeo a diversos contextos externos - deveriacuteamos por

assim dizer ldquoisolarrdquo dentre seus elementos internos aqueles que lhe conferiram

tamanha flexibilidade Assim a pesquisa tornou-se essencialmente ldquoromanardquo mas

sem perder na medida do possiacutevel a perspectiva de iniacutecio As questotildees relativas ao

11 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

12

direito objetivo contemporacircneo foram postas de lado e o trabalho ao perquirir sobre

a flexibilidade inerente ao DR se concentrou em seus aspectos mais essenciais

Ao se tentar definir o objeto de estudo ou seja quando se indaga sobre a

natureza do DR surge de pronto uma polecircmica doutrinaacuteria seria o direito

contemporacircneo herdeiro de fato da tradiccedilatildeo romanista Essa eacute a discussatildeo entre a

teoria da continuidade que considera o direito posto hodierno como uma extensatildeo

de seu antecessor romano e em um outro extremo a teoria da ruptura que afirma

que tal desenvolvimento natildeo ocorre de forma alguma da maneira como eacute

apresentado pelo ensino juriacutedico tradicional

Seria entatildeo possiacutevel esse tipo de anaacutelise quando se utiliza como

metodologia somente a pesquisa bibliograacutefica Poderia haver alguma contribuiccedilatildeo

relevante quanto agrave compreensatildeo da natureza do DR sem acesso sequer agraves

chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo (documentos originais em latim) A pesquisa parece

indicar que sim Isso porque pudemos perceber vaacuterios indiacutecios de uma discrepacircncia

entre o DR nos sentidos praacutetico e formal Os romanos nutriam uma verdadeira

obsessatildeo pela tradiccedilatildeo pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica Isso

poreacutem natildeo impediu a existecircncia de um outro direito digamos das ruas e do

comeacutercio convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos

magistrados Um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais

foram instrumentos efetivos e eficazes dos operadores do direito

O objetivo do projeto eacute darmos conta de alguma forma dessas trecircs questotildees

as transformaccedilotildees do DR a polecircmica doutrinaacuteria e a existecircncia de um ldquooutro direito

romanordquo natildeo-formal Para isso criamos um conceito o de ldquodiglossia juriacutedicardquo O

conceito eacute explicado com maior propriedade nos toacutepicos ldquometodologiardquo e

ldquoconclusotildeesrdquo A ideia de diglossia tambeacutem eacute ampliada para dar conta de outros

aspectos da realidade romana a arte da oratoacuteria representada por Ciacutecero (diglossia

discursiva) e a reforma do aparelho estatal empreendida por Ceacutesar Augusto

(diglossia de Estado) Fenocircmenos que possuem um aspecto em comum a tentativa

de manutenccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade das instituiccedilotildees sociopoliacuteticas

romanas O trabalho busca entatildeo comprovaccedilotildees histoacutericas da manifestaccedilatildeo do

fenocircmeno da diglossia percorrendo a histoacuteria do direito romano in loco ou seja da

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

13

monarquia agrave formaccedilatildeo do chamado ldquodireito claacutessicordquo Nas ldquoconclusotildeesrdquo tambeacutem se

apresenta uma soluccedilatildeo ainda que provisoacuteria para a polecircmica doutrinaacuteria entre

tradiccedilatildeo e ruptura

12 Abordagem

A pesquisa eacute baseada na anaacutelise bibliograacutefica com o auxiacutelio do conceito de

diglossia juriacutedica como princiacutepio norteador ou ferramenta de leitura ldquoDiglossiardquo um

termo oriundo da ciecircncia linguiacutestica designa a convivecircncia em uma mesma

sociedade e ao mesmo tempo de dois registros de fala sendo cada um deles usado

em uma situaccedilatildeo comunicativa diferente Um impotildee reverecircncia pela formalidade

possuindo maior prestiacutegio (norma culta) outro eacute mais informal e transmite

familiaridade Os romanos assim como noacutes conviviam tranquilamente com falas

diferentes um senador poderia falar sobre ldquouiasrdquo em seu discurso na assembleia e

logo depois comprar ldquouvasrdquo no mercado - a mesma palavra com pronuacutencia e registro

diversos

Foucault discorre sobre a partilha do espaccedilo social essa necessidade de uma

divisatildeo territorial simboacutelica entre as diferentes ordens discursivas

ldquoOra parece-me que sob esta aparente veneraccedilatildeo do discurso sob esta aparente logofilia esconde-se uma espeacutecie de temor Tudo se passa como se os interditos as barragens as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que ao menos em parte a grande proliferaccedilatildeo do discurso seja dominada de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que eacute mais incontrolaacutevel tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupccedilatildeo nos jogos do pensamento e da liacutengua Haacute sem duacutevida na nossa sociedade e imagino que em todas as outras com base em perfis e decomposiccedilotildees diferentes uma profunda logofobia uma espeacutecie de temor surdo por esses acontecimentos por essa massa de coisas ditas pelo surgimento de todos esses enunciados por tudo o que neles pode haver de violento de descontiacutenuo de batalhador de desordem tambeacutem e de perigoso por esse burburinho incessante e desordenado do discursordquo12

A veneraccedilatildeo ao discurso se encontra no cerne do direito romano do temor

reverencial associado remotamente agrave religiatildeo que eacute seu legado natural Seu mito

12 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

14

fundador eacute a fixaccedilatildeo do ius em lex a transformaccedilatildeo da jurisprudecircncia oral em um

direito positivado concretizado pela escrita A diglossia entatildeo seria o espaccedilo regido

pela ldquologofobiardquo uma aacuterea onde habitam as ordens discursivas que sofreram um

processo de abastardamento de alijamento do espaccedilo reservado agrave reverecircncia e

tradiccedilatildeo

Aplicando o conceito ao direito diglossia juriacutedica expressa a distacircncia entre

os significados oficial e real das normas entre seu conteuacutedo manifesto formal e sua

expressatildeo social Esse espaccedilo existe devido agrave necessidade dos romanos de a todo

custo preservar uma imagem inalteraacutevel do direito As leis eram consideradas

talvez devido a sua origem religiosa essencialmente perfeitas e veneraacuteveis Uma

imagem tida aparentemente como um imprescindiacutevel fator de coesatildeo social

Enquanto isso regulava-se extraoficialmente algumas situaccedilotildees de fato a partir de

uma praacutetica informal Informalidade tolerada porque reconhecidamente necessaacuteria

O apego agrave tradiccedilatildeo e agrave estabilidade leva a um ldquostatus quase santo da leirdquo13

Uma aparente reverecircncia pela letra escrita pelo lex da qual noacutes seriacuteamos pelo

menos em parte herdeiros porque toda e qualquer ordem juriacutedica romanista assim

o eacute A diglossia juriacutedica - a necessidade de se manter a lei formalmente intransigiacutevel

enquanto se disfarccedilam reformas juriacutedicas das mais engenhosas maneiras repete-se

- na histoacuteria romana ad nauseam conforme se pode comprovar pelos vaacuterios

exemplos infracitados (vide ldquodesenvolvimentordquo)

Jaacute no discurso dos romanos a respeito de si proacuteprios pode-se perceber uma

espeacutecie de diglossia em sentido lato Ciacutecero muito provavelmente tinha ciecircncia de

que a repuacuteblica invocada em seus discursos nunca havia de fato existido Assim o

Estado cria natildeo soacute uma lei oficial mas tambeacutem uma narrativa artificial e solene a

respeito de sua proacutepria origem A pesquisa se concentra no exame da estrutura

normativa em Roma (diglossia juriacutedica) Poreacutem considera tambeacutem subsidiariamente

aleacutem da anaacutelise da oratoacuteria de Ciacutecero) Uma terceira diglossia a de Estado que se

daacute com a ldquorepuacuteblica restauradardquo de Ceacutesar Augustos Instituiccedilatildeo que se caracteriza

13 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

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A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

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esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

31

seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

15

pela manutenccedilatildeo -apenas aparente das instituiccedilotildees republicanas que vatildeo sendo

gradualmente alijadas dos meios de exerciacutecio efetivo do poder

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

16

2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA

21 Continuidade e ruptura

211 Continuidade

Uma questatildeo relevante sobre o DR eacute a polecircmica entre os especialistas

sobre a existecircncia ou natildeo de um processo de continuidade A discussatildeo doutrinaacuteria

parece polarizada entre romanistas tradicionalistas - que acreditam que o sistema

juriacutedico contemporacircneo seria um prolongamento ou evoluccedilatildeo naturais do DR - e os

ldquode rupturardquo ndash que consideram que a adaptaccedilatildeo do DR seria predominantemente

uma histoacuteria de quebra e reconstruccedilatildeo Dentre os tradicionalistas haacute mesmo aqueles

que consideram a existecircncia histoacuterica dos institutos romanos uma discussatildeo menos

relevante Isso porque o caraacuteter formador e simboacutelico desse legado seria mais

importante do que sua proacutepria autenticidade Como afirma Poletti ao discutir sobre a

efetividade dos meios de representaccedilatildeo popular em Roma

ldquoNatildeo importa tambeacutem o quanto funcionaram os comiacutecios na realidade histoacuterica de Roma se os comiacutecios curiatos satildeo apenas uma lenda [hellip] Saber dos limites ao poder dos comiacutecios ou se a compreensatildeo da norma constitucional atribuiacuteda a Lei das XII taacutebuas ndash que a uacuteltima decisatildeo do povo seja o direito ndash leva ou natildeo agrave compreensatildeo de que fosse liacutecito ao povo adotar qualquer deliberaccedilatildeo e que sua soberania fosse livre de tudo satildeo questotildees relevantes mas qualquer que sela o seu deslinde a ideia democraacutetica do direito romano natildeo seraacute abaladardquo14

Seria entatildeo a ldquoideia democraacutetica do direito romanordquo inabalaacutevel ainda que

diante de provas que lhe refutem a existecircncia histoacuterica Aparentemente sim Dessa

forma o DR pelo menos na acepccedilatildeo de alguns tradicionalistas possuiria uma

14 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

17

existecircncia autocircnoma independente ateacute mesmo de Roma Nelson Saldanha

apresenta uma ideia que pode operar como elemento de explicaccedilatildeo para esse

fenocircmeno Segundo o autor a cultura ocidental acabou por forjar tardiamente um

conceito geneacuterico de ldquoDireitordquo Ateacute sua forma final a ideia foi sendo trabalhada

burilada pelo tempo ateacute o ponto de ldquose tornar uma noccedilatildeo geneacuterica em extremo

graurdquo 15 O DR quando tomado apenas em si mesmo natildeo possuiria essa feiccedilatildeo

abstrata ou histoacuterica Elementos do direito romano teriam assim sido

posteriormente reapropriados como paradigmas definidores de toda ciecircncia juriacutedica

O direito romano conservou como imagem uma singular exemplaridade institucional e linguiacutestica A noccedilatildeo do juriacutedico se ligou agrave visatildeo de um determinado tipo de experiecircncia como algo que se atribui a situaccedilotildees ou a institutos com base na imagem total do direito provinda do modelo romano16

Para Saldanha a idade moderna testemunha as primeiras abordagens que

consideram alguns direitos como histoacutericos Haacute uma pretensatildeo universalista que na

verdade encobre ldquouma representaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo17 O autor destaca

a importacircncia do direito romano no imaginaacuterio juriacutedico ocidental e afirma que haacute um

viacutenculo entre ldquoa presenccedila da imagem romana do direito e a base da proacutepria noccedilatildeo

ocidental de direitordquo18

212 Ruptura

A polarizaccedilatildeo doutrinaacuteria ocorre entre romanistas tradicionalistas ndash divididos

entre os que adotam uma visatildeo naturalizante e a evolucionista ndash e os de ruptura

representados em nossa abordagem bibliograacutefica pelo historiador portuguecircs

Antocircnio Manuel Hespanha Hespanha critica a apresentaccedilatildeo da histoacuteria do DR de

grande parte dos manuais de ensino juriacutedico que se utilizam de estrateacutegias de

legitimaccedilatildeo do direito posto

15 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 16 Ibidem loc cit 17 Ibidem loc cit 18 Ibidem loc cit

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

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Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

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[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

18

ldquoA produccedilatildeo de literatura relativa ao direito romano eacute influenciada em sua grande parte pela heranccedila do seacuteculo XIX expressando um vieacutes conservador e tradicionalista19 Sua principal caracteriacutestica seria um discurso utilizado como forma de legitimar a realidade juriacutedica estabelecida uma ldquoapologeacuteticardquo ao direito posto20 Essa tentativa de legitimaccedilatildeo presente em grande parte dos manuais de histoacuteria juriacutedica se utilizaria como instrumento de duas abordagens a cerca da histoacuteria do direito as estrateacutegias naturalizante e evolucionista21

O discurso naturalizante enfatiza o caraacuteter de continuidade das instituiccedilotildees

juriacutedicas De acordo com essa abordagem haveria no direito contemporacircneo

algum espaccedilo para alteraccedilotildees restrito poreacutem pelo mores maiorum ou os

ldquocostumes superioresrdquo (portanto mais importantes) dos antigos Seria uma espeacutecie

de consenso histoacuterico As transformaccedilotildees se dariam como se como se votadas em

um plebiscito no qual o presente teria sim direito a voto mas o passado pela soma

da experiecircncia acumulada detivesse ainda a maioria das cadeiras

Hespanha alerta que apesar da continuidade terminoloacutegica de vaacuterios

conceitos juriacutedicos existiriam importantes rupturas em sua expressatildeo semacircntica22

ldquoFamiacuteliardquo para os romanos abrangia os criados e ateacute mesmo os bens da casa

ldquoLiberdaderdquo significava a natildeo-escravidatildeo na Greacutecia Claacutessica independecircncia de um

outro privado em Roma exclusiva submissatildeo a Deus no cristianismo medieval

capacidade de autodeterminaccedilatildeo e expressatildeo poliacutetica a partir da Idade Moderna23

O autor considera que no uso desses conceitos muitas vezes o presente estaria

sendo ldquoimposto ao passadordquo 24 Dessa forma o discurso dos manuais ao camuflar o

anacronismo se utilizaria do ldquovalor de facerdquo dos princiacutepios claacutessicos de sua

autoridade e prestiacutegio para emprestar legitimidade agraves instituiccedilotildees sociais e ao direito

estabelecido25

Uma outra estrateacutegia de legitimaccedilatildeo seria o discurso evolucionista que

considera a histoacuteria como um processo evolutivo Estariacuteamos vivendo de acordo

19 HESPANHA Antocircnio Manuel Cultura Juriacutedica Europeia ndash Siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux 2009 p 75 20 Ibidem p 73 21 Ibidem p 78 22 Ibiem loc cit 23 Ibidem loc cit 24 Ibidem p 25 25 Ibidem p 22

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

19

com essa outra forma de ldquosacralizaccedilatildeo do presenterdquo26 o apogeu do processo

civilizatoacuterio O passado seria uma etapa parte de um transcurso natural que nos

conduziria de maneira quase uniacutevoca agrave realidade de hoje O evolucionismo da

mesma forma que a abordagem naturalista tambeacutem torna o passado ldquoprisioneirordquo

das categorias do presente sem direito a sua proacutepria especificidade27rdquo

A verdade eacute que ideia mesma de continuidade ou ruptura natildeo possui por si

natureza autocircnoma mas eacute tambeacutem uma avaliaccedilatildeo cultural ou seja acaba sendo

historicamente ou socialmente condicionada Por isso tentamos na medida do

possiacutevel estabelecer criteacuterios objetivos Um desses criteacuterios eacute o da anaacutelise da norma

juriacutedica e sua eficaacutecia social Outro eacute o da observaccedilatildeo do discurso que os romanos

tinham a respeito de si proacuteprios

213 Metodologias

A abordagem dos atuais manuais de direito eacute herdeira do chamado

ldquoparadigma rankeanordquo 28 uma metodologia surgida no seacuteculo XIX cuja importacircncia

cresceu a tal ponto que de certa forma se tornou ldquoa maneira de se fazer histoacuteriardquo 29

Impregnado pela cultura cientiacutefica da eacutepoca Ranke acreditava em uma histoacuteria

contada por profissionais com uma metodologia proacutepria rigorosa com especial

ecircnfase nos documentos nas chamadas ldquofontes primaacuteriasrdquo 30 Grosso modo suas

principais caracteriacutesticas seriam ecircnfase no aspecto poliacutetico e nos grandes

personagens (ldquohistoacuteria vista de cimardquo) abordagem narrativa e documental limitaccedilatildeo

dos problemas e crenccedila na objetividade em uma forma de contar os fatos ldquocomo

eles realmente aconteceramrdquo 31

26 Ibidem p 27 27 Ibidem p 23 28 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 103 29 Ibidem p 105 30 Ibidem p 106 31 RANKE Leopold von Varieties of History Nova Iorque F Stern 1992 p 103

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

20

Poreacutem a dissociaccedilatildeo entre a realidade faacutetica vivida pelo homem comum e

uma ordem teoacuterica abstrata ldquodesencarnadardquo 32 parece ser um problema comum agraves

ciecircncias sociais

ldquoA ciecircncia poliacutetica sofre de uma dificuldade que tem origem em sua proacutepria natureza como ciecircncia do homem em sua existecircncia histoacuterica Uma vez que o homem natildeo espera pela ciecircncia ateacute que ela lhe explique a proacutepria vida quando o teoacuterico aborda a realidade social encontra um campo jaacute ocupado pelo que poderia ser chamado de auto-interpretaccedilatildeo da sociedaderdquo

Eric Voegelin afirma que esse lapso um estranhamento frequente na ciecircncia

poliacutetica estaria por exemplo presente nos conflitos entre o paiacutes legal e o real entre

Estado e Naccedilatildeo No direito Ferdinand Lasalle expressa preocupaccedilatildeo similar de

forma mais especiacutefica na oposiccedilatildeo entre os conceitos de constituiccedilatildeo em sentido

socioloacutegico - ldquoa soma dos fatores reais de poderrdquo ndash e de constituiccedilatildeo no sentido

juriacutedico Esta uacuteltima sem a primeira seria letra morta ldquomera folha de papelrdquo33

A anaacutelise e as tentativas de desconstruccedilatildeo do discurso tentam dirimir o

estranhamento representando portanto oportunidades fecundas para a pesquisa

sobre a realidade de determinado grupo social Ateacute porque o natildeo dito ou aquilo que

eacute expresso em espaccedilos de fala natildeo considerados como tais revela muito sobre

tensatildeo entre as necessidades simboacutelicas e as questotildees reais enfrentadas por

pessoas de determinado tempo e lugar Se o espaccedilo da oficialidade se confunde

com o do proacuteprio domiacutenio discursivo aos perdedores resta de certa forma

sobreviver nas sombras Como afirma Foucalt

ldquoO discurso ndash a psicanaacutelise mostrou-o - natildeo eacute simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo eacute tambeacutem aquilo que eacute objeto do desejo e porque ndash e isso desde sempre a histoacuteria ensinou ndash o discurso natildeo eacute simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominaccedilatildeo mas eacute aquilo pelo qual e com o qual se luta eacute o proacuteprio poder de que procuramos assenhorearmo-nosrdquo34

Esse mesmo poder que padece de uma necessidade de legitimaccedilatildeo

constante natildeo prescinde de suas representaccedilotildees E a tudo o que natildeo lhe conveacutem eacute

reservado um espaccedilo diferente de existecircncia um outro orbe marginal e

remanescente

32 VOEGELIN Eric A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 1982 p 74 33 LENZA Pedro Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva 2008 p 275 34 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 2

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

21

A chamada ldquoNova Histoacuteriardquo ou ldquohistoacuteria estruturalrdquo ou ldquohistoacuteria totalrdquo

pretende abarcar outros discursos mesmo os aparentemente ausentes se definindo

como uma reestruturaccedilatildeo do paradigma rankeano35 Em linhas gerais seus adeptos

defendem a abordagem de outras histoacuterias (ldquohistoacuteria totalrdquo) que vai aleacutem da

narraccedilatildeo dos fatos poliacuteticos A ecircnfase aqui natildeo se daacute em acontecimentos mas no

desenvolvimento de estruturas Haacute a utilizaccedilatildeo de uma diversidade de fontes

problemas e vozes em um processo que natildeo evita mas ateacute mesmo procura

expressar diversidade e ldquoheteroglossiardquo36 No projeto em questatildeo pode-se entender

o DR como uma dessas estruturas que se desenvolvem em um cenaacuterio histoacuterico

multifacetado Estrutura que por sua natureza reflete de maneira proacutepria essa

dinacircmica entre unidade e diversidade estabilidade e transformaccedilatildeo tatildeo caras a

esses novos historiadoresrdquo37

22 O legado de Roma

221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente

O Corpus Iuris Civilis (CIC) raiz histoacuterica do sistema romanista eacute uma

compilaccedilatildeo encomendada pelo imperador Justiniano no seacuteculo VI DC O sistema

justinianeu foi desde sua origem um transplante uma adaptaccedilatildeo de vaacuterias

legislaccedilotildees a uma realidade histoacuterica e geograacutefica bastante diversa daquela em que

vigiam as normas originais38 Foi elaborado natildeo em Roma mas em Constantinopla

natildeo na parte latina do impeacuterio mas em sua porccedilatildeo grega Apresentava em um soacute

35 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 36 Ibidem p 83 37 BURKE Peter A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp 1992 P 79 38 GOWING Alain Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge University Press 2005 p 9

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

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Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

22

corpo mil anos de experiecircncia juriacutedica romana abrangendo a Realeza a Repuacuteblica

e o Impeacuterio39

O processo de redescoberta adaptaccedilatildeo e uso do CIC continuou na Europa

da Baixa Idade Meacutedia ateacute a Idade Moderna40 com uma harmonizaccedilatildeo entre as

normas de DR e os costumes locais que se confunde de certa forma com a

proacutepria histoacuteria da formaccedilatildeo dos primeiros estados naccedilatildeo europeus Os seacuteculos XII

e XII representam o periacuteodo de recepccedilatildeo do direito justinianeu no continente A partir

desse ldquorenascimentordquo 41o CIC passa a funcionar como uma referecircncia comum uma

unidade em relaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo das diversas fontes juriacutedicas objeto do estudo do

Direito ensino e difusatildeo de conhecimento expresso em uma liacutengua erudita franca

o latim42 Em relaccedilatildeo ao direito positivo mesmo em casos nos quais natildeo houve

recepccedilatildeo do conteuacutedo material das leis romanas a racionalidade justinianeia muitas

vezes se impocircs43 Ou seja no ocidente o proacuteprio modo de se entender o fenocircmeno

juriacutedico e formalizaacute-lo teve em grande parte sua origem no CIC

A partir do seacuteculo XVI outros ldquorenascimentosrdquo do direito romano se datildeo na

Franccedila - com o advento da filosofia humanista - na Holanda e finalmente no seacuteculo

XIX na Alemanha44 Em 1898 o Gemeines Recht sistema juriacutedico moderno alematildeo

foi adotado como coacutedigo civil japonecircs levando o CIC para o extremo oriente45

A primeira metade do seacuteculo vinte marca um distanciamento em relaccedilatildeo ao

DR46 Diante das novas utopias sociais que entatildeo surgiam o corpus justinianeu

tornou-se um alvo faacutecil uma espeacutecie de representaccedilatildeo do stablishment e da

tradiccedilatildeo ou seja de tudo aquilo que deveria ser superado Intelectuais sejam de

39 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 37 40 HESPANHA Antocircnio Manuel Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Belo Horizonte Livraria Del Rey 1982 p 58 41Ibidem loc cit 42 Ibidem p 59 43 WEBER Max WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 98 44 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 45 Ibidem p 3 46 Ibidem p12

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

23

esquerda ou direita atacaram o sistema de diferentes formas muitas vezes

contraditoacuterias De maneira geral os criacuteticos de acordo com sua ideologia retratavam

a heranccedila romanista como 1 Um produto de uma sociedade escravista alheio ao

progresso das estruturas sociais 2 Um sistema antidemocraacutetico tendente a

favorecer o absolutismo 3 Um bastiatildeo do capitalismo individualista devido ao seu

caraacuteter eminentemente obrigacional e civilista47 Um ataque expliacutecito por exemplo

vinha do programa do partido nazista Os nacional-socialistas alematildees alertavam

que o direito romano servia ldquoagrave ordem mundial materialistardquo exigindo a sua

substituiccedilatildeo por um direito comum germacircnico48

O uacuteltimo seacuteculo nos deixou como heranccedila esse estranhamento entre o direito

contemporacircneo e a tradiccedilatildeo O direito romano parece agrave primeira vista ter perdido

sua vitalidade Teria se tornado uma disciplina de conteuacutedo ldquohistoricizadordquo uma

curiosidade para especialistas com preocupaccedilotildees e metodologia cada vez mais

proacuteprias49 Essa postura em princiacutepio natildeo deixou de oferecer contribuiccedilotildees jaacute que

ldquopermitiu a revisatildeo de ortodoxias e mesmo a derrubada de antigos mitosrdquo50 Mas no

longo prazo cortou a ligaccedilatildeo entre histoacuteria juriacutedica e direito contemporacircneo51 Uma

das contribuiccedilotildees do periacuteodo por exemplo foi um movimento alematildeo de estudo do

CIC em um contexto maior de ldquohistoacuteria legal antigardquo baseado em entatildeo recentes

descobertas arqueoloacutegicas52 Em que se pese a produccedilatildeo de novas informaccedilotildees

pouco foi feito como contribuiccedilatildeo a um debate de natureza verdadeiramente

juriacutedica53

47 REZEK JF Direito Internacional Puacuteblico Satildeo Paulo Editora Saraiva 1995 p 163 48 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 8 49 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 50 CAENEGEM Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 35 51 Ibidem p 38 52 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 58 53 Ibidem p 33

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

24

Se o direito claacutessico foi transformado em reliacutequia o direito positivo tambeacutem

tornou-se por sua vez mais ldquoa-histoacutericordquo54 O sistema justinianeu nos eacute apresentado

dessa forma cindida ateacute hoje na maior parte dos curriacuteculos acadecircmicos A

realidade poreacutem parece demonstrar que o CIC pode estar atuando mais uma vez

como fonte viva do direito Isso se daria em relaccedilatildeo aos processos de unificaccedilatildeo

europeia

Voltando agrave primeira fase de ressurgimento do CIC na Europa considera-se

que o processo de recepccedilatildeo se encerra no seacuteculo XVI com a formaccedilatildeo dos estados

europeus55 Ateacute entatildeo na Europa ocidental predominava o ius commune (direito

erudito comum com base no CIC)56

A partir daiacute houve a emergecircncia dos estados nacionais e o fortalecimento

desses entes poliacuteticos com o uso e a afirmaccedilatildeo do ius propium (direito local) sobre

os preceitos claacutessicos57 Essa construccedilatildeo e afirmaccedilatildeo do que eacute especiacutefico seria o

germe do Estado moderno (e de certa forma o desenvolvimento da Uniatildeo Europeia

parece uma reversatildeo desse movimento)58 Para alguns autores haveria ateacute mesmo

uma data para o advento da soberania como realidade sociopoliacutetica 164859 A paz

de Vestfaacutelia que anunciava o fim das guerras entre catoacutelicos e protestantes

afirmou tambeacutem o direito de cada soberano de adotar em seu territoacuterio a religiatildeo e

as leis que bem lhe aprouvessem60 Era de certa forma o fim de pretensotildees

universalistas e o iniacutecio da convivecircncia entre os diferentes

A soberania se daria entatildeo quando o Estado

54 Ibidem p 4 55 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 44 56 LOPES Joseacute Reinaldo de Lima O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad 2000 p 32 57 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 54 58 CAENEGEN Raoul van European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press 2002 p 43 59 Ibidem p 32 60 Ibidem loc cit

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

25

[] natildeo se subordina a qualquer autoridade que lhe seja superior natildeo reconhece em uacuteltima anaacutelise nenhum poder maior () e soacute se potildee de acordo com seus homoacutelogos na construccedilatildeo da ordem internacional e na fidelidade aos paracircmetros dessa ordem a partir da premissa de que aiacute vai um esforccedilo horizontal e igualitaacuterio de coordenaccedilatildeo no interesse coletivo

Ora a ldquocoordenaccedilatildeo do interesse coletivordquo levou em relaccedilatildeo aos blocos

econocircmicos regionais a uma perda a uma transigecircncia pactuada dessa mesma

soberania Qualquer das fases de formaccedilatildeo de um bloco econocircmico (aacuterea de livre

comeacutercio uniatildeo aduaneira comunidade e uniatildeo econocircmicas) implica limitaccedilotildees agraves

partes que entendem que a transigecircncia de cada um se reverte em um

favorecimento ainda maior do grupo A principal diferenccedila entatildeo entre o ius

commune medieval e as instituiccedilotildees juriacutedicas da Uniatildeo Europeia eacute que o primeiro foi

adotado voluntariamente por sua ldquosuperioridade agraves alternativasrdquo enquanto o

segundo por sua vez seria imposto ldquopelo interesse na uniformidaderdquo61

Como fica entatildeo o jogo entre soberanias na constituiccedilatildeo do ente poliacutetico

ldquoUniatildeo Europeiardquo Em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo comum qual seria

para citar um exemplo a fonte do novo direito europeu O lorde inglecircs Denning diria

ldquoconfie nos juiacutezes que satildeo os guardiotildees da leirdquo o instinto alematildeo poderia ser

expresso por Savigny que preferia a opiniatildeo dos ldquocultos doutrinadores porque eles

satildeo os melhores guias para os meandros das leisrdquo a intuiccedilatildeo francesa seria

resumida pelo proacuteprio Napoleatildeo Bonaparte ldquoconfie nos legisladores e tomem

cuidado com os juiacutezes e doutrinadores esses perversores dos coacutedigosrdquo62

O binocircmio globalizaccedilatildeoregionalizaccedilatildeo o equiliacutebrio entre o especiacutefico e o

universal seria expresso sobremaneira pelos difiacuteceis processos de harmonizaccedilatildeo

das legislaccedilotildees civis europeias e a construccedilatildeo de uma constituiccedilatildeo comum Para

Stein a soluccedilatildeo se daria pelo federalismo63 A foacutermula federalista estaria sendo

adotada natildeo soacute pela UE como ateacute mesmo internamente por vaacuterios dos paiacuteses-

membros (pressionando ainda mais a estrutura riacutegida do Estado-naccedilatildeo) Prova

disso seriam os processos de regionalizaccedilatildeo da Itaacutelia Beacutelgica e Reino Unido (que

61 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 55 62 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32 63Ibidem p 27

26

passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

27

forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

28

exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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passou a reconhecer governos locais na Escoacutecia Paiacutes de Gales e mesmo na Irlanda

do Norte)64 Para Zimmermann esse federalismo soacute seria possiacutevel porque apesar

das aparentes diferenccedilas sempre houve uma continuidade na evoluccedilatildeo legal

europeia continuidade que remete em uacuteltima instacircncia ao antigo ius commune65

Zimmermann acredita ainda que o proacuteprio Common Law longe de estar excluiacutedo

da evoluccedilatildeo romanista tem tambeacutem se transformado em consonacircncia com o

fenocircmeno da harmonizaccedilatildeo juriacutedica europeia podendo no futuro tornar-se um

sistema misto semelhante ao de paiacuteses como Escoacutecia e Aacutefrica do Sul

Quanto agrave tradiccedilatildeo didaacutetica podem ser identificadas trecircs abordagens para o

estudo do direito romano em sentido comum ensinado na Alemanha (nesse paiacutes

normas romanas vigiam ateacute o advento de seu Coacutedigo Civil) o estudo comparativo de

institutos contemporacircneos e romanos tiacutepico da Franccedila o estudo do Corpus Iuris

Civilis predominante nas escolas italianas que tambeacutem fazem incursotildees no direito

romano claacutessico66

222 Direito romano segundo Miguel Reale

Para Miguel Reale o direito tem como finalidade uacuteltima modelar a realidade

O Estado que possui o monopoacutelio do exerciacutecio legiacutetimo da violecircncia exerce essa

interferecircncia por meio do instrumento da sanccedilatildeo Os modelos juriacutedico e dogmaacutetico

contribuiccedilotildees originais realeanas agrave Teoria das Fontes explicam algumas formas de

estruturaccedilatildeo do universo do Direito O modelo juriacutedico seria composto por normas

estruturadas teleologicamente - regras que portanto se exprimem em direccedilatildeo a um

objetivo Apesar de se orientar para o futuro essa estrutura tambeacutem resume uma

tradiccedilatildeo construiacuteda a partir de outras decisotildees jaacute tomadas que ldquopressupotildee uma

64 ZIMMERMANN Rheinhard Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press 2002 p 73 65 Ibidem p 74 66 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

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nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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forma de poder de decidirrdquo67 Jaacute os modelos dogmaacuteticos atribuem significado agraves

estruturas juriacutedicas existentes seja em relaccedilatildeo ao que a lei eacute (ldquode lege datardquo) seja o

que a lei deveria ser (ldquode lege ferendardquo)68

Jurisconsultos Romanos para Reale foram pioneiros na sistematizaccedilatildeo do

Direito por atentarem para um certo padratildeo na dinacircmica social Valeram-se da

estrutura loacutegica dos filoacutesofos gregos e perceberam que dada uma certa situaccedilatildeo

era possiacutevel prever um tipo de comportamento Segundo o jurista isso pode ser

traduzido pela relaccedilatildeo entre ldquopressupostos faacuteticosrdquo e ldquoexigecircncias axioloacutegicasrdquo

ldquopermitindo uma representaccedilatildeo antecipada do que vai ocorrerrdquo Sem essa relativa

previsibilidade natildeo teria sido possiacutevel sequer o surgimento do Direito que nasce

portanto como uma forma de selecionar e controlar a conduta dos homens um

verdadeiro instrumento de ldquodisciplina socialrdquo Nesse sentido a ciecircncia juriacutedica seria

tambeacutem a primeira a se utilizar de ldquotipificaccedilotildees sociaisrdquo Como a sociedade eacute

dinacircmica os modelos juriacutedicos vatildeo mudando de acordo com os ldquofatosrdquo e ldquovaloresrdquo

nela existentes

Pode-se dizer que o Direito surgiu como ciecircncia quando os jurisconsultos romanos com sabedoria empiacuterica quase intuitiva vislumbraram na sociedade ldquotipos de condutardquo numa dada perspectiva histoacuterica e criaram como visatildeo antecipada dos comportamentos provaacuteveis os estupendos ldquomodelos juriacutedicosrdquo do Direito Romanordquo69

Eacute importante destacar que Reale possui uma visatildeo dinacircmica do direito

romano que seria casuiacutestico buscando apaziguar conflitos sociais na medida e

extensatildeo em que surgiam Na linguagem Realeana a norma eacute consequecircncia dos

fatos e valores vigentes Esse desenvolvimento poreacutem tambeacutem obedece a uma

loacutegica interna ldquocondicionante naturaisrdquo e ldquotendecircncias constantesrdquo inerentes ao

proacuteprio direito Poreacutem eacute possiacutevel tambeacutem que a norma se antecipe ao fato e

67 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011 68 Ibidem loc cit 69 Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

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3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

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(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

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revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

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relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

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significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

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convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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exerccedila uma ldquofunccedilatildeo pedagoacutegicardquo (Montesquieu) ensinando agrave sociedade ao inveacutes

de ser apenas moldada por ela

223 Instrumentalidade

Nelson Saldanha tambeacutem discorre sobre a diversidade de conceitos juriacutedicos

associados em vaacuterios periacuteodos histoacutericos agrave ldquotradiccedilatildeordquo romana Para o autor o que

hoje chamamos ldquodireito romanordquo eacute um amaacutelgama de vaacuterios elementos o ius

romanum mais antigo com formalidade extrema e suas legis actiones o Jus Civile

que apresenta o amadurecimento do periacuteodo claacutessico e as derivaccedilotildees do jus

gentium e jus honorarium isso tudo ligado a uma estrutura dada pelo ldquoconjunto de

conceitos e princiacutepios tornados modelares pelo trato secularrdquo70

A Alta Idade Meacutedia jaacute teria assistido a uma seacuterie de alteraccedilotildees O conteuacutedo

romanista foi adotado de acordo com as diversas ideias juriacutedicas em voga

ldquoMal sabiam os romanos que as expressotildees que usaram para designar tipos de accedilotildees ou formas de sucessatildeo iriam ser tantas vezes reexaminadas pelos comentadores que se seguiram a Irnerius [fundador da escola dos glossadores] pelos bartolistas pelos humanistas pelos contemporacircneos de Pothier pelos pandectistasrdquo71

Essa instrumentalidade do direito romano eacute o que Nelson Saldanha chama de

ldquorepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo72 Para ele o direito moderno surge

principalmente como contraposiccedilatildeo e ruptura a essa mesma ordem juriacutedica

medieval fenocircmeno correlato agrave formaccedilatildeo dos estados nacionais Assim como

Hespanha Saldanha identifica esse momento como o da criaccedilatildeo inspirada por

elementos do direito romano de um filosofia juriacutedica supostamente mais proacutexima de

uma ciecircncia universal Uma inspiraccedilatildeo que se serviu de forma bastante ampla do

conteuacutedo romanista Ateacute porque os romanos por exemplo nunca enfrentaram

70 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 71 Ibidem loc cit 72 Ibidem loc cit

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abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

29

abertamente o problema da unidade do ordenamento juriacutedico Para Nelson Saldanha

a questatildeo que se encontraria ldquolatenterdquo nas definiccedilotildees de direito da eacutepoca claacutessica

teria se tornado mais premente no iniacutecio da criaccedilatildeo de uma consciecircncia sistemaacutetica

e de uma hierarquia entre as fontes Como ldquoa leges ldquoEsta mutaccedilatildeo tocante ao

modo de ver e rever o direito romano atraveacutes das eacutepocas eacute o outro lado da

permanecircncia exemplar da imagem deste direito conservado pelo Ocidente desde

que nos primoacuterdios do medievo o legado cristatildeo e o legado romano se

complementaramrdquo

O direito moderno [hellip] se fez secular e racionalizado estatizado e legalista contrariando em grande parte o direito medieval O direito romano que havia sido estatal mas natildeo de todo nem sempre racional mas natildeo no sentido legalista do termo tinha sido tambeacutem legalista mas natildeo tanto A noccedilatildeo de direito que no medievo guardou conotaccedilotildees teoloacutegicas e que integrava e incluiacutea a experiecircncia consuetudinaacuteria sofreu algumas refraccedilotildees ao passar aos Estados modernos Para o pensamento juriacutedico moderno tendente em forte medida ao formalismo foi necessaacuterio assumir a ldquosuperaccedilatildeordquo dos traccedilos medievais tornados obsoletos dentro dos moldes modernos e contemporacircneos mas por outro lado foi necessaacuterio tambeacutem atribuir ao conceito de direito uma dimensatildeo de ldquouniversalidaderdquo que era a fim agrave dos universais-da-cultura dos antropoacutelogos e que apesar de certos aparatos conceituais aprioriacutesticos se plantavam sobre uma superposiccedilatildeo de arqueacutetipos e imagens empiacutericas73

Tambeacutem Weber analisa o fenocircmeno de uma ampla abstraccedilatildeo que para o

autor eacute caracteriacutestica peculiar ao direito ocidental Um processo que chega ao seu

aacutepice como resposta agraves necessidades do desenvolvimento econocircmico de certos

paiacuteses europeus

ldquoSoacute o ocidente conheceu a ldquoLei Naturalrdquo e com ela a completa eliminaccedilatildeo do sistema de leis pessoais e a antiga maacutexima de que a lei especial prevalece sobre a geral [hellip] Por essa razatildeo o estaacutegio da lei forjada decisivamente por profissionais legais treinados natildeo foi completamente alcanccedilado fora do ocidente [hellip] Para aqueles interessados no mercado de commodities a racionalizaccedilatildeo e sistematizaccedilatildeo da lei em geral e com algumas exceccedilotildees a serem listadas posteriormente a crescente previsibilidade do funcionamento do processo juriacutedico em particular constituiacuteram uma

73 SALDANHA Nelson O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011

30

das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

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A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

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filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

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nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

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surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

30

das condiccedilotildees de existecircncia mais importantes para empreendimentos econocircmicos estaacuteveisrdquo74

224 Direito romano e democracia

Segundo Ronaldo Poletti uma ideia democraacutetica inspirada no DR foi utilizada

como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo de regimes e formas de governo os mais variados

inclusive alguns bastante avessos a mecanismos efetivos de representaccedilatildeo

popular75 Eacute o caso por exemplo das influecircncias romanistas em Maquiavel e Jean

Bodin

Ironicamente Maquiavel eacute um defensor parcial da democracia A participaccedilatildeo

popular ainda que restrita eacute entendida como estrateacutegia de legitimaccedilatildeo da forma

republicana uma ideia sob medida para o puacuteblico florentino de ldquoo Priacutenciperdquo Como

explica Poletti

ldquoAacute primeira vista Maquiavel exalta o realismo poliacutetico com que justificaria as razotildees de Estado e as accedilotildees crueacuteis e imorais necessaacuterias agrave conquista ou agrave manutenccedilatildeo do poder [] Seu realismo poliacutetico poreacutem que conduz agravequela reduccedilatildeo teacutecnica a serviccedilo do poder natildeo afasta a ideia democraacutetica de igual maneira concebida como uma teacutecnica de buscar a estabilidade poliacuteticardquo76

A tensatildeo entre Maquiavel e Boudin refletiria a dinacircmica entre o estado

moderno (jaacute representado por Maquiavel) e a monarquia como expressatildeo de um

ldquopoder supremordquo Para o florentino a organizaccedilatildeo poliacutetica romana deveria ser

compreendida a partir dos tribunos da plebe verdadeiros guardiotildees das liberdades

romanas Jaacute o francecircs entende que a soberania natildeo pode ser dividia mas sim

delegada ldquoO soberano natildeo pode estar sujeito a outro o soberano (povo ou priacutencipe)

eacute legibus solutosrdquo77 Roma para portanto natildeo apresentaria um modelo misto mas

74 WEBER Max Economy and Society Berkely University of California Press 1978 p 883 75 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 76 Ibidem loccit 77 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

31

seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

31

seria ldquouma repuacuteblica democraacuteticardquo com a soberania residindo no povo com os

cocircnsules e o Senado atuando apenas como ldquoexecutores dessa vontaderdquo78 Como a

soberania eacute absoluta e natildeo pode ser fracionada ela eacute exercida em sua

integralidade pelo povo priacutencipe ou aristocracia A opccedilatildeo pessoal de Boudin

poreacutem eacute pelo priacutencipe

225 A centralidade das leis no direito romano

Em um outro momento mais propriamente ao analisar a sociedade do Antigo

Regime Antocircnio Hespanha aborda outro aspecto da ldquoimagem totalrdquo do DR a

questatildeo da centralidade do direito posto pelo Estado como elemento regulador das

relaccedilotildees sociais Segundo o autor portuguecircs essa concepccedilatildeo atua muitas vezes

como um convite ao anacronismo Quando pensamos na sociedade contemporacircnea

invocamos o ldquoprimado da lei [hellip] ideia ndash que eacute muito comum entre os juristas ndash de

que o mundo eacute um grande coacutedigo e que para conhecer o mundo basta conhecer os

coacutedigosrdquo79 Eacute uma crenccedila em uma realidade formal que regula e ordena a dinacircmica

material de forma exauriente o que se aproxima do mito da completude juriacutedica

expresso durante a era dos grandes coacutedigos Concepccedilatildeo posterior agrave Revoluccedilatildeo

Francesa e portanto relacionada equivocadamente com o Antigo Regime e Roma

o que eacute demonstrado pela maacutexima invocada de que o ldquoque natildeo estaacute nos autos

(livros) natildeo estaacute no mundo do ordenamento juriacutedicordquo (ldquoquod non est in actis (libris)

non est in mundordquo) Hespanha alerta que para os ldquoantigosrdquo (do ancient reacutegime) os

ldquolivrosrdquo natildeo se referiam necessariamente ao direito posto e oriundo de fonte estatal

[hellip] os livros de que eles falavam natildeo eram os coacutedigos de leis eram os livros de doutrina juriacutedica aquilo a que entatildeo se chamava o ldquodireito comumrdquo (ldquoius communerdquo) Por um lado estes livros que jaacute tinham muito pouco a ver com os textos de direito romano ou

78 Ibidem p 105 79 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

32

canoacutenico (sic) a bem dizer natildeo tinham nada a ver com as leis do reino80

Hespanha discorre sobre as dificuldades de fazer valer seu ponto de vista

devido ao predomiacutenio nos ciacuterculos acadecircmicos de uma concepccedilatildeo historiograacutefica

liberal que apresenta uma interpretaccedilatildeo das sociedades medievais como

especialmente opressoras com o intuito de destacar o papel libertador da chamada

ldquoEra das Revoluccedilotildeesrdquo (Hobsbawm) O autor relata como exemplo que apesar da

rigidez do direito penal lusitano da idade meacutedia a pena de morte nesse reino era

executada em rariacutessimos casos

226 Oriente e ocidente

Um exemplo profiacutecuo de construccedilatildeo coletiva do discurso satildeo as percepccedilotildees a

respeito de outros espaccedilos de interaccedilatildeo social Em seu livro Orientalismo Edward

Said descreve uma concepccedilatildeo de oriente como criaccedilatildeo cultural um criteacuterio que

ajudou a definir por contraposiccedilatildeo a visatildeo que o ocidente expressava a respeito de

si proacuteprio Said afirma que ldquooriente ajudou a definir a Europa (ou a ideia de

ocidente)rdquo

ldquoO oriente ao mesmo tempo que eacute uma criaccedilatildeo imaginativa europeia tambeacutem faz parte integral da mateacuteria dessa mesma cultura e civilizaccedilatildeo Orientalismo eacute uma expressatildeo cultural e mesmo ideoloacutegica como um modo de discurso de apoio representado por instituiccedilotildees vocabulaacuterio conhecimento imagens doutrinas e mesmo burocracias e estilos coloniaisrdquo

Daiacute a forccedila do caraacuteter formativo quiccedilaacute coercitivo das ideias a respeito do que eacute o outro e por consequecircncia do que seriacuteamos noacutes Da mesma forma que ldquoorienterdquo o conceito de ldquoocidenterdquo tambeacutem se presta a ressignificaccedilotildees uacuteteis Ideias que reforccedilam um tipo especiacutefico de autoimagem como a da estabilidade das instituiccedilotildees ocidentais Uma tradiccedilatildeo veneranda e reforccedilada pelos anos que natildeo exclui mas antes reforccedila e empresta legitimidade a um constante desenvolvimento evolucionaacuterio Satildeo percepccedilotildees impliacutecitas como a da superioridade natural dos

80 Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

33

modelos universalizaacuteveis sinocircnimos de ldquocivilizaccedilatildeordquo o bicameralismo a triparticcedilatildeo dos poderes a democracia representativa

O direito romano eacute mito basilar da ideia e mesmo de certa forma do sentimento associado agravequilo que foi eacute e seraacute ocidental Mesmo que o prolongamento daquilo a ser considerado ldquoocidenterdquo se estenda milhares de anos aleacutem em um tempo e lugar absolutamente alheios agrave suposta origem histoacuterica do modelo Eacute um arqueacutetipo facilmente identificaacutevel de identidade e fungibilidade imediatas que permite definiccedilotildees como visatildeo otimista de Darcy Ribeiro sobre o que eacute ser brasileiro

ldquo[hellip] apesar de tudo somos uma proviacutencia da civilizaccedilatildeo ocidental Uma nova Roma uma matriz ativa da civilizaccedilatildeo neolatina Melhor que as outras porque lavada em sangue negro e em sangue iacutendio cujo papel doravante menos que absorver europeidades seraacute ensinar o mundo a viver mais alegre e mais felizrdquo81

81 RIBEIRO Darcy O Povo Brasileiro ndash a formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras p 265

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

34

3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA

31 Anaacutelise do discurso em Foucault

Para a anaacutelise discursiva Foucault sugere a utilizaccedilatildeo de quatro ferramentas

conceituais ou instrumento metodoloacutegicos O primeiro seria o da inversatildeo que

consiste em subverter aquilo que tradicionalmente eacute reconhecido como a origem do

conteuacutedo de determinado discurso A inversatildeo eacute resumida pela palavra ldquocriaccedilatildeordquo

que se contrapotildee agrave ldquoacontecimentordquo82 Outro princiacutepio eacute o da descontinuidade que

propotildee que seja abandonada a tendecircncia cultural de se compreender a fala como

uma extensatildeo natural de um todo predeterminado A palavra siacutentese aqui eacute ldquoseacuterierdquo

em oposiccedilatildeo a ldquounidaderdquo Um terceiro conceito corolaacuterio talvez do segundo eacute o da

especificidade que visa resguardar o sentido proacuteprio do discurso que natildeo

necessariamente tem de ldquoser cuacutemplice de nosso conhecimentordquo83A especificidade eacute

resumida por ldquooriginalidaderdquo em um sentido contraposto ao de ldquoregularidaderdquo A

exterioridade o uacuteltimo princiacutepio se refere agrave busca pelas inter-relaccedilotildees centriacutepetas

de construccedilatildeo de significados uma dinacircmica externa independente ditada pelo

proacuteprio discurso e natildeo por nossas consideraccedilotildees a respeito dele A ferramenta

conceitual eacute sintetizada por ldquocondiccedilatildeo de possibilidaderdquo versus ldquosignificaccedilatildeordquo84

Assim as ferramentas conceituais de Foucault podem ser aplicadas

sobremaneira agrave anaacutelise dos processos de ressiginificaccedilatildeo do DR A primeira delas

a inversatildeo (criaccedilatildeo x acontecimento) daacute conta de que o conteuacutedo romanista natildeo

seria um fato autocircnomo mas algo elaborado com vistas ao objetivo da legitimaccedilatildeo

da ordem vigente fato presente nas diglossias juriacutedica discursiva e de Estado A

segunda descontinuidade (seacuterie x unidade) se relaciona agrave ideia de ruptura no

processo de desenvolvimento do direito posto A terceira ferramenta especificidade

82 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84 83 Ibidem loc cit 84 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

35

(orginalidade x regularidade) ao questionar a unidade discursiva corrobora da

mesma forma o mesmo fenocircmeno de ruptura Jaacute a quarta a exterioridade

(condiccedilotildees de possibilidaderdquo x ldquosignificaccedilatildeordquo) poderia contribuir para o entendimento

dos limites e da extensatildeo das possibilidades dos processos de ressignificaccedilatildeo do

direito romano A diglossia portanto eacute assimilaacutevel ao sistema de Foucault podendo

ser entendida como invertida descontiacutenua especiacutefica e limitada por sua

exterioridade

32 O desconstrutivismo de Derrida

321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo

Os processos de ressignificaccedilatildeo se relacionam com o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo Fenocircmeno que para o filoacutesofo se encontra no cerne na

matriz de ser da filosofia ocidental

Sabemos que segundo Sausurre o significante eacute uma percepccedilatildeo sensoacuteria

como por exemplo a palavra falada quando ouvida ou a palavra escrita quando

vista O significado por sua vez eacute o conceito a ideia associada agrave percepccedilatildeo

sensoacuteria Jaacute o signo eacute a unidade que reuacutene significante e significado como acontece

com a palavra digamos ldquogatordquo Dessa forma o signo possui dois aspectos um

sensiacutevel outro inteligiacutevel

Tanto a fala como o texto dependem de significantes Poreacutem para Derrida o

discurso oral apresenta uma ldquopresenccedila completardquo85 enquanto que o texto escrito

depende por sua proacutepria natureza da ausecircncia A presenccedila completa eacute espacial

definida pela proximidade ou adjacecircncia e concomitantemente temporal porque o

discurso eacute proferido ao vivo no mesmo instante sem lapsos ou adiamentos

85 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 51

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

36

A fala seria o meio de comunicaccedilatildeo no qual a expressatildeo estaria o mais perto

possiacutevel do pensamento ideia significante e portanto da verdade Um exemplo

estaria presente no processo juriacutedico que apesar de fortemente baseado na escrita

natildeo prescinde da oralidade em certos momentos importantes como na fase dos

depoimentos ou da proacutepria prolaccedilatildeo da sentenccedila O mesmo ocorre nas reuniotildees de

oacutergatildeos colegiados as atas satildeo lavradas por escrito satildeo validadas poreacutem apenas

no dia seguinte apoacutes leitura em voz alta

Essa autoridade da fala ou fonocentrismo eacute o que Derrida chama de

ldquometafiacutesica da presenccedilardquo

O poder do logos do discurso vivo na presenccedila e sob o controle de quem fala estaacute na razatildeo direta de sua proximidade para com a origem entendida como funccedilatildeo de uma presenccedila plena a do pai do discurso ou como se diz modernamente o ldquosujeito falanterdquo Isso configura o que Derrida no rastro de Heidegger chamou de ldquometafiacutesica da presenccedilardquo ou seja o privileacutegio da presenccedila como valor supremo em prejuiacutezo de qualquer diferimento repeticcedilatildeo ou diferenccedila em todos os sentidos do termo86

A metafiacutesica da presenccedila eacute portanto condiccedilatildeo necessaacuteria para a autoridade

do discurso No entanto essa ideia de Derrida parece contrariar nossa experiecircncia

Afinal de contas toda a filosofia ocidental se apoia em textos A autoridade do

pensamento de Kant por exemplo eacute hoje em dia baseada apenas no poder de

registros escritos Como entatildeo justificar o fonocentrismo

O truque que Derrida apresenta eacute o de afirmar que a metafiacutesica da presenccedila

continua sempre atuante graccedilas ao fato de que o texto se esconde como meio Eacute

como se confundiacutessemos a fala do autor com a leitura de sua produccedilatildeo literaacuteria

Esse mecanismo eacute chamado de ldquosupressatildeo do significadordquo

Em linhas gerais o movimento de ocultaccedilatildeo da ldquosupressatildeo do significadordquo eacute

necessaacuterio para que o texto se apresente como se fosse a proacutepria expressatildeo viva de

um pensamento (usurpando portanto a autoridade fonocecircntrica) Melhor ainda

como se fosse o proacuteprio pensamento (se tornando o significante) Para atingir esse

objetivo a palavra escrita que depende da ausecircncia fiacutesica do emissor jamais se

86 NASCIMENTO Evandro Derrida Rio de Janeiro Zahar 2004 p 21

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

37

revela como meio artificialidade ou construccedilatildeo Por intermeacutedio da ldquosupressatildeo do

significadordquo esse significante comete uma espeacutecie de parriciacutedio e assume a

autoridade da palavra emitida in loco pelo autor

Como a contribuiccedilatildeo de Derrida poderia ser aplicada agrave compreensatildeo dos

processos de ressignificaccedilatildeo do direito romano Primeiro a questatildeo da autoridade

Pela forccedila da tradiccedilatildeo aquele que diz o direito (juris dicere) de forma ldquooriginalrdquo e em

tempos imemoriais eacute o ente (expresso ou natildeo) cuja presenccedila metafiacutesica se evoca na

produccedilatildeo e interpretaccedilatildeo normativas Segundo a questatildeo fonocecircntrica relativa agrave ao

espaccedilo e ao tempo concomitantes agrave fala A ressignificaccedilatildeo do material romaniacutestico

nos assegura que os romanos estatildeo aqui agora nos transmitindo uma heranccedila

uma filosofia juriacutedica um corpus de soluccedilotildees de regulaccedilatildeo social aprimorado pelos

seacuteculos ndash conteuacutedo perene que eacute base e norte imprescindiacuteveis para o processo

civilizatoacuterio Terceiro a supressatildeo do significado Podemos dizer tambeacutem que

nossas leis se escondem como meio e artificialidade se apresentando absolutas

como expressotildees uniacutevocas e inequiacutevocas de uma verdade maior Quarto a questatildeo

da diglossia Se significante ldquoparricidardquo toma o lugar e a autoridade do emissor

outros signos que natildeo essa sorte passam a existir sem o mesmo status

condenados a uma existecircncia ambiacutegua a uma expressatildeo natildeo-oficial Diante do

exposto eacute possiacutevel refletir que a diacronia e o deslocamento indicados por Hespanha

natildeo satildeo acidentais fazem parte da natureza mesma daquilo que chamamos de

direito

322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo

O estruturalismo linguiacutestico de Sausssure mais conhecido como semioacutetica

apresenta poreacutem um jogo mais complexo do que a simples relaccedilatildeo entre um

significante e significado Assim como uma moeda pode ser trocada por um patildeo um

significante eacute um veiacuteculo de algo natildeo similar a si proacuteprio Mas para a semioacutetica os

signos tambeacutem se constroem partir de suas relaccedilotildees muacutetuas Palavras usadas para

expressar ideias relacionadas umas com as outras limitam-se reciprocamente sendo

tambeacutem enriquecidas por esse contato Assim Saussure destaca uma dinacircmica

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

38

relacional inerente aos processos de significaccedilatildeo chegando a afirmar que ldquona

linguagem soacute existem diferenccedilasrdquo87

Seja ao observar significante ou significado a linguagem natildeo possui nem ideias nem sons que existiram fora do sistema linguiacutestico mas apenas diferenccedilas focircnicas e conceituais que surgiram a partir do proacuteprio sistema A ideia ou substacircncia focircnica contida por um signo tem menos importacircncia do que os outros signos a sua volta Prova disso eacute que o valor de um termo pode ser modificado sem que seu sentido ou som seja modificado apenas porque um termo vizinho foi tambeacutem modificado88

Derrida da mesma forma que Sausurre entende o sistema linguumliacutestico de

maneira relacional Ele explica que as diferenccedilas entre por exemplo as palavras

ldquocatildeordquo ldquomatildeordquo e ldquopatildeordquo se datildeo porque digamos a letra ldquocrdquo ao estar presente exclui o

ldquomrdquo e ldquoprdquo No entanto em cada uma dessas palavras as letras excluiacutedas estariam

atuando como possibilidade o que eacute chamado de ldquotraccedilordquo Assim linguagem se

mostraria como uma trama ou algo ldquotecircxtilrdquo89 entre aquilo que estaacute e natildeo estaacute ali

Essa estranha presenccedila pela ausecircncia se aplicaria tambeacutem aos conceitos

filosoacuteficos trazendo uma instabilidade natildeo reconhecida mas inerente ao sistema

Derrida age de forma deliberadamente subversiva Isso porque o filoacutesofo

argelino se interessa sobremaneira na subversatildeo da proacutepria noccedilatildeo de ldquocategoriardquo

como base da filosofia ocidental A produccedilatildeo derridariana almeja segundo seu

proacuteprio autor atuar como ldquoviacuterusrdquo ou ldquocoacutedigo de decodificaccedilatildeordquo que visa ldquointroduzir a

desordem no processo comunicativordquo Derrida se dedica portanto agrave desconstruccedilatildeo

sistemaacutetica de dualidades claacutessicas na filosofia como mente corpo (Descartes)

forma ideal coacutepia (Platatildeo) ou presente passado e futuro (Husserl) Seu objetivo eacute

expor esses binocircmios como uma busca paradoxal por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo

Segundo Derrida uma manifestaccedilatildeo da impossibilidade como princiacutepio eacute o fato de

que a filosofia depende de seu proacuteprio insucesso para sobreviver o processo

87 Saussure Ferdinand Course in General Linguistics New York Philosophical Library 1959 pg 120 88 Ibidem loc cit 89 COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 70

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

39

filosoacutefico deixaria de existir caso solucionasse todos os seus problemas de forma

evidente e definitiva Descartes Freud Marx e muitos outros foram viacutetimas

preferenciais da iconoclastia desconstrutivista

Esse papel subversivo encontra expressatildeo no conceito de ldquodiferecircnciardquo uma

distorccedilatildeo deliberada da ldquodiferenccedilardquo percebida por Sausurre como condiccedilatildeo

necessaacuteria para existecircncia da linguagem Eacute o ataque de Derrida contra o

fonocentrismo ldquoDiferecircnciardquo no original francecircs ldquodifferencerdquo eacute pronunciada de forma

idecircntica agrave ldquodiferenccedilardquo (ldquodifferancerdquo) de Sausurre O que distingue as duas palavras

portanto natildeo eacute a fala mas tatildeo somente a expressatildeo escrita Mas a funccedilatildeo ou

desfunccedilatildeo do conceito derridariano eacute atuar como um ldquoindecidiacutevelrdquo como um

significante fluido que jamais se resume a um significado negando a escolha

interpretativa necessaacuteria para a compreensatildeo do signo Eacute por esse motivo que as

ideacuteias de Derrida foram tambeacutem chamadas de ldquofilosofia da hesitaccedilatildeordquo ou ldquofilosofia

sobre o nadardquo

Assim segundo seus criacuteticos Derrida estaria pervertendo por intermeacutedio de

jogos de linguagem a integridade da busca filosoacutefica Seu trabalho foi descrito como

ldquocausa de constrangimento silencioso entre seus colegas francesesrdquo90 ldquoconjunto de

piadas e trocadilhos elaboradosrdquo91 e ldquoobjeto de ridiacuteculordquo92 A princiacutepio a filosofia da

hesitaccedilatildeo parece padecer do paradoxo jaacute encontrado haacute milecircnios entre os sofistas

quando o pensador ataca o sistema como um todo ou a possibilidade mesma de

uma verdade retira os fundamentos de credibilidade de sua proacutepria assertiva

A abordagem derridariana poreacutem revela o que tem de melhor quando

utilizado como ferramenta de interpretaccedilatildeo Natildeo eacute agrave toa que embora rechaccedilado

pelos departamentos de filosofia tenha sido acolhida prontamente pelos acadecircmicos

que se dedicam ao estudo da literatura Na verdade o desconstrutivismo estaacute

interessado na explosatildeo textual em toda a sua possibilidade de significaccedilotildees Para

Derrida os paradoxos presentes no texto estatildeo longe de impedir possibilidades de

90 Ibidem p 51 91 Ibidem loct cit 92

COLLINS Jeff et MAYBLIN Bill Introducing Derrida London Omnibus Business Centre 2011 p 75

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

40

significaccedilatildeo Pelo contraacuterio satildeo os proacuteprios elementos os eventos intriacutensecos do

processo de produccedilatildeo de significados A desconstruccedilatildeo natildeo seria portanto uma

accedilatildeo que o criacutetico executa sobre o texto mas um fenocircmeno interno observado por

esse mesmo criacutetico Ainda que pareccedila um paradoxo a ideacuteia eacute que a invenccedilatildeo de

novos significados seja absolutamente necessaacuteria para a verdadeira compreensatildeo

do significado original de qualquer texto

Portanto podemos mais uma vez utilizar-nos da contribuiccedilatildeo de Derrida

como modelo dos processos de reconstruccedilatildeo de significados da heranccedila juriacutedica

romana No caso da diglossia juriacutedica as soluccedilotildees juriacutedicas paralelas seriam um

ldquotraccedilordquo que presentes por sua ausecircncia atuariam tambeacutem como elementos

definidores do direito posto oficial Tambeacutem natildeo seria o proacuteprio direito uma busca

incessante por ldquoabsolutos impossiacuteveisrdquo Isso explicaria a necessidade de

convivecircncia entre espaccedilos de significaccedilatildeo oficial e extraoficial Poderia portanto a

resignificaccedilatildeo natildeo ser deturpaccedilatildeo ou acidente mas pelo contraacuterio parte da proacutepria

essecircncia do direito romano De qualquer forma as palavras indicadas por

Hespanha como ldquohonrardquo ou ldquofamiacuteliardquo podem ser entendidas como ldquoindecidiacuteveisrdquo

sendo resignificadas portanto a cada nova apropriaccedilatildeo Para Derrida esse

processo natildeo seria de modo algum acidental jaacute que com jaacute vimos todo vocabulaacuterio

padece de uma instabilidade inerente ao sistema Talvez entatildeo seja uacutetil para

fugirmos ao perigo do anacronismo promover natildeo mais apenas a compreensatildeo de

conceitos mas tambeacutem uma alusatildeo a possibilidades diversas de significaccedilatildeo Ou a

ldquodiferecircnciasrdquo que alijadas da ldquopresenccedilardquo do orador original possibilitariam um jogo

de semiose infinita Essa abordagem longe de alijar o vocabulaacuterio juriacutedico de sua

precisatildeo em certos contextos consideraria uma miriacuteade de possibilidades e mais

importante o fato de que qualquer linguagem eacute antes de tudo um fenocircmeno vivo

natildeo podendo a compreensatildeo portanto dar-se de forma absoluta e uniacutevoca

esgotada sob uma forma especiacutefica de apreensatildeo

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

41

4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

41 Origens

O direito romano positivo jaacute nasce amparado pela tradiccedilatildeo Surge honoraacutevel

e antigo e seu conteuacutedo para todos os efeitos nunca foi criado e sempre existiu

Justifica-se por seus proacuteprios meacuteritos porque a lei como afirma Ciacutecero eacute a ldquojusta

razatildeo em comandar e proibirrdquo 93 Razatildeo cujos detentores de iniacutecio satildeo sacerdotes

o que confirma sua origem divina A narrativa do surgimento da norma romana

escrita ldquocomposto sabe-se laacute de quantas partes de lenda e de verdade histoacutericardquo 94

eacute o marco zero de um processo civilizatoacuterio que para muitos constitui verdadeiro

mito de origem da ciecircncia juriacutedica Atribui-se a Roma natildeo a invenccedilatildeo do direito

escrito mas sim a criaccedilatildeo dos primeiros princiacutepios juriacutedicos E ldquoprinciacutepios ao

contraacuterio de regras satildeo feacuterteisrdquo 95 o que explicaria a longevidade do direito romano

Se como afirma Eric Vogelin ldquoa ordem da histoacuteria emerge da histoacuteria da ordemrdquo 96

a criaccedilatildeo da Lei das XII Taacutebuas poderia ser vista como um primeiro siacutembolo

ordenador do direito e por consequecircncia de uma ordem social mais proacutexima

daquilo a que nos acostumamos a chamar hoje de ldquoEstadordquo

Durante todo o periacuteodo monaacuterquico e o iniacutecio da repuacuteblica os romanos eram

regulados pelo costume Esse costume era considerado uma heranccedila cultural parte

do que definia a proacutepria identidade de Roma um conjunto de leis orais sagradas

guardado por um grupo de aristocratas sacerdotes o Coleacutegio Pontiacutefice Todos os

pontiacutefices pertenciam agrave classe alta a patriacutecia e possuiacuteam a prerrogativa de

ldquointerpretar a vontade dos deuses tanto nos assuntos referentes ao Estado como

93 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 53 94 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 37 95 Ibidem p 1 96 E VOEGELIN Order and History vol I Lousiana State University Press 1956 p23

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

42

nos referentes agrave aplicaccedilatildeo da justiccedilardquo97 Obedecer a essas normas a Ius Civile (lei

dos cidadatildeos) era dever de todo o romano de todo habitante do que era entatildeo

uma pequena cidade-estado (civitas) Na monarquia a classe baixa a dos plebeus

simplesmente natildeo possuiacutea representaccedilatildeo Havia aleacutem da figura do rei o senado ndash

composto pelos chefes de clatildes patriacutecios (paterfamilias) - que tinham o poder de veto

ou ratificaccedilatildeo sobre as decisotildees das assembleias (comitia) tambeacutem compostas

exclusivamente por patriacutecios

Portanto o primeiro discurso juriacutedico de Roma traz em si a expressatildeo de

uma verdade divina Os julgamentos proferidos pelo Coleacutegio Pontiacutefice eram

intrinsecamente bons belos e justos por trataram-se da revelaccedilatildeo direta de uma

dimensatildeo superior Foucault discorre sobre a ordem discursiva de sociedades

regidas por esse amaacutelgama indiferenciado entre o sentimento religioso poliacutetica e

direito

ldquoO discurso verdadeiro mdash no sentido forte e valorizado da palavra mdash o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror ao qual era necessaacuterio submeter-se porque reinava era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido era o discurso que dizia a justiccedila e atribuiacutea a cada um a sua parte era o discurso que profetizando o futuro natildeo apenas anunciava o que haveria de passar-se mas contribuiacutea para a sua realizaccedilatildeo obtinha a adesatildeo dos homens e desse modo se entretecia com o destinordquo98

Se de fato os julgados dos pontiacutefices foram acatados como expressatildeo da

ldquoVerdaderdquo fenocircmenos de diglossia natildeo se fizeram entatildeo necessaacuterios pelo simples

fato de que ao direito e ao Estado sequer cabiam justificar-se Seja mito ou

realidade histoacuterica a positivaccedilatildeo do direito romano sua transformaccedilatildeo de jus em lex

ocorrida no iniacutecio da Repuacuteblica eacute natildeo por acaso marcada por uma histoacuteria de

tensatildeo social

Natildeo se sabe exatamente como se deu a queda do uacuteltimo rei romano

conhecido como Tarquiacutenio o Soberbo O surgimento da Lei das XII taacutebuas jaacute no

iniacutecio da repuacuteblica tambeacutem eacute envolto em lendas A mais corrente eacute de que o coacutedigo

97 ROLIM Luiz Antocircnio (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais p 41 98 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 32

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

43

surgiu a pedido dos plebeus que estavam cansados das decisotildees sacerdotais

sempre tendentes em favor dos patriacutecios Eles desconfiavam que as convenccedilotildees

invocadas pelo Coleacutegio Pontiacutefice pudessem carecer de legitimidade Suspeitavam

que os usos e costume invocados para a soluccedilatildeo de lides eram na verdade

invenccedilotildees de uacuteltima hora dos pontiacutefices Nota-se aqui que legitimidade eacute sinocircnimo

de tradiccedilatildeo ldquoEacute improvaacutevel que em substacircncia as XII taacutebuas divergissem muito do

direito costumeiro tradicionalrdquo 99 A demanda dos plebeus eacute a transformaccedilatildeo do ius

o direito invocado em lex (legere ndash ldquoler em voz altardquo) o direito escrito100 O que se

deseja eacute a fixaccedilatildeo dos costumes imemoriais que possuem valor e se impotildeem de

forma cogente por seus meacuteritos intriacutensecos

Jaacute no iniacutecio da repuacuteblica romana temos um dos primeiros exemplos da

chamada diglossia juriacutedica Eacute necessaacuterio entender que em Roma uma pessoa era

vista antes de tudo como pertencente a um grupo A lei considerava a famiacutelia como

uma unidade autocircnoma chefiada pelo patriarca ndash o paterfamilias- natildeo interferindo

no que acontecia dentro dela Pela lei das XII taacutebuas o filho independente de sua

idade soacute alcanccedilaria a emancipaccedilatildeo com a morte do pai Isso mantinha sujeitos

juridicamente incapazes com idade ateacute mesmo adiantada Homens e mulheres que

aguardavam ansiosamente a morte de um paterfamilias anciatildeo - o que induzia

segundo registros histoacutericos ateacute mesmo ao parriciacutedio

Surgiu poreacutem uma soluccedilatildeo O patriarca podia dispor de sua famiacutelia como

res ndash coisa inclusive para vendecirc-los como escravos Se por duas vezes o

paterfamilias vendesse o filho e e este por duas vezes fosse libertado ele

continuaria sob o jugo paterno Se vendido poreacutem uma terceira vez e novamente

tornado livre o filho adquiria finalmente a emancipaccedilatildeo O pai entatildeo poderia fazer

uma ldquovenda fingidardquo 101 do filho a um amigo que o compraria e o libertaria trecircs

vezes tornando o filho um cidadatildeo Para filhas e netos de ambos os sexos

99 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 73 100 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 27 101 Ibidem p 29

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

44

convencionou-se que seriam emancipados apenas com uma venda e uma

libertaccedilatildeo

42 Os remeacutedios juriacutedicos

Durante ao maior parte da repuacuteblica romana o desenvolvimento juriacutedico se

deu natildeo tanto pela via da produccedilatildeo normativa e tampouco pela interpretaccedilatildeo das

normas jaacute existentes O fator de maior contribuiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees do direito seria o

exerciacutecio e controle de algo proacuteximo do que chamamos hoje de ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo

O processo juriacutedico tiacutepico em Roma eacute caracterizado por um extremo rigor

teacutecnico e formal Isso provavelmente devido agrave origem religiosa e portanto

ritualiacutestica do proacuteprio direito romano Havia durante a repuacuteblica um nuacutemero

bastante limitado de formas processuais todas iniciadas com a declaraccedilatildeo de

foacutermulas verbais pelo querelante diante do magistrado e do acusado A accedilatildeo ou

ldquolegis actionesrdquo soacute poderia se dar em dias especiacuteficos Qualquer viacutecio formal

implicava uma declaraccedilatildeo de improcedecircncia e portanto a perda da demanda

Originalmente os magistrados eram os dois cocircnsules que substituiacuteram os

monarcas apoacutes a queda do uacuteltimo rei de Roma Eram eleitos anualmente e o

exerciacutecio da jurisdiccedilatildeo se dava como uma extensatildeo natural de seus deveres de

estado A administraccedilatildeo da justiccedila era apenas uma parte dos deveres consulares o

que explica o relativo ldquoengessamentordquo formal do direito a pequena ocorrecircncia de

inovaccedilotildees juriacutedicas oficiais A evoluccedilatildeo normativa portanto era praticamente

inexistente mas como se veraacute abaixo devido agrave inevitaacutevel necessidade mutaccedilotildees

legais eram permitidas desde que fosse preservada a aparecircncia de estabilidade do

direito preexistente

A partir do seacuteculo IV AC com a expansatildeo de Roma e o aparecimento de

juiacutezes ndashiudex - surgiu tambeacutem o primeiro agente puacuteblico encarregado unicamente

do auxiacutelio judiciaacuterio o pretor Eleito anualmente sem necessariamente possuir

experiecircncia anterior em direito ele fiscalizava os dois estaacutegios do tracircmite processual

romano a categorizaccedilatildeo do conflito em termos legais e o julgamento em si Para se

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

45

dar iniacutecio ao processo manteve-se o tradicional formalismo o julgamento poreacutem

possuiacutea um procedimento relativamente mais livre

Uma inovaccedilatildeo importante ocorre a partir da segunda metade da repuacuteblica as

partes diante do pretor poderiam formular a acusaccedilatildeo e defesa em suas proacuteprias

palavras Ele entatildeo sintetizava os argumentos em um documento ndash a foacutermula - que

era selada e enviada ao iudex O iudex baseava seu julgamento nos termos da

foacutermula podendo se necessaacuterio recorrer ao auxiacutelio de um grupo consultores ndash

consilium ndash para ajudaacute-lo Natildeo muito mais tarde as partes passaram a contratar

retoacutericos para representaacute-las perante o iudex

Quem ldquodeclarava a leirdquo ndash ius dicere ndash era poreacutem o pretor que apontava

soluccedilotildees ldquoremeacutedios juriacutedicosrdquo para cada situaccedilatildeo especiacutefica Caso natildeo houvesse

essa soluccedilatildeo na lei poderia ele criar um remeacutedio novo uma espeacutecie de

jurisprudecircncia Como afirma Nicholas ldquoquem controlava a produccedilatildeo de remeacutedios

controlava o desenvolvimento juriacutedicordquo102 Poreacutem as inovaccedilotildees natildeo eram

consideradas formalmente uma nova lei Na verdade eram apresentadas de forma

disfarccedilada como expressotildees corolaacuterios do direito positivo Oficialmente o pretor

natildeo possuiacutea competecircncia para produccedilatildeo legislativa mas na praacutetica era como se

assim o fosse

Um exemplo digamos que Tiacutecio de acordo com a Lei das XII taacutebuas ainda

natildeo pudesse ser proprietaacuterio Jamais seria permitido ao pretor contrariar a tradiccedilatildeo

Seria possiacutevel poreacutem obter por meio de uma accedilatildeo alternativa tratamento a Tiacutecio

de detentor provisoacuterio do direito de posse ateacute que se cumprisse o prazo para que

ele se tornasse formalmente proprietaacuterio iuris et iure Em suma cabia ao pretor

analisar cada caso concreto - se houvesse a percepccedilatildeo de que existia a

necessidade social e a devida aceitaccedilatildeo popular criava-se embutido na foacutermula um

novo entendimento e ateacute mesmo um novo instituto Executava-se portanto o

102 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 47

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

46

ldquodisfarce da inovaccedilatildeordquo 103 jaacute que a condiccedilatildeo sine qua non era a preservaccedilatildeo de uma

imagem de imperturbaacutevel continuidade da antiga ordem normativa

O pretor no iniacutecio de seu mandato anual publicava um edito no qual

apresentava de antematildeo algumas circunstacircncias para as quais garantiria uma

foacutermula Os futuros litigantes poderiam entatildeo ao analisar os vaacuterios argumentos

requerer a foacutermula sob encomenda o que trazia certa previsibilidade e estabilidade

juriacutedicas O trabalho do pretor permitia ao mesmo tempo a subsunccedilatildeo - a

adaptaccedilatildeo da norma aos casos concretos ndash aliada agrave criaccedilatildeo de uma flexibilidade

impossiacutevel de se obter com a simples leitura da lei Outro exemplo um contrato

formalmente perfeito poreacutem eivado de viacutecio de vontade seria inquestionaacutevel pela

Lei das XII taacutebuas No fim da repuacuteblica poreacutem graccedilas ao uso da foacutermula tornou-se

possiacutevel alegar a nulidade de negoacutecios juriacutedicos celebrados por coaccedilatildeo ou fraude o

que liberava a viacutetima de qualquer obrigaccedilatildeo (exceptio) ou reestipulava seu objeto

tornando-o mais razoaacutevel e aceitaacutevel usando-se o bom senso ldquode acordo com a

boa-feacuterdquo (ex fide bona)

Em 326 AC a lei Poetelia Papiria potildee fim ao nexum e a partir de entatildeo a

diacutevida natildeo mais incide sobre a pessoa do devedor mas apenas sobre seu

patrimocircnio A execuccedilatildeo agora se daacute somente sobre bens O iudex portanto soacute

proferiraacute decisotildees sobre a obrigaccedilatildeo de pagar Mas o pretor com o uso de uma

nova intervenccedilatildeo (fora das foacutermulas convencionais) poderaacute soacute ele ordenar o

inderdito uma decisatildeo sobre obrigaccedilotildees de fazer ou natildeo fazer Considerado um

remeacutedio extraordinaacuterio o interdito em sua forma mais draacutestica seraacute chamado

restituto in integrum ndash uma espeacutecie de exeptio extremado que aleacutem de isentar o

devedor coagido ou fraudado iraacute restituir o status quo inicial obrigando o

desfazimento de todas as consequecircncias do negoacutecio juriacutedico viciado Eacute importante

notar que o pretor usava o restituto com extrema cautela porque se banalizado

poderia causar inseguranccedila juriacutedica minando a proacutepria estabilidade ou imagem de

estabilidade do direito

103 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 32

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

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e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

47

Mais uma mostra de como se davam as reformas legais no direito romano a

questatildeo da maioridade Na realeza qualquer menino de quatorze anos se liberto de

seu paterfamilias possuiacutea plena capacidade civil As relaccedilotildees sociais na repuacuteblica

poreacutem eram mais complexas e nada garantia que o menino natildeo viesse a ser

enganado por digamos um mercador esperto A soluccedilatildeo loacutegica seria aumentar o

limite para a maioridade Lembremos contudo do excepcional apego dos romanos

agrave tradiccedilatildeo ndash a letra da lei como sempre natildeo poderia ser mudada diretamente Qual

seria entatildeo a soluccedilatildeo de compromisso Seraacute sempre aquela que introduz a

inovaccedilatildeo mas preserva ao mesmo tempo a tradiccedilatildeo A maioridade continuou a se

dar ao quatorze Poreacutem o pretor usava o restituto quando considerava que no caso

concreto algueacutem poderia se aproveitar da ingenuidade de um jovem de idade

inferior a vinte e cinco anos Na praacutetica as pessoas se negavam a realizar negoacutecios

com um cidadatildeo nessa faixa etaacuteria ao menos que ele fosse ldquoassistidordquo por um

consultor independente

A inflexibilidade do direito oficial natildeo era poreacutem absoluta Com o passar do

tempo mesmo algumas inovaccedilotildees dos pretores consagradas por uma foacutermula

repetida em diversos eacuteditos poderiam finalmente ser reconhecidas como lei Isso

ocorreu a partir da segunda parte da repuacuteblica dando origem ao chamado ius

honorarium Essa pequena vaacutelvula de escape natildeo invalida a ideia de que no direito

romano havia uma verdadeira obsessatildeo pela lei escrita e sua estabilidade As

alteraccedilotildees legais afinal de contas soacute podiam ser aceitas quando devido a seu uso

intenso por geraccedilotildees jaacute houvessem se tornado por si mesmas tradicionais

43 A lei natural e o ius gentiun

ldquoDa lei somos escravos para que possamos ser livresrdquo - ldquolegum servi sumus

ut liberi esse possimusrdquo104 A lei civil era pela proacutepria definiccedilatildeo de Ciacutecero o suposto

instrumento justo e necessaacuterio de resoluccedilatildeo de conflitos entre cidadatildeos Instrumento

que supostamente serve e eacute legitimado pelo populus ndash o povo romano Mas e se a

104 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 78

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

48

lide envolvesse um baacuterbaro Quando os estrangeiros eram mais raros e litigavam

com eou contra cidadatildeos ldquofingia-serdquo105 para todos os efeitos que ambas as partes

eram romanas Soluccedilatildeo que mais uma vez se opera no espaccedilo permitido pela

diglossia juriacutedica Espaccedilo em que um direito praacutetico efetivo e eficaz existe em

contraacuterio agrave lei oficial sem que a antinomia seja sequer reconhecida

Essa praacutetica durou ateacute o seacuteculo III AC ateacute a queda de Cartago quando

Roma comeccedila a expressar de fato sua vocaccedilatildeo internacionalista Surge a partir de

entatildeo a necessidade se reconhecer algum status especiacutefico para o estrangeiro ndash

chamado ldquoperegrinordquo- que se relaciona juridicamente com o Estado ou o cidadatildeo

privado romanos Em 242 AC eacute criado entatildeo o cargo de ldquopretor dos peregrinosrdquo

enquanto o pretorado comum passa a ser chamado de ldquopretorado urbanordquo

A divisatildeo entre direito do estrangeiro e do cidadatildeo obrigou aos juristas a um

exerciacutecio de reflexatildeo a uma tentativa de pela primeira vez separar e formalizar o

que seria na lei civil especiacutefico do povo romano daquilo que expressasse um

caraacuteter universal Se eacute verdade que Roma sentia-se superior a outros povos a nova

divisatildeo juriacutedica natildeo precisava necessariamente privilegiar o cidadatildeo Damas

peregrinas por exemplo de acordo com a Lei Opiana de 215 AC poderiam se

enfeitar tranquilamente de ouro e desfilar em espaccedilos puacuteblicos enquanto que das

matronas patriacutecias esperava-se maior discriccedilatildeo106

Poreacutem aleacutem de diferenciaccedilotildees pitorescas a dicotomia urbanoperegrino

ensejou a delimitaccedilatildeo de um direito ldquouniversalrdquo Um escopo legal considerado talvez

pela primeira vez universal - um denominador comum de toda e qualquer naccedilatildeo

ldquocivilizadardquo107 ndash o Ius Gentium A justificativa filosoacutefica para o Ius Gentium era que

essas normas natildeo se baseavam de forma alguma na tradiccedilatildeo Eram antes

inerentes agrave proacutepria natureza humana O Ius Gentium portanto foi entendido natildeo soacute

como sinocircnimo de ldquolei das naccedilotildeesrdquo mas tambeacutem como Ius Naturale

105 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 39 106 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 41 107 Ibidem loc cit

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

49

No fim da repuacuteblica (mais precisamente na segunda metade do seacuteculo III AC)

devido agrave crescente complexidade das normas foacutermulas e remeacutedios forma-se mais

uma nova classe de profissionais do direito ndash os juristas Os juristas eram os uacutenicos

especialistas que necessariamente possuiacuteam treinamento juriacutedico formal qualidade

que natildeo possuiacuteam nem os advogados nem mesmo os pretores e iudex Sua

atuaccedilatildeo predominantemente civil (raramente se envolviam em questotildees criminais

ou religiosas) destinava-se agrave soluccedilatildeo de problemas difiacuteceis de imbroacuteglios juriacutedicos

com sugestotildees de foacutermulas defesas ou redaccedilatildeo de contratos e outros documentos

O trabalho e a opiniatildeo dos juristas considerados mais proeminentes era reunido em

digestos para futura referecircncia

Durante a transiccedilatildeo da Repuacuteblica para o Impeacuterio o apego romano agrave tradiccedilatildeo

seraacute fortemente abalado pelo menos no que tange agraves questotildees de representaccedilatildeo

poliacutetica e concentraccedilatildeo de poder Poreacutem independente das mudanccedilas em relaccedilatildeo

ao conteuacutedo os papeacuteis sociais continuavam na forma estaacuteveis Eacute bom lembrarmos

por exemplo que os liacutederes da conspiraccedilatildeo que levou ao assassinato de Juacutelio Ceacutesar

- Brutus e Caacutessio - eram agrave eacutepoca peregrino urbano e pretor

44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero

Para Ciacutecero histoacuteria e memoacuteria foram uma preocupaccedilatildeo constante O

orador frequentemente alertava quanto aos perigos do esquecimento Segundo ele

a repuacuteblica de seus dias era apenas uma imagem apagada do que um dia jaacute havia

sido (picturam evanescentem vetustate108 Rep 512) Sua fibra moral se

encontrava abandonada enterrada pelo desuso (ldquooblivione obsoletordquo idem) O que

estava em questatildeo na eacutepoca na segunda metade do seacuteculo I DC era o que seria a

natureza ou o discurso sobre a natureza dessa mesma repuacuteblica Identidade sem

duacutevida aristocraacutetica apesar do sistema poliacutetico romano apresentar elementos

democraacuteticos (o principal deles sendo as tribunas) Mas a verdade eacute que o poder

real exercido pelos senadores da repuacuteblica dependia em grande parte tanto de

108 CICERO Marco Tuacutelio Da Republica Satildeo Paulo Edipro 2011 p 59

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

50

riqueza quanto de laccedilos de famiacutelia109 Apesar do contraexemplo do proacuteprio Ciacutecero o

maior defensor dessa forma de governo que era excepcionalmente de origem

comum

A questatildeo eacute saber se Ciacutecero se inquietava com a perda da memoacuteria de uma

repuacuteblica que de fato existiu ou que existia apenas na realidade de seus discursos

Talvez para essa anaacutelise seja pertinente o uso do conceito contemporacircneo de

revoluccedilatildeo surgido principalmente a partir dos movimentos sociais e filosoacuteficos do

seacuteculo XVIII ideia que explica as accedilotildees exercidas no presente em funccedilatildeo de um

processo rumo agrave Utopia a uma realidade projetada de forma mais ou menos

incerta no futuro Com Ciacutecero o que parece se dar eacute uma revoluccedilatildeo agraves avessas eacute

necessaacuterio agir para que se restaure uma outra utopia esta projetada de forma

tambeacutem bastante incerta no passado

Para o orador a repuacuteblica (res publica ndash coisa puacuteblica) teria como elemento

essencial o populus (povo) que por intermeacutedio do senado que o representava era a

fonte formal do poder ldquoSPQRrdquo - Senatus Populusque Romanus (senado popular

romano)110 Para explicar em seu De Republica as origens do proacuteprio conceito de

ldquopovordquo Ciacutecero faz sem duacutevida referecircncia agrave teoria do ldquoanimal poliacuteticordquo de Aristoacuteteles

Para ao filoacutesofo grego a natureza de todas as coisas seria alcanccedilar um propoacutesito

inato atingindo sua proacutepria perfeiccedilatildeo A perfeiccedilatildeo do homem soacute se daria em sua

expressatildeo coletiva ciacutevica poliacutetica Jaacute as palavras do orador romano soam tambeacutem

estranhamente como uma espeacutecie de teoria do contrato social

ldquoNem toda reuniatildeo de homens por mais unida que seja forma o populus Mas sim uma reuniatildeo de grande nuacutemero de homens tornados aliados pelo consenso juriacutedico social (iuris consensu sociatus) e compartilhando interesses [] a causa da uniatildeo natildeo eacute tanto a fraqueza dos indiviacuteduos mas o instinto social natural humanordquo 111

Poreacutem a necessidade de adoccedilatildeo de elementos representaccedilatildeo democraacutetica

na repuacuteblica em franco contraste com a monarquia (ainda que se discuta o quantum

109 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 43 110 KELLY JM A Short History of Western Legal Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 35 111 Ibidem loc cit

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

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Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

51

de poder efetivamente exercido pelas tribunas) possui uma explicaccedilatildeo em que ao

contraacuterio do que afirma o discurso idealizado prevalece o dissenso No iniacutecio da

repuacuteblica Roma ao contraacuterio do que se daraacute durante o impeacuterio lutava natildeo por sua

expansatildeo territorial mas antes de tudo consigo proacutepria Os primeiros cento e

cinquenta anos apoacutes a queda da monarquia ldquoforam gastos principalmente nas lutas

internas entre as duas ordens ou classes nas quais o corpo de cidadatildeos era dividido

ndash a nobreza patriacutecia e os plebeus que constituiacuteam a maior parte da populaccedilatildeordquo112 O

consenso juriacutedico social historicamente parece ter existido somente agrave custa de

derramamento de sangue

45 O impeacuterio

Com a ascensatildeo do imperador Cesar Augustus o processo de diglossia

juriacutedica alcanccedilaraacute um escopo ineacutedito na histoacuteria romana agora natildeo soacute o direito

aplicado eacute reformado com a preservaccedilatildeo da aparecircncia de estabilidade mas o

proacuteprio sistema poliacutetico sofre um completo processo de ressignificaccedilatildeo Na praacutetica

um impeacuterio foi consolidado com ldquoa seguranccedila dos suacuteditos garantida pela

preservaccedilatildeo da fachada de uma constituiccedilatildeo republicanardquo113 A importacircncia real de

vaacuterias instituiccedilotildees foi sendo portanto gradualmente esvaziada ateacute que finalmente

sua existecircncia se tornava de ordem predominantemente simboacutelica

A proacutepria ideia do impeacuterio talvez fosse incompatiacutevel com o funcionamento e

preservaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas As guerras traziam oportunidades

ineacuteditas de ganhos de poder e riqueza aos generais e governantes de proviacutencias

Reforccedilava ao mesmo tempo o poder do senado porque eram os senadores os

responsaacuteveis pela escolha desses servidores puacuteblicos Havia um estado de

beligeracircncia permanente advindo natildeo soacute das batalhas pela expansatildeo territorial

mas tambeacutem da necessidade de sufocar as frequentes rebeliotildees nas proviacutencias jaacute

anexadas a Roma Isso levava ao adiamento das eleiccedilotildees anuais dos magistrados

112 NICHOLAS Barry An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press 1975 p 21 113 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 34

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

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O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

52

e tambeacutem agrave eleiccedilatildeo de cocircnsules e proacute-cocircnsules com um perfil em que as

qualidades militares predominavam sobre a capacidade de debate e negociaccedilatildeo

poliacuteticos Eacute bem verdade que no sistema administrativo romano natildeo havia a ideia

de especializaccedilatildeo de escolha e preparaccedilatildeo para uma carreira especiacutefica tal qual

ocorre hoje Um membro da classe dominante poderia tranquilamente transitar na

administraccedilatildeo puacuteblica pelo exerciacutecio de funccedilotildees militares poliacuteticas juriacutedicas ou

mesmo religiosas O exeacutercito poreacutem acabou por ganhar uma crescente autonomia

principalmente a partir da Segunda Guerra Puacutenica Apoacutes a queda de Cartago os

soldados jaacute natildeo eram mais camponeses convocados agrave guerra mas sim

profissionais de dedicaccedilatildeo integral Os generais apoacutes anos ou mesmo deacutecadas em

campanha com seus legionaacuterios se tornavam por sua vez ldquouma espeacutecie bastante

diferente de ldquoanimal poliacuteticordquordquo114 A representaccedilatildeo maacutexima desse novo ldquozoon

politikonrdquo desse liacuteder militar com ambiccedilotildees autocraacuteticas seria a figura histoacuterica de

Caio Juacutelio Ceacutesar

Em 146 AC apoacutes a uacuteltima de uma seacuterie de trecircs guerras Cartago teve que ser

destruiacuteda No mesmo ano a Greacutecia eacute formalmente anexada ao impeacuterio A forccedila do

exeacutercito eacute tamanha que setenta anos depois o poder em Roma eacute exercido por trecircs

generais - Crasso Ceacutesar e Pompeu ndash que datildeo iniacutecio ao processo de decadecircncia do

senado Eacute formado assim um equiliacutebrio de poder ainda que precaacuterio o primeiro

triunvirato Mais tarde Crasso morre em uma tentativa ambiciosa de invadir a Paacutertia

que de tatildeo desastrosa e mal sucedida associou o nome do triuacutenvuro talvez para

sempre agrave palavra ldquoerrordquo

46 Diglossia de Estado

Apoacutes o periacuteodo de guerra civil e a ascensatildeo e assassinato de Juacutelio Ceacutesar

instaura-se um impeacuterio ansioso ldquopor manter uma aparecircncia republicanardquo115

Augustus (na eacutepoca apenas Otaviano) sobrinho-neto e herdeiro de Ceacutesar

114 ROBERTS JM The Penguin History of the World London Penguin Books 1995 p 228 115 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 14

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

53

percebeu que Roma precisava de uma soluccedilatildeo uma soluccedilatildeo de compromisso entre

os assassinos e defensores de seu tio O que ele fez foi ao dividir o poder com

Marco Antocircnio e Leacutepido promover uma anistia geral Apoacutes a vitoacuteria sobre os outros

triuacutenviros Otaviano decide promover como poliacutetica de estado a apropriaccedilatildeo da

utopia de Ciacutecero de sua nostalgia desprovendo as instituiccedilotildees poliacuteticas

republicanas o mais possiacutevel de qualquer efeito praacutetico O proacuteprio imperador

passou a assumir a funccedilatildeo legiferante e as ldquoconstituiccedilotildees imperiaisrdquo eram editadas

com forccedila de lex As constituiccedilotildees eram em sua maioria respostas agrave questotildees

impostas por litigantes ou servidores puacuteblicos As assembleias populares voltaram a

se encontrar mas o imperador controlava sua pauta de reuniotildees de forma que

nenhuma proposta realmente importante era por elas decidida Com o monopoacutelio

poliacutetico assegurado na capital o Impeacuterio se utilizava da garantia de cidadania para o

controle das proviacutencias Assim a cultura e o direito romanos podiam existir sem

necessariamente conexatildeo dos grupos sociais com uma origem itaacutelica A ldquodiglossia

de estadordquo a apropriaccedilatildeo das instituiccedilotildees republicanas que passaram a legitimar um

governo de caraacuteter predominantemente autocraacutetico teve tambeacutem uma

consequecircncia juriacutedica importante Com a aparente estabilizaccedilatildeo das questotildees

puacuteblicas os juristas do impeacuterio puderam se concentrar quase com exclusividade

nas questotildees privadas Essa aparente ldquodespolitizaccedilatildeordquo juriacutedica essa dissociaccedilatildeo

entre o desenvolvimento legal e as questotildees de estado eacute que deu origem ao que

chamamos hoje de direito romano claacutessico

47 O direito romano claacutessico

Os primeiros dois seacuteculos da era cristatilde marcaram o ponto aacuteureo do

desenvolvimento do direito romano que alcanccedilou tecnicamente sua expressatildeo mais

sofisticada Ao mesmo tempo esse chamado periacuteodo claacutessico testemunhou o

governo de alguns dos mais brutais governantes do Impeacuterio Nero Caliacutegula e

Domiciano Esse aparente paradoxo soacute foi possiacutevel devido agrave separaccedilatildeo ainda que

taacutecita entre direito privado e direito puacuteblico romanos Isso talvez tenha contribuiacutedo

para a criaccedilatildeo e disseminaccedilatildeo da maacutexima quase folcloacuterica e de origem controversa

de que os romanos teriam sido gigantes do direito privado e pigmeus do direito

54

puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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puacuteblico Como afirma Ronaldo Poletti em Roma ldquoeacute quase insignificante no

tocante agraves instituiccedilotildees poliacuteticas o chamado direito puacuteblicordquo 116

A verdade eacute que devido agrave diglossia de Estado que assegurou um governo

autocraacutetico o direito puacuteblico se estabilizou e os primeiros imperadores romanos

sequer viam necessidade em interferir no desenvolvimento do direito privado117

O principal motor do desenvolvimento legal do periacuteodo claacutessico foi a

literatura produzida por juristas tanto os que serviam ao impeacuterio quanto os que

optaram por uma praacutetica privada A principal caracteriacutestica dessa doutrina seria a

continuidade (os juristasmesmo em situaccedilotildees de discordacircncia citavam e

construiacuteam seu pensamento a partir do trabalho de seus predecessores) No fim

das contas somente a classe dos juristas possuiacutea uma percepccedilatildeo do todo da lei

privada o pretor ocupava o cargo por um ano apenas o iudex se preocupava

apenas com os fatos dos casos a ele apresentados os advogados valorizavam mais

a periacutecia retoacuterica do que o conhecimento juriacutedico Na verdade as discussotildees eram

tatildeo detalhadas que por outro lado havia mesmo uma tendecircncia como

exemplificada por Ciacutecero de desprezar os juristas por seu apego a filigranas e

discussotildees inuacuteteis como a questatildeo de ser ou natildeo permitido que um sujeito deixasse

a aacutegua da chuva cair de seu telhado no de seu vizinho118 Apesar disso eram os

juristas que se preocupavam com a aplicaccedilatildeo praacutetica das leis sendo naturalmente

sensiacuteveis agrave necessidade de reformas agraves discussotildees e agrave harmonizaccedilatildeo de opiniotildees

divergentes

Sabe-se que os juristas do iniacutecio dos primeiros seacuteculos de nossa era dividiam-

se em duas escolas principais a dos proculianos e sabinianos Os proculianos

tendiam a embasar suas opiniotildees na autoridade lei escrita cujo sentido deveria ser

na medida do possiacutevel uniacutevoco Buscava-se em relaccedilatildeo ao direito natildeo-escrito por

princiacutepios que lhe fossem subjacentes Jaacute os sabinianos por sua vez procuravam

por soluccedilotildees para cada caso concreto independente da coerecircncia do direito como

116 Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 117 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 16 118 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 17

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um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

55

um todo Para eles a lei em situaccedilotildees diversas poderia ser interpretada de uma

forma tambeacutem diversa

A divergecircncia entre essas duas escolas pode parecer a princiacutepio extremada

Poreacutem o direito romano in abstrato apresentado de forma didaacutetica jaacute comeccedila

entatildeo a apresentar caracteriacutesticas que o aproximam da unidade daquilo que hoje

chamamos ldquodisciplinardquo Conforme jaacute exposto o desenvolvimento da teoria privatista

do direito em Roma ocorre concomitantemente a um retraimento da participaccedilatildeo

popular na formulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Para explicar o fenocircmeno sugerem-se

duas abordagens Uma eacute a dissociaccedilatildeo cada vez mais profunda entre direito

puacuteblico e privado de tal forma que o desenvolvimento de um seja nas dimensotildees

teoacuterica ou praacutetica natildeo resultava necessariamente em influecircncia sobre o outro Uma

outra resposta a essa relaccedilatildeo inversa pode ser sugerida pela ideia de que o

desenvolvimento teoacuterico da disciplina juriacutedica tenha em si mesmo contribuiacutedo para

a manutenccedilatildeo e estabilizaccedilatildeo do status quo das instituiccedilotildees puacuteblicas Foucault ao

discorrer sobre a natureza das disciplinas teoacutericas traccedila uma consideraccedilatildeo dessa

natureza

ldquoA disciplina eacute um princiacutepio de controlo da produccedilatildeo do discurso Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualizaccedilatildeo [sic] permanente das regras Tem-se o haacutebito de ver na fecundidade de um autor na multiplicidade dos comentaacuterios no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criaccedilatildeo dos discursos Talvez mas natildeo deixam de ser princiacutepios de constrangimento e eacute provaacutevel que natildeo se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se natildeo tomarmos em consideraccedilatildeo a sua funccedilatildeo restritiva e constrangedorardquo119

O fato eacute que em Roma o desenvolvimento dos limites conceituais do direito

privatista ocorreu concomitantemente agrave limitaccedilatildeo do exerciacutecio real do poder na

esfera puacuteblica O brilhantismo teoacuterico eacute forccediloso reconhecer conviveu com o retrai

mento dos meios de participaccedilatildeo popular na formulaccedilatildeo e execuccedilatildeo das poliacuteticas de

estado Em um sentido extremo desse processo de concentraccedilatildeo temos o exemplo

apreendido pela Histoacuteria de forma algo lendaacuteria algo caricata dos mais brutais

governantes do Impeacuterio Caliacutegula Nero e Domiciano

119 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 35

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O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

56

O direito claacutessico romano eacute em essecircncia casuiacutestico - mesmo que baseado

algumas vezes em casos de natureza hipoteacutetica propostos pelas escolas O

ordenamento e a classificaccedilatildeo dessa miriacuteade jurisprudencial foi elaborado com

meacutetodos de sistematizaccedilatildeo helecircnicos apesar de os proacuteprios gregos nunca terem

aplicado seus instrumentos agrave lei Um professor conhecido apenas pelo nome Gaius

parece ter sido o responsaacutevel pela divisatildeo da ciecircncia juriacutedica romana lanccedilada

futuramente agrave posteridade pelo Corpus Iuris Civilis de Jusitiniano Nas Instututas a

seccedilatildeo do coacutedigo destinada aos estudantes aprende-se que o direito se relaciona a

pessoas coisas e accedilotildees Pessoas trata do status do indiviacuteduo pelos criteacuterios da

liberdade - escravo ou homem livre cidadania - peregrino ou cidadatildeo posiccedilatildeo

familiar - paterfamilas ou dependente Coisas envolvia os conceitos de corpoacutereo

ou incorpoacutereo (obrigaccedilotildees eram consideradas coisas incorpoacutereas) moacutevel ou imoacutevel

Accedilotildees natildeo se destina tanto a esmiuccedilar o procedimento nas cortes mas antes a

classificar accedilotildees entre aquelas que podem ser impetradas contra qualquer pessoa

(a reintegraccedilatildeo de possepor exemplo) e aquelas relacionadas a sujeitos especiacuteficos

(como no caso de partes vinculadas por obrigaccedilatildeo)

Outro importante desenvolvimento juriacutedico expresso nas Institutas era uma

ideia mais complexa da natureza da obrigaccedilatildeo Os juristas durante seacuteculos viram o

contrato tatildeo somente sob a oacutetica do devedor como um ocircnus a ser cumprido Na

eacutepoca de Gaius surgiu o entendimento da obrigaccedilatildeo e de sua execuccedilatildeo tambeacutem

como direitos Ainda mais delitos civis foram incluiacutedos como fontes do direito

obrigacional O iniacutecio do seacuteculo III DC eacute considerado por alguns autores como o

aacutepice da jurisprudecircncia claacutessica Isso pelo menos quanto ao criteacuterio do nuacutemero de

pessoas vivendo sob os preceitos do direito romano

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS

ldquoRepresentaccedilatildeo empiricamente alimentadardquo120 ldquoimagem totalrdquo121 ldquosupermercado de ideiasrdquo122 ldquocriaccedilatildeordquo123 ou ldquoindecidiacutevelrdquo derridariano o DR eacute um exemplo profiacutecuo de uma longa histoacuteria de processos de ressignificaccedilatildeo Percebemos por vaacuterios indiacutecios apurados na pesquisa bibliograacutefica a existecircncia de um ldquooutrordquo direito romano ainda no suposto periacuteodo de sua origem Um direito ldquomenorrdquo mais informal convivendo de forma perfeitamente paciacutefica com os eacuteditos dos magistrados

Houve de fato um espaccedilo permitido a soluccedilotildees que embora tecnicamente ilegais foram instrumentos legiacutetimos dos operadores do direito Tudo em defesa da verdadeira obsessatildeo romana pela preservaccedilatildeo da imagem de estabilidade juriacutedica As diglossias juriacutedica discursiva e de Estado sugerem que a ideia de tradiccedilatildeo do DR e seu estranhamento agrave realidade satildeo na verdade de origem romana O mesmo se daacute em relaccedilatildeo agraves formas de legitimaccedilatildeo principalmente a chamada ldquoestrateacutegia naturalizadorardquo

Assim seriacuteamos ipso facto herdeiros dos romanos Ainda que o espoacutelio nem sempre seja o conteuacutedo material de seu direito mas sim a estrateacutegia legitimadora baseada na ficccedilatildeo da continuidade inabalaacutevel de uma tradiccedilatildeo juriacutedica O que constitui em si uma tradiccedilatildeo ainda que bastante diferente daquela apresentada pelos manuais acadecircmicos de direito

120 POLETTI Ronaldo A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm120 120 p 89-105 outdez De 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011 121 Ibidem Loc Cit 122 STEIN Peter Roman Law in European History Cambridge Cambridge University Press 2007 p 2 123 FOUCALT Michel A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola 1999 p 84

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

6 CONCLUSOtildeES

A proposta inicial do trabalho que era a de apurar por meio de indiacutecios

histoacutericos elementos que indiquem e exemplifique a flexibilidade interna inerente ao

Direito Romano (DR) parece ter sido alcanccedilada com sucesso Partimos do

pressuposto ao iniciar a pesquisa de que Manuel Hespanha possuiacutea a anaacutelise mais

pertinente sobre a histoacuteria do DR a de que os manuais juriacutedicos adotavam o

conteuacutedo romanista de forma utilitarista e descontextualizada Poreacutem durante a

anaacutelise bibliograacutefica apesar de confirmarmos a assertiva do historiador portuguecircs

nos deparamos tambeacutem com uma outra realidade Se Hespanha afirma que os

conceitos de DR satildeo usados hoje de forma anacrocircnica desconsidera todavia que

o mesmo anacronismo pode ter sido um fenocircmeno profundamente romano Poderia

haver sim na extensa histoacuteria do uso e adaptaccedilatildeo do DR uma continuidade a da

proacutepria administraccedilatildeo da ruptura Ruptura que faria parte e seria o anima mundi da

manutenccedilatildeo da ordem Sua administraccedilatildeo seu reordenamento simboacutelico estaria no

cerne da recriaccedilatildeo interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo do DR Em uma frase aprendemos a

reinventar Roma com os proacuteprios romanos Ironicamente os processos de

legitimaccedilatildeo - sejam evolucionistas ou naturalizantes - ignoram a verdadeira histoacuteria

romana mas fazem parte ao mesmo tempo de seu legado e de sua tradiccedilatildeo

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Santo AGOSTINHO (2008) Confissotildees Satildeo Paulo Editora Martin Claret

Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

Marco Tuacutelio CICERO (2011) Da Repuacuteblica Satildeo Paulo Edipro Jeff COLLINS et Bill MAYBLIN (2011) Introducing Derrida London Omnibus Business Centre Raoul van CAENEGEM (2002) European law in the past and the future Cambridge Cambridge University Press Michel FOUCALT (1999) A Ordem do Discurso Satildeo Paulo Editora Loyola Alain M GOWING (2005) Empire and Memory The Representation of the Roman Republic in Imperial Culture Cambridge Cambridge Universitaacuterio Presa Eric HOBSBAWM (1985) A Era dos Extremo o Breve Seacuteculo XX (1914-1918) Satildeo Pauo Companhia das Letras Antocircnio Manuel HESPANHA (2005) Depois do Leviathan in Almanack Braziliense nordm 05 p 55-66 maio de 2007 Disponiacutevel em lthttpwwwalmanackuspbrneste_numeron01indexasptipo=artigosampedicao=5ampconteudo=198gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

Antonio Manuel HESPANHA (2009) Cultura Juriacutedica Europeacuteia ndash siacutentese de um Milecircnio Florianoacutepolis Fundaccedilatildeo Boiteux

J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

Pedro LENZA (2008) Direito constitucional esquematizado Satildeo Paulo Editora Saraiva Joseacute Reinaldo de Lima LOPES (2000) O Direito na Histoacuteria Liccedilotildees Introdutoacuterias Satildeo Paulo Max Limonad Barry NICHOLAS (1975) An Introduction to Roman Law Oxford Oxford University Press

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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Peter BURKE (1992) A Escrita da Histoacuteria ndash Novas Perspectivas Satildeo Paulo Unesp

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Antonio Manuel HESPANHA (1982) Histoacuteria das instituiccedilotildees juriacutedicas Coimbra Almedina

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J M KELLLY (2001) A Short History of Legal Theory Oxford Oxford University Press

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Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Ronaldo POLETTI A ideia democraacutetica no direito romano in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v30 nordm 120 p 100 outdez de 1993 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid176162gt Acesso em 22 marccedilo 2011

Leopold von RANKE (1956) Varieties of History New York F Stern

Miguel REALE (1976) Estrutura e Fundamento da Ordem Juriacutedica in Revista do Tribunal de Justiccedila do Estado do Paraacute 20 nordm 12 p 245-252 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid180576gt Acesso em 22 de marccedilo de 2011

Darcy RIBEIRO RIBEIRO (1995) O Povo Brasileiro ndash A formaccedilatildeo e o sentido do Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras

Luiz Antocircnio ROLIM (2003) Instituiccedilotildees de Direito Romano Satildeo Paulo Editora Revista dos Tribunais

JM ROBERTS (1995) The Penguin History of the World London Penguin Books Nelson SALDANHA (1983) O Direito Romano e a noccedilatildeo ocidental de ldquoDireitordquo in Revista de Informaccedilatildeo Legislativa v20 nordm 80 p 119-124 outdez De 1983 Disponiacutevel em lthttpwww2senadogovbrbdsfitemid181474gt Acesso em 22 marccedilo 2011 Ferdinand SAUSSURE (1959) Course in General Linguistics Trans Wade Baskin New York Philosophical Library Peter STEIN (2007) Roman law in European history Cambridge Cambridge University Press Eric VOGELIN (1982) A Nova Ciecircncia da Poliacutetica Brasiacutelia Editora da Universidade de Brasiacutelia Max WEBER (1978) Economy and Society Berkely University of California Press Rheinhard ZIMMERMANN (2002) Roman law contemporary law European law the civilian tradition today Oxford Oxford University Press

  • PREAcircMBULO
  • 1 INTRODUCcedilAtildeO
    • 11 Tema objeto e objetivo
    • 12 Abordagem
      • 2 REVISAtildeO BLIBIOGRAacuteFICA E FUNDAMENTACcedilAtildeO TEOacuteRICA
        • 21 Continuidade e ruptura
          • 211 Continuidade
          • 212 Ruptura
          • 213 Metodologias
            • 22 O legado de Roma
              • 221 Ressignificaccedilotildees do direito romano na histoacuteria do desenvolvimento juriacutedico no ocidente
              • 222 Direito romano segundo Miguel Reale
              • 223 Instrumentalidade
              • 224 Direito romano e democracia
              • 225 A centralidade das leis no direito romano
              • 226 Oriente e ocidente
                  • 3 ESTRATEacuteGIAS DE LEITURA
                    • 31 Anaacutelise do discurso em Foucault
                    • 32 O desconstrutivismo de Derrida
                      • 321 ldquoMetafiacutesica da Presenccedilardquo
                      • 322 ldquoDiferecircnciardquo e natildeo significaccedilatildeo
                          • 4 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
                            • 41 Origens
                            • 42 Os remeacutedios juriacutedicos
                            • 43 A lei natural e o ius gentiun
                            • 44 Diglossia discursiva a ldquoutopia agraves avessasrdquo de Ciacutecero
                            • 45 O impeacuterio
                            • 46 Diglossia de Estado
                            • 47 O direito romano claacutessico
                              • 5 RESULTADOS ANAacuteLISE E INTERPRETACcedilAtildeO DOS DADOS
                              • 6 CONCLUSOtildeES
                              • 7 REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS