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Direito e Diversidade

Fabíola Sucasas Negrão Covas Direito e Diversidade · AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE - VIOLAÇÃO DOS ARTS. 144, 237, II E VII - DA CONSTITUIÇÃO DO ... para a prevenção da homofobia,

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  • A proibio das abordagens de gnero nas escolaFabola Sucasas Negro Covas

    Gnero, teoria de gnero, ideologia de gnero e expresses afins tm mobilizado uma srie de iniciativas contrrias incluso da temtica nas escolas, na crena de que so ameaas aos valores morais tradicionais e famlia brasileira.

    Estudiosos e pesquisadores questionam tais movimentos, apontando haver uma confuso entre as discusses de gnero com o que intitulam ideologia, causando pnico moral e marginalizando os grupos mais vulnerveis, diretamente afetos a tais estudos, quais sejam, os movimentos feministas e LGTBI+.

    No campo do Poder Judicirio, questionam-se leis estaduais e municipais que probem as referidas expresses nas abordagens em ambiente escolar.

    A Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n 461, referente Lei n 3.468/2015, do Municpio de Paranagu (PR), proposta pelo Ministrio Pblico Federal no incio de junho de 2017, conta com liminar deferida pelo Ministro Roberto Barroso, avanando na inconstitucionalidade material e suspendendo os efeitos da lei referente ao trecho que veda o ensino sobre gnero e orientao sexual.

    Na Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n 5.537/AL e que contempla a 5.580/AL -, contra a Lei 7.800/2016, do Estado de Alagoas, que cria no sistema educacional de ensino o programa Escola Livre, o Ministro Roberto Barroso tambm concedeu liminar, suspendendo integralmente a lei.

    Outras ADPFs tramitam contra normas anlogas: 467, contra a Lei 3.491/2015, do Municpio de Ipatinga (MG), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Gilmar Mendes; 466, contra a Lei 4.268/2015, do Municpio de Tubaro (SC), que aguarda deciso da liminar pela Ministra Rosa Weber; 465, contra a Lei 2.243/2016, do Municpio de Palmas (TO), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Barroso; e 460, contra a Lei 6.496/2015, de Cascavel (PR), que aguarda deciso liminar do Ministro Fux.

    A ADPF 462, contra a Lei Complementar 994/2015, do Municpio de Blumenau (SC), aguarda deciso liminar do Ministro Fachin; nela, a Advocacia Geral da Unio manifestou-se favoravelmente liminar, por compreender que, alm da afronta competncia da Unio para legislar sobre a matria, cuida-se de lei inconstitucional, colocando em risco princpios constitucionais como o pluralismo de ideias e concepes pedaggicas, a igualdade de considerao e respeito e a proteo integral.

    A ADPF 457, contra a Lei 1.516, do Municpio de Novo Gama (GO), teve deciso lanada pelo Ministro Alexandre de Moraes negando seguimento arguio por vcio de iniciativa, com base no art. 4, caput e 1, da Lei 9.882/99 e no artigo 21, 1, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o ato impugnado deve ser objeto de controle pelo Tribunal de Justia Estadual, por meio de ajuizamento de ao direta de inconstitucionalidade, eis que a ADPF, pautada pelo princpio da subsidiariedade, seria vivel apenas aps o esgotamento de todas as vias possveis para sanar a leso oua ameaa de leso a preceitos fundamentais ou a verificao, ab initio, de sua inutilidade para a preservao do preceito.

    A ADIN n 2137274-79.2017.8.26.0000, proposta pela Procuradoria Geral de Justia de So Paulo, e que diz respeito legislao do Municpio de So Bernardo do Campo, que vedava veiculao de contedo

    pedaggico relacionado ideologia de gnero, foi julgada procedente. Decidiu o Tribunal de Justia de So Paulo que o municpio extrapolou a competncia privativa da Unio para legislar sobre o assunto, ofendendo o princpio federativo.

    A Emenda Lei Orgnica de Jundia n 73, de 26 de setembro de 2017, alvo da ADIN n2216281-23.2017.8.26.0000, na qual a liminar deferida suspendeu seus efeitos. No incio de fevereiro de 2018, a Procuradoria Geral de Justia manifestou-se favoravelmente procedncia da ao sob o argumento da ofensa ao Princpio da Separao de Poderes, a reserva do Poder Executivo, a repartio constitucional de competncias e os princpios constitucionais relativos educao. E ainda referiudecises j lanadas em casos sobre a mesma temtica, pelo TJSP, como esta da ementa:

    AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N 8.458/2011, DO MUNICPIO DE SO JOS DOS CAMPOS, QUE PROBE A DIVULGAO OU EXIBIO DE QUALQUER TIPO DE MATERIAL QUE POSSA INDUZIR A CRIANA AO COMPORTAMENTO, OPO OU ORIENTAO HOMOAFETIVA - USURPAO DE COMPETNCIA PRIVATIVA DA UNIO - AUSNCIA DE INTERESSE LOCAL - SUBTRAO DA DISCUSSO DA HOMOFOBIA DO MBITO ESCOLAR - CLUSULA ABERTA - OFENSA AO PRINCPIO DA RAZOABILIDADE - VIOLAO DOS ARTS. 144, 237, II E VII - DA CONSTITUIO DO ESTADO DE SO PAULO - AO PROCEDENTE. 1. Ainda que inegavelmente seja interesse tambm do Municpio o de zelar pela boa educao de seus cidados, no h, no que respeita educao para a preveno da homofobia, para o respeito e tolerncia da diversidade sexual, e para a discusso sobre a liberdade de orientao sexual, qualquer caractere de preponderncia de interesse em seu favor. Inexistindo qualquer peculiaridade no Municpio de So Jos dos Campos envolvendo o tema, tem seque ele transcende o interesse local, do que deriva a usurpao de competncia legislativa. 2. O debate acerca da homofobia e a educao para o respeito e tolerncia do indivduo homossexual esto calcados na prpria Constituio do Estado de So Paulo. As tentativas de se subtrair do mbito escolar a discusso desta questo social viola o art. 237, II e VII, da Constituio do Estado de So Paulo, posto que a educao dever conjunto do Estado e da famlia, e no apenas desta. 3. Ainda que se entendesse como legtima a ratio eleita pelo Legislativo Municipal, qual seja, impedir a veiculao de material que estimulasse determinado comportamento, a lei no traz qualquer delineamento do que seria "material que possa induzir a criana ao homossexualismo". Esse defeito, longe de ocasionar a ineficcia da norma, termina por ampliar os poderes das autoridades municipais, as quais estariam ento autorizadas a selecionar os livros, informes, vdeos, contedos programticos a serem ministrados nas escolas municipais, mediante apreciao subjetiva e aberta quanto ao suposto potencial de "induzir ao homossexualismo (sic)". Patente, portanto, a ofensa ao princpio da razoabilidade. 4. Ao procedente. (ADIN n 0296371- 62.2011.8.26.0000, julgamento no dia 1 de agosto de 2012)

    Estas iniciativas de lei surgiram quando da tramitao do Plano Nacional de Educao (PNE), aprovado pela Lei 13.005/2014 e que dispe sobre as diretrizes e metas da educao at 2024. Gnero e orientao sexual foram suprimidas do texto do artigo 2, inciso III, cuja redao final aprovada foi a seguinte:

    Art. 2. So diretrizes do PNE:...II - superao das desigualdades educacionais, com nfase na promoo da cidadania e na erradicao de todas as formas de discriminao;...

    Segundo consta, as bancadas religiosas teriam pressionado a supresso das expresses gnero e

    orientao sexual, sob a alegao de que valorizavam uma ideologia de gnero, deturpando os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de famlia1. O PNE, por sua vez, ao prever que os Estados e Municpios implementassem seus prprios planos at junho de 2015, teria dado vazo, assim, s proibies ora questionadas (art. 8.).

    Pende, porm, de julgamento no Supremo Tribunal Federal, a Ao Direta de Inconstitucionalidade n 5.668, proposta em face da Cmara dos Deputados e do Senado Federal, visando declarao de interpretao conforme a Constituio no que diz respeito ao Plano Nacional de Educao, art. 2, III e, s metas 2.4, 2.5, 3.13, 4.9, 4.12, 7.23, 8.2, 9, 10.1, 10.6, 11.13, 12.5, 12.9, 13.4, 14.5, 16 e 16.2, visando obrigar as escolas pblicas e particulares a coibirem tambm as discriminaes por gnero, por identidade de gnero e por orientao sexual e respeito s identidades das crianas LGBTI+.

    Segundo os defensores das referidas legislaes proibitivas das palavras gnero e orientao sexual nos planos de educao, a ideologia de gnero busca a destruio da famlia como instituio para perpetuao de uma ideologia neomarxista de poder, busca esvaziar o conceito jurdico de homem e mulher, cuida-se de uma doutrinao a uma educao bissexual, e promove o estabelecimento de um caos, uma viso totalitarista de mundo. Referem ainda que no h como eliminar as diferenas biolgicas existentes entre homens e mulheres e que a cautela do legislador municipal diz respeito educao de crianas que frequentam creches, pr-escolas e o ensino fundamental, de idades variveis entre meses a 14 anos.Sobre os argumentos de mrito postos nas Aes de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), o Ministrio Pblico Federal ressalta a impropriedade da expresso ideologia de gnero atribuda aos estudos ou teoria de gnero, considerando-a uma palavra-disfarce utilizada para afastar e tolher a temtica no campo dos direitos e do processo educativo:

    ...No epistemologicamente aceitvel falar em ideologia de gnero pela simples razo de que gneros no possuem ideologia. A expresso tenta associar o termo ideologia, com carter depreciativo, ao de gnero, como se gneros necessariamente decorressem de mistificaes a servio de posies individuais ou polticas. Em oposio a essa impostura, a condio sexual teria natureza de verdade universal, decorrente da natureza das coisas, no sujeita a variaes e condicionantes individuais ou sociais.

    O Ncleo de Estudos de Gnero, da Universidade Federal do Paran, lanou repdio pblico sobre a nomenclatura ideologia de gnero, sob alegao de que tem sido usada para deslegitimar a rea dos estudos de gnero. Aponta que a palavra ideologia no tem definio consensual e carrega uma forte conotao negativa, falaciosa. E sustenta que as discusses de gnero dizem respeito ao estudo dos sistemas de dominao e de excluso, como so construdos e como se tornam permanentes a partir da oposio e da desigualdade entre homens e mulheres, dos modelos de masculinidade, feminilidade, sexualidade e da excluso de toda a populao LGBTI+ (transgnero, queer, ou pessoas de gnero fluido e intersexuais)2.

    No mesmo sentido, a Prof. Dra. Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina, chama a ateno para a confuso terica que se estabeleceu entre o que se entende por ideologia de gnero e as teorias de gnero. Ensina que, enquanto ideologia diz respeito a um conjunto de ideias, princpios e valores que refletem uma determinada viso de mundo, orientando uma forma de ao, sobretudo uma prtica poltica, os estudos de gnero so propostas tericas e reflexes que buscam combater a violncia contra a mulher e crianas, defendem o respeito s diferenas, diversidade e entendem que a sociedade plural e a escola deve discutir a excluso e as formas muitas de preconceito3.

    Wania Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos, da mesma forma, criticam a expresso ideologia de gnero, sob o argumento de que h uma leitura restrita e equivocada sobre o rompimento com a ideia do sexo biolgico como nico definidor das identidades sexuais, de forma essencialista e naturalizadora das diferenas entre homens e mulheres.4

    Sexo e gnero no se confundem. A palavra gnero, segundo Valeska Zanello5, surgiu durante a segunda onda do feminismo, nas dcadas de 60/70 do sculo passado, por meio das contribuies de RobertStoller, pesquisador da rea da sade: a ideia principal a de que h um aparato biolgico que diferencia homens e mulheres e o gnero diz respeito s construes sociais que advm destas diferenas. Simone de Beauvoir j sinalizara que nenhum destino biolgico, psquico, econmico define a forma que a fmea humana assume no seio da sociedade; o conjunto da civilizao que elabora esse produto intermedirio entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.6

    Shulamit Firestone explica a teoria de gnero, para quem as diferenas genitais entre os seres humanos j no importariam culturalmente; Judith Butler, que o gnero uma construo cultural; por isso no nem resultado causal do sexo, nem to aparentemente fixo como o sexo (...) homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino.7

    Homens e mulheres so fruto deste processo cultural e relacional. Zanello ressalta que assim como o tornar-se mulher fruto de processo de subjetivao interpelados por poderosos mecanismos sociais, tambm o tornar-se homem marcado por certas especificidades. Em nossa cultura, a masculinidade hegemnica se baseia em dois grandes pilares: a virilidade sexual e virilidade laborativa.8

    A palavra orientao sexual, tambm banida do PNE, compreende a atrao e o desejo sexual (paixes, fantasias) do indivduo por um outro de um gnero particular9. Os heterossexuais se atraem pelo gnero oposto; os homossexuais se atraem pelo mesmo gnero; e os bissexuais se atraem por ambos os gneros.

    Orientao sexual no se confunde com identidade de gnero, que diz respeito ao gnero pelo qual a pessoa se identifica. Patrcia Sanches bem explica que homossexualidade e a heterossexualidade esto ligadas ao desejo sexual e, portanto, tambm se diferenciam da transexualidade, que est ligada identidade de gnero. Um, ao desejo sexual por homem ou mulher; outro, ao sentir-se como homem oumulher.10

    Uma pessoa transgnero se possuir identidade de gnero diferente daquela correspondente ao seu sexo biolgico; uma pessoa cisgnero possui uma identidade de gnero correspondente ao sexo biolgico: um homem cisgnero se seu sexo e sua identidade de gnero forem masculinas, independentemente da orientao sexual que tenha, homossexual ou heterossexual.11

    A revista National Geographic Brasil, em sua edio especial de janeiro de 2017, A Revoluo do Gnero novas identidades e comportamentos mudam a cara dos jovens do sculo 21, reuniu em sua capa 15 pessoas identificadas por variadas expresses de gnero, e traz um glossrio preparado pelo Centro de Estudos de Sexualidade Humana da Universidade de Widener da Pensilvnia e pelo Centro de Educao, Expanso e servios para Lsbicas, Gays, Bissexuais e Transgneros para explicar cada uma delas. Vale o registro da sigla LGBTQ, para cujo glossrio cuida-se de acrnimo usado para se referir a pessoas lsbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgneros e queer e outros questionadores; alerta para o fato de que LGBTQ no sinnimo de no heterossexual, pois implicaria, erroneamente, em que transgnero uma orientao sexual.

    Para o mesmo glossrio, queer um termo coringa que abarca uma gama de pessoas que no heterossexual ou cisgnero. De difcil traduo transviado uma opo -, o termo, historicamente, teve uso depreciativo. Mas algumas pessoas, hoje, resgataram seu uso, com tom afirmativo. Vale aqui o registro de que um artigo do site The Gay UK, a sigla LGBT deveria ser trocada para LGBTQQICAPF2K+: L lsbica; G gay; B bissexual; T transgnero; Q queer pessoas que no seguem o modelo de heterossexualidade ou binarismo de gnero; Q questioning algum que est se questionando sobre a sexualidade; I intersex intersexual; C curious curioso; A asexual pessoas que no tm atrao sexual; A agender agnero, uma identidade caracterizada pela ausncia de gnero; A ally aliado, ouseja, um heterosexual no homofbico; P pansexual indivduo que se sente atrado por todos os gneros; P polysexual polisexual, algum que se sente atrado por pessoas de vrios gneros; F friends and family amigos e familiares; 2 two-spirit ao p da letra, dois espritos. Termo derivado de tribos indgenas norte-americanas nas quais alguns indivduos se vestiam e desempenhavam papis sociais dos dois gneros; K kink fetichista ou pessoa que pratica sexo de maneira no convencional.12

    As travestis dizem respeito a uma identidade de gnero feminina, que apesar de se vestir como mulher e fazer tratamento hormonal feminino, no tem desconforto com a genitlia; cross dresser, drag queen e drag king dizem respeito a quem ocasionalmente se veste com roupas de caractersticas do outro gnero, mas as duas ltimas para performances artsticas: o segundo, para homens que se vestem de mulheres e o outro para mulheres que se vestem de homens.

    Uma pluralidade protegida pelo direito igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade. O processo democrtico deve assegurar a todos sua participao, independentemente de sua origem, sexo, cor, ou outra forma de discriminao, seja pelo comando do art. 3, inciso IV, da Constituio Federal, quando determina que objetivo do Estado brasileiro promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao, ou quando, dentro dos objetivos do Estado brasileiro, fala-se em construir uma sociedade livre, justa e solidria13.

    Na deciso de concesso da liminar nos autos da ADPF 461/PR, o Ministro Barroso conclui que esta diversidade diz respeito a um fato da vida, um dado presente na sociedade e que, portanto, alunos tero que lidar; em sendo assim, vedar polticas de ensino que tratem de gnero e orientao sexual ofende a Constituio Federal de 1988 que, em seus artigos 205 e 214, cuida de uma educao voltada promoo do pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitao para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanstico do pas; ofende tambm normas internacionais ratificadas pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de So Salvador Conveno Americana sobre Direitos Humanos, que reconhecem que a educao deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, capacitao para a vida em sociedade e tolerncia e, portanto, fortalecer o pluralismo ideolgico e as liberdades fundamentais.

    Segundo Luiz Alberto David Arajo14, o convvio com a diversidade no s o direito da minoria ou do grupo vulnervel. O direito diversidade direito da maioria. Direito de nossos filhos de terem uma escola mais plural, onde o ensino possa fluir um dcimo mais devagar, porque um colega tem dificuldade. Ele no foi deixado para trs. Ele foi acolhido pelo grupo. E prossegue, sobre a importncia da escola inclusiva, como aquela que inclui, que olha o diferente, que permite que todos convivam bem realmente, dando oportunidades para que todos possam dar e receber afeto e ateno.

    No mbito do ordenamento jurdico que diz respeito ao enfrentamento da violncia contra as mulheres, a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres expressa no sentido de que os Estados-Partes devero adotar medidas apropriadas para eliminar a discriminao contra a mulher na esfera da educao e em particular para assegurar, em condies de igualdade entre homens e mulheres, dentre outras, a eliminao de todo conceito estereotipado dos papis masculino e feminino em todos os nveis e em todas as formas de ensino.

    Tambm a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher - Belm do Par - que inclusive traz a palavra gnero como um componente do conceito de violncia contra a mulher - impe a obrigao de os Estados Partes adotarem medidas especficas e programas destinados a modificar os padres sociais e culturais de conduta de homens a todos os nveis do processo educacional,

    a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras prticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gneros ou nos papis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violncia contra a mulher.

    A Lei 11.340/2006 Lei Maria da Penha tambm expressa neste sentido, quando, em seu artigo 8prev que a poltica pblica que visa coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher deve se pautar por algumas diretrizes, dentre elas a promoo de programas educacionais que disseminem valores ticos de irrestrito respeito dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gnero e de raa ou etnia; e o destaque, nos currculos escolares de todos os nveis de ensino, para os contedos relativos aos direitos humanos, equidade de gnero e de raa ou etnia e ao problema da violncia domstica e familiar contra a mulher.

    Se meninos e meninas so socializados a partir do que foi convencionado como comportamentos aceitos e tipificados para o sexo feminino e masculino, e se as escolas fazem parte deste processo, Gigliola Mendes, Lucrcia Silva e Marcos Francisco de Souza, bem colocam a importncia da insero das questes de gnero neste espao, pois o gnero pode ajudar a compreender como so construdas as relaes entre homens e mulheres na sociedade, mas tambm pode ser um meio importante para se desvelarem os significados que o fenmeno da(s) violncia(s) sofrida(s) pelas mulheres tem assumido na sociedade brasileira, para alm dos mitos e dos preconceitos construdos sobre ele.15

    Deise Azevedo Longaray, ao falar sobre a importncia da escola no combate ao preconceito, atenta para o fato de que a escola um espao de aprendizagens, de conhecimentos, de interaes, mas, para muitas pessoas, ela tem se tornado local de recusa, de excluso, de rejeio, de tristeza, porque nela muitas subjetividades so marginalizadas, reprimidas e ignoradas, tais como as homossexualidades, as bissexualidades, e principalmente as travestilidades e as transexualidades.16

    Junqueira atenta para os poderosos mecanismos de silenciamento e de dominao simblica que percorrem o cotidiano escolar de jovens e adultos LGBTI+, por meio de tratamentos preconceituosos, medidas discriminatrias, ofensas, constrangimentos, ameaas e agresses fsicas ou verbais, uma verdadeira pedagogia do insulto, constituda de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuaes e expresses desqualificantes.17 Aponta para o quadro das normas de gnero da heteronormatividade, a construo do modelo hegemnico de masculinidade, como fontes inesgotveis de sofrimento. E arremata:

    O preconceito, a discriminao e a violncia que, na escola, atingem gays, lsbicas e bissexuais e lhes restringem direitos bsicos de cidadania, se agravam em relao a travestis e a transexuais. Essas pessoas, ao construrem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, no podem passar incgnitas. Por isso, no raro, ficam sujeitas s piores formas de desprezo, abuso e violncia. No por acaso, diversas pesquisas tm revelado que as travestis constituem a parcela com maiores dificuldades de permanncia na escola de insero no mercado de trabalho em

    funo do preconceito e da discriminao sistemtica a que esto submetidas (PARKER, 2000; PERES, 2004). Tais preconceitos e discriminaes incidem diretamente na constituio de seus perfis sociais, educacionais e econmicos, os quais, por sua vez, sero usados como elementos legitimadores de ulteriores discriminaes e violncias contra elas. A sua excluso da escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.

    A educao tambm instrumento de transformao cultural e de promoo do direito igualdade, concluiu o Ministro Barroso em sua liminar, atentando para o espao da escola que eventualmente alguns jovens so identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padro cultural naturalizado identificado como o comportamento normal, em que a conduta dele divergente rotulada como comportamento anormal e na qual se naturaliza o estigma. E prossegue lembrando que o mero silncio da escola nessa matria, a no identificao do preconceito, a omisso em combater a ridicularizao das identidades de gnero e orientaes sexuais, ou em ensinar o respeito diversidade, replicadora da discriminao e contribui para a consolidao da violncia s crianas homo e trans.

    Sobre a importncia da preveno da violncia domstica e familiar contra a mulher, Wnia Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos consideram que para a construo de uma sociedade livre da violncia de gnero, imprescindvel que os seus membros reconheam a multiplicidade das identidades e internalizem a alteridade por meio do dilogo aberto e franco acerca dos processos sociais de construo e de reproduo das desigualdades de gnero, raa e etnia.18

    Sugere Deise Longaray as possibilidades de abordagens sobre diversidade sexual e de gnero na escola: apresentar e debater sobre as diferentes configuraes familiares, discutir diferentes assuntos relacionados aos corpos, gneros e sexualidades, problematizar os marcadores sociais atribudos s identidades sexuais e de gnero desconstruindo as representaes que reproduzem o preconceito, discutir a importncia do nome social nos registros escolares e acadmicos e tambm a questo do uso do banheiro para travestis e transexuais, discutir o respeito que todos/as devemos ter sobre a pluralidade sexual, enfatizando a importncia desse no ser confundido com tolerncia, apresentar leis que amparam cidados LGBTI+, problematizando direitos humanos tais como segurana, sade, tratamento e atendimento igualitrios, dentre outros.19

    Vale trazer baila algumas experincias prticas a respeito da discusso de gnero nas escolas. Um exemplo o reconhecimento da identidade de gnero de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino pblico do Estado de So Paulo com o direito ao tratamento por meio do nome social.20 Em 30/09/2017 a rede estadual de ensino de So Paulo contabilizou 483 registros de indicao de estudantes travestis, mulheres transexuais e homens trans com uso de nome social. No mesmo perodo do ano, anterior eram 358 estudantes matriculados com nome social. A maioria das/os estudantes trans esto matriculados na Educao de Jovens e Adultos, que por sua vez, mostra o retorno aos processos de escolarizao formal de sujeitos que tiveram suas trajetrias escolares interrompidas.

    A rede estadual, desde 1996, desenvolve o projeto Preveno tambm se ensina, que oferece aos educadores uma srie de publicaes, DVDs, CDs voltados discusso de gnero complementares ao currculo: entre preconceitos contra mulheres e populao LGBTI+, manuais de preveno de doenas sexualmente transmissveis, diversidade tnico raciais, de gnero e a diversidade sexual do ponto de vista da educao.

    Na Espanha, em Sevilha, o documento Educar em Igualdad, em seu caderno de preveno da violncia de gnero voltado para o professorado, problematiza a desigualdade de gnero como causa da violncia de gnero, provoca reflexes sobre os esteretipos construdos para homens e mulheres nos campos das emoes, personalidade e profisses, e coloca como objetivo de trabalho a facilitao do conhecimento para identificao das diferentes manifestaes de violncia de gnero e a sensibilizao dos estudantes sobre a gravidade e as consequncias negativas que a violncia de gnero exerce sobre as pessoas atingidas por ela.

    A ONU Mulheres Brasil lanou a iniciativa O Valente no Violento, promovida dentro da campanha UNA-SE Pelo Fim da Violncia Contra as Mulheres, com o objetivo de estimular a mudana de atitudes e comportamentos dos homens, enfatizando a responsabilidade que devem assumir na eliminao da violncia contra as mulheres e meninas.

    O Ministrio Pblico de So Paulo e a Secretaria de Estado de Educao de So Paulo, contando com a parceria da Midas Estdios vem realizando, desde 2016, o projeto Vozes pela Igualdade de Gnero, com a finalidade de fomentar a discusso sobre o enfrentamento e o debate relacionado s desigualdades de gnero, em especial a violncia contra as mulheres e a populao LGBTI+. A iniciativa prope para os alunos e alunas da rede estadual de ensino a participao em um concurso musical, cujos temas como 10 anos da Lei Maria da Penha, Respeito s Diferenas e Em todos os lugares, em p de igualdade so o impulso para a criao das canes. O concurso tambm promove uma reflexo pblica ao instar o voto para a eleio das canes inscritas e gravao em um estdio de renome, instrumentos estratgicos para a perpetuao do debate.20

    Cabe aqui o final registro de um apanhado de algumas das frases das dez msicas finalistas da segunda edio do Vozes pela Igualdade de Gnero, que bem revela o que os/as alunos/as aprenderam com as reflexes propostas:

    Na luta por uma sociedade igualitriaTemos muitos que ferem!Onde vai parar todo esse preconceito, onde vai levar?Que indignao!Nesse mundo to inversoJulgam a sua forma de andar, mas o que est por dentro no pensam em perguntarAh, o respeito! Somos parte da terra!Seja quem for, seja onde for, ns somos mais do que a cor

    Somos irmos, imagem e semelhana de Deus, humanos...Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gnero, o que for...Pra acabar com a discriminao, preciso de vocs irmos!A sua atitude pode transformar algumAbram os olhos, saiam do escuroDeixa o corao escolher, Vamos pelos nossos direitos lutar, erguemos nossa bandeiraVamos juntos na militncia, em uma luta de importncia, com direito de existir.

    Aguarda-se a deciso que se dar pelo Supremo Tribunal Federal. A prtica revela, porm, que abordar gnero nas escolas no nenhuma ameaa, mas sim um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitria.

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    Gnero, teoria de gnero, ideologia de gnero e expresses afins tm mobilizado uma srie de iniciativas contrrias incluso da temtica nas escolas, na crena de que so ameaas aos valores morais tradicionais e famlia brasileira.

    Estudiosos e pesquisadores questionam tais movimentos, apontando haver uma confuso entre as discusses de gnero com o que intitulam ideologia, causando pnico moral e marginalizando os grupos mais vulnerveis, diretamente afetos a tais estudos, quais sejam, os movimentos feministas e LGTBI+.

    No campo do Poder Judicirio, questionam-se leis estaduais e municipais que probem as referidas expresses nas abordagens em ambiente escolar.

    A Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n 461, referente Lei n 3.468/2015, do Municpio de Paranagu (PR), proposta pelo Ministrio Pblico Federal no incio de junho de 2017, conta com liminar deferida pelo Ministro Roberto Barroso, avanando na inconstitucionalidade material e suspendendo os efeitos da lei referente ao trecho que veda o ensino sobre gnero e orientao sexual.

    Na Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n 5.537/AL e que contempla a 5.580/AL -, contra a Lei 7.800/2016, do Estado de Alagoas, que cria no sistema educacional de ensino o programa Escola Livre, o Ministro Roberto Barroso tambm concedeu liminar, suspendendo integralmente a lei.

    Outras ADPFs tramitam contra normas anlogas: 467, contra a Lei 3.491/2015, do Municpio de Ipatinga (MG), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Gilmar Mendes; 466, contra a Lei 4.268/2015, do Municpio de Tubaro (SC), que aguarda deciso da liminar pela Ministra Rosa Weber; 465, contra a Lei 2.243/2016, do Municpio de Palmas (TO), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Barroso; e 460, contra a Lei 6.496/2015, de Cascavel (PR), que aguarda deciso liminar do Ministro Fux.

    A ADPF 462, contra a Lei Complementar 994/2015, do Municpio de Blumenau (SC), aguarda deciso liminar do Ministro Fachin; nela, a Advocacia Geral da Unio manifestou-se favoravelmente liminar, por compreender que, alm da afronta competncia da Unio para legislar sobre a matria, cuida-se de lei inconstitucional, colocando em risco princpios constitucionais como o pluralismo de ideias e concepes pedaggicas, a igualdade de considerao e respeito e a proteo integral.

    A ADPF 457, contra a Lei 1.516, do Municpio de Novo Gama (GO), teve deciso lanada pelo Ministro Alexandre de Moraes negando seguimento arguio por vcio de iniciativa, com base no art. 4, caput e 1, da Lei 9.882/99 e no artigo 21, 1, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o ato impugnado deve ser objeto de controle pelo Tribunal de Justia Estadual, por meio de ajuizamento de ao direta de inconstitucionalidade, eis que a ADPF, pautada pelo princpio da subsidiariedade, seria vivel apenas aps o esgotamento de todas as vias possveis para sanar a leso oua ameaa de leso a preceitos fundamentais ou a verificao, ab initio, de sua inutilidade para a preservao do preceito.

    A ADIN n 2137274-79.2017.8.26.0000, proposta pela Procuradoria Geral de Justia de So Paulo, e que diz respeito legislao do Municpio de So Bernardo do Campo, que vedava veiculao de contedo

    pedaggico relacionado ideologia de gnero, foi julgada procedente. Decidiu o Tribunal de Justia de So Paulo que o municpio extrapolou a competncia privativa da Unio para legislar sobre o assunto, ofendendo o princpio federativo.

    A Emenda Lei Orgnica de Jundia n 73, de 26 de setembro de 2017, alvo da ADIN n2216281-23.2017.8.26.0000, na qual a liminar deferida suspendeu seus efeitos. No incio de fevereiro de 2018, a Procuradoria Geral de Justia manifestou-se favoravelmente procedncia da ao sob o argumento da ofensa ao Princpio da Separao de Poderes, a reserva do Poder Executivo, a repartio constitucional de competncias e os princpios constitucionais relativos educao. E ainda referiudecises j lanadas em casos sobre a mesma temtica, pelo TJSP, como esta da ementa:

    AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N 8.458/2011, DO MUNICPIO DE SO JOS DOS CAMPOS, QUE PROBE A DIVULGAO OU EXIBIO DE QUALQUER TIPO DE MATERIAL QUE POSSA INDUZIR A CRIANA AO COMPORTAMENTO, OPO OU ORIENTAO HOMOAFETIVA - USURPAO DE COMPETNCIA PRIVATIVA DA UNIO - AUSNCIA DE INTERESSE LOCAL - SUBTRAO DA DISCUSSO DA HOMOFOBIA DO MBITO ESCOLAR - CLUSULA ABERTA - OFENSA AO PRINCPIO DA RAZOABILIDADE - VIOLAO DOS ARTS. 144, 237, II E VII - DA CONSTITUIO DO ESTADO DE SO PAULO - AO PROCEDENTE. 1. Ainda que inegavelmente seja interesse tambm do Municpio o de zelar pela boa educao de seus cidados, no h, no que respeita educao para a preveno da homofobia, para o respeito e tolerncia da diversidade sexual, e para a discusso sobre a liberdade de orientao sexual, qualquer caractere de preponderncia de interesse em seu favor. Inexistindo qualquer peculiaridade no Municpio de So Jos dos Campos envolvendo o tema, tem seque ele transcende o interesse local, do que deriva a usurpao de competncia legislativa. 2. O debate acerca da homofobia e a educao para o respeito e tolerncia do indivduo homossexual esto calcados na prpria Constituio do Estado de So Paulo. As tentativas de se subtrair do mbito escolar a discusso desta questo social viola o art. 237, II e VII, da Constituio do Estado de So Paulo, posto que a educao dever conjunto do Estado e da famlia, e no apenas desta. 3. Ainda que se entendesse como legtima a ratio eleita pelo Legislativo Municipal, qual seja, impedir a veiculao de material que estimulasse determinado comportamento, a lei no traz qualquer delineamento do que seria "material que possa induzir a criana ao homossexualismo". Esse defeito, longe de ocasionar a ineficcia da norma, termina por ampliar os poderes das autoridades municipais, as quais estariam ento autorizadas a selecionar os livros, informes, vdeos, contedos programticos a serem ministrados nas escolas municipais, mediante apreciao subjetiva e aberta quanto ao suposto potencial de "induzir ao homossexualismo (sic)". Patente, portanto, a ofensa ao princpio da razoabilidade. 4. Ao procedente. (ADIN n 0296371- 62.2011.8.26.0000, julgamento no dia 1 de agosto de 2012)

    Estas iniciativas de lei surgiram quando da tramitao do Plano Nacional de Educao (PNE), aprovado pela Lei 13.005/2014 e que dispe sobre as diretrizes e metas da educao at 2024. Gnero e orientao sexual foram suprimidas do texto do artigo 2, inciso III, cuja redao final aprovada foi a seguinte:

    Art. 2. So diretrizes do PNE:...II - superao das desigualdades educacionais, com nfase na promoo da cidadania e na erradicao de todas as formas de discriminao;...

    Segundo consta, as bancadas religiosas teriam pressionado a supresso das expresses gnero e

    orientao sexual, sob a alegao de que valorizavam uma ideologia de gnero, deturpando os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de famlia1. O PNE, por sua vez, ao prever que os Estados e Municpios implementassem seus prprios planos at junho de 2015, teria dado vazo, assim, s proibies ora questionadas (art. 8.).

    Pende, porm, de julgamento no Supremo Tribunal Federal, a Ao Direta de Inconstitucionalidade n 5.668, proposta em face da Cmara dos Deputados e do Senado Federal, visando declarao de interpretao conforme a Constituio no que diz respeito ao Plano Nacional de Educao, art. 2, III e, s metas 2.4, 2.5, 3.13, 4.9, 4.12, 7.23, 8.2, 9, 10.1, 10.6, 11.13, 12.5, 12.9, 13.4, 14.5, 16 e 16.2, visando obrigar as escolas pblicas e particulares a coibirem tambm as discriminaes por gnero, por identidade de gnero e por orientao sexual e respeito s identidades das crianas LGBTI+.

    Segundo os defensores das referidas legislaes proibitivas das palavras gnero e orientao sexual nos planos de educao, a ideologia de gnero busca a destruio da famlia como instituio para perpetuao de uma ideologia neomarxista de poder, busca esvaziar o conceito jurdico de homem e mulher, cuida-se de uma doutrinao a uma educao bissexual, e promove o estabelecimento de um caos, uma viso totalitarista de mundo. Referem ainda que no h como eliminar as diferenas biolgicas existentes entre homens e mulheres e que a cautela do legislador municipal diz respeito educao de crianas que frequentam creches, pr-escolas e o ensino fundamental, de idades variveis entre meses a 14 anos.Sobre os argumentos de mrito postos nas Aes de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), o Ministrio Pblico Federal ressalta a impropriedade da expresso ideologia de gnero atribuda aos estudos ou teoria de gnero, considerando-a uma palavra-disfarce utilizada para afastar e tolher a temtica no campo dos direitos e do processo educativo:

    ...No epistemologicamente aceitvel falar em ideologia de gnero pela simples razo de que gneros no possuem ideologia. A expresso tenta associar o termo ideologia, com carter depreciativo, ao de gnero, como se gneros necessariamente decorressem de mistificaes a servio de posies individuais ou polticas. Em oposio a essa impostura, a condio sexual teria natureza de verdade universal, decorrente da natureza das coisas, no sujeita a variaes e condicionantes individuais ousociais.

    O Ncleo de Estudos de Gnero, da Universidade Federal do Paran, lanou repdio pblico sobre a nomenclatura ideologia de gnero, sob alegao de que tem sido usada para deslegitimar a rea dos estudos de gnero. Aponta que a palavra ideologia no tem definio consensual e carrega uma forte conotao negativa, falaciosa. E sustenta que as discusses de gnero dizem respeito ao estudo dos sistemas de dominao e de excluso, como so construdos e como se tornam permanentes a partir da oposio e da desigualdade entre homens e mulheres, dos modelos de masculinidade, feminilidade, sexualidade e da excluso de toda a populao LGBTI+ (transgnero, queer, ou pessoas de gnero fluido e intersexuais)2.

    No mesmo sentido, a Prof. Dra. Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina, chama a ateno para a confuso terica que se estabeleceu entre o que se entende por ideologia de gnero e as teorias de gnero. Ensina que, enquanto ideologia diz respeito a um conjunto de ideias, princpios e valores que refletem uma determinada viso de mundo, orientando uma forma de ao, sobretudo uma prtica poltica, os estudos de gnero so propostas tericas e reflexes que buscam combater a violncia contra a mulher e crianas, defendem o respeito s diferenas, diversidade e entendem que a sociedade plural e a escola deve discutir a excluso e as formas muitas de preconceito3.

    Wania Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos, da mesma forma, criticam a expresso ideologia de gnero, sob o argumento de que h uma leitura restrita e equivocada sobre o rompimento com a ideia do sexo biolgico como nico definidor das identidades sexuais, de forma essencialista e naturalizadora das diferenas entre homens e mulheres.4

    Sexo e gnero no se confundem. A palavra gnero, segundo Valeska Zanello5, surgiu durante a segunda onda do feminismo, nas dcadas de 60/70 do sculo passado, por meio das contribuies de RobertStoller, pesquisador da rea da sade: a ideia principal a de que h um aparato biolgico que diferencia homens e mulheres e o gnero diz respeito s construes sociais que advm destas diferenas. Simone de Beauvoir j sinalizara que nenhum destino biolgico, psquico, econmico define a forma que a fmea humana assume no seio da sociedade; o conjunto da civilizao que elabora esse produto intermedirio entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.6

    Shulamit Firestone explica a teoria de gnero, para quem as diferenas genitais entre os seres humanos j no importariam culturalmente; Judith Butler, que o gnero uma construo cultural; por isso no nem resultado causal do sexo, nem to aparentemente fixo como o sexo (...) homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino.7

    Homens e mulheres so fruto deste processo cultural e relacional. Zanello ressalta que assim como o tornar-se mulher fruto de processo de subjetivao interpelados por poderosos mecanismos sociais, tambm o tornar-se homem marcado por certas especificidades. Em nossa cultura, a masculinidade hegemnica se baseia em dois grandes pilares: a virilidade sexual e virilidade laborativa.8

    A palavra orientao sexual, tambm banida do PNE, compreende a atrao e o desejo sexual (paixes, fantasias) do indivduo por um outro de um gnero particular9. Os heterossexuais se atraem pelo gnero oposto; os homossexuais se atraem pelo mesmo gnero; e os bissexuais se atraem por ambos os gneros.

    Orientao sexual no se confunde com identidade de gnero, que diz respeito ao gnero pelo qual a pessoa se identifica. Patrcia Sanches bem explica que homossexualidade e a heterossexualidade esto ligadas ao desejo sexual e, portanto, tambm se diferenciam da transexualidade, que est ligada identidade de gnero. Um, ao desejo sexual por homem ou mulher; outro, ao sentir-se como homem oumulher.10

    Uma pessoa transgnero se possuir identidade de gnero diferente daquela correspondente ao seu sexo biolgico; uma pessoa cisgnero possui uma identidade de gnero correspondente ao sexo biolgico: um homem cisgnero se seu sexo e sua identidade de gnero forem masculinas, independentemente da orientao sexual que tenha, homossexual ou heterossexual.11

    A revista National Geographic Brasil, em sua edio especial de janeiro de 2017, A Revoluo do Gnero novas identidades e comportamentos mudam a cara dos jovens do sculo 21, reuniu em sua capa 15 pessoas identificadas por variadas expresses de gnero, e traz um glossrio preparado pelo Centro de Estudos de Sexualidade Humana da Universidade de Widener da Pensilvnia e pelo Centro de Educao, Expanso e servios para Lsbicas, Gays, Bissexuais e Transgneros para explicar cada uma delas. Vale o registro da sigla LGBTQ, para cujo glossrio cuida-se de acrnimo usado para se referir a pessoas lsbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgneros e queer e outros questionadores; alerta para o fato de que LGBTQ no sinnimo de no heterossexual, pois implicaria, erroneamente, em que transgnero uma orientao sexual.

    Para o mesmo glossrio, queer um termo coringa que abarca uma gama de pessoas que no heterossexual ou cisgnero. De difcil traduo transviado uma opo -, o termo, historicamente, teve uso depreciativo. Mas algumas pessoas, hoje, resgataram seu uso, com tom afirmativo. Vale aqui o registro de que um artigo do site The Gay UK, a sigla LGBT deveria ser trocada para LGBTQQICAPF2K+: L lsbica; G gay; B bissexual; T transgnero; Q queer pessoas que no seguem o modelo de heterossexualidade ou binarismo de gnero; Q questioning algum que est se questionando sobre a sexualidade; I intersex intersexual; C curious curioso; A asexual pessoas que no tm atrao sexual; A agender agnero, uma identidade caracterizada pela ausncia de gnero; A ally aliado, ouseja, um heterosexual no homofbico; P pansexual indivduo que se sente atrado por todos os gneros; P polysexual polisexual, algum que se sente atrado por pessoas de vrios gneros; F friends and family amigos e familiares; 2 two-spirit ao p da letra, dois espritos. Termo derivado de tribos indgenas norte-americanas nas quais alguns indivduos se vestiam e desempenhavam papis sociais dos dois gneros; K kink fetichista ou pessoa que pratica sexo de maneira no convencional.12

    As travestis dizem respeito a uma identidade de gnero feminina, que apesar de se vestir como mulher e fazer tratamento hormonal feminino, no tem desconforto com a genitlia; cross dresser, drag queen e drag king dizem respeito a quem ocasionalmente se veste com roupas de caractersticas do outro gnero, mas as duas ltimas para performances artsticas: o segundo, para homens que se vestem de mulheres e o outro para mulheres que se vestem de homens.

    Uma pluralidade protegida pelo direito igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade. O processo democrtico deve assegurar a todos sua participao, independentemente de sua origem, sexo, cor, ou outra forma de discriminao, seja pelo comando do art. 3, inciso IV, da Constituio Federal, quando determina que objetivo do Estado brasileiro promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao, ou quando, dentro dos objetivos do Estado brasileiro, fala-se em construir uma sociedade livre, justa e solidria13.

    Na deciso de concesso da liminar nos autos da ADPF 461/PR, o Ministro Barroso conclui que esta diversidade diz respeito a um fato da vida, um dado presente na sociedade e que, portanto, alunos tero que lidar; em sendo assim, vedar polticas de ensino que tratem de gnero e orientao sexual ofende a Constituio Federal de 1988 que, em seus artigos 205 e 214, cuida de uma educao voltada promoo do pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitao para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanstico do pas; ofende tambm normas internacionais ratificadas pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de So Salvador Conveno Americana sobre Direitos Humanos, que reconhecem que a educao deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, capacitao para a vida em sociedade e tolerncia e, portanto, fortalecer o pluralismo ideolgico e as liberdades fundamentais.

    Segundo Luiz Alberto David Arajo14, o convvio com a diversidade no s o direito da minoria ou do grupo vulnervel. O direito diversidade direito da maioria. Direito de nossos filhos de terem uma escola mais plural, onde o ensino possa fluir um dcimo mais devagar, porque um colega tem dificuldade. Ele no foi deixado para trs. Ele foi acolhido pelo grupo. E prossegue, sobre a importncia da escola inclusiva, como aquela que inclui, que olha o diferente, que permite que todos convivam bem realmente, dando oportunidades para que todos possam dar e receber afeto e ateno.

    No mbito do ordenamento jurdico que diz respeito ao enfrentamento da violncia contra as mulheres, a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres expressa no sentido de que os Estados-Partes devero adotar medidas apropriadas para eliminar a discriminao contra a mulher na esfera da educao e em particular para assegurar, em condies de igualdade entre homens e mulheres, dentre outras, a eliminao de todo conceito estereotipado dos papis masculino e feminino em todos os nveis e em todas as formas de ensino.

    Tambm a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher - Belm do Par - que inclusive traz a palavra gnero como um componente do conceito de violncia contra a mulher - impe a obrigao de os Estados Partes adotarem medidas especficas e programas destinados a modificar os padres sociais e culturais de conduta de homens a todos os nveis do processo educacional,

    a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras prticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gneros ou nos papis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violncia contra a mulher.

    A Lei 11.340/2006 Lei Maria da Penha tambm expressa neste sentido, quando, em seu artigo 8prev que a poltica pblica que visa coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher deve se pautar por algumas diretrizes, dentre elas a promoo de programas educacionais que disseminem valores ticos de irrestrito respeito dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gnero e de raa ou etnia; e o destaque, nos currculos escolares de todos os nveis de ensino, para os contedos relativos aos direitos humanos, equidade de gnero e de raa ou etnia e ao problema da violncia domstica e familiar contra a mulher.

    Se meninos e meninas so socializados a partir do que foi convencionado como comportamentos aceitos e tipificados para o sexo feminino e masculino, e se as escolas fazem parte deste processo, Gigliola Mendes, Lucrcia Silva e Marcos Francisco de Souza, bem colocam a importncia da insero das questes de gnero neste espao, pois o gnero pode ajudar a compreender como so construdas as relaes entre homens e mulheres na sociedade, mas tambm pode ser um meio importante para se desvelarem os significados que o fenmeno da(s) violncia(s) sofrida(s) pelas mulheres tem assumido na sociedade brasileira, para alm dos mitos e dos preconceitos construdos sobre ele.15

    Deise Azevedo Longaray, ao falar sobre a importncia da escola no combate ao preconceito, atenta para o fato de que a escola um espao de aprendizagens, de conhecimentos, de interaes, mas, para muitas pessoas, ela tem se tornado local de recusa, de excluso, de rejeio, de tristeza, porque nela muitas subjetividades so marginalizadas, reprimidas e ignoradas, tais como as homossexualidades, as bissexualidades, e principalmente as travestilidades e as transexualidades.16

    Junqueira atenta para os poderosos mecanismos de silenciamento e de dominao simblica que percorrem o cotidiano escolar de jovens e adultos LGBTI+, por meio de tratamentos preconceituosos, medidas discriminatrias, ofensas, constrangimentos, ameaas e agresses fsicas ou verbais, uma verdadeira pedagogia do insulto, constituda de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuaes e expresses desqualificantes.17 Aponta para o quadro das normas de gnero da heteronormatividade, a construo do modelo hegemnico de masculinidade, como fontes inesgotveis de sofrimento. E arremata:

    O preconceito, a discriminao e a violncia que, na escola, atingem gays, lsbicas e bissexuais e lhes restringem direitos bsicos de cidadania, se agravam em relao a travestis e a transexuais. Essas pessoas, ao construrem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, no podem passar incgnitas. Por isso, no raro, ficam sujeitas s piores formas de desprezo, abuso e violncia. No por acaso, diversas pesquisas tm revelado que as travestis constituem a parcela com maiores dificuldades de permanncia na escola de insero no mercado de trabalho em

    funo do preconceito e da discriminao sistemtica a que esto submetidas (PARKER, 2000; PERES, 2004). Tais preconceitos e discriminaes incidem diretamente na constituio de seus perfis sociais, educacionais e econmicos, os quais, por sua vez, sero usados como elementos legitimadores de ulteriores discriminaes e violncias contra elas. A sua excluso da escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.

    A educao tambm instrumento de transformao cultural e de promoo do direito igualdade, concluiu o Ministro Barroso em sua liminar, atentando para o espao da escola que eventualmente alguns jovens so identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padro cultural naturalizado identificado como o comportamento normal, em que a conduta dele divergente rotulada como comportamento anormal e na qual se naturaliza o estigma. E prossegue lembrando que o mero silncio da escola nessa matria, a no identificao do preconceito, a omisso em combater a ridicularizao das identidades de gnero e orientaes sexuais, ou em ensinar o respeito diversidade, replicadora da discriminao e contribui para a consolidao da violncia s crianas homo e trans.

    Sobre a importncia da preveno da violncia domstica e familiar contra a mulher, Wnia Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos consideram que para a construo de uma sociedade livre da violncia de gnero, imprescindvel que os seus membros reconheam a multiplicidade das identidades e internalizem a alteridade por meio do dilogo aberto e franco acerca dos processos sociais de construo e de reproduo das desigualdades de gnero, raa e etnia.18

    Sugere Deise Longaray as possibilidades de abordagens sobre diversidade sexual e de gnero na escola: apresentar e debater sobre as diferentes configuraes familiares, discutir diferentes assuntos relacionados aos corpos, gneros e sexualidades, problematizar os marcadores sociais atribudos s identidades sexuais e de gnero desconstruindo as representaes que reproduzem o preconceito, discutir a importncia do nome social nos registros escolares e acadmicos e tambm a questo do uso do banheiro para travestis e transexuais, discutir o respeito que todos/as devemos ter sobre a pluralidade sexual, enfatizando a importncia desse no ser confundido com tolerncia, apresentar leis que amparam cidados LGBTI+, problematizando direitos humanos tais como segurana, sade, tratamento e atendimento igualitrios, dentre outros.19

    Vale trazer baila algumas experincias prticas a respeito da discusso de gnero nas escolas. Um exemplo o reconhecimento da identidade de gnero de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino pblico do Estado de So Paulo com o direito ao tratamento por meio do nome social.20 Em 30/09/2017 a rede estadual de ensino de So Paulo contabilizou 483 registros de indicao de estudantes travestis, mulheres transexuais e homens trans com uso de nome social. No mesmo perodo do ano, anterior eram 358 estudantes matriculados com nome social. A maioria das/os estudantes trans esto matriculados na Educao de Jovens e Adultos, que por sua vez, mostra o retorno aos processos de escolarizao formal de sujeitos que tiveram suas trajetrias escolares interrompidas.

    A rede estadual, desde 1996, desenvolve o projeto Preveno tambm se ensina, que oferece aos educadores uma srie de publicaes, DVDs, CDs voltados discusso de gnero complementares ao currculo: entre preconceitos contra mulheres e populao LGBTI+, manuais de preveno de doenas sexualmente transmissveis, diversidade tnico raciais, de gnero e a diversidade sexual do ponto de vista da educao.

    Na Espanha, em Sevilha, o documento Educar em Igualdad, em seu caderno de preveno da violncia de gnero voltado para o professorado, problematiza a desigualdade de gnero como causa da violncia de gnero, provoca reflexes sobre os esteretipos construdos para homens e mulheres nos campos das emoes, personalidade e profisses, e coloca como objetivo de trabalho a facilitao do conhecimento para identificao das diferentes manifestaes de violncia de gnero e a sensibilizao dos estudantes sobre a gravidade e as consequncias negativas que a violncia de gnero exerce sobre as pessoas atingidas por ela.

    A ONU Mulheres Brasil lanou a iniciativa O Valente no Violento, promovida dentro da campanha UNA-SE Pelo Fim da Violncia Contra as Mulheres, com o objetivo de estimular a mudana de atitudes e comportamentos dos homens, enfatizando a responsabilidade que devem assumir na eliminao da violncia contra as mulheres e meninas.

    O Ministrio Pblico de So Paulo e a Secretaria de Estado de Educao de So Paulo, contando com a parceria da Midas Estdios vem realizando, desde 2016, o projeto Vozes pela Igualdade de Gnero, com a finalidade de fomentar a discusso sobre o enfrentamento e o debate relacionado s desigualdades de gnero, em especial a violncia contra as mulheres e a populao LGBTI+. A iniciativa prope para os alunos e alunas da rede estadual de ensino a participao em um concurso musical, cujos temas como 10 anos da Lei Maria da Penha, Respeito s Diferenas e Em todos os lugares, em p de igualdade so o impulso para a criao das canes. O concurso tambm promove uma reflexo pblica ao instar o voto para a eleio das canes inscritas e gravao em um estdio de renome, instrumentos estratgicos para a perpetuao do debate.20

    Cabe aqui o final registro de um apanhado de algumas das frases das dez msicas finalistas da segunda edio do Vozes pela Igualdade de Gnero, que bem revela o que os/as alunos/as aprenderam com as reflexes propostas:

    Na luta por uma sociedade igualitriaTemos muitos que ferem!Onde vai parar todo esse preconceito, onde vai levar?Que indignao!Nesse mundo to inversoJulgam a sua forma de andar, mas o que est por dentro no pensam em perguntarAh, o respeito! Somos parte da terra!Seja quem for, seja onde for, ns somos mais do que a cor

    Somos irmos, imagem e semelhana de Deus, humanos...Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gnero, o que for...Pra acabar com a discriminao, preciso de vocs irmos!A sua atitude pode transformar algumAbram os olhos, saiam do escuroDeixa o corao escolher, Vamos pelos nossos direitos lutar, erguemos nossa bandeiraVamos juntos na militncia, em uma luta de importncia, com direito de existir.

    Aguarda-se a deciso que se dar pelo Supremo Tribunal Federal. A prtica revela, porm, que abordar gnero nas escolas no nenhuma ameaa, mas sim um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitria.

  • ndice

    Apresentao .............................................................................................................................................. 4

    Termos e expresses LGBTI+....................................................................................................................... 5

    A proibio das abordagens de gnero nas escolas.................................................................................. 11Fabola Sucasas Negro Covas

    Infncia e diversidade ............................................................................................................................... 21Ftima Liz Bardelli Teixeira

    Uso do nome social no mbito do MPSP .................................................................................................. 25Roberta Andrade da Cunha Logiodice

    Registro Civil ............................................................................................................................................. 30Adriana Cerqueira de Souza

    Casamento homoafetivo .......................................................................................................................... 35Adriana Cerqueira de Souza

    A aplicao da Lei Maria da Penha a mulheres trans ................................................................................ 37Fabola Sucasas Negro Covas

    A mulher trans pode figurar como vtima do feminicdio? ....................................................................... 39Rogrio Sanches Cunha e Ricardo Jos Gasques de Almeida Silvares

    Legislao na rea de sade sobre a Diversidade Sexual .......................................................................... 40Aline Jurca Zavaglia Vicente Alves

    Principais demandas ................................................................................................................................. 43Aline Jurca Zavaglia Vicente Alves

    Outras normativas sobre a temtica da Diversidade Sexual ..................................................................... 50Fabola Sucasas Negro Covas

    Servios LGBTI+ ......................................................................................................................................... 54Fabola Sucasas Negro Covas com a claborao de Luciana Ribeiro Paneghini - assistente social do NAT/MPSP

    3

    Direito e Diversidade

    A proibio das abordagens de gnero nas escolaFabola Sucasas Negro Covas

    Gnero, teoria de gnero, ideologia de gnero e expresses afins tm mobilizado uma srie de iniciativas contrrias incluso da temtica nas escolas, na crena de que so ameaas aos valores morais tradicionais e famlia brasileira.

    Estudiosos e pesquisadores questionam tais movimentos, apontando haver uma confuso entre as discusses de gnero com o que intitulam ideologia, causando pnico moral e marginalizando os grupos mais vulnerveis, diretamente afetos a tais estudos, quais sejam, os movimentos feministas e LGTBI+.

    No campo do Poder Judicirio, questionam-se leis estaduais e municipais que probem as referidas expresses nas abordagens em ambiente escolar.

    A Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n 461, referente Lei n 3.468/2015, do Municpio de Paranagu (PR), proposta pelo Ministrio Pblico Federal no incio de junho de 2017, conta com liminar deferida pelo Ministro Roberto Barroso, avanando na inconstitucionalidade material e suspendendo os efeitos da lei referente ao trecho que veda o ensino sobre gnero e orientao sexual.

    Na Ao Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n 5.537/AL e que contempla a 5.580/AL -, contra a Lei 7.800/2016, do Estado de Alagoas, que cria no sistema educacional de ensino o programa Escola Livre, o Ministro Roberto Barroso tambm concedeu liminar, suspendendo integralmente a lei.

    Outras ADPFs tramitam contra normas anlogas: 467, contra a Lei 3.491/2015, do Municpio de Ipatinga (MG), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Gilmar Mendes; 466, contra a Lei 4.268/2015, do Municpio de Tubaro (SC), que aguarda deciso da liminar pela Ministra Rosa Weber; 465, contra a Lei 2.243/2016, do Municpio de Palmas (TO), que aguarda deciso da liminar pelo Ministro Barroso; e 460, contra a Lei 6.496/2015, de Cascavel (PR), que aguarda deciso liminar do Ministro Fux.

    A ADPF 462, contra a Lei Complementar 994/2015, do Municpio de Blumenau (SC), aguarda deciso liminar do Ministro Fachin; nela, a Advocacia Geral da Unio manifestou-se favoravelmente liminar, por compreender que, alm da afronta competncia da Unio para legislar sobre a matria, cuida-se de lei inconstitucional, colocando em risco princpios constitucionais como o pluralismo de ideias e concepes pedaggicas, a igualdade de considerao e respeito e a proteo integral.

    A ADPF 457, contra a Lei 1.516, do Municpio de Novo Gama (GO), teve deciso lanada pelo Ministro Alexandre de Moraes negando seguimento arguio por vcio de iniciativa, com base no art. 4, caput e 1, da Lei 9.882/99 e no artigo 21, 1, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o ato impugnado deve ser objeto de controle pelo Tribunal de Justia Estadual, por meio de ajuizamento de ao direta de inconstitucionalidade, eis que a ADPF, pautada pelo princpio da subsidiariedade, seria vivel apenas aps o esgotamento de todas as vias possveis para sanar a leso oua ameaa de leso a preceitos fundamentais ou a verificao, ab initio, de sua inutilidade para a preservao do preceito.

    A ADIN n 2137274-79.2017.8.26.0000, proposta pela Procuradoria Geral de Justia de So Paulo, e que diz respeito legislao do Municpio de So Bernardo do Campo, que vedava veiculao de contedo

    pedaggico relacionado ideologia de gnero, foi julgada procedente. Decidiu o Tribunal de Justia de So Paulo que o municpio extrapolou a competncia privativa da Unio para legislar sobre o assunto, ofendendo o princpio federativo.

    A Emenda Lei Orgnica de Jundia n 73, de 26 de setembro de 2017, alvo da ADIN n2216281-23.2017.8.26.0000, na qual a liminar deferida suspendeu seus efeitos. No incio de fevereiro de 2018, a Procuradoria Geral de Justia manifestou-se favoravelmente procedncia da ao sob o argumento da ofensa ao Princpio da Separao de Poderes, a reserva do Poder Executivo, a repartio constitucional de competncias e os princpios constitucionais relativos educao. E ainda referiudecises j lanadas em casos sobre a mesma temtica, pelo TJSP, como esta da ementa:

    AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - LEI N 8.458/2011, DO MUNICPIO DE SO JOS DOS CAMPOS, QUE PROBE A DIVULGAO OU EXIBIO DE QUALQUER TIPO DE MATERIAL QUE POSSA INDUZIR A CRIANA AO COMPORTAMENTO, OPO OU ORIENTAO HOMOAFETIVA - USURPAO DE COMPETNCIA PRIVATIVA DA UNIO - AUSNCIA DE INTERESSE LOCAL - SUBTRAO DA DISCUSSO DA HOMOFOBIA DO MBITO ESCOLAR - CLUSULA ABERTA - OFENSA AO PRINCPIO DA RAZOABILIDADE - VIOLAO DOS ARTS. 144, 237, II E VII - DA CONSTITUIO DO ESTADO DE SO PAULO - AO PROCEDENTE. 1. Ainda que inegavelmente seja interesse tambm do Municpio o de zelar pela boa educao de seus cidados, no h, no que respeita educao para a preveno da homofobia, para o respeito e tolerncia da diversidade sexual, e para a discusso sobre a liberdade de orientao sexual, qualquer caractere de preponderncia de interesse em seu favor. Inexistindo qualquer peculiaridade no Municpio de So Jos dos Campos envolvendo o tema, tem seque ele transcende o interesse local, do que deriva a usurpao de competncia legislativa. 2. O debate acerca da homofobia e a educao para o respeito e tolerncia do indivduo homossexual esto calcados na prpria Constituio do Estado de So Paulo. As tentativas de se subtrair do mbito escolar a discusso desta questo social viola o art. 237, II e VII, da Constituio do Estado de So Paulo, posto que a educao dever conjunto do Estado e da famlia, e no apenas desta. 3. Ainda que se entendesse como legtima a ratio eleita pelo Legislativo Municipal, qual seja, impedir a veiculao de material que estimulasse determinado comportamento, a lei no traz qualquer delineamento do que seria "material que possa induzir a criana ao homossexualismo". Esse defeito, longe de ocasionar a ineficcia da norma, termina por ampliar os poderes das autoridades municipais, as quais estariam ento autorizadas a selecionar os livros, informes, vdeos, contedos programticos a serem ministrados nas escolas municipais, mediante apreciao subjetiva e aberta quanto ao suposto potencial de "induzir ao homossexualismo (sic)". Patente, portanto, a ofensa ao princpio da razoabilidade. 4. Ao procedente. (ADIN n 0296371- 62.2011.8.26.0000, julgamento no dia 1 de agosto de 2012)

    Estas iniciativas de lei surgiram quando da tramitao do Plano Nacional de Educao (PNE), aprovado pela Lei 13.005/2014 e que dispe sobre as diretrizes e metas da educao at 2024. Gnero e orientao sexual foram suprimidas do texto do artigo 2, inciso III, cuja redao final aprovada foi a seguinte:

    Art. 2. So diretrizes do PNE:...II - superao das desigualdades educacionais, com nfase na promoo da cidadania e na erradicao de todas as formas de discriminao;...

    Segundo consta, as bancadas religiosas teriam pressionado a supresso das expresses gnero e

    orientao sexual, sob a alegao de que valorizavam uma ideologia de gnero, deturpando os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de famlia1. O PNE, por sua vez, ao prever que os Estados e Municpios implementassem seus prprios planos at junho de 2015, teria dado vazo, assim, s proibies ora questionadas (art. 8.).

    Pende, porm, de julgamento no Supremo Tribunal Federal, a Ao Direta de Inconstitucionalidade n 5.668, proposta em face da Cmara dos Deputados e do Senado Federal, visando declarao de interpretao conforme a Constituio no que diz respeito ao Plano Nacional de Educao, art. 2, III e, s metas 2.4, 2.5, 3.13, 4.9, 4.12, 7.23, 8.2, 9, 10.1, 10.6, 11.13, 12.5, 12.9, 13.4, 14.5, 16 e 16.2, visando obrigar as escolas pblicas e particulares a coibirem tambm as discriminaes por gnero, por identidade de gnero e por orientao sexual e respeito s identidades das crianas LGBTI+.

    Segundo os defensores das referidas legislaes proibitivas das palavras gnero e orientao sexual nos planos de educao, a ideologia de gnero busca a destruio da famlia como instituio para perpetuao de uma ideologia neomarxista de poder, busca esvaziar o conceito jurdico de homem e mulher, cuida-se de uma doutrinao a uma educao bissexual, e promove o estabelecimento de um caos, uma viso totalitarista de mundo. Referem ainda que no h como eliminar as diferenas biolgicas existentes entre homens e mulheres e que a cautela do legislador municipal diz respeito educao de crianas que frequentam creches, pr-escolas e o ensino fundamental, de idades variveis entre meses a 14 anos.Sobre os argumentos de mrito postos nas Aes de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), o Ministrio Pblico Federal ressalta a impropriedade da expresso ideologia de gnero atribuda aos estudos ou teoria de gnero, considerando-a uma palavra-disfarce utilizada para afastar e tolher a temtica no campo dos direitos e do processo educativo:

    ...No epistemologicamente aceitvel falar em ideologia de gnero pela simples razo de que gneros no possuem ideologia. A expresso tenta associar o termo ideologia, com carter depreciativo, ao de gnero, como se gneros necessariamente decorressem de mistificaes a servio de posies individuais ou polticas. Em oposio a essa impostura, a condio sexual teria natureza de verdade universal, decorrente da natureza das coisas, no sujeita a variaes e condicionantes individuais ousociais.

    O Ncleo de Estudos de Gnero, da Universidade Federal do Paran, lanou repdio pblico sobre a nomenclatura ideologia de gnero, sob alegao de que tem sido usada para deslegitimar a rea dos estudos de gnero. Aponta que a palavra ideologia no tem definio consensual e carrega uma forte conotao negativa, falaciosa. E sustenta que as discusses de gnero dizem respeito ao estudo dos sistemas de dominao e de excluso, como so construdos e como se tornam permanentes a partir da oposio e da desigualdade entre homens e mulheres, dos modelos de masculinidade, feminilidade, sexualidade e da excluso de toda a populao LGBTI+ (transgnero, queer, ou pessoas de gnero fluido e intersexuais)2.

    No mesmo sentido, a Prof. Dra. Jimena Furlani, da Universidade do Estado de Santa Catarina, chama a ateno para a confuso terica que se estabeleceu entre o que se entende por ideologia de gnero e as teorias de gnero. Ensina que, enquanto ideologia diz respeito a um conjunto de ideias, princpios e valores que refletem uma determinada viso de mundo, orientando uma forma de ao, sobretudo uma prtica poltica, os estudos de gnero so propostas tericas e reflexes que buscam combater a violncia contra a mulher e crianas, defendem o respeito s diferenas, diversidade e entendem que a sociedade plural e a escola deve discutir a excluso e as formas muitas de preconceito3.

    Wania Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos, da mesma forma, criticam a expresso ideologia de gnero, sob o argumento de que h uma leitura restrita e equivocada sobre o rompimento com a ideia do sexo biolgico como nico definidor das identidades sexuais, de forma essencialista e naturalizadora das diferenas entre homens e mulheres.4

    Sexo e gnero no se confundem. A palavra gnero, segundo Valeska Zanello5, surgiu durante a segunda onda do feminismo, nas dcadas de 60/70 do sculo passado, por meio das contribuies de Robert Stoller, pesquisador da rea da sade: a ideia principal a de que h um aparato biolgico que diferencia homens e mulheres e o gnero diz respeito s construes sociais que advm destas diferenas. Simone de Beauvoir j sinalizara que nenhum destino biolgico, psquico, econmico define a forma que a fmea humana assume no seio da sociedade; o conjunto da civilizao que elabora esse produto intermedirio entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.6

    Shulamit Firestone explica a teoria de gnero, para quem as diferenas genitais entre os seres humanos j no importariam culturalmente; Judith Butler, que o gnero uma construo cultural; por isso no nem resultado causal do sexo, nem to aparentemente fixo como o sexo (...) homem e masculino poderiam significar tanto um corpo feminino como um masculino; mulher e feminino tanto um corpo masculino como um feminino.7

    Homens e mulheres so fruto deste processo cultural e relacional. Zanello ressalta que assim como o tornar-se mulher fruto de processo de subjetivao interpelados por poderosos mecanismos sociais, tambm o tornar-se homem marcado por certas especificidades. Em nossa cultura, a masculinidade hegemnica se baseia em dois grandes pilares: a virilidade sexual e virilidade laborativa.8

    A palavra orientao sexual, tambm banida do PNE, compreende a atrao e o desejo sexual (paixes, fantasias) do indivduo por um outro de um gnero particular9. Os heterossexuais se atraem pelo gnero oposto; os homossexuais se atraem pelo mesmo gnero; e os bissexuais se atraem por ambos os gneros.

    Orientao sexual no se confunde com identidade de gnero, que diz respeito ao gnero pelo qual a pessoa se identifica. Patrcia Sanches bem explica que homossexualidade e a heterossexualidade esto ligadas ao desejo sexual e, portanto, tambm se diferenciam da transexualidade, que est ligada identidade de gnero. Um, ao desejo sexual por homem ou mulher; outro, ao sentir-se como homem oumulher.10

    Uma pessoa transgnero se possuir identidade de gnero diferente daquela correspondente ao seu sexo biolgico; uma pessoa cisgnero possui uma identidade de gnero correspondente ao sexo biolgico: um homem cisgnero se seu sexo e sua identidade de gnero forem masculinas, independentemente da orientao sexual que tenha, homossexual ou heterossexual.11

    A revista National Geographic Brasil, em sua edio especial de janeiro de 2017, A Revoluo do Gnero novas identidades e comportamentos mudam a cara dos jovens do sculo 21, reuniu em sua capa 15 pessoas identificadas por variadas expresses de gnero, e traz um glossrio preparado pelo Centro de Estudos de Sexualidade Humana da Universidade de Widener da Pensilvnia e pelo Centro de Educao, Expanso e servios para Lsbicas, Gays, Bissexuais e Transgneros para explicar cada uma delas. Vale o registro da sigla LGBTQ, para cujo glossrio cuida-se de acrnimo usado para se referir a pessoas lsbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgneros e queer e outros questionadores; alerta para o fato de que LGBTQ no sinnimo de no heterossexual, pois implicaria, erroneamente, em que transgnero uma orientao sexual.

    Para o mesmo glossrio, queer um termo coringa que abarca uma gama de pessoas que no heterossexual ou cisgnero. De difcil traduo transviado uma opo -, o termo, historicamente, teve uso depreciativo. Mas algumas pessoas, hoje, resgataram seu uso, com tom afirmativo. Vale aqui o registro de que um artigo do site The Gay UK, a sigla LGBT deveria ser trocada para LGBTQQICAPF2K+: L lsbica; G gay; B bissexual; T transgnero; Q queer pessoas que no seguem o modelo de heterossexualidade ou binarismo de gnero; Q questioning algum que est se questionando sobre a sexualidade; I intersex intersexual; C curious curioso; A asexual pessoas que no tm atrao sexual; A agender agnero, uma identidade caracterizada pela ausncia de gnero; A ally aliado, ouseja, um heterosexual no homofbico; P pansexual indivduo que se sente atrado por todos os gneros; P polysexual polisexual, algum que se sente atrado por pessoas de vrios gneros; F friends and family amigos e familiares; 2 two-spirit ao p da letra, dois espritos. Termo derivado de tribos indgenas norte-americanas nas quais alguns indivduos se vestiam e desempenhavam papis sociais dos dois gneros; K kink fetichista ou pessoa que pratica sexo de maneira no convencional.12

    As travestis dizem respeito a uma identidade de gnero feminina, que apesar de se vestir como mulher e fazer tratamento hormonal feminino, no tem desconforto com a genitlia; cross dresser, drag queen e drag king dizem respeito a quem ocasionalmente se veste com roupas de caractersticas do outro gnero, mas as duas ltimas para performances artsticas: o segundo, para homens que se vestem de mulheres e o outro para mulheres que se vestem de homens.

    Uma pluralidade protegida pelo direito igualdade, de onde surgem os direitos da diversidade. O processo democrtico deve assegurar a todos sua participao, independentemente de sua origem, sexo, cor, ou outra forma de discriminao, seja pelo comando do art. 3, inciso IV, da Constituio Federal, quando determina que objetivo do Estado brasileiro promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao, ou quando, dentro dos objetivos do Estado brasileiro, fala-se em construir uma sociedade livre, justa e solidria13.

    Na deciso de concesso da liminar nos autos da ADPF 461/PR, o Ministro Barroso conclui que esta diversidade diz respeito a um fato da vida, um dado presente na sociedade e que, portanto, alunos tero que lidar; em sendo assim, vedar polticas de ensino que tratem de gnero e orientao sexual ofende a Constituio Federal de 1988 que, em seus artigos 205 e 214, cuida de uma educao voltada promoo do pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitao para a cidadania, bem como o desenvolvimento humanstico do pas; ofende tambm normas internacionais ratificadas pelo Brasil, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de So Salvador Conveno Americana sobre Direitos Humanos, que reconhecem que a educao deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, capacitao para a vida em sociedade e tolerncia e, portanto, fortalecer o pluralismo ideolgico e as liberdades fundamentais.

    Segundo Luiz Alberto David Arajo14, o convvio com a diversidade no s o direito da minoria ou do grupo vulnervel. O direito diversidade direito da maioria. Direito de nossos filhos de terem uma escola mais plural, onde o ensino possa fluir um dcimo mais devagar, porque um colega tem dificuldade. Ele no foi deixado para trs. Ele foi acolhido pelo grupo. E prossegue, sobre a importncia da escola inclusiva, como aquela que inclui, que olha o diferente, que permite que todos convivam bem realmente, dando oportunidades para que todos possam dar e receber afeto e ateno.

    No mbito do ordenamento jurdico que diz respeito ao enfrentamento da violncia contra as mulheres, a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao contra as Mulheres expressa no sentido de que os Estados-Partes devero adotar medidas apropriadas para eliminar a discriminao contra a mulher na esfera da educao e em particular para assegurar, em condies de igualdade entre homens e mulheres, dentre outras, a eliminao de todo conceito estereotipado dos papis masculino e feminino em todos os nveis e em todas as formas de ensino.

    Tambm a Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher - Belm do Par - que inclusive traz a palavra gnero como um componente do conceito de violncia contra a mulher - impe a obrigao de os Estados Partes adotarem medidas especficas e programas destinados a modificar os padres sociais e culturais de conduta de homens a todos os nveis do processo educacional,

    a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras prticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gneros ou nos papis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violncia contra a mulher.

    A Lei 11.340/2006 Lei Maria da Penha tambm expressa neste sentido, quando, em seu artigo 8prev que a poltica pblica que visa coibir a violncia domstica e familiar contra a mulher deve se pautar por algumas diretrizes, dentre elas a promoo de programas educacionais que disseminem valores ticos de irrestrito respeito dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gnero e de raa ou etnia; e o destaque, nos currculos escolares de todos os nveis de ensino, para os contedos relativos aos direitos humanos, equidade de gnero e de raa ou etnia e ao problema da violncia domstica e familiar contra a mulher.

    Se meninos e meninas so socializados a partir do que foi convencionado como comportamentos aceitos e tipificados para o sexo feminino e masculino, e se as escolas fazem parte deste processo, Gigliola Mendes, Lucrcia Silva e Marcos Francisco de Souza, bem colocam a importncia da insero das questes de gnero neste espao, pois o gnero pode ajudar a compreender como so construdas as relaes entre homens e mulheres na sociedade, mas tambm pode ser um meio importante para se desvelarem os significados que o fenmeno da(s) violncia(s) sofrida(s) pelas mulheres tem assumido na sociedade brasileira, para alm dos mitos e dos preconceitos construdos sobre ele.15

    Deise Azevedo Longaray, ao falar sobre a importncia da escola no combate ao preconceito, atenta para o fato de que a escola um espao de aprendizagens, de conhecimentos, de interaes, mas, para muitas pessoas, ela tem se tornado local de recusa, de excluso, de rejeio, de tristeza, porque nela muitas subjetividades so marginalizadas, reprimidas e ignoradas, tais como as homossexualidades, as bissexualidades, e principalmente as travestilidades e as transexualidades.16

    Junqueira atenta para os poderosos mecanismos de silenciamento e de dominao simblica que percorrem o cotidiano escolar de jovens e adultos LGBTI+, por meio de tratamentos preconceituosos, medidas discriminatrias, ofensas, constrangimentos, ameaas e agresses fsicas ou verbais, uma verdadeira pedagogia do insulto, constituda de piadas, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuaes e expresses desqualificantes.17 Aponta para o quadro das normas de gnero da heteronormatividade, a construo do modelo hegemnico de masculinidade, como fontes inesgotveis de sofrimento. E arremata:

    O preconceito, a discriminao e a violncia que, na escola, atingem gays, lsbicas e bissexuais e lhes restringem direitos bsicos de cidadania, se agravam em relao a travestis e a transexuais. Essas pessoas, ao construrem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, no podem passar incgnitas. Por isso, no raro, ficam sujeitas s piores formas de desprezo, abuso e violncia. No por acaso, diversas pesquisas tm revelado que as travestis constituem a parcela com maiores dificuldades de permanncia na escola de insero no mercado de trabalho em

    funo do preconceito e da discriminao sistemtica a que esto submetidas (PARKER, 2000; PERES, 2004). Tais preconceitos e discriminaes incidem diretamente na constituio de seus perfis sociais, educacionais e econmicos, os quais, por sua vez, sero usados como elementos legitimadores de ulteriores discriminaes e violncias contra elas. A sua excluso da escola passa, inclusive, pelo silenciamento curricular em torno delas.

    A educao tambm instrumento de transformao cultural e de promoo do direito igualdade, concluiu o Ministro Barroso em sua liminar, atentando para o espao da escola que eventualmente alguns jovens so identificados, pela primeira vez, como afeminados ou masculinizados, em que o padro cultural naturalizado identificado como o comportamento normal, em que a conduta dele divergente rotulada como comportamento anormal e na qual se naturaliza o estigma. E prossegue lembrando que o mero silncio da escola nessa matria, a no identificao do preconceito, a omisso em combater a ridicularizao das identidades de gnero e orientaes sexuais, ou em ensinar o respeito diversidade, replicadora da discriminao e contribui para a consolidao da violncia s crianas homo e trans.

    Sobre a importncia da preveno da violncia domstica e familiar contra a mulher, Wnia Pasinato e Amanda Kamanchek Lemos consideram que para a construo de uma sociedade livre da violncia de gnero, imprescindvel que os seus membros reconheam a multiplicidade das identidades e internalizem a alteridade por meio do dilogo aberto e franco acerca dos processos sociais de construo e de reproduo das desigualdades de gnero, raa e etnia.18

    Sugere Deise Longaray as possibilidades de abordagens sobre diversidade sexual e de gnero na escola: apresentar e debater sobre as diferentes configuraes familiares, discutir diferentes assuntos relacionados aos corpos, gneros e sexualidades, problematizar os marcadores sociais atribudos s identidades sexuais e de gnero desconstruindo as representaes que reproduzem o preconceito, discutir a importncia do nome social nos registros escolares e acadmicos e tambm a questo do uso do banheiro para travestis e transexuais, discutir o respeito que todos/as devemos ter sobre a pluralidade sexual, enfatizando a importncia desse no ser confundido com tolerncia, apresentar leis que amparam cidados LGBTI+, problematizando direitos humanos tais como segurana, sade, tratamento e atendimento igualitrios, dentre outros.19

    Vale trazer baila algumas experincias prticas a respeito da discusso de gnero nas escolas. Um exemplo o reconhecimento da identidade de gnero de discentes travestis e transexuais na rede estadual de ensino pblico do Estado de So Paulo com o direito ao tratamento por meio do nome social.20 Em 30/09/2017 a rede estadual de ensino de So Paulo contabilizou 483 registros de indicao de estudantes travestis, mulheres transexuais e homens trans com uso de nome social. No mesmo perodo do ano, anterior eram 358 estudantes matriculados com nome social. A maioria das/os estudantes trans esto matriculados na Educao de Jovens e Adultos, que por sua vez, mostra o retorno aos processos de escolarizao formal de sujeitos que tiveram suas trajetrias escolares interrompidas.

    A rede estadual, desde 1996, desenvolve o projeto Preveno tambm se ensina, que oferece aos educadores uma srie de publicaes, DVDs, CDs voltados discusso de gnero complementares ao currculo: entre preconceitos contra mulheres e populao LGBTI+, manuais de preveno de doenas sexualmente transmissveis, diversidade tnico raciais, de gnero e a diversidade sexual do ponto de vista da educao.

    Na Espanha, em Sevilha, o documento Educar em Igualdad, em seu caderno de preveno da violncia de gnero voltado para o professorado, problematiza a desigualdade de gnero como causa da violncia de gnero, provoca reflexes sobre os esteretipos construdos para homens e mulheres nos campos das emoes, personalidade e profisses, e coloca como objetivo de trabalho a facilitao do conhecimento para identificao das diferentes manifestaes de violncia de gnero e a sensibilizao dos estudantes sobre a gravidade e as consequncias negativas que a violncia de gnero exerce sobre as pessoas atingidas por ela.

    A ONU Mulheres Brasil lanou a iniciativa O Valente no Violento, promovida dentro da campanha UNA-SE Pelo Fim da Violncia Contra as Mulheres, com o objetivo de estimular a mudana de atitudes e comportamentos dos homens, enfatizando a responsabilidade que devem assumir na eliminao da violncia contra as mulheres e meninas.

    O Ministrio Pblico de So Paulo e a Secretaria de Estado de Educao de So Paulo, contando com a parceria da Midas Estdios vem realizando, desde 2016, o projeto Vozes pela Igualdade de Gnero, com a finalidade de fomentar a discusso sobre o enfrentamento e o debate relacionado s desigualdades de gnero, em especial a violncia contra as mulheres e a populao LGBTI+. A iniciativa prope para os alunos e alunas da rede estadual de ensino a participao em um concurso musical, cujos temas como 10 anos da Lei Maria da Penha, Respeito s Diferenas e Em todos os lugares, em p de igualdade so o impulso para a criao das canes. O concurso tambm promove uma reflexo pblica ao instar o voto para a eleio das canes inscritas e gravao em um estdio de renome, instrumentos estratgicos para a perpetuao do debate.20

    Cabe aqui o final registro de um apanhado de algumas das frases das dez msicas finalistas da segunda edio do Vozes pela Igualdade de Gnero, que bem revela o que os/as alunos/as aprenderam com as reflexes propostas:

    Na luta por uma sociedade igualitriaTemos muitos que ferem!Onde vai parar todo esse preconceito, onde vai levar?Que indignao!Nesse mundo to inversoJulgam a sua forma de andar, mas o que est por dentro no pensam em perguntarAh, o respeito! Somos parte da terra!Seja quem for, seja onde for, ns somos mais do que a cor

    Somos irmos, imagem e semelhana de Deus, humanos...Vou lutar por um mundo de amor, independente do credo, da cor, do gnero, o que for...Pra acabar com a discriminao, preciso de vocs irmos!A sua atitude pode transformar algumAbram os olhos, saiam do escuroDeixa o corao escolher, Vamos pelos nossos direitos lutar, erguemos nossa bandeiraVamos juntos na militncia, em uma luta de importncia, com direito de existir.

    Aguarda-se a deciso que se dar pelo Supremo Tribunal Federal. A prtica revela, porm, que abordar gnero nas escolas no nenhuma ameaa, mas sim um instrumento para uma sociedade mais humana e igualitria.

  • Apresentao

    Nossa Constituio Federal, logo em seu artigo 1, aponta quais so seus fundamentos, dentre eles, a dignidade da pessoa humana. Adiante, em seu artigo 3, prescreve que um dos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil o da promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao.

    Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza. Este um dos primados dos direitos humanos e uma garantia de direitos individuais (art. 5, caput, CF). A Carta Magna tambm garante a punio de qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdades fundamentais, alm de dispor que cabe ao Estado assegurar instrumentos adequados para a proteo de toda e qualquer forma de tratamento desumano ou degradante, contra quaisquer pessoas, seja praticado por rgos pblicos, seja por outras pessoas (CF/1988, art. 5, III e XLI).

    O Ministrio Pblico, atento ao seu compromisso com a defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis, e s demandas que envolvem as questes da diversidade, tem se debruado sobre o estudo da temtica da proteo aos direitos da populao LGBTI+. Esse compromisso tem como objetivo a integrao e o intercmbio