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Ecologia Ecologia A exuberante biodiversidade da Mata Atlân- tica está ainda mais escancarada após um trabalho inédito de um grande grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Os cientistas resolveram fazer uma força tarefa para mapear, com base na literatura e até em trabalhos ainda não publicados ou pouco co- nhecidos, a biodiversidade de vários grupos animais que vivem em uma das cinco áreas mais biodiversas do planeta. Como resultado, a região agora tem um con- junto com milhares de dados organizados em grandes arquivos totalmente abertos para a comunidade científica e para os tomadores de decisão em geral. Apesar das modificações que o bioma sofreu, os 12% de floresta atlântica original que ainda existe no Brasil, de um total de 150 milhões de hectares que havia antes da colonização portuguesa, é um manancial de vida e de relações ecológicas que precisam ser muito melhor conhecido pelos pesquisadores. “A Mata Atlântica tem sido historicamente super bem estudada, mas seus dados acabavam ficando dispersos na literatura científica. Mes- mo em documentos não publicados”, afirma Milton Cezar Ribeiro, professor do Departa- mento de Ecologia da Unesp em Rio Claro, um dos vários autores da iniciativa de compilar os dados sobre a Mata Atlântica. “Agora, o bioma virou uma referência de como a comunidade científica e as instituições de pesquisa podem mudar a filosofia de uso e acesso de dados. Este processo nos coloca na liderança do contexto ‘Open-Mind + Open Data = Open Science’”, diz o ecólogo, que organizou a iniciativa ao la- do do também ecólogo Mauro Galetti, outro pesquisador da Unesp de Rio Claro. Os artigos científicos que apresentam os da- dos para a comunidade mundial, os chamados data-papers, foram publicados ao longo do ano na revista Ecology . No total, o trabalho nome- ado de “Atlantic Series”, em inglês, apresenta dez artigos científicos que reúnem dados de vários grupos de animais que vivem na Mata Atlântica. Desde os primatas e outros mamí- feros até os anfíbios e as borboletas. “Apesar de todas as modificações [que o bio- ma sofreu], os data-papers têm mostrado que a Mata Atlântica mantém uma biodiversidade ímpar. Estes dados abrem novas perspectivas para se entender como as espécies e os pro- cessos ecológicos têm se mantido ao longo do espaço e do tempo”, diz Ribeiro. No caso dos primatas, um dos grupos ani- mais mais bem estudados, entre outros motivos por causa de sua aproximação evolutiva com os seres humanos, a força tarefa organizou os dados de 5.472 pontos georreferenciados onde os primatas já foram identificados. Este número abrange a ocorrência de 26 espécies nativas e 1 introduzida. A floresta atlântica da América do Sul tem exatamente 26 espécies de prima- tas, sendo 19 delas endêmicas. O conjunto de dados mapeados pelo grupo de estudo inclui 700 comunidades de primatas, espalhadas, além do Brasil, pelo Paraguai e pela Argenti- na, onde o bioma também existe. Os registros englobam estudos feitos entre 1815 e 2017. Por isso, algumas comunidades plotadas no mapa podem não existir mais. Em termos globais, as estimativas dos pes- quisadores indicam que 55% das 496 espécies de primatas do mundo são ameaçadas de ex- tinção. E 75% tiveram algum grau de declínio populacional. A Mata Atlântica, e o Brasil, é o bioma que mais tem diversidade de primatas no mundo. A perda de floresta é a maior ame- INICIATIVA DE ECÓLOGOS DA UNESP EM RIO CLARO VIRA REFERÊNCIA PARA COMUNIDADE CIÊNTÍFICA E APROFUNDA ESTUDO DO BIOMA Exuberância da Mata Atlântica ganha bancos de dados abertos OS ARTIGOS CIENTÍFICOS QUE APRESENTAM OS DADOS PARA A COMUNIDADE MUNDIAL, OS CHAMADOS DATA-PAPERS, FORAM PUBLICADOS AO LONGO DO ANO NA REVISTA ECOLOGY © Mata Atlântica/ Wikimedia 12 EDUARDO GERAQUE UNESPCIÊNCIA | DEZEMBRO 2018 13 EDUARDO GERAQUE DEZEMBRO 2018 | UNESPCIÊNCIA

Exuberância da A Mata Atlântica - unespciencia.com.br · a menor perda florestal desde os anos 1980, ... Entre 2015 e 2016, por exemplo, ... Enquanto em 2017 caíram 12,6 mil hectares,

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EcologiaEcologia

A exuberante biodiversidade da Mata Atlân-tica está ainda mais escancarada após

um trabalho inédito de um grande grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Os cientistas resolveram fazer uma força tarefa para mapear, com base na literatura e até em trabalhos ainda não publicados ou pouco co-nhecidos, a biodiversidade de vários grupos animais que vivem em uma das cinco áreas mais biodiversas do planeta.

Como resultado, a região agora tem um con-junto com milhares de dados organizados em grandes arquivos totalmente abertos para a comunidade científica e para os tomadores de decisão em geral. Apesar das modificações que o bioma sofreu, os 12% de floresta atlântica original que ainda existe no Brasil, de um total de 150 milhões de hectares que havia antes da colonização portuguesa, é um manancial de

vida e de relações ecológicas que precisam ser muito melhor conhecido pelos pesquisadores.

“A Mata Atlântica tem sido historicamente super bem estudada, mas seus dados acabavam ficando dispersos na literatura científica. Mes-mo em documentos não publicados”, afirma Milton Cezar Ribeiro, professor do Departa-mento de Ecologia da Unesp em Rio Claro, um dos vários autores da iniciativa de compilar os dados sobre a Mata Atlântica. “Agora, o bioma virou uma referência de como a comunidade científica e as instituições de pesquisa podem mudar a filosofia de uso e acesso de dados. Este processo nos coloca na liderança do contexto ‘Open-Mind + Open Data = Open Science’”, diz o ecólogo, que organizou a iniciativa ao la-do do também ecólogo Mauro Galetti, outro pesquisador da Unesp de Rio Claro.

Os artigos científicos que apresentam os da-

dos para a comunidade mundial, os chamados data-papers, foram publicados ao longo do ano na revista Ecology. No total, o trabalho nome-ado de “Atlantic Series”, em inglês, apresenta dez artigos científicos que reúnem dados de vários grupos de animais que vivem na Mata Atlântica. Desde os primatas e outros mamí-feros até os anfíbios e as borboletas.

“Apesar de todas as modificações [que o bio-ma sofreu], os data-papers têm mostrado que a Mata Atlântica mantém uma biodiversidade ímpar. Estes dados abrem novas perspectivas para se entender como as espécies e os pro-cessos ecológicos têm se mantido ao longo do espaço e do tempo”, diz Ribeiro.

No caso dos primatas, um dos grupos ani-mais mais bem estudados, entre outros motivos por causa de sua aproximação evolutiva com os seres humanos, a força tarefa organizou os dados de 5.472 pontos georreferenciados onde

os primatas já foram identificados. Este número abrange a ocorrência de 26 espécies nativas e 1 introduzida. A floresta atlântica da América do Sul tem exatamente 26 espécies de prima-tas, sendo 19 delas endêmicas. O conjunto de dados mapeados pelo grupo de estudo inclui 700 comunidades de primatas, espalhadas, além do Brasil, pelo Paraguai e pela Argenti-na, onde o bioma também existe. Os registros englobam estudos feitos entre 1815 e 2017. Por isso, algumas comunidades plotadas no mapa podem não existir mais.

Em termos globais, as estimativas dos pes-quisadores indicam que 55% das 496 espécies de primatas do mundo são ameaçadas de ex-tinção. E 75% tiveram algum grau de declínio populacional. A Mata Atlântica, e o Brasil, é o bioma que mais tem diversidade de primatas no mundo. A perda de floresta é a maior ame-

INICIATIVA DE ECÓLOGOS DA UNESP EM RIO CLARO VIRA REFERÊNCIA PARA COMUNIDADE CIÊNTÍFICA E APROFUNDA ESTUDO DO BIOMA

Exuberância da Mata Atlântica ganha bancos de dados abertos

OS ARTIGOS CIENTÍFICOS qUE APRESENTAM OS DADOS PARA A COMUNIDADE MUNDIAL, OS ChAMADOS DATA-PAPERS, FORAM PUBLICADOS AO LONGO DO ANO NA REVISTA ECOLOGy

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‘zooGEoQUÍMiCA’

Os animais podem mediar o sequestro líquido de carbono pelas plantas (produtividade primária líquida, NPP), alterando a absorção de CO

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nos ecossistemas (setas pretas e setas vermelhas). O pastoreio de herbívoros e a navegação nas árvores podem alterar a distribuição espacial da biomassa das plantas. Os predadores podem modificar os impactos dos herbívoros via predação e comportamento de predadores-evitação. O pisoteio animal compacta os solos e altera a temperatura do solo, alterando a quantidade de radiação solar que chega às superfícies do solo (setas amarelas). Os animais também alteram a qualidade química da matéria orgânica que entra na poça do solo (setas laranja).

FAUnA sAUdávEl AjUdA A CoMbAtEr As MUdAnçAs CliMátiCAs

Tecnologias modernas de sensoria-mento remoto e conjuntos de espé-cies saudáveis em seus ambientes, desde as savanas até as florestas tro-picais. Segundo um grupo interna-cional de pesquisadores, entre eles o cientista brasileiro Mauro Galetti, da Unesp em Rio Claro, esta pode ser uma receita que vai ajudar na mitiga-

ção das mudanças climáticas globais. Os cientistas, que publicaram os seus resultados na revista Science, conse-guiram medir a importância que os animais selvagens têm na natureza em termos de absorção, emissão ou transporte de carbono.

O carbono, apesar de ser um ele-mento natural, é o grande vilão do século 21. A maior emissão de dióxido de carbono na atmosfera, por causa principalmente das atividades huma-nas, estão aumentando as tempe-

raturas médias do planeta, segundo milhares de estudos internacionais publicados na última década. Por isso, entender todos os processos que en-volvem o carbono na atmosfera passa a ser vital para que políticas públicas de mitigação ao aquecimento global planetário possam surtir efeito.

Os dados gerados pelo time cientí-fico liderado por Oswald J. Schmitz, da yale School of Forestry and Environ-mental Studies, mostrou que a pre-sença dos animais em determinados

ambientes naturais pode aumentar ou diminuir as taxas dos processos biogeo-químicos entre 15% a 250%, ou até mais.

“Algum de nós estiveram dizendo por um longo período de tempo que não é apenas a abundância dos animais que importa. Mas o que estes animais fazem também é muito importante”, afirma Schmitz, professor de Ecologia em yale. “Nós, agora, finalmente, che-gamos ao ponto em que existem fortes evidências para embasar estas ideias”, diz o pesquisador.

Análises experimentais e feitas por meio de observação no campo mostra-ram que alterações na abundância dos animais pode causar grandes mudan-ças na capacidade dos ecossistemas no armazenamento ou troca de carbono. Em alguns casos, estas mudanças, em um mesmo ecossistema, faz com que este ambiente mude seu status. Em vez de ser uma fonte de carbono para a atmosfera, quando a população animal não é abundante, ele passa a ser uma região que fixa o carbono, quando os

animais são abundantes.Nas florestas tropicais, casos

da Mata Atlântica ou da Floresta Amazônica, a conservação de grandes mamíferos mantém vi-gorosos os serviços ambientais destes ecossistemas, incluindo a dispersão de sementes pelos animais frutíferos e o suporte da produção de plantas pelos her-bívoros, o que propicia a fixação de carbono. Um dos estudos que alimentou a pesquisa mos-trou que o incremento de 3,5 vezes de espécies de mamíferos em uma região fez a retenção de carbono aumentar em até 400% na mesma região.

A pesquisa publicada na Science levanta um desdobra-mento importante em termos da presença humana nos am-bientes naturais da Terra. Por meio da caça, da sobrepesca, da introdução de espécies não nativas e da destruição das flo-restas, o homem está definitiva-mente reduzindo o tamanho das populações selvagens.

“Se quisermos entender co-mo é o nosso impacto sobre as populações animais e a influên-cia destes processos sobre os ecossistemas e os fluxos do car-bono, precisamos de ferramen-tas que nos levem a entender as últimas consequências do papel que os animais têm nos ciclos biogeoquímicos”, afirma Chris Wilmers, professor associado de Ecologia e Mudanças Climáticas na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz.

De acordo com os cientis-tas que participaram do estudo, os resultados também indicam que os tomadores de decisão precisam considerar nas polí-ticas públicas o uso de proces-sos ecológicos na recaptura e armazenamento de carbono atmosférico. “Nossa mensagem é que este processo pode ser um ganha ganha. Em termos de conservação da biodiversidade e armazenamento de carbono”, afirma Schmitz.

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EDUARDO GERAqUE

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aça para os animais deste grupo. Mas a caça, os atropelamentos e as doenças infecciosas, como a febre amarela, também prejudicam as comunidades.

O modelo de estudo e de metodologia usados para os primatas também foi repetido para as borboletas, os pássaros e os morcegos. E até para vários grupos de outros mamíferos, sejam eles de pequeno ou médio porte. Em alguns casos, tanto o tamanho quanto o peso do ani-mal entraram nos registros de dados. Há um artigo que descreve o conjunto de informações compiladas de relações entre espécies frugí-voras e plantas.

“Estes banco de dados também são uma for-ma de retorno para a sociedade, que investiu muito para que ocorressem as coletas de dados e os monitoramentos de espécie. Agora, todos têm a oportunidade de ter acesso a informações que antes eram pouco acessíveis”, diz Ribeiro.

Todos os dados organizados agora nos bancos de dados abertos foram coletados ao longo de décadas em que a Mata Atlântica, até por es-tar principalmente no litoral brasileiro, região de grande ocupação humana, sofreu bastante pressão. Um processo complexo, que envolve várias causas, mas que pode ter uma história diferente nas próximas décadas.

Em 2017, os dados de destruição da flo-resta registrados pelo mapeamento anual da ONG SOS Mata Atlântica e do Inpe (Institu-to Nacional de Pesquisas Espaciais) mostrou a menor perda florestal desde os anos 1980, quando começou o acompanhamento siste-mático das ameaças ao bioma atlântico. De acordo com relatório da ONG, em dois ter-ços dos estados brasileiros onde existe Mata Atlântica, o desmatamento anual caiu, contan-do as quatro unidades da federação que mais desmataram (Bahia, Minas Gerais, Paraná e

Piauí). São Paulo, e outro seis estados, atingi-ram o chamado nível de desmatamento zero, com perda de área florestal igual ou inferior a cem hectares.

Apesar de serem números positivos, os téc-nicos do terceiro setor evitam dizer que existe uma tendência de queda consolidada do des-matamento da Mata Atlântica. A série histó-rica dos últimos dez anos mostra muita osci-lação. Entre 2015 e 2016, por exemplo, a taxa foi quase o triplo do período imediatamente anterior. Enquanto em 2017 caíram 12,6 mil hectares, no ano anterior haviam desaparecido do mapa 29 mil hectares. Taxa que era 57,7% maior do que a do ano anterior.

Entre 2015 e 2016, o ciclo de destruição da floresta atlântica, que começou em 1500 por causa dos europeus, voltou a ficar ativo na Bahia. Devido ao desmatamento no sul do Estado, a Bahia foi a campeã nacional de

desmatamento da vegetação atlântica. No es-tado, caíram 12.288 hectares de vegetação, um crescimento de 207% em relação à análise an-terior, entre 2014 e 2015. Três cidades do sul da Bahia, Santa Cruz de Cabrália, Belmonte e Porto Seguro, foram responsáveis por metade do valor calculado.

No bioma que se estende, no Brasil, do Rio Grande do Sul ao Piauí, vivem 72% da popula-ção brasileira. A queda da floresta atlântica no sul da Bahia impressionou os especialistas da SOS Mata Atlântica, que classificaram o resul-tado, o pior em dez anos, como “muito triste”.

A retomada da destruição em municípios baianos, curiosamente, remete ao ciclo histó-rico dos tempos coloniais. Fatores geográficos e socioambientais do desmate não mudaram desde os tempos da chegada dos portugueses.

A primeira missa em solo brasileiro ocorreu

na região da atual Santa Cruz de Cabrália. Lá, os índios viviam em meio a uma exube-rante floresta. O pau-brasil, logo, virou valiosa matéria-prima e passou a decorar os edifícios civis e religiosos de Portugal. As terras onde a madeira existia se transformou em palcos de batalhas.

Entre 1500 e 1700, as estimativas dos cien-tistas mostram que mais de 460 mil árvores da espécie que dá nome ao Brasil acabaram ceifadas, do que hoje se conhece como Ma-ta Atlântica.

O desmatamento colonial, que praticamente extinguiu o pau-brasil, envolveu europeus, que faziam a exportação da madeira e os corantes, aos índios, autores do escambo. Mais tarde, os escravos também entraram no processo. Todos os grupos, seja por pressão ou domi-nação, tiveram participação no aniquilamento do pau-brasil.

TODOS OS DADOS ORGANIzADOS AGORA NOS BANCOS DE DADOS ABERTOS FORAM COLETADOS AO LONGO DE DéCADAS EM qUE A MATA ATLâNTICA SOFREU BASTANTE PRESSãO

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