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Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da … · e Sílvia Cunha, descreve a natureza multifacetada e complexa do processo de escolha alimentar, enfatizando as dimensões

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A redução das assimetrias sociais no acesso à alimentação e à saúde: Políticas e práticas

Sofia Castanheira Pais & Pedro Daniel Ferreira (Orgs.)

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Nota: Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfi co, incluindo, fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia da editora.

Exceptua-se desta proibição a transcrição de curtas passagens para efeito de apresentação crítica ou debate dos textos desta obra, que porém não revistam carácter antológico ou similar.

Os infractores incorrem em procedimento judicial.

• Direitos desta obra reservados para todos os países por Mais Leitura.

A redução das assimetrias sociais no acesso à alimentação e à saúde: Políticas e prática

Sofi a Castanheira Pais & Pedro Daniel Ferreira (Orgs.)

Mais leitura

Educação

418793/16

978-989-730-056-1

Dezembro 2016

Américo Moreira

[email protected]

www.livpsic.com - A sua Livraria de Psicologia e Educação

Título da obra

Autores:

Edição:

Colecção:

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I.S.B.N.:

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é uma chancela da Legis Editora

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Mais Leituras

A redução das assimetrias sociais no acesso à alimentação e à saúde: Políticas e práticas

Sofia Castanheira Pais & Pedro Daniel Ferreira (Orgs.)

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Mais LeituraColecção: EDUCAÇÃO

Políticas Docentes: Formação e Avaliação - Bártolo Campos

Formação Inicial de Professores e de Enfermeiros: identidades e ambientes - Amélia Lopes (Org.)

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ÍNDICEPREFACE ............................................................................................................................7

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 9

PARTE I ........................................................................................................................... 13O PROJETO SIMETRIA EM PERSPETIVA ................................................................. 15Edite Silva e Sofia Castanheira Pais

PARTE II ......................................................................................................................... 39DIMENSÃO SIMBÓLICA E AFETIVA DA ALIMENTAÇÃO. ESCOLHA ALIMENTAR: UMA EXPERIÊNCIA MULTIDIMENSIONAL ................41Inês Areal Rothes e Sílvia Cunha

INSEGURANÇA ALIMENTAR: ENQUADRAMENTO, POLÍTICAS E BOAS PRÁTICAS ................................................................................... 55Maria João Gregório e Pedro Graça

OS PROGRAMAS DE APOIO ALIMENTAR EM PORTUGAL: CARATERIZAÇÃO E DESAFIOS PARA O FUTURO ....................................................................................71Adriana Botelho, Ana Helena Pinto, Carolina Almeida e Joana Pereira

DIREITO E ACESSO À ALIMENTAÇÃO: CONTRIBUTOS DO CAMPO EDUCATIVO PARA UMA ‘CIDADANIA ALIMENTAR’ ............................................ 85Norberto Ribeiro

A CONSULTORIA COLABORATIVA NO PROJETO SIMETRIA ............................. 99Sofia Castanheira Pais, Joana Pereira e Pedro Daniel Ferreira

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PREFACE

�is book summarizes the work carried out within the framework of the “SIMETRIA (Symmetry) – Nutritional and Social Equity Promotion” project in the northern part of Portugal from April 2015 to April 2016. �e project was developed by the Portuguese League for Social Prophylaxis with financial support through EEA Grants from Iceland, Liechtenstein and Norway. �e primary goal of the project has been to apply and evaluate tools that can support organizations seeking to help out groups with higher vulnerabilities.

�e book consists of two separate parts. �e first part describes the SIMETRIA project, the main activities and the results obtained. �e second part contains five chapters written by people who were involved in the project and who have scientific and practical knowledge in specific areas such as food banks, health policies and citizenship studies. �e ultimate goal for this part has been to evaluate some conceptual topics that were transversal to the project and to present the discussion about the potential methodological options and their implications, in order to ensure changes in professional practices. Finally, I would like to add that, as the representative from the EEA Grant Donor Programme Partner, the Norwegian Institute of Public Health, following and observing the SIMETRIA project has been highly valuable for me personally. �e collaboration across societal sectors and the relationship between academia and society which we have witnessed in this project are examples to be followed in dealing with, and preventing social problems. I appreciate the genuine engagement and the open-mindedness of the project team in search for new ideas when visiting Norwegian organizations working with vulnerable groups in Oslo, in the spring of 2016. Reducing social disparities, bilateral exchange and sharing of knowledge are the main objectives of the EEA Grants. �e SIMETRIA project contributes in a positive way to the achievement of these objectives.

Solfrid Johansen

Senior Adviser

Norwegian Institute of Public Health

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INTRODUÇÃO

Em pleno século XXI, o acesso à saúde e à alimentação continua a não estar garantido de forma equitativa a todas as pessoas. Apesar dos avanços tecnológicos e das medidas crescentes no domínio da saúde pública, a promoção do bem-estar parece longe de se constituir uma realidade por todos alcançável (Walley et al., 2008). De facto, para além da prevenção de problemas de saúde associados a questões económicas em indivíduos e sociedades – que, como sabemos, se traduz em equações que envolvem os custos com os sistemas de prestação de cuidados de saúde e os benefícios sociais e económicos – o acesso à saúde e à alimentação é, indubitavelmente, uma prioridade, por tanto que im-plica em tantas outras dimensões essenciais da vida. Em boa verdade, incorpora e tem efeitos na qualidade das experiências, na construção de identidades e na definição do que é e/ou pode significar ser cidadão. Reduzir as assimetrias no acesso à alimentação e à saúde constitui, por isso, um desafio urgente, do qual não se podem dissociar políticas, práticas e processos partilhados, merecedores do maior envolvimento de todos.

Inscrito no Programa Iniciativas de Saúde Pública, o projeto SIMETRIA: Promoção da Igualdade Nutricional e Social teve, precisamente, como objetivo concorrer para a diminuição destas desigualdades, reconhecendo a urgência de reclamar por um para-digma de direitos no acesso à alimentação e à saúde de forma geral. Este livro resulta, por isso, de um conjunto de experiências e saberes partilhados – agora apresentados em registo escrito - que o projeto SIMETRIA, através das suas atividades, encontros e questões, proporcionou.

Num primeiro momento, este livro procura dar conta das ações do projeto SIME-TRIA, deixando pistas para refletir sobre os desafios que se colocam na prática corrente de pessoas e instituições em torno da equidade no acesso a condições de saúde. Ao longo do capítulo Redução das Assimetrias Sociais no Acesso à Alimentação e à Saúde: Po-líticas e Práticas, torna-se evidente que do envolvimento de organizações, profissionais e colaboradores em discussões sobre a relação entre a nutrição e as desigualdades sociais resulta a inevitável constatação de que é prioritário potenciar a criação de espaços de intervenção promotores de saúde, permeáveis à participação de um vasto conjunto de atores das mais diversas áreas e níveis de tomada de decisão.

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Abrindo a segunda parte do livro, o capítulo Dimensão Simbólica e Afetiva da Alimen-tação. Escolha Alimentar: Uma Experiência Multidimensional, da autoria de Inês Rothes e Sílvia Cunha, descreve a natureza multifacetada e complexa do processo de escolha alimentar, enfatizando as dimensões simbólica e afetiva que a comida incorpora. Da identidade cultural e do sentido de pertença à esfera afetiva e emocional, na qual o prazer constitui parte substantiva das opções em torno do que comer e não comer, este texto reflete a experiência das autoras enquanto formadoras no projeto SIMETRIA.

O capítulo que se segue, da autoria de Maria João Gregório e Pedro Graça, perpassa o tema da (in)segurança alimentar, avançando um conjunto de questões em torno de políticas e práticas em Portugal. A crise económica de 2008 e os seus efeitos, quer ao nível do aumento das desigualdades, do desemprego e de pobreza na Europa, quer no que toca à escassez de condições para garantir a segurança alimentar (food security), são problematizados ao longo do capítulo, propondo-se uma reflexão sobre estratégias de intervenção no domínio das políticas de saúde.

Partindo, também, de uma contextualização centrada no incremento acentuado de situações de carência em Portugal, o capítulo redigido por Adriana Botelho, Ana He-lena Pinto, Carolina Almeida e Joana Pereira proporciona um olhar alargado sobre os programas de apoio alimentar no país, bem como nos Estados Unidos da América e no Brasil. Ao longo do capítulo Os Programas da Apoio Alimentar em Portugal: Caracteri-zação e Desafios para o Futuro, as autoras tecem considerações críticas sobre modelos e paradigmas de intervenção, admitindo que são, ainda, escassos os estudos que avaliam a qualidade alimentar deste tipo de programas, assim como a relação entre o que é distribuído e aquilo que corresponde, efetivamente, às reais necessidades das pessoas abrangidas pelos mesmos.

Reconhecendo que a pobreza e o acesso desigual a bens fundamentais, como a ali-mentação e as condições de saúde, são problemas cuja superação parece, ainda, distante Norberto Ribeiro propõe, no seu texto, o desenvolvimento de estratégias educativas en-quanto contributo para uma maior reflexividade e conscientização dos cidadãos sobre as suas práticas quotidianas. Intitulado Direito e Acesso à Alimentação: Contributos do Campo Educativo para uma ‘Cidadania Alimentar’, este capítulo apresenta argumentos que criticam o efeito despolitizador das tendências funcionalista e individualista, sociali-zadora (regulatória) e conformista (consensual) sobre os indivíduos e as sociedades, e que caracterizam os atuais modelos político-educativos.

Discorrendo sobre estratégias relevantes a ter em conta na interação com profissionais envolvidos no apoio e assistência a grupos diversos, o capítulo da autoria de Sofia Cas-tanheira Pais, Joana Pereira e Pedro Ferreira explora a opção da consultoria enquanto ferramenta de trabalho no projeto SIMETRIA. Da dimensão instrumental à dimensão relacional, o texto intitulado A Consultoria Colaborativa no Projeto Simetria reflete sobre os principais desafios de uma consultoria orientada para facilitar o surgimento de alter-nativas de ação que visem a redução das desigualdades sociais e nutricionais.

Reconhecendo que a organização deste livro se deveu a um conjunto de pessoas im-plicadas na disseminação de trabalhos e reflexões potencialmente úteis para fazer da saúde um direito, efetivamente, de todos, gostaríamos de endereçar sinceros agrade-

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cimentos aos participantes e às instituições envolvidas no SIMETRIA, por tanto que construíram a pretexto do projeto. Este agradecimento estende-se, igualmente, à equipa do projeto, vasta e empenhada no desenvolvimento consistente das suas atividades, destacando-se, inevitavelmente, Edite Silva, pela coordenação exemplar que desempe-nhou. A todo o núcleo de acompanhamento da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), particularmente nas figuras de Isabel Oliveira e de Inês Ferreira, pelo apoio inquestionável ao longo da execução do projeto e pelo exemplo de competência e celeridade. Não apenas por ter aceitado o convite para redigir o prefácio deste livro, mas por toda a amabilidade, em Portugal e na Noruega, e pelas interessantes conversas em torno dos desafios na e para a saúde pública, um agradecimento especial a Solfrid Johansen e à equipa dos EEA Grants. Ainda, uma palavra ao Serviço de Comunicação e Imagem da FPCEUP, em particular ao João Araújo, pelo design gráfico. Finalmente, e também inteiramente merecida, uma palavra de profundo agradecimento a Maria José Sá pela revisão atenta e rigorosa dos textos, bem como pela disponibilidade demonstra-da ao longo do processo de organização do livro.

Os coordenadores

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PARTE I

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O PROJETO SIMETRIA EM PERSPETIVA

Edite Silva e Sofia Castanheira Pais

1. A Liga Portuguesa de Profilaxia Social e a Promoção da SaúdeA Liga Portuguesa de Profilaxia Social (LPPS) é uma Instituição Particular de Soli-

dariedade Social que, desde 1924, desenvolve inúmeras campanhas e projetos voltados para a promoção da saúde pública. Incidindo particularmente nas questões relacio-nadas com a saúde, esta instituição trabalha no sentido de sensibilizar, educar e atuar positivamente nas situações, ajustando a sua ação de acordo com as problemáticas de cada época. Com uma vasta abrangência, tem, desde 2008, em desenvolvimento o seu programa de Educação para a Saúde, que contempla a realização de vários projetos de intervenção comunitária direcionados para a promoção da saúde e da participação juvenil na disseminação de estilos de vida mais saudáveis.

Este programa tem-se efetivado em atividades diversas, no sentido de multiplicar e replicar iniciativas de potencial transformador dos estilos de vida dos jovens e famílias. Os seus principais objetivos centram-se: (i) na promoção de estilos de vida mais sau-dáveis, através da difusão de estratégias de transformação de hábitos acessíveis a toda a população; e (ii) no estímulo de um sentido crítico mais apurado sobre o marketing alimentar, fomentando maior reflexividade e ponderação nas opções alimentares indi-viduais, familiares e escolares.

Para o cumprimento destes objetivos, a LPPS especializou-se na dinamização de um conjunto alargado de atividades, entre as quais constam: (i) espaços de reflexão partici-pada; (ii) sessões de prevenção e avaliação de risco; (iii) atividades lúdico-pedagógicas variadas; (iv) workshops e ateliers temáticos; (v) atividades lúdico-desportivas diversas; (vi) produção de material informativo; e (vii) campanhas de sensibilização pública.

Paralelamente, a LPPS desenvolve atividades permanentes na promoção da saúde dos mais velhos, fornecendo serviços de apoio domiciliário e realizando atividades de pro-moção de um envelhecimento ativo e da solidariedade entre as gerações. As atividades desenvolvidas no âmbito de tais iniciativas contribuem para aperfeiçoar o know-how da instituição na implementação de metodologias participativas que privilegiam o recurso a técnicas de educação não-formal, ao trabalho em equipa, aos grupos de discussão e à

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construção de atividades com os mais variados públicos, colocando em diálogo várias gerações e atores sociais provenientes de diversos contextos culturais e socioeconómicos.

2. A génese do Projeto SIMETRIA O projeto SIMETRIA resulta da candidatura ao Programa Iniciativas em Saúde Pú-

blica com o financiamento da Noruega, Islândia e Liechtenstein, no âmbito do EEA Grants, efetuada em novembro de 2014 e cuja aprovação foi comunicada em março de 2015.

O EEA Grants, mecanismo financeiro europeu, pretende contribuir para a redução das disparidades económicas e sociais no Espaço Económico Europeu, assim como fortalecer as relações entre os Estados doadores e os 16 Estados beneficiários dos apoios, com benefício mútuo para as suas populações.

O Programa Iniciativas em Saúde Pública, coordenado pelo Ministério da Saúde, através da Administração Central para o Sistema de Saúde, possui quatro domínios de intervenção: nutrição, saúde mental, sistemas de informação em saúde e doenças trans-missíveis. O Programa é, essencialmente, orientado para dois objetivos:

• Melhorar o conhecimento atual sobre o estado de saúde da população por-tuguesa e o desenvolvimento de práticas de saúde pública e recomendações baseadas na evidência;

• Aumentar o conhecimento e atitudes mais saudáveis das populações em des-vantagem socioeconómica em relação à nutrição, como resultado de uma me-lhoria ao nível das práticas profissionais.

O projeto SIMETRIA está inserido no domínio de intervenção da Nutrição, quarta subárea, perspetivando a necessidade de desenvolver programas de formação para pro-fissionais na área das desigualdades socioeconómicas e nutrição.

A base do projeto centrou-se, portanto, na formação/capacitação de profissionais da área social, saúde e outros no sentido de: (i) consciencializar para a relação entre saúde/nutrição e desigualdades sociais; (ii) aumentar conhecimentos nestas áreas específicas; e (iii) capacitar para a mudança de práticas locais através do desenvolvimento, implemen-tação e avaliação de estratégias direcionadas para populações socialmente desfavoreci-das. Claramente, visa alcançar-se um dos principais objetivos definidos pelo programa, nomeadamente “aumentar o conhecimento e atitudes mais saudáveis acerca da nutri-ção, como resultado de uma melhoria ao nível das práticas profissionais” (edital EEA Grants). Não menos importante do que a formação, o projeto previa uma forte compo-nente de consultoria. A utilização desta estratégia pretendeu atingir um duplo objetivo:

i) re/construir conhecimento com os profissionais destas organizações sobre aque-les que são os principais problemas na sua ação com implicações ao nível das desigualdades sociais e nutricionais das populações que servem. Tal deverá facilitar o surgimento de alternativas de ação contextualmente e contingen-temente viáveis e que, transformando as práticas, possam, efetivamente, con-tribuir para o aumento da qualidade do apoio prestado e para a redução das desigualdades sociais e nutricionais;

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ii) criar novo saber contextualizado e prático sobre as populações vulneráveis ser-vidas, os modos de atuação dos profissionais, os efeitos das suas práticas, assim como sobre alternativas de ação encontradas.

Admitindo-se que a mudança de comportamentos por parte de profissionais e respe-tivas populações-alvo constitui um processo complexo e longo, o projeto SIMETRIA visou, de forma gradual, sensibilizar organizações, profissionais e colaboradores no sen-tido do reconhecimento da relação entre a nutrição e as desigualdades sociais como uma prioridade que deverá ser continuamente trabalhada, potenciando a criação de um espaço de intervenção mais amplo que poderá prolongar-se para além do término do projeto.

Como atrás descrevemos, a LPPS manteve, desde sempre, a orientação de intervir com e para as pessoas e as comunidades em situação de maior vulnerabilidade social, económica e cultural, tendo representado esta candidatura a possibilidade, não só de manter, como, também, de impulsionar a sua área de intervenção na alimentação e outros estilos de vida. No Programa Iniciativas em Saúde Pública, designadamente no domínio da Nutrição, identificámos objetivos coincidentes com o trabalho preconizado pela LPPS há mais de sete anos, pelo que havia de otimizar o know-how e os recursos já existentes.

Do mesmo modo, a realidade e os problemas com que diariamente nos deparamos não nos permitiam demitir da dupla responsabilidade de assumir esta candidatura e desenvolver o projeto, contando com o valor e a experiência acumulados. Por um lado, o projeto constituiria uma forma de beneficiar outras pessoas na melhoria das suas práticas e, por outro, potenciaria a sua maior qualidade de vida, por via do acesso à alimentação como direito e segurança alimentar e de condições mais igualitárias no acesso à saúde.

3. A pertinência da intervenção com grupos socioeconomicamente vulneráveis – Determinantes sociais da saúde e os dados mais recentes

A saúde e os seus determinantes sociais constituem temas de importante discussão nas sociedades contemporâneas. Em Portugal, país recém-saído de um programa de assistência financeira internacional, a situação é igualmente premente. Os programas de ajustamento estrutural são reconhecidos pela sua escassa preocupação social e pe-los impactos que produzem nos determinantes sociais da saúde; desde logo, nos seus impactos sobre a pobreza, o principal desses determinantes (Marmot, 2005). Apesar de estarem ainda por aferir os reais impactos de um tal programa sobre as condições materiais e imateriais de vida da população portuguesa, há já indícios de que os efeitos do programa sobre essas condições são manifestamente nefastos.

Veja-se, por exemplo, os mais recentes resultados do Inquérito às Condições de Vida e de Rendimento do Instituto Nacional de Estatística (INE), que demostram uma clara subida da percentagem de população em risco de pobreza, por comparação ao ano de 2011 (ano que marca o arranque do programa de ajustamento estrutural imposto pelas entidades credoras internacionais, designadas de Troika). Nesse relatório, o INE (2014a) salienta que

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[...] a taxa de risco de pobreza das famílias com crianças dependentes foi de 22,2% em 2012, aumentando novamente a desvantagem relativa face ao valor para o total da população residente [de 18,7%]. As taxas de risco de pobreza mais elevadas foram estimadas para os agregados constituídos por um adulto com pelo menos uma criança dependente (33,6%), por dois adultos com três ou mais crianças (40,4%) e por três ou mais adultos com crianças (23,7%), que ao longo da série enfrentam pela primeira vez um risco de pobreza superior ao das pessoas que vivem sós (21,7%) (p1).

O risco de pobreza, bem como das taxas de desemprego e, especificamente, de de-semprego jovem após o programa de ajustamento estrutural, revelam os seus impactos ao nível do desenvolvimento humano do país, com incremento significativo da exposi-ção à privação dos grupos sociais mais vulneráveis: as crianças, as famílias de que estas dependem, especialmente as mais numerosas e/ou as que vivenciam situações de de-semprego e/ou precariedade sócio laboral. A este respeito, sublinha o INE (2014a) que

[...] o risco de pobreza para a população em situação de desemprego foi de 40,2% em 2012, com um aumento de 1,9 p.p. face ao ano anterior, e a proporção da população com menos de 60 anos que vivia em agregados familiares com intensidade laboral per capita muito reduzida aumentou 2,0 p.p., de 10,1% para 12,2% em 2012. A assimetria na distribuição dos rendimentos entre os grupos da população com maiores e menores recursos manteve a tendência de crescimento verificada nos últimos anos (p. 1).

Essa tendência exerce um impacto distinto sobre a racionalidade contextual que subjaz à construção quotidiana de um dado estilo de vida. Como se lê noutra parte, “a incidên-cia diferencial dos comportamentos de risco, da exposição aos perigos ambientais e do recurso aos cuidados preventivos de saúde mantém com as condições de vida associadas ao baixo estatuto económico, educacional e ocupacional, uma relação de ‘causa funda-mental’” (Silva et al., 2004, 85).

Ora, a Comissão dos Determinantes Sociais da Saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), criada em 2005, alerta, precisamente, para o caráter socialmente gra-dativo da saúde, frisando que as desigualdades na saúde não estão isentas de impactos produzidos pelas desigualdades sociais entre países e no seu interior. Tais desigualdades variam, portanto, consoante o nível de riqueza e de desenvolvimento socioeconómico que os países apresentam, a par de outros fatores; e variam, ainda, entre grupos/indiví-duos, sendo os grupos que ocupam posições mais desfavorecidas na estrutura social os mais vulneráveis a riscos de doença e de degradação das suas condições de saúde (Mar-mot, 2005). De facto, as desigualdades na saúde, em correlação com as desigualdades socioeconómicas, são transversais a diferentes países e é nos países com mais profundas assimetrias sociais que as condições de risco para a saúde mais se evidenciam.

Em Portugal, dados referentes à distribuição socioeconómica das doenças crónicas na população em 1998/99 e 2005/06 comprovam essa tendência, demonstrando que as doenças se concentram em grupos com rendimentos mais baixos (Furtado & Pereira, 2010). No que respeita ao excesso de peso e à obesidade infantil, verificam-se, em di-versos países, disparidades e oscilações de acordo com o nível socioeconómico, o nível

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19O projeto simetria em perspetiva

de escolaridade e os estilos de vida, entre outros fatores (Freudenberg, 2013). Vários autores corroboram a relação de frequência da obesidade com os níveis socioeconómi-cos mais baixos (Seidell & Flegal, 1997; Rasmussen et al., 2006), salientando-se que a obesidade, tanto em crianças como em adultos, é mais acentuada entre grupos mais carenciados (Guillaume & Lissau, 2002).

Do mesmo modo, a prevalência da obesidade e de excesso de peso mostra uma distri-buição geográfica que não é independente do nível de desenvolvimento dos países nem da maior assimetria socioeconómica que nestes se verifica. Países da América do Sul, considerados em vias de desenvolvimento e com uma forte disparidade socioeconómi-ca, exibem, também, “bandeiras vermelhas” no que respeita à prevalência da obesidade ou de excesso de peso. O México apresentava, em 2008, uma prevalência de excesso de peso de cerca de 69% da população adulta; a Venezuela, 67.5%; o Chile, 64,9%, a Ar-gentina, 64%; o Panamá 61,2% (OMS, 2015). A prevalência de excesso de peso nestes países, acima dos 60% da população adulta, é superior à da maior parte dos países con-siderados desenvolvidos (à exceção dos EUA, com mais de 69% da população adulta com excesso de peso), e apenas superado pelos casos particulares de alguns países ricos do Médio Oriente, como os Emirados Árabes Unidos, com 72% da população adulta em sobrepeso, ou a Arábia Saudita, com 71,3%, ambos com problemas estruturais de fortes desigualdades sociais e económicas (OMS, 2015).

De entre os determinantes sociais da saúde, como temos visto, os estilos de vida assu-mem um relevo político-mediático central, embora se tenda a descurar, nesse discurso, a sua dependência das condições de vida. A sua relação com atitudes e comportamentos passíveis de transformar para a obtenção de maiores ganhos em saúde tem justificado um privilégio de campanhas de educação para a saúde centradas nos comportamentos individuais, familiares e comunitários, no sentido de menorizar a exposição a fatores de risco ambientais que decorrem das “escolhas” individuais. É neste contexto que surgem propostas como a da OMS, em 2004, de uma estratégia global para a alimentação, o exercício físico e a saúde, de combate à prevalência das doenças crónicas não transmissí-veis, que representavam 60% de todas as causas de morte e que eram geradoras de 47% dos encargos gerais com a saúde (DGS, 2014). Todavia, a correlação de fatores centrais como a pobreza e a privação material, os baixos rendimentos per capita, as condições de salubridade e de conforto do abrigo/residência, o risco financeiro associado ao acesso à saúde1 (OMS, 2013a) ou as condições de trabalho e de acesso ao consumo são fun-damentais para a compreensão e previsão da eficácia deste tipo de medidas. Repare-se, por exemplo, que quase 30% da população urbana na região da América Latina e do Caribe vive em favelas; o mesmo acontece na Ásia Ocidental, onde se encontram os países acima citados com a mais elevada taxa de população adulta com excesso de peso (OMS, 2010a, 9), tornando “difícil” um exercício cívico do “dever de saúde”. Como refere a Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde (CDSS, 2010),

1 “O objetivo da cobertura universal de saúde é garantir que todos os indivíduos possam utilizar os ser-viços de saúde de que necessitam sem correr riscos de ruína financeira ou de empobrecimento” (OMS, 2013b, 21).

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[...] a “distribuição desigual de experiências potencialmente perigosas para a saúde não constitui, de modo algum, um fenómeno “natural”, sendo antes o resultado de uma combinação tóxica de políticas sociais e programas débeis, estruturas económicas injustas e política de baixa qualidade. Em conjunto, os determinantes estruturais e as condições de vida quotidianas constituem os determinantes sociais da saúde e são responsáveis pela maior parte das desigualdades na saúde dentro e entre países (p. 1).

Estes fatores não estão, portanto, ao alcance de mudanças despoletadas pelos indi-víduos, suas famílias ou, até, a sua comunidade. As políticas vocacionadas para tais unidades de ação serão, assim, tão mais bem-sucedidas quanto melhores forem as suas condições quotidianas de vida e os determinantes estruturais que as enformam.

Em Portugal, várias políticas de saúde têm sido implementadas no combate ao pro-blema dos fatores de risco para a saúde, nesta perspetiva mais individualizada. Em 2005, foi aprovado o Programa Nacional de Luta Contra a Obesidade, que tem como objetivo inverter a taxa de crescimento da prevalência da pré-obesidade e da obesidade a nível nacional. Este Programa integrou-se no Plano Nacional de Saúde de 2004-2010. Em 2008, surgiu a Plataforma Contra a Obesidade e, desde 2012, as questões relacio-nadas com a estratégia para combater a obesidade são tratadas no âmbito do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS). O PNPAS visa me-lhorar o estado nutricional da população, incentivando o consumo de alimentos mais saudáveis por via i) do aumento do conhecimento sobre os alimentos e determinantes da saúde; ii) da disponibilidade de certos alimentos em contexto escolar e público, entre outros; e iii) da informação e capacitação para a compra e confeção de alimentos mais saudáveis. Estes programas aprovados encontram-se sob a égide da Direção Geral da Saúde, organismo responsável pelo acompanhamento e execução das políticas e progra-mas do Ministério da Saúde.

Todavia, uma consulta da Balança Alimentar Portuguesa mais recente, que avalia as disponibilidades alimentares nacionais nos últimos anos, mostra uma tendência re-cente de substituição do consumo de proteínas, por exemplo, por hidratos de carbono (INE, 2014b). Os países da Europa do Sul, nos quais se encontram as origens da dieta mediterrânica e, como vimos atrás, sujeitos a programas de assistência financeira que culminam no empobrecimento crescente da população, são, hoje, os países com mais elevadas taxas de obesidade e pré-obesidade infantil. E é nestes países que o decréscimo do poder de compra da população, associado ao risco de pobreza, ao desemprego e ao corte de diversas fontes que compõem o salário social (Standing, 2011), se reflete em opções de consumo que afastam o padrão alimentar de um desejável Índice de Adesão à Dieta Mediterrânica, considerado mais aproximado de um padrão alimentar saudável (INE, 2014b). Este Índice decresceu em toda a Europa, e, em Portugal, o seu decrés-cimo foi especialmente abrupto até 2006, tendo havido uma ligeira recuperação até 2009, momento em que volta a estagnar.

Efetivamente, a liberalização do comércio, ao abrir fronteiras a um vasto mercado internacional, aumenta a disponibilidade, acessibilidade (em termos de preço) e atrati-vidade por inúmeros produtos alimentares menos saudáveis distribuídos internacional-

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mente, e a baixo custo, por empresas multinacionais. Esta indústria alimentar prolifera no mercado global e nacional a preços muito reduzidos, mas com qualidade alimentar deficiente e com elevada densidade energética e poder de saciação imediata (CDSS, 2010), o que justifica que o seu consumo seja bastante significativo. A literatura de uma geral defende que o padrão alimentar das pessoas com menor capital socioeconómico segue este modelo, caraterizando-se pelo consumo de produtos de valor calórico ele-vado, demasiado ricos em açúcares e gorduras saturadas. A escolha, fundada numa ra-cionalidade contextual, justifica-se nos argumentos de que, além de mais saciantes, estes produtos são mais baratos. As escolhas individuais e familiares não podem, portanto, ser perspetivadas fora do seu contexto, obrigando a compreender os fatores de mercado, de disponibilidade de recursos (monetários, temporais, de infraestruturas para arma-zenamento, tratamento e confeção de alimentos), bem como outros, na base da subs-tituição de um padrão alimentar por outro. Repare-se que a própria disponibilidade alimentar em Portugal, entre 2008 e 2012, demonstra uma dinâmica de mercado que retrai a oferta dos grupos de alimentos que compõem a dieta mediterrânica por outro tipo de alimentos, cujos aportes calóricos e de macronutrientes são considerados menos saudáveis (INE, 2014b).

Assim, se a alimentação é um direito universal, ela deverá traduzir-se na garantia a todos os cidadãos terem acesso diário a alimentos em quantidade e qualidade suficiente para atender às necessidades nutricionais essenciais para a manutenção da saúde (Va-lente, 2002). Entenda-se saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, tal como definida pela OMS. Todavia, a escolha dos alimentos, bem como o comportamento e relação para com outros determinantes da saúde, só podem ser compreendidos como resultantes de uma racionalidade contextual, que é o produto de diversos fatores, entre os quais as condições (sociais, económicas, culturais, etc.) de vida, que jogam uma centralidade incontornável na razoabilidade dos padrões com-portamentais. Esta constatação, segundo o Livro Verde da Comissão das Comunidades Europeias (2005), implica uma abordagem integrada que permita dar resposta às de-sigualdades sociais e económicas, abordando, em simultâneo, o ambiente físico e con-textual. Trata-se de contribuir, através de estratégias mais abrangentes, para promover regimes alimentares saudáveis e potenciar ambientes que facilitem opções saudáveis. Corroborando o Livro Verde da Comissão das Comunidades Europeias (2005), é es-sencial aumentar os conhecimentos dos públicos sobre a relação entre regime alimentar e saúde, calorias ingeridas e despendidas sobre regimes alimentares que reduzem o risco de doenças crónicas e sobre opções saudáveis em termos de géneros alimentícios, como condição fundamental para facilitar o acesso informado à alimentação saudável por parte das populações mais vulneráveis.

4. A implementação e desenvolvimento do projeto SIMETRIA Com a notificação da aprovação do projeto, havia que planear, calendarizar e imple-

mentar as ações propostas em candidatura. Não dispúnhamos de muito tempo para o arranque. Alguns dos elementos da equipa já estavam propostos em candidatura. Outros, por revelarem indisponibilidade, tiveram de ser substituídos. Com bastante ce-

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leridade constituímos e articulámos tarefas em equipa, através da realização de reuniões, com o objetivo de preparar e avançar com as ações.

Desde logo, formalizaram-se as parcerias propostas em candidatura e outras, desig-nadamente com:

- a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), cujo papel nesta parceria passou pela elaboração e implementa-ção conjunta do processo de consultoria e das ações de formação, incluindo a creditação dos programas de formação e o apoio nos produtos resultantes do projeto (publicação de um livro e produção de vídeo/documentário).

- a Santa Casa da Misericórdia da Maia, sendo que se previu o seu envolvimento no projeto particularmente no âmbito dos processos de consultoria e capacita-ção de profissionais. O envolvimento direto em consultoria tem que ver com a replicação de boas práticas a apresentar a outros contextos e profissionais, designadamente por meio da sua transferência do processo de consultoria para as ações formativas.

- o Patronato, Centro Social e Paroquial Rainha Santa Mafalda (Arouca), admi-tindo que o seu envolvimento no projeto se efetivou também nos processos de consultoria e capacitação de profissionais.

Estabelecidas as parcerias iniciais, o projeto elencou três vertentes basilares de inter-venção, designadamente i) ciclos formativos; ii) oficinas temáticas; e iii) processos de consultoria. Para o efeito, contou com uma equipa multidisciplinar constituída por 11 profissionais das áreas de Nutrição, Ciências da Educação, Psicologia e Serviço Social, com experiência profissional e competências técnicas e científicas ajustadas aos objeti-vos do projeto. A multidisciplinariedade da equipa constituiu um recurso e uma mais--valia para o desenvolvimento, não só da componente formativa, mas de todo o projeto, permitindo, não só a complementaridade dos saberes técnico-científicos, como a troca e partilha de saberes, experiências e recursos que elevaram o nível de conhecimentos nesta área.

Ao longo do projeto, procurou realizar-se reuniões mensais/bimensais no sentido de refletir sobre o desenvolvimento das ações do projeto, a prática e o papel de cada um, incluindo-se aqui momentos de planeamento coletivo, troca e debate de ideias para desenvolver as melhores estratégias, visando a adequação de conteúdos, abordagens e estratégias aos diferentes grupos de formação. A par dos momentos de trabalho pre-sencial entre os elementos da equipa, privilegiou-se a elaboração de registos escritos e notas de terreno pessoais partilhadas pela equipa, cruciais para um acompanhamento sistemático dos avanços e recuos do projeto SIMETRIA.

5. Os ciclos formativos em torno das “Estratégias de intervenção com grupos vulneráveis – a alimentação e o acesso à saúde”

A componente da formação desenvolveu-se sob a forma de ciclos formativos, fo-calizando-se na construção de conhecimentos, em novas práticas reflexivas, inovado-ras e autónomas que pudessem influenciar comportamentos mais saudáveis ao nível

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da alimentação, reduzindo as assimetrias na saúde das populações mais fragilizadas. Assumia-se a importância e influência do trabalho que os profissionais e instituições na intervenção comunitária preconizavam junto dos diferentes grupos-alvo.

A formação visou, também, potenciar espaços de partilha, experiências e debate em torno da área da nutrição, segurança alimentar, etc., com foco nas desigualdades so-cioeconómicas e nas práticas profissionais, contando com os contributos diversificados dos profissionais participantes nos diferentes ciclos formativos. O desenvolvimento da ação tinha como objetivo valorizar o profissional num conjunto de competências que permitissem aumentar conhecimentos técnico-científicos e desenvolver competências técnicas e atitudes comunicacionais mais favoráveis a um processo de mudança dos grupos-alvo.

Assim sendo, com a Formação Estratégias de intervenção com grupos vulneráveis: a alimentação e o acesso à saúde mantém-se o objetivo geral do projeto de aumentar o conhecimento e as atitudes mais saudáveis das populações em desvantagem socioeco-nómica em relação à nutrição, como resultado de uma melhoria ao nível das práticas profissionais. Não obstante os destinatários serem profissionais da área social, saúde e outros com intervenção em contextos sociais desfavorecidos, considerou-se indispensá-vel trabalhar um conjunto articulado de conhecimentos relacionados com as temáticas da alimentação e nutrição, mas, também, aptidões, atitudes e estratégias relacionais e comunicacionais.

Especificamente, pretendia-se junto dos participantes: 1. Trabalhar numa lógica de empowerment;2. Capacitar pessoas e contextos;3. Investir na igualdade da saúde e a nível social através de processos colaborativos; 4. Melhorar práticas institucionais na área da segurança alimentar e igualdade no

direito à alimentação adequada.

Este projeto destinou-se a um público diversificado e que podemos inserir em dois níveis distintos, designadamente i) nível direto, o qual reporta aos profissionais das organizações com intervenção na área social junto de públicos em situação de desfavo-recimento social e económico (profissionais de saúde e de serviço social, trabalhadores municipais, profissionais/técnicos de ONG’s); e ii) nível indireto, que abrange os diver-sos públicos com quem estes profissionais lidam no âmbito da sua atividade profissio-nal (desempregados e beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI), crianças e jovens em risco, idosos e outros em situação de exclusão), e que se espera poderem beneficiar da melhoria das práticas dos profissionais das organizações.

5.1 Metodologia

Do ponto de vista da metodologia de formação utilizada, destaca-se a adoção de estratégias formativas não formais, privilegiando-se a capacitação das pessoas pelo reco-nhecimento das suas competências e experiências em contexto prático de atuação. As-sim, por via de metodologias eminentemente participativas, mais do que diagnosticar e resolver os “problemas” pelos destinatários, procurou criar-se condições para que os

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próprios, no desenvolvimento da sua autonomia, desenvolvessem recursos que lhes per-mitissem aferir as suas necessidades e formas de lhes dar resposta de um modo criativo.

Ao longo da formação preconizaram-se os métodos de aprendizagem participativos, baseados na autonomia, na responsabilidade e na experiência do profissional/técnico. Pretendeu-se, portanto, que o processo de aprendizagem se baseasse na reflexão, no aprofundamento e na concetualização dos conhecimentos adquiridos e da experiência na interação com os outros (Wenger, 1998), de maneira a tornar-se efetivo e significa-tivo. Nesta linha, deu-se primazia a metodologias ativas de formação, com o recurso a dinâmicas de grupo, pretendendo-se que os participantes aprendessem, a partir da resolução de problemas, a ter livre iniciativa neste percurso. Adotaram-se, portanto, abordagens ativas que resultam da alternância entre os métodos expositivo, demonstra-tivo e interrogativo, consoante os objetivos das diferentes sessões. Por sua vez, no que se refere à avaliação, envolveu-se o mais possível os participantes neste processo, existindo alguma diversidade nos métodos utilizados, colocando-se apenas como requisito o re-gisto de evidências do(s) momento(s) avaliativo(s).

As opções metodológicas do projeto formativo tiveram o claro propósito de permi-tir adaptar e flexibilizar estratégias pedagógicas e terminologias adotadas para que a incorporação de conhecimentos por públicos de mais baixo capital escolar e cultural fosse mais eficaz, visto que estes eram os destinatários indiretos e finais da ação. Era, portanto, objetivo que estes públicos conseguissem assimilar e tratar informação técnica de forma mais “naturalizada” e, assim, aplicá-la mais facilmente nas escolhas diárias. Nesta medida, as opções metodológicas comportaram o trabalho com os públicos mais desfavorecidos, como contemplam um trabalho direto com os técnicos e profissionais dos serviços sociais e de saúde, públicos e/ou privados, cujas práticas laborais diárias im-plicam um processo de comunicação direto e continuado com esses mesmos públicos. A redução das disparidades no acesso à informação constituía a primeira via através da qual o projeto visava combater as desigualdades no acesso à saúde e, para esse efeito, transformar as práticas e as linguagens técnicas dos profissionais em práticas e lingua-gens acessíveis e compreensíveis aos seus beneficiários, sendo esta a forma mais ajustada de reduzir as assimetrias que essa própria relação comporta.

5.2 Principais fases

Fase I: Preparação, elaboração e definição de conteúdos programáticos Não obstante o diagnóstico realizado para a conceção da candidatura e a consequen-

te delineação de temáticas de forma mais ou menos abrangente, tornou-se necessário desenhar um programa específico para a formação que se pretendia desenvolver. Os conteúdos formativos foram construídos no sentido de serem transversais atendendo a organizações e técnicos que trabalham com públicos vulneráveis. Neste sentido, pro-curou-se uma articulação entre conteúdos de natureza teórica-técnica e o contexto e as práticas quotidianas, facilitando-se a identificação e a aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos a situações específicas.

Na conceção do programa foram, então, assumidas as temáticas propostas em candi-datura, com foco na segurança alimentar, alimentação/nutrição e acesso à saúde, mas,

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também, propostas vocacionadas para a área da comunicação, entendida como nuclear na relação entre os profissionais e beneficiários, e as mudanças a potenciar.

Deste modo, a formação concretizou-se em 15 ciclos diferentes, em que cada ciclo se subdividiu em seis módulos, constituídos por oito horas cada, e um momento final de reflexão sobre o desenvolvimento do processo formativo e aplicação das ferramentas/conteúdos em contexto real. Apresentam-se de seguida os módulos formativos e os seus objetivos principais.

- Acompanhamento e Gestão Alimentar 1- Perspetivar uma alimentação adequada, considerando os recursos e o contexto

económico, cultural e social.2- Compreender as dimensões da gestão alimentar: economia alimentar, eficiência

das escolhas sob o ponto de vista nutricional, satisfação de gostos e saciedade.3- Trabalhar/reconhecer a relação entre a nutrição e as desigualdades sociais.

- Higiene e Segurança Alimentar1- Compreender os princípios elementares e a metodologia da simplificação do

sistema Análise de Perigos e Controlo de Pontos Críticos (HACPP).2- Aplicar os princípios da higiene alimentar/HACCP a programas de distribuição

de alimentos.

- Exclusão e Cidadania Alimentar1- Reconhecer diferentes níveis de ação na promoção da segurança alimentar e

nutricional.2- Identificar conflitos de comunicação que obstaculizam a promoção de uma

cidadania emancipatória.3- Promover nos/as formados/as a aquisição de ferramentas analíticas para abordar

as questões da segurança alimentar e da cidadania.

- Relação e Comunicação com Ganhos em Saúde1- Aprofundar os conceitos de comunicação em saúde e literacia em saúde. 2- Reconhecer constrangimentos à saúde.3- Identificar estratégias para uma comunicação efetiva.

- Intervenção com Grupos Vulneráveis 1- Desenvolver a capacidade de co construir ações, conhecimentos e experiências

que impliquem as populações-alvo. 2- Trabalhar estratégias colaborativas e criativas de intervenção social, que assen-

tem nos recursos e potencialidades das pessoas.3- Refletir sobre os modos de atuação dos profissionais e efeitos das suas práticas

em todas as fases do processo, potenciando a construção conjunta e a reflexão sobre o mesmo.

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- Economia Social na Redução das Assimetrias1- Refletir sobre o papel e atributos das Organizações de Economia Social (OES)

e dos seus colaboradores no desenvolvimento sustentável da organização e no bem-estar dos colaboradores.

2- Promover o levantamento/identificação de problemáticas/necessidades das OES e promover a construção de soluções/ideias e a partilha de boas práticas através de uma rede de diálogo colaborativo, criativo e participativo, assente nos conceitos e princípios da Economia Social.

Ainda nesta fase, foram construídas as ferramentas de suporte ao desenvolvimento dos diferentes módulos, sob a forma de guia e/ou manual de formação, tendo como ob-jetivo potenciar a aplicação dessas dinâmicas/ferramentas nas práticas dos profissionais a abranger. Avançou-se, ainda, com os planos de formação e de sessão, de acordo com os conteúdos programáticos dos módulos.

Este processo não foi, no entanto, estático, tendo-se produzido alterações ao longo do tempo, em conformidade com os ajustes e mudança das estratégias que foram sendo adotadas, considerando o retorno dos grupos e instituições envolvidas, assim como os momentos de reflexão que a própria equipa preconizou.

Fase II: Divulgação do projeto e ações formativas Nesta fase avançou-se com uma ampla e abrangente divulgação do projeto junto de

profissionais (de saúde, serviço social, técnicos/colaboradores de ONG’s, profissionais municipais, etc.), de instituições públicas e privadas da região norte, com intervenção com populações socialmente vulneráveis. Constituiu-se, para este efeito, uma mailing list de cerca 3.500 contactos, que ativamente foram utilizados para este processo, de forma transversal ao desenvolvimento de todas as ações do projeto e continuamente.

Para este processo foram utilizadas, ainda, as redes sociais e outros canais de divulga-ção da LPPS, procurando chegar-se a um número o mais alargado possível, não só de profissionais, como de instituições do terceiro setor e do setor público.

Neste processo de divulgação, a FPCEUP recorreu, de igual forma, aos seus recursos comunicacionais para ampliar os potenciais candidatos dos ciclos formativos do projeto SIMETRIA.

Fase III: Implementação e desenvolvimento das ações formativas O processo de divulgação e comunicação do projeto cedo produziu os resultados

desejados, com a inscrição aproximada de 100 profissionais; em maio estavam a iniciar--se os primeiros três ciclos formativos: dois em horário pós-laboral e um em horário laboral, distribuídos entre a LPPS e a FPCEUP.

Os profissionais inscritos eram provenientes, essencialmente, das áreas social, de saú-de e educação, oriundos de organizações do terceiro setor (IPSS’s ou outro tipo de associações) e do setor público (escolas e autarquias).

Numa segunda fase, a área geográfica de intervenção do projeto foi alargada, abran-gendo outros distritos e concelhos, como sejam os de Braga e de Arouca. No primeiro

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caso, foram integrados profissionais de várias instituições deste distrito; no segundo caso, apenas foram incluídos os/as técnicos/as/profissionais do Patronato – Centro So-cial e Paroquial Rainha Santa Mafalda, ao abrigo do acordo de parceria formalizado com esta instituição na candidatura do projeto.

Iniciou-se, aqui, uma mudança de estratégia, ao vocacionarem-se os ciclos formati-vos para contextos institucionais específicos, abrangendo os seus técnicos/as e agentes operacionais. Esta opção permitiu um maior enfoque da formação em determinadas temáticas, atendendo às áreas de intervenção e necessidades identificadas pelas próprias instituições. Por conseguinte, facilitou a interação dos grupos, tendo em vista o reforço de competências e o envolvimento dos/as participantes, quer no processo formativo, quer na vida organizacional, potenciando uma melhor comunicação e motivação, es-senciais à eficácia do trabalho com os grupos-alvo.

A partir de setembro de 2015, a replicação dos ciclos formativos em contextos ins-titucionais intensificou-se, constituindo-se oito acordos de parceria com instituições que identificaram potencialidades neste modelo. As instituições implicadas abrangem, de igual forma, uma grande variedade de públicos, designadamente crianças/jovens em contexto escolar e institucionalizadas, beneficiários do RSI, gestores de cantinas sociais, idosos e cidadãos dependentes de substâncias lícitas e ilícitas, entre outros. A heterogeneidade de profissionais e de públicos-alvo evidenciou-se como um aspeto po-sitivo do projeto SIMETRIA, exigindo, por conseguinte, uma adaptação constante dos diferentes módulos em termos de conteúdos e dinâmicas. Ainda ao nível das adaptações que foram realizadas nos ciclos formativos como sequência da mudança de estratégia, destacam-se: (i) o aumento de atividades práticas/dinâmicas de grupo; (ii) o reforço da formação com ferramentas a aplicar no terreno na área da alimentação/nutrição, devi-damente validadas para os diferentes públicos; e (iii) o reforço de comunicação entre formadores para uma maior adequação dos conteúdos e métodos a cada grupo.

A abrangência de instituições e profissionais envolvidos foi relevante também em termos geográficos, alcançando-se vários contextos urbanos, semiurbanos e rurais dos distritos do Porto, Braga e Aveiro.

Esta abrangência local e regional do projeto permitiu contribuir para o reforço da capacidade dos atores socais dos diferentes meios e contextos, bem como da sua partici-pação nos processos de decisão política ao nível local, territorial e nacional. Do mesmo modo, esta aproximação às comunidades através dos diferentes profissionais e da sua relação de proximidade com as pessoas e grupos vulneráveis foi entendida como uma estratégia para melhorar a nutrição e a alimentação das famílias, aspeto essencial para se poderem corrigir distúrbios alimentares ao longo do ciclo de vida.

5.3 Principais resultados

O projeto SIMETRIA implementou 15 ações formativas, promovendo o desenvolvi-mento de competências em áreas relacionadas com a promoção da alimentação saudá-vel e da segurança alimentar (food security), higiene e segurança alimentar (food safety), estratégias de comunicação e de intervenção com grupos vulneráveis, assim como a desconstrução do papel da economia social na redução de assimetrias sociais.

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Nas ações formativas foram envolvidos 231 participantes, entre técnicos, profissio-nais, agentes operacionais, voluntários e estudantes, de 71 instituições da região norte, com intervenção com diferentes públicos-alvo já referenciados e problemáticas diversi-ficadas, designadamente o desemprego, a toxicodependência, a institucionalização de crianças e jovens, e o fenómeno da pobreza e/ou exclusão de forma transversal.

Podemos estimar que os beneficiários indiretos do projeto de formação sejam mais de 5.000 pessoas, considerando o número de profissionais e instituições que integraram o processo.

Destas ações destacam-se, ainda, como resultados i) o aprofundamento de conheci-mentos sobre nutrição e segurança alimentar; ii) o reforço de competências ao nível da comunicação e relação com as pessoas em situação de maior vulnerabilidade que pos-sam facilitar mudanças a nível alimentar e acesso à saúde; e iii) a criação e dinamização de espaços de partilha e reflexão sobre práticas instaladas e a melhorar, entre outros.

6. Oficinas temáticasNa linha dos ciclos formativos, as oficinas temáticas constituíram um importante

instrumento para colocar em perspetiva os conhecimentos e as competências dos par-ticipantes, enfatizando as estratégias que estes desenvolvem em contexto profissional e as limitações que nele encontram. Desta feita, as oficinas temáticas tinham como obje-tivos proporcionar condições para a aquisição e consolidação de saberes para aplicação em situações práticas, admitindo que as ferramentas a utilizar nestas oficinas partiriam de experiências trazidas pelos próprios formandos.

Ainda que norteadas pelas mesmas finalidades dos ciclos formativos, as oficinas temá-ticas visavam a coprodução de sentido(s) com base em práticas simuladas e exercícios inspirados em vivências reais do trabalho de intervenção junto de grupos em situação de desfavorecimento socioeconómico. Pretendiam, adicionalmente, explorar ferramen-tas e métodos de avaliação atendendo a grupos e problemáticas específicos. Dirigiam-se ao mesmo público participante nos ciclos formativos, envolvendo, por isso, profissio-nais de organizações com intervenção social junto de públicos vulneráveis.

6.1 Metodologia

Em termos metodológicos, as oficinas temáticas pautaram-se pela adoção de abor-dagens participativas, nas quais os participantes pudessem envolver-se no sentido da identificação e do desenvolvimento dos seus próprios recursos, privilegiando espaços de partilha e de análise conjunta de situações, quer hipotéticas, quer reais. A este respeito, mobilizaram-se técnicas metodológicas combinadas, pendendo, essencialmente, entre trabalho individual e de grupo e incluindo exercícios de role play, dinâmicas de grupo, análise de problemas em contexto com recurso a vídeos, questões-problema e resolução de problemas. Todos os desafios lançados estavam intrinsecamente ligados a situações advindas de experiências vivenciadas pelos formandos e almejavam a melhoria das prá-ticas dos profissionais e, consequentemente, das respostas das organizações.

O facto de as oficinas terem sido pensadas a partir da experiência, das expectativas e das necessidades dos participantes nos ciclos formativos permitiu, por um lado, focar

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objetivos e temáticas e, por outro, orientar todas as atividades e exercícios no sentido de potenciar um maior envolvimento por parte das pessoas implicadas. Neste sentido, também no que toca à avaliação das oficinas, procurou criar-se condições para reconhe-cer as vivências dos participantes, refletindo-se acerca das potencialidades inerentes à sua intervenção enquanto profissionais e da forma de replicar os seus efeitos. Optou-se por triangular registos de reflexões pessoais em torno de situações da prática concreta com inquéritos por questionário para aferição de conhecimentos sobre conteúdos e estratégias nucleares atendendo às temáticas em questão.

6.2 Principais fases

Fase I: Preparação, elaboração e definição de conteúdos programáticos Os conteúdos a explorar nas oficinas foram selecionados e construídos a partir da

experiência dos ciclos formativos. Ou seja, a sua definição resulta de um conjunto de necessidades identificadas pelos formandos, nomeadamente ao nível do ajustamento da informação, da procura por instrumentos específicos e/ou do aprofundamento de determinada temática ou técnica. Assim, mais do que pensar num quadro concetual transversal a organizações e técnicos, conforme se previu no planeamento dos ciclos formativos, as oficinas foram orientadas para trabalhar conceitos e estratégias relativa-mente concretas em estreita relação com as práticas quotidianas dos participantes. Nes-te sentido, assumiu-se que faria sentido aprofundar as questões do acesso e do direito à alimentação e à saúde pelas pessoas idosas e pelas famílias em situação de desfavoreci-mento socioeconómico, avançando-se com duas ofertas distintas:

- Oficina “Pessoa Idosa: Acompanhamento Nutricional e Cidadania”, cujos ob-jetivos se centraram em refletir sobre a pessoa idosa enquanto cidadã, nomeadamente no que concerne ao direito à alimentação e à saúde, compreender as relações entre alimentação, nutrição e processo de envelhecimento, explorar ferramentas de avaliação nutricional da pessoa idosa e identificar estratégias de adaptação da dieta alimentar à pessoa idosa.

- Oficina “Famílias em Vulnerabilidade Socioeconómica: Acompanhamento Nu-tricional e Cidadania”, orientada para explorar recomendações nutricionais e alimen-tares ajustadas a situações específicas da prática diária dos técnicos, identificar estraté-gias e ferramentas de gestão económica e alimentar para trabalhar com os agregados familiares em situação de vulnerabilidade socioeconómica e discutir casos práticos com sugestões de trabalho potenciadoras de uma intervenção emancipatória.

Cada uma destas oficinas teve a duração de 15 horas e incluiu uma equipa de forma-dores de áreas da Psicologia e da Nutrição relativamente constante. Foi realizado um total de sete oficinas.

Fase II: Divulgação das oficinas temáticas As atividades desta fase tiveram como ponto de partida contactos anteriores estabele-

cidos, quer com profissionais já envolvidos nos ciclos formativos e com as suas institui-ções, quer com as entidades parceiras e outras também implicadas no projeto nas suas demais atividades. Neste sentido, foram privilegiadas bases de dados com contactos já

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existentes de profissionais (de saúde, serviço social, técnicos/colaboradores de ONG’s, profissionais municipais, etc.), de instituições públicas e privadas da região norte, com intervenção com populações socialmente vulneráveis. A aliar a este processo, foram, igualmente, disseminadas informações sobre as oficinas através das redes sociais e do website do projeto, tendo estado a FPCEUP igualmente ativa na divulgação destas ofer-tas.

Fase III: Implementação e desenvolvimento das oficinas temáticas Sem grande supressa, as oficinas temáticas despertaram o interesse de participantes

no projeto SIMETRIA, designadamente nos ciclos formativos, implicando, assim, um número considerável de inscritos desde os primeiros investimentos ao nível da divulga-ção desta oferta. As oficinas foram realizadas no Porto (LPPS e FPCEUP), Matosinhos, Braga e Fafe.

À semelhança dos ciclos formativos, os profissionais inscritos nas oficinas eram provenientes, essencialmente, de áreas sociais, da saúde e da educação. De comum, manifestavam interesse em ver esmiuçadas questões que os ciclos formativos não puderam, pela sua natureza transversal, abordar em profundidade. Assim, ao longo da oficina sobre o trabalho com a Pessoa Idosa procurou trabalhar-se em torno da ex-periência de acompanhar/assistir às alterações físicas, biológicas e sociais que ocorrem no processo de envelhecimento, refletindo sobre potenciais estratégias para promover bem-estar e assegurar acesso e direitos. No que concerne à oficina sobre as Famílias em vulnerabilidade socioeconómica, as atividades foram orientadas para identificar e ajus-tar práticas alimentares recorrentes das famílias e/ou outros públicos acompanhados pelos participantes nesta oferta.

6.3 Principais resultados

Em termos de resultados, destaca-se o envolvimento de 55 participantes, entre eles profissionais, técnicos e voluntários, cujo trabalho passa pela intervenção prioritária com a população sénior e famílias em situação de vulnerabilidade (maioritariamente beneficiárias do RSI). Similarmente, regista-se a implicação de 26 instituições ou gru-pos locais de ação e o interesse manifestado por tantas outras durante e após a conclusão do projeto SIMETRIA. Finalmente, salienta-se o facto de terem sido desenvolvidas inúmeras estratégias com vista ao treino de competências práticas, as quais resultaram efetivamente em alterações de práticas por parte de alguns participantes nas oficinas. A este respeito, através dos inquéritos por questionário e de algumas conversas para efeitos de monitorização e avaliação desta vertente do projeto SIMETRIA, constatou-se que, particularmente ao nível da abordagem com os utentes ou beneficiários, a estratégia do profissional/técnico/voluntário foi intencional e progressivamente revista no sentido do reconhecimento da situação de vulnerabilidade, deslocando o foco, antes concentrado na pessoa beneficiária e agora no problema que a leva a beneficiar de apoio. Do mesmo modo, e ainda que reclamem políticas de nível macro diferentes das atuais, alguns par-ticipantes nas oficinas temáticas salientaram, também, a tendência para evitar/recusar tratamentos meramente assistencialistas.

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7. A experiência da consultoriaEntre as demais estratégias de intervenção comunitária nas mais variadas áreas de

trabalho com grupos e instituições, a consultoria pode revelar-se um processo de reso-lução de problemas extremamente interessante (Menezes, 2007). No caso do projeto SIMETRIA, a experiência de consultoria decorreu junto de quatro instituições com atuação em áreas sociais e com públicos em situação de vulnerabilidade socioeconómi-ca, da zona norte do país. Os seus principais objetivos visavam a identificação de poten-cialidades e dificuldades das instituições, orientando para a melhoria das suas práticas (designadamente nas áreas de higiene e segurança alimentar, gestão de ementas, gestão de cantinas, recursos humanos, etc.), assim como estratégias facilitadoras do trabalho com os seus grupos mais vulneráveis na área da alimentação.

Em termos práticos, o que se propôs com o desenvolvimento de processos de consul-toria passou, essencialmente, pela re/construção de conhecimento com os profissionais destas organizações sobre os principais problemas na sua ação com implicações ao nível das desigualdades sociais e nutricionais das populações que servem. Entendeu-se que este exercício facilitaria o surgimento de alternativas de ação contextual e contingente-mente viáveis e que transformaria as práticas, contribuindo, assim, para o aumento da qualidade do apoio prestado e para a redução das desigualdades sociais e nutricionais. Simultaneamente, a adoção da consultoria como estratégia de intervenção no projeto SIMETRIA pressupôs a criação de novo saber contextualizado e útil sobre as popu-lações vulneráveis servidas, os modos de atuação dos profissionais, os efeitos das suas práticas, assim como sobre alternativas de ação encontradas.

A literatura dá conta de um manancial muito significativo de práticas de consultoria, nas mais diversas áreas e de tipos variados (Hansen, Himes, & Meier, 1990; Hawkins & Smith, 2006). No projeto SIMETRIA privilegiou-se a consultoria colaborativa, pautando o trabalho desenvolvido num registo de horizontalidade, em que o ‘saber especializado’ da equipa de consultores não deveria sobrepor-se ao da equipa das ins-tituições envolvidas no projeto. Desta feita, este “tipo de relação de ajuda em que um profissional de serviços humanos (consultor) assiste uma outra pessoa (consulente) de forma a resolver um problema, relacionado com o trabalho” (Dougherty, 1994, 12) foi tido em consideração, admitindo-se que, ao longo do projeto SIMETRIA, em todas as etapas consultor e cliente seriam parceiros, estabelecendo, para o efeito, relações de empatia e cooperação.

7.1 Metodologia

Apesar de ter sido pensada para decorrer antes dos ciclos formativos, a experiência da consultoria acabou por passar para uma fase posterior, tendo lugar depois de os primei-ros cursos de formação terem iniciado e a par dos últimos. Neste sentido, por um lado, absorveu parte significativa de pistas deixadas ao longo dos primeiros cursos de forma-ção e, por outro, informou as ofertas formativas com resultados decorrentes dos proces-sos de consultoria nas mais diversas instituições. Salienta-se, ainda, que alguns elemen-tos da equipa de consultores pertenciam, simultaneamente, à equipa de formadores, reconhecendo-se nesta partilha de papéis a possibilidade de veicular conhecimentos e

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experiências de uma para outra vertente de intervenção do projeto SIMETRIA.Em termos metodológicos, destacam-se algumas dimensões relevantes, designada-

mente a definição prévia de papéis e a sequência de etapas previstas em processos de consultoria. Assim sendo, a relação entre os intervenientes, designadamente equipa de consultoria e equipa institucional, não se baseou na figura do consultor expert a apre-sentar soluções únicas e de aplicação unilateral. Pelo contrário, à figura do consultor – entendido na versão clássica como alguém geralmente externo à organização ou insti-tuição e sem envolvimento na implementação de ações decorrentes do processo de con-sultoria na organização ou instituição – associou-se a do facilitador, isto é, alguém cuja atuação deveria passar pela análise conjunta, em estreita relação com os intervenientes nas/das instituições, das suas dinâmicas, potencialidades e fragilidades e consequente co elaboração de propostas e colaboração na sua operacionalização (Hansen, Himes, & Meier, 1990; Menezes, 2007). Assim, a partir do entendimento desta figura e do exercício esperado a seu respeito, foi condição transversal a todas as experiências de consultoria desenvolvidas no âmbito do projeto que os processos decorressem de modo co construído, com implicação dos atores, dos diferentes níveis em termos de função e liderança. Esta dimensão multinível foi concretizada de forma distinta de instituição para instituição, embora anunciada e explorada intencional e sistematicamente.

No que toca à avaliação, os processos de consultoria foram avaliados de forma con-tínua e com recurso à partilha e análise de registos avulsos e notas de terreno de cada um dos elementos da equipa de consultores, bem como a reuniões com atores das instituições e com a equipa de consultores. Destes elementos foram resultando rela-tórios com indicadores relativos a processos e resultados, assim como pistas para fases subsequentes.

7.2 Principais fases

As fases que se seguem inspiram-se no modelo de Hansen, Himes e Meier (1990), também trabalhado por Menezes (2007), que elenca cinco estádios do processo de consultoria.

Fase I: Pré-entradaA primeira etapa do processo de consultoria nas diferentes instituições pressupõe,

naturalmente, uma análise detalhada do contexto destas instituições, no que concerne aos seus modos, públicos, dimensões, abrangência… de trabalho. Existia, de facto, uma diversidade considerável no espectro das instituições envolvidas, destacando-se, nomea-damente, os seus grupos-alvo: crianças e jovens em risco, pessoas idosas, beneficiá-rios do RSI, pessoas dependentes de substâncias ativas e pessoas com incapacidade. Os contactos iniciais com as instituições aconteceram de forma distinta e em momentos dissemelhantes e, ainda assim, foram colocadas questões relevantes do ponto de vista da relação a estabelecer-se no âmbito do processo de consultoria, tais como: “avançar com o processo de consultadoria nesta situação?”, “qual é o foco da consultadoria?” (Mene-zes, 2007, 87). Estas questões e hesitações resultaram de fatores diferentes, designada-mente o tempo disponível para iniciar o processo de consultoria e o público-alvo da

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instituição, e relacionaram-se inevitavelmente com a necessidade de clarificar o objeto da consultoria – pois, em alguns casos, os objetivos dos profissionais das instituições envolvidas pareceram de tal modo ambiciosos e diversos que se tornariam difíceis de alcançar com o desenvolvimento da consultoria. De qualquer modo, esta fase de pré--entrada foi basilar para que a equipa de consultores tivesse uma noção mais objetiva das características, dos recursos e dos modos de funcionamento gerais das instituições potencialmente implicadas em processos de consultoria.

Fase II – Contactos iniciaisDurante a segunda etapa estabeleceram-se contactos relevantes no sentido de aferir

a abertura e a implicação dos diversos agentes das instituições para a mudança e a in-tervenção (Manthei, 1997). Ou seja, entendeu-se este momento como “um período de análise de expectativas e objectivos [sic] da consultoria, das ‘agendas’ ocultas, da compa-tibilidade das competências, em que se [iria] definir e chegar a um acordo quanto aos papéis das partes envolvidas” (Menezes, 2007, 88). Questões como “há disponibilidade para a mudança?”, “podemos desenvolver uma intervenção?”, “temos condições para compreender de forma participada a situação/problema do consulente e do seu clima de trabalho?” foram amplamente debatidas pela equipa do projeto, particularmente pelos consultores envolvidos. Entendeu-se que, no caso das quatro instituições com as quais se desenvolveram processos de consultoria, haveria condições para avançar. Neste sentido, definiram-se e clarificaram-se aspetos fundamentais, tais como serviços provi-denciados pela equipa de consultores, horários e permanência temporal nas instituições, abordando-se, igualmente, os contornos da relação entre consultor e consulente (ins-tituição ou organização), designadamente ao nível da sua colaboração mútua no pro-cesso. Foi, precisamente, o reconhecimento de que a construção de relações empáticas pode concorrer para a expressão livre, baseada em respeito e honestidade, que pautou a consultoria em todas as instituições implicadas neste sentido no projeto SIMETRIA.

Fase III – Avaliação e definição do problemaDurante esta etapa foram recolhidos dados e definido o problema ou conjunto de

problemas em cada uma das instituições envolvidas. Foram utilizadas metodologias diversas, entre as quais se destacam entrevistas, questionários anónimos e análise do-cumental, essenciais para a obtenção de informação junto dos atores dos mais variados níveis de liderança das instituições e para o aprofundamento do(s) problema(s). Na sequência deste registo e análise de dados, a formulação do(s) problema(s) e o estabele-cimento das prioridades para prioridades em termos de proposta de resolução decorreu, em todas as instituições, de forma profundamente partilhada. Ainda que os consensos tenham tido contornos distintos em termos de negociação e discussão de perspetivas, a sua averiguação verificou-se em todas as instituições. Naquelas em que, nas primeiras etapas deste processo de exploração de propostas, não se alcançaram decisões consen-suais, redefiniram-se prioridades e reformularam-se objetivos. Para tal, a identificação de recursos disponíveis e tarefas a desempenhar por todos os envolvidos foi essencial, bem como a assunção de responsabilidades.

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Fase IV – IntervençãoDepois de reunidos consensos em torno das propostas de alteração e/ou melhoria

junto das instituições envolvidas no processo de consultoria, avançou-se para a imple-mentação das mesmas. Naturalmente, em cada uma das instituições implicadas foram identificadas alternativas de intervenção específicas – não fossem os contextos substan-cialmente distintos entre si e os objetivos igualmente dissemelhantes – registando-se, por isso, etapas de planeamento e sequência de atividades de intervenção muito diferen-tes. Destaca-se, assim, um conjunto de estratégias decorrentes de objetivos particulares em cada instituição, nomeadamente para i) a diminuição de sal e gorduras através da disponibilização de unidoses para os utentes da instituição, ii) o aumento da partici-pação dos utentes na decisão/seleção e confeção de ementas com recurso a alimentos saudáveis, iii) o fomento de trabalho em equipa multidisciplinar no sentido da partilha de responsabilidades em torno da promoção de atividades cujo intuito é a monitoriza-ção e motivação para consumos alimentares salutares; iv) o incremento de condições de trabalho em cozinhas no sentido de assegurar higiene e segurança alimentar através da aquisição de equipamento mais adequado;….

Uma nota relevante a ter em atenção nesta fase de intervenção remete para a definição de papéis e responsabilidades entre as pessoas implicadas no processo de consultoria, quer da equipa da instituição em questão, quer da equipa de consultores. Explica Me-nezes (2007, 91) que o “consultor deve ser visto como um recurso à disposição do(s) consulente(s) e não como um protagonista do processo”. Ou seja, resistir à pressão de um envolvimento que resulta na duplicação e, não raras vezes, de substituição de fun-ções nucleares na atividade dos técnicos das instituições constituiu um exercício recor-rente da equipa de consultores. Do mesmo modo, ao longo desta fase de intervenção e, portanto, a par da implementação de alternativas e propostas de melhoria, a capacitação dos técnicos e atores das instituições para o desempenho de funções de forma autónoma e reflexiva findo o processo de consultoria foi uma mensagem-chave que a equipa de consultores transmitiu.

Fase V – FinalizaçãoDa fase da finalização fez parte a avaliação do processo de consultoria nas quatro

instituições envolvidas. À semelhança do que aconteceu nas fases anteriores, a avaliação decorreu de forma partilhada, permitindo a reflexão sobre o processo e o resultado da experiência de consultoria. Isto é, esta fase privilegiou a análise de todas as etapas prévias e as razões pelas quais se avançou com o desenho da intervenção. Mais, nesta etapa de finalização, a reflexão em torno da forma de manutenção das ações propostas e efetivamente iniciadas foi nuclear para que a equipa de consultores pudesse desinvestir progressivamente no processo de mudança institucional, dando espaço aos seus agentes para o exercício autónomo das ações decorrentes da consultoria.

A este respeito, foi crucial o registo sistemático, quer através de notas de terreno e es-quemas, quer através de relatórios, de dados recolhidos nas quatro instituições ao longo do tempo. O exercício reflexivo da equipa de consultores e a prática de interrogar no

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seio de uma equipa multidisciplinar revelou-se exigente mas, ao mesmo tempo, parti-cularmente enriquecedora no sentido da consistência que surtiu em termos de processo de consultoria ao longo do tempo. Em cada uma das instituições foram realizadas reu-niões, nesta fase final, para análise da evolução do processo de consultoria, seus efeitos, potencialidades e limitações.

7.3 Principais resultados

De instituição para instituição destacaram-se resultados distintos, quer no que con-cerne a processos, quer no que toca a resultados. A este respeito, considera-se funda-mental reconhecer que a natureza – de trabalho, público(s)-alvo, dinâmica(s), etc. – das instituições que acolheram processos de consultoria foi condição diferenciadora a ter em consideração nestes processos. Neste sentido, salientam-se, ao nível dos processos de consultoria, alterações do ponto de vista da implementação de ações efetivas para uma participação mais ativa de utentes na tomada de decisões relativas a ementas servidas pela instituição, da adoção de hábitos de registo e procedimentos de avaliação para efei-tos de partilha de informações relevantes (como seja a avaliação das refeições fornecidas pela instituição, etc.) e desenho de estratégias subsequentes, e da atribuição ou redefini-ção de funções de técnicos no sentido do melhoramento de serviços institucionais e da eficácia de resposta de forma geral, entre outras.

Em termos de resultados do processo de consultoria, sublinha-se a produção de um guia para confeção de receitas saudáveis, a proposta e (em alguns casos) inscrição efetiva em ações de formação complementares relacionadas com temas de saúde e alimentação saudável, a aquisição de equipamento para efeitos de segurança e higiene alimentar, e um conhecimento mais profundo e abrangente em termos de literacia em saúde por parte dos técnicos das instituições envolvidas. Outros indicadores de análise elencados para alcançar os objetivos da consultoria, tais como a redução de toma de medicação para colesterol, etc., encontram-se, ainda, em fase de monitorização, pelo que não se tecem considerações conclusivas a respeito dos mesmos.

De forma transversal a todas as instituições, destaca-se o reconhecimento da expe-riência de consultoria como algo que se transporta, embora não se reproduza. Ou seja, ainda que alguns objetivos possam ter sido semelhantes de instituição para instituição, a forma de se operacionalizarem as propostas de intervenção não foi passível de se repli-car, dada a especificidade dos contextos e dos seus atores. A este respeito, a redução do sal e das gorduras, assim como o aumento da adesão de utentes a atividades relacionadas com a promoção da saúde e da alimentação saudável, eram metas comuns; no entanto, numa das instituições passaram pela implementação de estratégias distintas. Considera--se, assim, que o reconhecimento da diversidade pela qual a experiência da consultoria foi pautada – traço, aliás, omnipresente em todas as vertentes do projeto SIMETRIA – revelou-se uma dimensão com particular potencial para a promoção dos direitos e do acesso à igualdade nutricional e social.

8. ConclusãoEm síntese, a intervenção do projeto SIMETRIA, através das suas várias ações jun-

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to de profissionais e, de resto, instituições com atuação com públicos em situação de vulnerabilidade, permitiu colecionar um vasto conjunto de experiências, registando, também, um manancial significativo de testemunhos. Um exemplo concreto, ilustrati-vo do impacto do projeto nas práticas dos profissionais junto dos seus público-alvo, é o caso do Serópio (nome fictício), utente de um dos projetos beneficiários do projeto SIMETRIA. Concretamente, o Serópio está integrado num projeto que intervém na área da toxicodependência e redução de danos. No âmbito de uma atividade extra do projeto SIMETRIA – realizada no dia mundial da saúde – a equipa do projeto con-tactou, no terreno, com estes utentes. O Serópio é um desses utentes, vive com a mãe, uma senhora idosa, cabendo-lhe a responsabilidade pela alimentação da mesma. Seró-pio revela-nos, entre outros aspetos, “agora faço sempre sopa... foi a Dra. X que me esteve a explicar...”. A Dra. X foi formanda do projeto SIMETRIA e relatou-nos que, após a formação, passou a trabalhar de forma diferente estas questões da alimentação com estes utentes, e acrescenta “[...] e hoje à tarde vou a casa do Serópio, é a visita domiciliária, vou verificar se ele já está mesmo a fazer a sopa,... sei que já tem a panela... falta a varinha mágica... mas mesmo que ainda não esteja, percebeu a mensagem”.

Destaca-se, também, o exercício de repensar formas de trabalho sublinhado por al-guns participantes no projeto. Veja-se, a título de exemplo, o discurso de Sara (nome fictício), que afirma: “partilhamos experiências e isso é bom, percebemos que podemos pro-mover uma alimentação saudável com outras estratégias. Por exemplo, ao ouvir as minhas colegas, pensei logo em fazer alterações na forma como a cozinha trabalha e nos pratos que podemos servir”. Como anteriormente foi referido, indiretamente beneficiaram com o SIMETRIA pessoas com RSI, pessoas idosas, crianças e jovens, cidadãos portadores de múltiplas deficiências e cidadãos dependentes de substâncias psicoativas, entre outros. A este respeito, reporta a coordenadora de uma delegação da Cruz Vermelha na área metropolitana do Porto que “realmente, não basta só dar a comida. Ainda não sei como vamos fazer, mas o ideal seria que todos os meses os beneficiários tivessem uma sessão prática de culinária. Os alimentos distribuídos são quase sempre os mesmos, é importante procurar receitas diferentes e incentivar o uso de métodos mais saudáveis”.

Também a história que decorreu numa das instituições acompanhadas denota como uma mudança de paradigma pode surtir efeitos positivos em termos de ganhos em saúde. Quando a equipa entrou na instituição, uma das principais queixas dos técnicos referia-se à resistência das 52 jovens institucionalizadas relativamente às refeições aqui confecionadas. Estas, com idades entre os 10 e os 18 anos, negavam-se frequentemente a comer o que era servido, preferindo alimentos açucarados e/ou fritos, afastando-se dos padrões de uma alimentação saudável, defendida pela instituição. Percebia-se nestas jovens, afastadas das famílias de origem, diversas fragilidades e carências emocionais que, de alguma forma, procuravam compensar por via da alimentação, sobretudo nos alimentos açucarados ou mais ricos em gorduras. Do trabalho que viria a desenvolver-se com os profissionais e as jovens, para além das questões alimentares, a comunicação, a assertividade e o relacionamento interpessoal foram parte de um processo que resultou na integração das próprias jovens na construção das ementas. Esta integração neste processo de decisão, sendo difícil e moroso, devido a algumas resistências iniciais de não

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implicação e/ou assunção de responsabilidades por parte das jovens, permitiu desenvol-ver um sentimento de reconhecimento e pertença importante, num contexto que, para todos os efeitos, passou a ser, ainda que temporariamente, a sua casa. Resultou, ainda, numa maior aceitação da comida da instituição, sendo possível compreender as suas limitações e a necessidade de se promoverem padrões alimentares saudáveis.

Em suma, da reflexão em torno das atividades e dos principais resultados do projeto SIMETRIA sai reforçada a ideia de que o trabalho de promoção de saúde é, de facto, longo e requer o envolvimento ativo de um conjunto vasto de atores.

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PARTE II

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DIMENSÃO SIMBÓLICA E AFETIVA DA ALIMENTAÇÃO.ESCOLHA ALIMENTAR: UMA EXPERIÊNCIA MULTIDIMENSIONAL

Inês Areal Rothes e Sílvia Cunha

1. IntroduçãoA alimentação desempenha um papel fulcral na formação da identidade de cada um.

A forma como o ser humano, individualmente ou em grupo, come permite, por um lado, afirmar a sua identidade e unicidade e destacá-lo dos restantes e, em simultâneo, identificar a sua diversidade, as suas estruturas organizativas e relações hierárquicas. O indivíduo é construído pelos alimentos que escolhe incorporar em si, quer do ponto de vista biológico, quer psicológico e social (Fischler, 1988). De uma forma metafórica, “somos o que comemos” e, simultaneamente, comemos o que somos, o que sentimos e como estamos!

As decisões das escolhas alimentares são influenciadas por um variado número de fa-tores, quer externos, quer internos (e.g. Sobal & Bisogni, 2009). A comida e as decisões em torno da mesma são um processo universal, enquanto necessário à sobrevivência e saúde do ser humano, e, ao mesmo tempo, são um fenómeno individual, marcado pela cultura e contexto simbólico, pela história e pelo tempo, e pelo desenvolvimento histórico e pessoal.

O Homem, como ser omnívoro que é, terá, à partida, uma maior liberdade de escolha alimentar. No entanto, as suas escolhas sofrerão sempre uma profunda influência, não só dos fatores que o definem e caracterizam, como, também, do meio e da sociedade que o rodeiam. Poulain (2002) sugere que a ingestão alimentar se desenvolve de acordo com as regras definidas pela sociedade onde o indivíduo se insere, permitindo que o mesmo se identifique com os alimentos nas suas diversas representações simbólicas. Esclarece o autor que este processo alimentar inclui desde a forma como os alimentos são preparados ou confecionados até aos rituais em torno do ato alimentar, passando,

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ainda, pela própria forma como os alimentos são apresentados (Poulain, 2002). Os indivíduos, ao identificarem os alimentos como próprios para o seu consumo, inserem--nos num sistema global, num conjunto coerente de regras, transformando-os em co-mida, atribuindo-lhes um significado e uma identidade que procuram também para si mesmos (Fischler, 1988).

Este capítulo descreve a natureza multifacetada e complexa do processo de escolha alimentar, salientando as dimensões simbólica e afetiva que a comida e aquilo que co-memos incluem. Neste sentido, começa por abordar alguns modelos conceptuais sobre o processo da escolha alimentar propostos por diferentes autores, explorando, de segui-da, as dimensões sociocultural, simbólica, psicológica e afetiva da alimentação. O capí-tulo termina com uma reflexão das autoras, tendo por base a sua experiência enquanto formadoras, que o projeto SIMETRIA proporcionou.

2. Modelos conceptuais da escolha alimentarNo âmbito da escolha alimentar existem diferentes abordagens e modelos concep-

tuais que pretendem explicar como variáveis biológicas, psicológicas, socioculturais, antropológicas e económicas, entre outras, influenciam a escolha alimentar. As teoriza-ções existentes resultam de várias disciplinas, designadamente a educação, as ciências da nutrição, as ciências do comportamento, da saúde, do marketing e a economia, sendo que a escolha alimentar e aquilo que influencia este processo têm sido alvo de interesse científico desde há várias décadas. Diferentes autores apontam Lewin (1943) como um pioneiro na área, ao considerar a escolha alimentar como um processo complexo e multifatorial (e.g. Furst, Connors, Bisogni, Sobal, & Falk, 1996; Gedrich, 2003). Em termos gerais, e correndo-se o risco de não incluir todo o tipo de abordagens exis-tentes, é possível organizar os modelos teóricos ou interpretativos encontrados em três grandes grupos: modelos sócio-ambientais ou ecológicos, modelos psico-motivacionais e modelos integrativos. Os primeiros privilegiam a disponibilidade e acessibilidade ambiental dos alimentos, a cultura, com os seus valores e crenças subjacentes, e os processos de influência social, dando particular relevância aos hábitos familiares, na génese das escolhas alimentares (e.g. Robinson, Blissett, & Higgs, 2013). Relativamen-te aos modelos motivacionais, privilegiando uma visão mais centrada no indivíduo, estes são, tendencialmente, centrados na mudança do comportamento e têm-se focado em dimensões psicológicas, tais como as intenções, as atitudes, o controlo do com-portamento percebido, a autoeficácia e a tomada de decisão (e.g. McDermott et al., 2015). De facto, como em outras áreas da educação e/ou da psicologia da saúde, a promoção de comportamentos saudáveis ou preventivos da doença assenta em modelos “importados” e adaptados da Psicologia da Motivação. Dentro, ainda, dos modelos psico-motivacionais encontram-se autores que defendem os comportamentos passados, os hábitos e as avaliações hedónicas enquanto as variáveis que, atualmente, melhor predizem as escolhas alimentares (Koster, 2009). Um terceiro grupo incorpora modelos que poderão designar-se de integrativos, e que se caracterizam por serem abordagens que incluem determinantes da escolha alimentar de diferentes naturezas, quer do foro mais individual, quer ambiental (e.g. Gredrich, 2003; Nestle et al., 1998). Muitos,

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porém, carecem de uma maior integração e/ou sustentação através de dados empíricos, assim como de níveis de maior elaboração relativamente às interações entre os diferen-tes fatores, através, nomeadamente, de uma maior interdisciplinaridade entre ciências e estudos (e.g. Koster, 2009).

A seguir, de forma breve, e sem a ambição de uma abordagem exaustiva, apresentam--se as ideias chave de alguns dos modelos cujas abordagens procuram ser integrativas.

Segundo Fischler (1990), o Homem, apesar das suas características omnívoras que, em teoria, lhe permitem consumir um vasto espectro de alimentos, baseia as suas es-colhas alimentares em sistemas culturais, os quais só lhe permitem alimentar-se do que é aceite culturalmente. Desta forma, a alimentação humana torna-se ambivalente e, até certo ponto, contraditória, oscilando entre dois polos: o da neofilia, enquanto disposição para a procura de novidade, variedade e mudança, e o da neofobia, como tendência para a precaução, para o medo e resistência à novidade e ao desconhecido, tendo subjacentes as especificidades individuais aquando da seleção alimentar. Neste contexto, o gosto, incluído na dimensão do prazer, subentende a transmissão e inte-gração da informação cultural, que ocorre desde a infância, através de um processo de aprendizagem ou mimetização. Assim, todos os indivíduos são suscetíveis das influên-cias sociais na adaptação dos seus gostos e preferências e, consequentemente, nas suas escolhas alimentares.

Furst et al. (1996) apresentam um modelo teórico que ilustra o processo da escolha alimentar assente em três componentes principais: o curso de vida, o conjunto de in-fluências e os sistemas pessoais do indivíduo. No curso de vida, os autores incluem os papéis pessoais e sociais, bem como o ambiente cultural e físico no qual o indivíduo está inserido. O conjunto de influências gera-se a partir do curso de vida e compreende cinco grupos principais de fatores, os quais se sintetizam a seguir: (1) uma primeira di-mensão é constituída pelos ideais, que incluem as crenças, as expectativas e os padrões; (2) o segundo conjunto compreende os fatores individuais, assentes em necessidades e preferências, tanto fisiológicas (e.g. género, idade e estado de saúde) como psicológi-cas (e.g. gosto, padrões alimentares individuais e emoções); (3) o terceiro engloba os recursos disponíveis, incluindo, quer os recursos explícitos, quer os recursos implícitos; nos primeiros estão incluídos o poder económico e aquisitivo, os equipamentos e o espaço físico, enquanto dos segundos farão parte as competências, os conhecimentos e o tempo; (4) um quarto grupo de influências corresponde ao contexto alimentar, que engloba o ambiente físico, a condição social do local onde o indivíduo se insere e os fatores relacionados com o fornecimento de alimentos, incluindo a tipologia, as fontes e disponibilidade de alimentos, relacionada, por sua vez, com fatores sazonais e de mercado; e (5) por fim, o quinto conjunto de influências corresponde à estrutura social, a qual engloba, além da natureza das relações e dinâmicas interpessoais (famí-lia, ambiente doméstico e laboral), os papéis e os significados sociais dos alimentos, prevendo, igualmente, um ambiente para a escolha alimentar, que estará na base de comportamentos particulares, nos quais os alimentos serão fornecidos através de um sistema social alimentar. As influências atrás descritas irão, por sua vez, ajudar a moldar os sistemas pessoais do indivíduo que envolvem os processos de negociação de valores

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e para o quais entra em linha de conta todo um conjunto de aspetos ligados aos ali-mentos: características sensoriais; fatores económicos; tempo disponível e facilidade de preparação e consumo; questões ligadas à saúde e à nutrição (intimamente relacio-nadas com a prevenção e/ou controlo de patologias, gestão do peso e satisfação com a autoimagem); e as preferências e necessidades das pessoas com quem se relaciona e a própria qualidade que atribui aos alimentos. De uma forma sintética, o processo de negociação de valores consistirá, então, num balanço que o indivíduo faz dos diferentes aspetos atrás descritos, e a partir do qual desenvolverá um conjunto de estratégias que conduzirão à escolha alimentar.

Nestle et al. (1998) chamam, igualmente, a atenção para a variedade de fatores que estão na base das escolhas alimentares, salientando a complexidade das interações entre as diferentes dimensões e a importância da sua compreensão para a seleção dos alvos no âmbito de uma intervenção que vise a mudança alimentar. Os autores organizam as influências da escolha alimentar em dois grandes níveis: social e individual. Relativa-mente às influências ao nível social, destacam os valores culturais e colocam, também, neste grupo as perceções, as crenças e as atitudes perante a comida, justificando que estas são construídas com base nos valores culturais. Ainda neste nível, destacam o que designam por influências sociais e os meios de comunicação e publicidade. Rela-tivamente às influências sociais, os autores referem que, na generalidade, cada um de nós ingere alimentos na presença de outros e que o convívio social é promotor de um aumento generalizado do consumo. Salientam, também, o papel fundamental que a família e o suporte social podem desempenhar em eventuais mudanças alimentares e na manutenção das mesmas. Em relação aos media, os autores referem que estes consti-tuem a principal fonte de informação acerca de alimentação e nutrição para um grande grupo de pessoas. Salientam, assim, a sua importância, sublinhando o grande poder de persuasão que os meios de comunicação podem ter. Ainda a este propósito, relembram que este poder pode ser usado num sentido positivo ou negativo e esclarecem acerca do quanto já se sabe acerca da eficácia das mensagens e sua especificidade de acordo com os diferentes grupos alvo das campanhas, destacando que nenhum tipo de mensagem se tem revelado eficaz, por si só, relativamente à manutenção da mudança comportamen-tal. A disponibilidade e variedade da comida são, também, destacadas por Nestle et al. (1998) enquanto fatores sociais poderosos para as escolhas alimentares.

Em relação ao que os autores designam por influências individuais, destacam as pre-ferências alimentares, a história da aprendizagem sobre a alimentação e comida, e o conhecimento de cada um acerca da relação entre saúde e nutrição. Os autores referem que, para muitos indivíduos, o sabor e o gosto determinam em maior escala as esco-lhas alimentares, em detrimento das considerações acerca da nutrição e alimentação saudável. Salientam, também, o jogo entre o inato e o moldado pela experiência desde muito cedo na determinação do gosto. Destacam a importância destas aprendizagens precoces, referindo, no entanto, a existência de predisposições genéticas que condicio-nam as mesmas. Relativamente ao conhecimento, os autores sublinham a ineficácia do conhecimento, por si só, na alteração das escolhas alimentares, referindo os fatores motivacionais como mediadores importantes no processo desta escolha. Salientam a

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importância do conhecimento, mas chamam a atenção para o facto de que este concor-re com outros fatores tão ou mais condicionantes (Nestle et al., 1998).

Koster (2009) é outro autor que merece ser referido por destacar a escolha alimentar enquanto comportamento complexo e determinado por uma diversidade de fatores em interação. Este autor, abordando os determinantes da escolha alimentar sob uma pers-petiva privilegiadamente psicológica e, também, do que designa por ciência do consumo de alimentos sensorial, chama a atenção para a importância da natureza inconsciente nas tomadas de decisão relacionadas com a alimentação. Defende este autor que o comportamento passado, os hábitos e a apreciação hedónica são melhores preditores da escolha alimentar que outras variáveis psicológicas, tais como as atitudes e as intenções, apontadas e estudadas em várias investigações.

Koster (2009) apresenta o modelo integrativo da escolha alimentar proposto por Mojet (2001, cit. in Koster, 2009). Este modelo, apresentado visualmente em círculo, salienta a integração de vários fatores e a necessidade de coordenação entre várias dis-ciplinas e a integração de dados produzidos pelas mesmas para a compreensão deste processo. Graficamente, esta coordenação e integração situam-se no centro e em seu torno o modelo considera seis fatores centrais principais, sendo cada um destes decom-postos em três subfactores. O primeiro designa-se por características intrínsecas dos alimentos e perceção e inclui como subdimensões: (1.1) a aparência e a interação entre sabor, cheiro e textura; (1.2) a adaptação e complexidade e (1.3) questões relacionadas com irritação, tédio e aversão. A segunda grande dimensão corresponde aos fatores biológicos e fisiológicos, e nos quais estão incluídos: (2.1) os fatores genéticos, imuno-lógicos e a imagiologia cerebral; (2.2) a idade, o género, a condição física e a acuidade sensorial; e (2.3) a fisiologia oral e gastrointestinal. O terceiro grande fator considerado neste modelo refere-se aos fatores psicológicos, que compreendem: (3.1) a cognição, as emoções, a motivação e a tomada de decisão; (3.2) a memória e as experiências de aprendizagem prévias; e (3.3) os traços de personalidade e a neofobia, ou seja, como já foi referido, a tendência para a precaução e resistência ao que é novo e desconhecido. A quarta grande dimensão designa-se por fatores situacionais e engloba: (4.1) o tempo, o meio social e o ambiente físico; (4.2) o denominado coping, a assimilação e a habi-tuação; e (4.3) a intencionalidade, as atribuições e as significações. O quinto grupo corresponde aos fatores socioculturais, que incluem: (5.1) as influências culturais e eco-nómicas; (5.2) a confiança na indústria e no governo; e (5.3) as crenças, as normas, os hábitos e as atitudes. O último conjunto de influências consideradas neste modelo são as características extrínsecas dos alimentos e as expectativas, compreendendo: (6.1) as embalagens, etiquetas e marcas; (6.2) questões ligadas à integridade e sustentabilidade; e (6.3) perceções de risco.

Embora o conhecimento sobre os fatores determinantes da escolha ou comporta-mento alimentar seja substancialmente maior agora do que há cerca de seis décadas atrás, a identificação e compilação destes fatores não é o mesmo que explicar o processo da escolha alimentar. De um modo geral, uma teoria bio-psico-social que explique o comportamento alimentar não existe ainda. Na verdade, apesar da grande produção científica desde o trabalho pioneiro de Lewin, não existe qualquer teoria explicativa

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universalmente aceite e satisfatória. A esta reflexão acrescente-se a natureza dinâmica, nomeadamente no tempo, da escolha alimentar, que poderá dificultar o estabelecimen-to de um modelo.

3. Dimensão sócio cultural e simbólicaComemos para viver. Comer é, sem dúvida, uma necessidade vital, mas o que come-

mos, quando comemos, com quem comemos e como comemos implica, não apenas o suprimento da necessidade fisiológica, mas, também, um sistema complexo que suben-tende a atribuição de significados distintos à alimentação.

Exatamente pelas características omnívoras, atrás descritas, o desenvolvimento de diferentes hábitos alimentares nos humanos, pertencentes a diferentes grupos e subgru-pos culturais, é prova de que o alimento – e, mais concretamente, a comida – é mais do que apenas um veículo de nutrientes necessários ao crescimento, desenvolvimento e manutenção da vida. Os diferentes grupos sociais usam alimentos simbolicamente, resultando numa imensa variedade e património cultural. Dito de outra forma, o que transforma os alimentos em comida é a cultura, enquanto sistema simbólico, do qual faz parte um conjunto de mecanismos de controlo, planos, orientações, regras e instru-ções que orientam e regem o comportamento humano (e.g. Braga, 2004).

Assim, a alimentação humana, enquanto ato sociocultural, traduz-se numa multi-plicidade de sistemas alimentares para os quais contribuem fatores distintos, de ordem social e cultural, mas, também, ecológica e económica, entre outros. Se a alimentação humana for considerada como um ato sociocultural, no qual os alimentos se consti-tuem como uma linguagem, é possível inferir que os sistemas alimentares são, de facto, sistemas simbólicos nos quais as regras e condutas sociais estão presentes, contribuin-do para o estabelecimento de relações entre os diversos indivíduos e, também, com o próprio ambiente onde estes se inserem. A procura, a seleção, a preparação, a confe-ção, o consumo e as proibições alimentares são transversais a todos os grupos sociais e orientam-se por várias normas e regras sociais, carregadas de simbolismo e significados (e.g. Canesqui & Garcia, 2005, Montanari, 2006).

Uma das funções simbólicas essenciais da comida é a formação da identidade cultu-ral. O que comemos poderá servir para definir quem somos e de onde vimos, cultural-mente falando. São exemplos claros disto as proibições alimentares associadas à religião (a carne de porco para os Muçulmanos, a carne nas sextas-feiras da quaresma para os Católicos, entre outros), mas também o são os pratos típicos servidos em dias festivos ou de descanso – o bolo-rei no natal, as amêndoas e pão-de-ló na páscoa, o bolo da noi-va nos casamentos, os pratos tipicamente assados ao domingo, entre outros. Existem, ainda, os pratos típicos de determinados povos que servem de bandeira cultural em qualquer parte do mundo – o arroz com feijão brasileiro, a pasta italiana, a francesinha portuguesa, entre tantos outros exemplos.

Vários autores sugerem que, quando inseridos em culturas distintas da sua, os indiví-duos, tendencialmente, resistem mais à alteração dos hábitos alimentares de base cultu-ral do que a outras dimensões, também elas culturais. Ou seja, geralmente, a linguagem ou a forma de vestir, entre outros aspetos, alteram-se mais rapidamente como resultado

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da aculturação, enquanto a alimentação, sendo um hábito praticado num contexto mais reservado, tende a manter-se mais próxima da original ou tradicional, sendo mais resistente à mudança (Shepard & Raats, 1996; Singh & Hiatt, 2006).

Comer será, assim, uma reafirmação diária da identidade cultural de cada indivíduo (Kittler, Sucher & Nelms, 2008).

No entanto, tendo a cultura características, reconhecidamente, mutáveis, é obrigató-rio pensar na alimentação e suas escolhas como também em constante mutação, fruto da evolução industrial e do crescimento da população mundial, sobretudo em meio ur-bano. Assim, mais facilmente se entenderão as alterações drásticas nos padrões alimen-tares que ocorreram nas últimas décadas, e que se traduzem em consumos excessivos de produtos altamente processados.

A revolução industrial, no que à indústria alimentar diz respeito, abriu o leque da disponibilidade alimentar, permitindo, em alguns casos, passar da escassez à abundân-cia e de uma forma mais ou menos constante ao longo do ano. Se, paralelamente, nos debruçarmos sobre as várias mudanças sociais que ocorreram, também nas últimas décadas, desde o aumento do nível de vida ao aumento da esperança de vida, passando pelo aumento dos salários e pelas alterações de papéis sociais, sobretudo no caso das mulheres, percebemos várias das mudanças ocorridas nos padrões alimentares que pro-curaram dar resposta às necessidades dos dias de hoje, que são muito distintas das de há menos de um século.

Assim, refletir acerca da dimensão sociocultural da alimentação, perspetivando even-tuais intervenções na área do acesso a uma alimentação adequada, implica, como já foi referido neste capítulo, ter em linha de conta que a cultura e os hábitos alimentares são elementos importantes para a construção das identidades, as quais, por sua vez, con-tribuem para a construção do sentimento de pertença. A noção de pertença refere-se à experiência de envolvimento ou ligação do indivíduo a um grupo ou sistema, fazendo com que se sinta membro integrante desse sistema e agindo de acordo com os papéis sociais, normas, valores e estilos vigentes. Nesta linha, é importante referir a existência de grupos de pertença, grupos a que os indivíduos efetivamente pertencem, e de gru-pos de referência, grupos com os quais os indivíduos tentam identificar-se e aos quais gostariam de pertencer, de forma consciente ou inconsciente (Vala & Monteiro, 2000). Estas noções remetem, ainda, para um outro conceito, também fundamental para a compreensão das escolhas alimentares sob uma perspetiva sociocultural e simbólica – a noção de estatuto social e de poder. As comidas e o que se gera em torno das mesmas associam-se, na vida quotidiana, a um jogo de expectativas socialmente construídas relativas a papéis e estatutos sociais que cada um ocupa. Qualquer intervenção na área alimentar que vise facilitar o acesso a uma alimentação saudável, sobretudo junto de populações ditas vulneráveis do ponto de vista socioeconómico, deve ter este simbolis-mo social em consideração.

Estes conceitos, eminentemente psicossociais, apelam, assim, à importância da di-mensão psicológica da escolha alimentar, que se aborda no ponto seguinte deste capí-tulo.

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4. Dimensão psicológica e afetivaAtravés dos modelos conceptuais, apresentados de forma breve neste capítulo, acerca

da escolha alimentar e, sobretudo, da experiência de cada um, é inteligível que a dimen-são psicológica desempenha um papel preponderante na alimentação e na escolha do que comemos e como comemos. A expressão fatores psicológicos engloba um espectro amplo de variáveis que, potencialmente, se relacionam com alimentação e as escolhas em torno desta, as quais têm sido alvo de interesse científico, tais como as cognições (e.g. Zimmer-man & Shimoga, 2014), as memórias (e.g. Higgs, in press), as emoções (e.g. Dalenberg et al., 2014; Desmet & Schifferstein, 2008; Gutjar et al., 2015), o humor (Koster & Mojet, 2015; Patel & Schlundt, 2001), as dimensões motivacionais e as atitudes (e.g. Fotopou-los, Krystallis, Vassallo, & Pagiaslis, 2009; Kang, Jun, & Arendt, 2015; Trendel & Werle, in press), as variáveis relacionadas com a perceção (e.g. Bielser, Crézé, Murray, & Toepel, in press), as conceções ou representações (e.g. Borralho & Oliveira, 2010), entre outras.

A afetividade, uma das dimensões centrais da designada vida mental ou psicológica, é composta pelo humor, pelas emoções, pelos afetos e pelos sentimentos. A alimentação, a comida e o comportamento alimentar têm uma carga afetiva inegável e significati-va, que, em determinadas circunstâncias, pode ser preponderante em relação a outras dimensões intervenientes. O humor, sendo a forma como nos sentimos por dentro, pode condicionar o que escolhemos comer, como comer e em que quantidades comer. Simultaneamente, as emoções provocadas pela ingestão de determinados alimentos têm vindo a ser estudadas. A relação entre as emoções e a comida desde há muito que des-pertou o interesse dos investigadores do comportamento humano (e.g. Lyman, 1982), sendo que as teorias acerca da relação entre emoções e comportamento alimentar pa-recem encontrar as suas origens na literatura ligada à obesidade (Canetti, Bachar, & Berry, 2002). Por exemplo, algumas teorias psicossomáticas da obesidade enquadram--na como estando relacionada com estados de ansiedade excessivos, que encontrariam, na ingestão em demasia de determinados alimentos, uma redução do desconforto que este estado provoca. Todavia, sem aprofundar ou desviar esta reflexão para as questões mais específicas da obesidade, é consensual afirmar que as escolhas e o comportamento alimentar em geral sofrem influências e alterações de acordo com o estado emocio-nal e as mudanças deste estado. Ansiedade, raiva, alegria ou tristeza, por exemplo, são emoções ou estados emocionais adaptativos e saudáveis, que fazem, desejavelmente, parte da vida do ser humano e que podem implicar diferentes desejos e vontades ali-mentares. A influência das emoções negativas na escolha e ingestão alimentar tem sido muito estudada e parece consensual que estas promovem um aumento do consumo generalizado (Canetti et al., 2002), assim como uma tendência maior para a escolha da designada junk food (e.g. Lyman 1982), expressão depreciativa relativa a alimentos processados com alto teor de açúcar, sal e/ou gordura e com níveis reduzidos de outros nutrientes. Relativamente aos efeitos das emoções positivas na escolha alimentar, os resultados das diferentes investigações são menos conclusivos, mas pode afirmar-se que estas emoções podem, também, promover o aumento do consumo de alimentos, no-meadamente quando comparadas com estados emocionais ditos neutros (e.g. Patel & Schlundt, 2001). Quer a alegria, quer a raiva parecem merecer destaque na influência

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que exercem nas escolhas alimentares; porém, a este nível da análise diferencial entre emoções na relação com a comida, investigação adicional tem sido apontada como necessária (Canetti et al., 2002; Desmet & Schifferstein, 2008).

A propósito da raiva, uma das emoções básicas do ser humano, e relacionando com o simbolismo referido no ponto anterior, proceda-se a um parêntesis para ilustrar com uma lenda da nossa história relativa a D. Pedro I e Inês de Castro: o rei D. Pedro I recebeu vários cognomes, entre os quais o “Cru” pela crueza que colocou na vingança dos assassinos da sua amada Inês de Castro. Segundo as crónicas, Pedro terá “devorado”, durante um banquete, o coração de um dos carrascos de Inês. O rei, neste caso, come algo que odeia profundamente, motivado por um claro sentimento de raiva.

Serve também este exemplo, de alguma forma, para sublinhar a dificuldade em es-tabelecer um modelo geral da relação entre emoções e comida, pois esta difere de in-divíduo para indivíduo, de acordo com as suas características pessoais, a especificidade do estado emocional e variáveis de contexto sociocultural e histórico. Porém, poderá e deverá a investigação investir no sentido do estabelecimento de teorias e modelos gerais que facilitem a leitura destas relações ao nível individual ou comunitário.

Por outro lado, no contexto desta relação emoções-alimentação, uma variedade de emoções podem ser desencadeadas pela comida, sendo que as emoções agradáveis, tais como satisfação, prazer e desejo, parecem ser descritas mais frequentemente do que as desagradáveis, como, por exemplo, a raiva ou a tristeza (Desmet & Schifferstein, 2008).

Neste âmbito, outra das variáveis que terá interesse destacar para a compreensão da escolha alimentar sob uma perspetiva psicológica é a memória (e.g. Higgs, in press). A memória é, simultaneamente, uma variável cognitiva e emocional, estando impregnada das vivências relacionais e afetivas. E falar de memória e escolha alimentar é, também, evocar a perceção e os sentidos: o paladar e o olfato são fundamentais neste processo (e.g. Araujo, Rolls, Velazco, Margot, & Cayeux, 2005). Sentir a comida é sentir os chei-ros e os sabores (também as cores e as texturas). E existem memórias que podem acom-panhar cada um desde a infância: “o arroz de tomate da avó” ou “o bolo de cenoura da tia Raquel” são referências afetivas que existem para além dos bons sabores, dos cheiros intensos e da satisfação e prazer do saborear, sendo reveladores do que acabou de se es-crever atrás. Ou seja, as comidas e as memórias interligadas numa complexa associação de ideias e emoções, conscientes ou inconscientes, podem transportar o indivíduo para um momento, um lugar, uma casa, uma cozinha e/ou para todo um contexto afetivo--relacional. E mais uma vez se desemboca na comida enquanto fator de construção da identidade de cada um.

Aqui, a psicologia convoca a fisiologia e sustenta esta relação íntima e forte entre memória, comida, cheiros, sabores e afetos. Não é por acaso que o gosto e o cheiro são privilegiados na capacidade de nos transportarem ao passado: o paladar e o olfato são os sentidos com ligação direta ao hipocampo, parte do cérebro que constitui o substrato neuroquímico da memória.

Entre vários aspetos passíveis de abordar no âmbito da dimensão psicológica e afetiva da escolha alimentar, destaque-se, ainda, a função do prazer que a comida pode ter na vida dos indivíduos. Desta forma, a comida e as escolhas alimentares desempenham um papel

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importante para o bem-estar dos indivíduos em geral e, em particular, para populações em que vulnerabilidades várias reduzem as suas fontes de prazer e satisfação, sendo, assim, esta importância da comida enquanto fonte de prazer quase vital! O sofrimento e a dor psi-cológica fazem parte da existência humana, constituindo formas saudáveis de adaptação perante as adversidades. Porém, o equilíbrio da vida mental passa por um equilíbrio entre adversidades e sofrimento psicológico e fontes de satisfação, realização e prazer. Nenhuma intervenção ao nível das escolhas alimentares pode estimular mudanças sem dar espaço e tempo para compreender previamente, e, desejavelmente através de um trabalho colabora-tivo, que funções, para além das básicas, aquela alimentação, aquela comida cumprem na vida afetiva, relacional e emocional de dada população ou comunidade.

5. A experiência da formação – Projeto SIMETRIAOs ciclos formativos do projeto SIMETRIA, especificamente o módulo “Gestão e

Acompanhamento Alimentar”, permitiram cruzar, na sua preparação, saberes das Ciên-cias da Nutrição e da Psicologia. No planeamento e elaboração iniciais deste módulo procurou-se construir sessões que, sensibilizando para a importância deste cruzamen-to e da interdisciplinaridade em geral, perspetivassem a escolha alimentar e o acesso a uma alimentação adequada, sob um posto de vista multidimensional. Estimular a compreensão da gestão e escolha alimentar com enfoque simultâneo na influência dos conhecimentos nutricionais e de toda uma dimensão psicossocial, cultural e econó-mica, constituiu um dos grandes objetivos do módulo. Durante o planeamento dos conteúdos e atividades, foi, ainda, preocupação central abordar a gestão e o acompa-nhamento alimentar, tendo em vista a intervenção comunitária ou individual junto de grupos ou indivíduos em situação de vulnerabilidade social, económica ou outra. Para tal, definiram-se sessões equilibradas entre transmissão/apreensão de conhecimentos e ferramentas facilitadores de uma alimentação adequada sob o ponto de vista nutricio-nal e espaços de reflexão acerca das várias dimensões presentes na escolha alimentar e das dificuldades na mudança de hábitos e comportamentos. Desta forma, procurou-se estimular a consciencialização de que, na facilitação ao direito de acesso e escolha livre de uma alimentação adequada tendo em vista uma melhor saúde, quer individual, quer pública, será tão importante o acesso a uma informação nutricional correta, como a validação e reconhecimento das várias funções que a comida desempenha na vida das pessoas e das comunidades, entre as quais se destacam o poder e a liberdade de obter prazer através do que se come, como se come e onde se come.

A operacionalização das sessões formativas junto dos formandos – diferentes profis-sionais de saúde, de educação e de intervenção psicossocial, abrangendo, quer técnicos superiores, quer profissionais auxiliares – foi revelando, na generalidade, uma riqueza na reflexão e elaboração e exigindo uma adaptação e ajustamento, muito para além do esperado inicialmente. Esta riqueza e exigência ficou a dever-se a várias características da formação, entre elas de destacar: a quantidade e a variedade de formandos com quem tivemos oportunidade de partilhar saberes e experiências; as diferentes expecta-tivas que estes traziam para as sessões; a heterogeneidade das suas formações de base, desde microbiologia, biologia, nutrição, enfermagem, psicologia, serviço e educação

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social, e filosofia, entre outras; a abrangência dos públicos com que trabalhavam, das problemáticas centrais de intervenção e locais diversificados de trabalho, desde ido-sos, crianças, famílias em situação de vulnerabilidade, alunos de diferentes ciclos de ensino, jovens, adultos ou idosos institucionalizados ou em situação de dependência, toxicodependentes, contextos de alcoolismo, intervenção hospitalar, diferentes etnias e culturas, intervenção clínica e comunitária, programas de promoção de saúde, de intervenção com vítimas, de redução de danos, entre outros exemplos. Acresce, ainda, a variedade de locais/regiões em que a formação foi realizada, abrangendo, quer meios urbanos, quer meios em que a ruralidade domina, com implicações distintas no acesso e disponibilidade alimentar, uma das dimensões abordadas na gestão e acompanhamento alimentar.

Os mais de duzentos profissionais com que contactámos no âmbito dos 15 ciclos formativos SIMETRIA, a partilha de experiências proporcionada, as questões, os pro-blemas e as dúvidas colocadas, os vários exemplos e casos práticos apresentados permiti-ram-nos várias reflexões que expomos a seguir em formato de mensagens chave síntese, que poderão ser úteis na elaboração de futuros projetos:

1. Pertinência e necessidade de formar e capacitar os profissionais da intervenção psicossocial, da saúde e da educação na área da alimentação e nutrição, aumen-tando a sua literacia e fornecendo-lhes ferramentas práticas disponíveis;

2. Pertinência em sensibilizar e estimular a conceção da alimentação e o seu acesso enquanto processos de escolha psicossocial e, simultaneamente, enquanto di-reito individual e social, com vista a intervenções eficazes na área;

3. Importância de utilizar metodologias experienciais e ativas que incluam dis-cussão e resolução de casos práticos, que possam responder às dificuldades em se aplicar às práticas as conceções teóricas da escolha alimentar ser complexa e multifacetada e da alimentação ter funções psicossociais e culturais.

Se, por um lado, na generalidade, os profissionais mostraram teoricamente estar lon-ge do paradigma preventivo informacional, ou seja, têm o conhecimento de que o for-necimento de informação per si não chega para alterar o comportamento alimentar, por outro lado, revelavam ter dificuldades em traduzir os seus conhecimentos em práticas e estratégias eficazes e em atitudes de validação e de aceitação, fundamentais para a promoção da mudança.

4. Importância das intervenções terem presente a necessidade de equilíbrio entre o poder e a liberdade de obter prazer com a comida e a perspetiva ética e de saúde pública relativa a uma alimentação saudável.

Várias foram as reflexões durante os diferentes ciclos formativos em torno desta ques-tão, nomeadamente em relação aos idosos institucionalizados ou a públicos dependen-tes. Ao facto de a comida e da alimentação serem fontes de prazer e satisfação funda-mentais, sobretudo em contextos em que não existem outras fontes de gratificação ou em que estas são muito limitadas, acrescem os dados e os exemplos que as refeições, a comida e o que se gera em torno das mesmas, como por exemplo, “reclamar com a comida estar insossa ou salgada”, representarem, também, o último reduto de poder e são motes para dinâmicas relacionais e de afeto que, de outra forma, não existiriam.

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6. ConclusãoEm suma, o comportamento alimentar e o processo da escolha alimentar são afetados

de forma significativa pelas emoções, estados afetivos e dimensão psicológica em geral, assim como pelo contexto e fatores socioculturais e ambientais. Ou seja, as escolhas, as quantidades e a frequência com que se come estão dependentes de numerosas variáveis que vão muito além das necessidades fisiológicas. De facto, quer a literatura, quer a experiência sugerem que as dimensões socioculturais e ambientais e as dimensões psico-lógicas, toda a carga simbólica associada a ambas e, ainda, a vertente do acesso à alimen-tação enquanto direito, deverão ser equacionadas quando se planeia intervir ao nível das mudanças nas escolhas alimentares. As alterações recentes dos hábitos alimentares, de uma forma generalizada, nomeadamente a tendência para um aumento dos níveis de consumo de açúcar e sal, sobretudo através de alimentos processados, encontraram as suas raízes nestas dimensões e não em dimensões metabólicas ou fisiológicas.

A complexidade do processo da escolha alimentar, que se procurou salientar neste capítulo, exige que intervenções comunitárias nesta área primem pela interdisciplina-ridade, com contributos fundamentais das ciências do comportamento, e que tenham em linha de conta a carga simbólica e afetiva que a comida transporta e todo um sim-bolismo de estatuto social e poder que aquilo que se come assume na vida de cada um.

Conhecer e compreender os potenciais fatores que influenciam a escolha alimentar e ter presentes as suas características de volatilidade de acordo com diferentes condições é fundamental para explicar e conceber muitas das características da escolha alimentar e, dessa forma, definir e adotar práticas adequadas na intervenção.

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(IN)SEGURANÇA ALIMENTAR: ENQUADRAMENTO, POLÍTICAS E BOAS PRÁTICAS

Maria João Gregório e Pedro Graça

1. (In)Segurança Alimentar: definição e avaliação Em Portugal, o termo segurança alimentar tem sido utilizado e traduzido tanto para

designar o conceito de food security como o de food safety. Deste modo, tem-se verifi-cado uma utilização imprecisa do termo segurança alimentar, conceito este que, nas últimas décadas, tem sido remetido, numa primeira instância, para as questões higios-sanitárias dos alimentos.

O conceito de segurança alimentar (food security) é complexo e amplo, e a sua defini-ção tem evoluído consideravelmente ao longo do tempo. O termo segurança alimentar (food security) surgiu na Europa, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), estando relacionado com a capacidade de cada país em produzir os alimentos de que necessitava, sendo considerado uma estratégia política para garantir a segurança nacio-nal de cada país (Maluf & Menezes, 2001). Contudo, este conceito ganhou uma maior expressão após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em especial com o apareci-mento da Organização das Nações Unidas (ONU) (1945), num período caracterizado pela necessidade de aumentar a produção alimentar para que não houvesse escassez de alimentos. Durante este período, a segurança alimentar (food security) é entendida como uma situação associada à disponibilidade suficiente de alimentos e, neste sentido, foram, também, instituídas medidas de assistência alimentar que garantiam recursos alimentares aos países mais pobres ou em crise humanitária a partir dos excedentes da produção dos países mais desenvolvidos (Lehman, 1996). Mais tarde, durante a década de 70 e em resultado da crise alimentar mundial, percebeu-se, também, que era necessária uma política estratégica de armazenamento de alimentos em paralelo com o aumento da produção, de modo a garantir a disponibilidade regular de alimentos e, também, a estabilidade dos seus preços (para garantir que, em situações de crise, não houvesse falta de alimentos e os preços se mantivessem estáveis). É nesta altura que surge a primeira definição moderna do conceito de segurança alimentar (food security) –

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“disponibilidade permanente de adequado abastecimento mundial de alimentos básicos para manter uma expansão regular do consumo de alimentos e compensar as flutuações da produção e preços” (FAO [Food and Agriculture Organization], 2003, 27).

Já na década de 80, assiste-se a uma mudança de paradigma no conceito de segurança alimentar (food security). O aumento significativo da produção de alimentos e globali-zação dos mercados caminham em paralelo com a redução dos preços. Na tentativa de manter as margens de lucro associados ao negócio da produção de alimentos, segmenta--se ainda mais o mercado, com a criação de nichos e a utilização dos excedentes da pro-dução alimentar para o desenvolvimento de novos produtos na indústria. Neste contex-to, parte dos excedentes da produção alimentar deixa de ser canalizada para programas de assistência humanitária que garantiam recursos alimentares a países mais pobres ou em crise humanitária. Durante este período, acrescenta-se ao conceito de segurança alimentar uma nova dimensão, pois percebe-se que, para além da disponibilidade de alimentos, a garantia da segurança alimentar (food security) de uma população implica-va assegurar a existência de alimentos, mas, em paralelo e também, garantir condições de acesso físico e económico aos alimentos para todos os que deles necessitavam. Para esta mudança de paradigma no conceito de segurança alimentar muito contribuíram as linhas de pensamento de Amartya Sen no âmbito das problemáticas da Pobreza e da Fome, através da sua obra “Poverty and Famines: an essay on Entitlement and Depri-vation” (Sen, 1981; FAO, 2002).

Assim, em 1983, segurança alimentar (food security) definia-se como uma forma de “assegurar que todas as pessoas tenham permanente acesso físico e económico aos ali-mentos básicos de que necessitam”, traduzindo a dimensão do acesso aos alimentos a todos os indivíduos, incluindo os mais vulneráveis (FAO, 2003, 27). Em 1986, o Relatório do Banco Mundial “Poverty and Hungers” adicionou uma nova dimensão a este conceito, incluindo o resultado do acesso aos alimentos (saúde e bem-estar) como condição fundamental para a sua realização em plenitude – “acesso permanente de to-das as pessoas a alimentos suficientes para uma vida ativa e saudável” (FAO, 2003, 27).

Mais tarde, em 1996 e em resultado das crises alimentares, mais concretamente a cri-se da BSE (Bovine Spongiform Encephalopathy), as questões da segurança dos alimentos (food safety) colocam-se com ordem prioritária na agenda política e, neste sentido, o conceito de segurança alimentar (food security) alarga-se, sublinhando a dimensão da hi-giossanidade dos alimentos ou a necessidade de estes serem seguros (food safety). Assim, em 1996, o conceito de segurança alimentar (food security) definia-se como o “acesso a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados de modo a satisfazerem as necessidades nutricionais e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável” (FAO, 2003, 28). De acordo com esta nova definição, é possível perceber que é nesta altura que o compromisso com a saúde emerge completo no conceito de segurança alimentar (food security), não só através da preocupação em garantir alimentos seguros para consumo, como, também, pela preocupação em garantir o acesso a alimentos que sejam nutricionalmente adequados (FAO, 2003).

Por último, em 2001, o conceito de segurança alimentar (food security) é novamente redefinido, incorporando a dimensão social e considerando, também, a importância da

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sustentabilidade social e cultural das estratégias que visem garantir o acesso aos alimen-tos. Assim surgiu a atual definição do conceito de segurança alimentar (food security), definindo-se como

[...] uma situação que existe quando todas as pessoas, em qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequados, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e as preferências alimentares para uma vida ativa e saudável (FAO, 2003, 28).

O conceito de segurança alimentar (food security) assume-se, assim, como um con-ceito bastante abrangente e multifacetado, tendo incorporando, ao longo das últimas décadas, múltiplas dimensões, nomeadamente a dimensão associada à segurança dos alimentos (food safety). Se, por um lado, food security se define como a garantia do acesso a alimentos em quantidades suficientes, seguros e nutricionalmente adequados (FAO, 2002), food safety é, atualmente, definido como “a garantia que um alimento não causa-rá dano ao consumidor – através de perigos biológicos, químicos ou físicos – quando é preparado e/ou consumido – de acordo com o seu uso esperado” (Codex Alimentarius Commission, 2003, 9) (ver Figura 1).

Figura 1. Evolução do conceito de segurança alimentar

Assim, na definição atual do conceito de segurança alimentar (food security) desta-cam-se quatro dimensões principais:

1) disponibilidade dos alimentos, relacionada com a oferta alimentar e, por isso, dependente da produção alimentar e das redes de distribuição de alimentos;

2) acesso físico e económico aos alimentos, sendo esta dimensão influenciada, por exemplo, por fatores de ordem socioeconómica que interferem nas condições de acesso aos alimentos;

3) adequação nutricional/biológica, relacionada com a garantia de que os alimen-tos são seguros para consumo no que diz respeito às condições higiossanitárias e, ainda, nutricionalmente adequados; e

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4) estabilidade, estando esta última dimensão relacionada com as previamente descritas, na medida em que garantir a segurança alimentar implica garantir a disponibilidade e o acesso a alimentos em quantidades suficientes, seguros do ponto de vista da higiene e da sanidade e nutricionalmente adequados, de forma regular e permanente ao longo do tempo, ou seja, incorporando aqui a questão da sustentabilidade (FAO, 2008) (ver Figura 2).

Figura 2. Determinantes da segurança alimentar

O carácter abrangente do conceito de segurança alimentar coloca vários desafios quando se pretende avaliar esta condição ao nível dos agregados familiares. Apesar de, na literatura, estarem descritos vários métodos para avaliar a segurança alimentar (food security) (Frongillo, 1999; Pérez-Escamilla & Segall-Corrêa, 2008), as escalas psico-métricas de insegurança alimentar, enquanto métodos de avaliação direta, têm sido os instrumentos mais frequentemente escolhidos, em particular nos estudos de abrangên-cia nacional (Frongillo, 1999; Radimer, Olson, Greene, Campbell & Habicht, 1992). Estas escalas foram originalmente desenvolvidas pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) (Bickel, Nord, Price, Halmiton & Cook, 2000; Radimer, 2006) na década de 1990 e têm sido amplamente adaptadas, validadas e utilizadas no âmbito de estudos de abrangência nacional por outros países a nível mundial (Frongi-llo, 1999; Pérez-Escamilla & Segall-Corrêa, 2008; Bickel et al., 2000; Pérez-Escamilla et al., 2000; Segall-Corrêa et al., 2003; Kneuppel, Demment, & Kaiser, 2009; Shoae et al., 2007; Mohammadi et al., 2011; Hackett, Melgar-Quinonez, & Uribe, 2008; Pérez--Escamilla et al., 2004; Studdert, Frongillo, & Valois, 2001; Webb et al., 2006; UNI-

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CAMP, 2003; Albert & Sanjur, 2000; Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística, 2010; Tarasuk, Mitchell, & Dachner, 2014; Coleman-Jensen, Nord, & Singh, 2013). A utilização destes instrumentos apresenta a vantagem de estes medirem o fenómeno em análise a partir da perceção que os indivíduos detêm no que diz respeito à insegu-rança alimentar, permitindo avaliar as várias dimensões desta condição, desde a di-mensão psicossocial relacionada com a preocupação com a possibilidade de, no futuro, existir falta de alimentos no agregado familiar, até à situação física, em que os agregados familiares passam por períodos de restrição ao nível da quantidade de alimentos devido a limitações fi nanceiras ou outras. Para além disso, estes instrumentos possuem, ainda, a vantagem de serem ferramentas de medida simples, de fácil aplicação e de compreen-são universal, apresentando uma excelente relação custo-efetividade (Frongillo, 1999; Pérez-Escamilla & Segall-Corrêa, 2008; Webb et al., 2006).

Figura 3. Níveis da insegurança alimentar

Estas escalas de insegurança alimentar utilizam um conjunto de perguntas, sendo que a sua ordem sequencial refl ete o conhecimento teórico sobre o processo de insegurança alimentar. Com este instrumento, a insegurança alimentar é, assim, percebida nos seus vários níveis, desde a preocupação futura de que os alimentos venham a acabar antes que haja condições económicas sufi cientes para a sua aquisição, o que confi gura a di-mensão psicológica da insegurança alimentar, passando, de seguida, para uma situação em que existe comprometimento da qualidade da alimentação, mas sem que se veri-fi que uma restrição quantitativa signifi cativa, até chegar ao ponto mais grave, em que os agregados familiares passam por períodos concretos de restrição na disponibilidade/acesso aos alimentos. Por último, este é um processo gradual que, numa fase inicial, atinge os adultos do agregado familiar, acabando por, numa fase mais grave, afetar, também, as crianças. Deste modo, de acordo com os resultados da aplicação destas es-calas, os agregados familiares são classifi cados em quatro categorias distintas: Segurança

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Alimentar, Insegurança Alimentar Leve, Insegurança Alimentar Moderada e Inseguran-ça Alimentar Grave (ver Figura 3) (Frongillo, 1999; Pérez-Escamilla & Segall-Corrêa, 2008; Webb et al., 2006).

2. Um olhar sobre a insegurança alimentar em PortugalDesde 2011, a Direção-Geral da Saúde (DGS) tem procurado avaliar e monitorizar

a situação de segurança alimentar (food security) da população portuguesa, através do estudo INFOFAMÍLIA, que consiste num estudo de avaliação da segurança alimentar e de outras questões de saúde relacionadas com condições económicas em agregados fa-miliares portugueses. Este estudo foi desenhado de modo a permitir fazer um diagnós-tico rápido da situação de segurança alimentar (food security) da população portuguesa, identificando os seus principais determinantes e possíveis grupos de risco, através da realização de um inquérito de saúde junto dos utentes do Serviço Nacional de Saúde Português. Mais ainda, este estudo longitudinal tem permitido fazer, também, uma monitorização regular e contínua da segurança alimentar (food security) nesta amostra da população portuguesa, uma vez que este tem sido replicado desde 2011 com uma periodicidade anual (Gregório et al., 2012). Este tipo de observação é desejável para a construção de uma estratégia alimentar nacional, na medida em que a insegurança alimentar se associa, frequentemente, a situações de inadequação nutricional, podendo ser sua causa mas, também, sua consequência. Nesse sentido, o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) inscreveu, desde a sua criação em 2011, a questão da redução da insegurança alimentar como central para as políticas de alimentação em Portugal, assunto ao qual voltaremos mais tarde.

Os dados mais recentes do estudo INFOFAMÍLIA, referentes ao ano de 2013, mos-tram que a amostra estudada apresentava uma elevada percentagem de agregados fami-liares em situação de insegurança face à alimentação – insegurança alimentar (50,7%). Porém, importa realçar que, nos agregados familiares em situação de insegurança ali-mentar, a maior proporção estava classificada no nível mais leve de insegurança alimen-tar – insegurança alimentar ligeira (33,4%) – o que indica, pelo menos, níveis elevados de preocupação ou incerteza relacionados com as condições futuras de acesso aos ali-mentos ou potenciais alterações dos padrões alimentares usuais, com potencial afetação da qualidade da alimentação. Para além disso, os níveis de insegurança alimentar mo-derada ou grave representam um possível indicador de uma real situação de restrição na quantidade de alimentos ingerida. De acordo com este estudo e, tendo, também, como referência os dados obtidos para o ano de 2013, verificou-se que 17,3% dos agregados familiares portugueses na amostra estudada se encontravam nos níveis mais extremos de insegurança alimentar (insegurança alimentar moderada ou grave). De notar ainda, tal como os resultados demonstram, que, durante o período de 2011 até 2013, não foram observadas alterações significativas na prevalência de insegurança alimentar para esta amostra (ver Figura 4) (Gregório, Graça, Costa & Nogueira, 2014).

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61(In)Segurança alimentar: Enquadramento, políticas e boas práticas

Figura 4. Insegurança alimentar em Portugal – 2011-2013

De acordo com os dados do estudo INFOFAMÍLIA, foram encontradas iniquidades regionais para a situação de insegurança alimentar em Portugal, sendo que os agregados familiares pertencentes às Regiões de Saúde do Algarve e de Lisboa e Vale do Tejo apre-sentaram um risco aumentado comparativamente aos agregados da Região de Saúde do Norte, Centro e Alentejo. O contexto económico, político e social de cada região pode afetar a experiência de insegurança alimentar vivenciada pelas suas populações. É possível que as regiões do Algarve e de Lisboa e Vale do Tejo possam ter particularida-des que, em parte, poderão justifi car esta maior prevalência de insegurança alimentar comparativamente às outras regiões do país (Gregório et al., 2014).

No estudo INFOFAMÍLIA foi possível verifi car, também, que a situação de maior risco de insegurança alimentar está associada a diferentes características socioeconómi-cas e demográfi cas dos agregados familiares, designadamente: agregados familiares dos inquiridos do sexo feminino; agregados familiares com crianças; agregados familiares cujo inquirido possui um menor nível educacional; agregados familiares dos inquiridos com idades compreendidas entre o 30 e os 64 anos de idade; agregados familiares dos inquiridos em situação de desemprego; agregados familiares numerosos; e agregados fa-miliares que possuem um menor número de elementos a contribuir para o rendimento total familiar (Gregório et al., 2014).

Um dos resultados que nos parece importante destacar prende-se com uma menor vulnerabilidade dos idosos face à situação de insegurança alimentar. Este resultado, que aponta para os idosos como um grupo aparentemente menos vulnerável à insegurança alimentar, conduz a uma refl exão sobre algumas das hipóteses justifi cativas. Parte da po-pulação idosa em Portugal viveu, no passado, em contextos de precariedade económica e social (Silva & Costa 1989; Costa, Silva, Pereirinha, & Matos, 1985).

Estas experiências do passado podem ter tornado estes indivíduos mais capazes de se adaptarem a fenómenos de insegurança económica e/ou alimentar. De facto, alguns

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estudos publicados recentemente têm evidenciado que a capacidade de resiliência a situações inesperadas de carência económica (Leete & Bania, 2010), bem como com-petências na área da gestão da economia familiar em situações de carência de recursos/alimentos (Gundersen & Garaky, 2012), podem constituir fatores que protegem os indivíduos face à insegurança alimentar. Por outro lado, tendo em consideração que o instrumento utilizado para avaliar a insegurança alimentar se baseia na auto-perceção dos indivíduos face a este fenómeno, poderá pensar-se numa possível subestimação das respostas dadas pelos idosos. É possível que os idosos tenham uma menor perceção do risco de insegurança alimentar comparativamente à real situação de insegurança alimentar que possam estar a vivenciar ou que não o valorizem tanto.

Assume-se, ainda, que a pobreza persistente pode conferir determinadas caracterís-ticas aos indivíduos ou agregados familiares que, por um lado, podem dotar os indiví-duos de capacidades de adaptação face a situações de insegurança alimentar e que, por outro lado, pode induzir uma menor auto-perceção do risco em contextos de vulnerabi-lidade. Esta componente da avaliação da insegurança alimentar diretamente associada à perceção pode sugerir que a insegurança alimentar nem sempre se encontra diretamente associada às variáveis socioeconómicas, nomeadamente ao rendimento dos agregados familiares e ao nível educacional dos indivíduos. No caso particular dos idosos portu-gueses e em comparação com a população em geral, os quais têm, de uma forma geral, níveis de literacia mais baixos e vivem em condições socioeconómicas mais desfavo-recidas (Costa, Baptista, Perista, & Carrilho, 2008), tal pode ajudar a explicar que, contrariamente aos dados encontrados, seria de esperar que estes grupos populacionais apresentassem níveis mais elevados de insegurança alimentar.

Os dados obtidos pelo estudo INFOFAMÍLIA parecem, também, corroborar os re-sultados dos estudos que demonstram uma associação entre insegurança alimentar e obesidade. Na amostra inquirida no estudo INFOFAMÍLIA, a insegurança alimentar apresentou-se como um potencial preditor para a pré-obesidade, após o ajuste para o possível efeito confundidor das diferentes variáveis socioeconómicas e demográficas. Para além de se ter constatado a existência de uma associação positiva entre a insegu-rança alimentar e a pré-obesidade, também o baixo peso dos indivíduos inquiridos está fortemente associado à situação de insegurança alimentar. No entanto, a associação encontrada entre insegurança alimentar e o índice de massa corporal não é linear, pelo que são necessários estudos adicionais para perceber melhor esta relação (Gregório, Nogueira, & Graça 2014) (ver Quadro 1).

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63(In)Segurança alimentar: Enquadramento, políticas e boas práticas

Quadro 1. Associação entre insegurança alimentar e o Índice de Massa Corporal (dados INFOFAMÍLIA 2011-2013)

Baixo Peso

IMC≤18.5

Normoponderal

18.5≤IMC<25

Pré-obesidade

25≤IMC<30

Obesidade

IMC≥30

Excesso de peso

IMC≥25

Segurança alimentar

Ref. Ref. Ref. Ref. Ref.

Insegurança alimentar

1,174 (1,009-1,365)*

1,109 (0,923-1,332)

1,258 (1,079-1,466)*

0,788 (0,676-0,919)*

1,111 (0,620-1,998)

Insegurança alimentar ligeira

0,774 (0,656-0,913)*

0,785 (0,395-1,559)

1,228 (1,043-1,445)*

1,100 (0,901-1,342)

1,313 (1,112-1,550)*

Insegurança alimentar moderada

0,824 (0,635-1,069)

1,565 (0,690-3,546)

1,002 (0,775-1,296)

1,221 (0,908-1,641)

1,155 (0,891-1,497)

Insegurança alimentar grave

0,826 (0,610-1,117)

2,814 (1,138-6,957)*

1,129 (0,844-1,512)

1,008 (0,716-1,419)

1,100 (0,816-1,482)

*p<0.05; Ajustado para idade, sexo, nível educacional, situação profissio-nal, nacionalidade, presença de crianças no agregado familiar, número de elementos do agregado familiar, número de elementos do agregado familiar que contribuem para o rendimento familiar e região de saúde

3. Uma reflexão sobre as estratégias de intervenção nesta áreaHistoricamente, e a nível internacional, as questões da segurança alimentar surgiram

inicialmente ligadas à garantia da disponibilidade alimentar e, por isso, fortemente associadas à produção agrícola. A necessidade de desenvolver políticas de alimentação surgiu após a Segunda Guerra Mundial, com o propósito de implementar um conjun-to de medidas que visassem aumentar a produção agrícola, de modo a garantir uma suficiente disponibilidade de alimentos para toda a população. De facto, até à década de 70, a implementação de políticas de alimentação e nutrição tendo como objetivo primário garantir um fornecimento suficiente de alimentos para toda a população, en-tão designadas por políticas nutricionais quantitativas, aplicava-se, essencialmente, aos países mais pobres e em desenvolvimento (Helsing, 1991).

Mais tarde, em resultado do aumento da prevalência das doenças crónicas, a inves-tigação na área das ciências da nutrição começou a revelar uma possível associação entre o consumo alimentar inadequado e o risco de desenvolvimento destas doenças, contribuindo, assim, para o aparecimento e desenvolvimento do conceito de políticas nutricionais qualitativas (Helsing, 1991, 1997). Em 1974, a Conferência Mundial de

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Alimentação levada a cabo conjuntamente por duas organizações das Nações Unidas, a FAO e a OMS (Organização Mundial de Saúde), marcou um ponto de viragem na história das políticas alimentares e nutricionais, uma vez que, através da sua Resolução V, todos os países signatários foram responsabilizados por implementarem políticas de alimentação e nutrição com o objetivo de melhorarem o estado nutricional das popu-lações e, em especial, dos grupos mais vulneráveis, garantindo, ao mesmo tempo, uma suficiente produção de alimentos, de modo a satisfazer as necessidades nutricionais da população (United Nations, 1974). Surgiu, assim, um conceito de política de alimenta-ção e nutrição, termos, de certa forma, ambivalentes, no qual as questões da agricultura se interligaram com as questões nutricionais em torno de problemas como o combate à fome e à malnutrição. Deste modo, nos anos 70 do século passado, as primeiras políticas alimentares e nutricionais combinavam objetivos relacionados com a autossu-ficiência do país, na tentativa de garantir uma adequada e suficiente produção própria de alimentos, com objetivos de saúde, que se prendiam, por exemplo, com a redução do teor de gordura na alimentação, sendo disso exemplo a Noruega, país percursor do desenvolvimento de políticas alimentares e nutricionais na Europa (Kjaernes, 2003). Contudo, somente nos anos 80 começa a ser expressa, de uma forma mais evidente, a importância da formulação de políticas alimentares e de nutrição a nível Europeu, com a integração de alguns conceitos da área da promoção da saúde provenientes da OMS, sendo a alimentação e a nutrição considerados como áreas prioritárias na construção de políticas de saúde pública (World Health Organization, 1988, 1990).

Porém, o caminho percorrido nos últimos anos ao nível da implementação de polí-ticas de alimentação e nutrição tem sido longo e, de certa forma, bastante conturbado. Desde a década de 70 que a implementação de políticas de alimentação e nutrição se tem debatido com uma série de questões políticas, ideológicas, éticas e até mesmo ju-rídicas. Neste âmbito, vale a pena realçar, também, que a grande maioria das políticas alimentares e de nutrição implementadas mais recentemente no contexto europeu não tem considerado o conceito mais amplo da segurança alimentar (food security), enquan-to uma “situação que existe quando todas as pessoas, a qualquer momento, têm acesso físico, social e económico a alimentos suficientes, seguros e nutricionalmente adequa-dos, que permitam satisfazer as suas necessidades nutricionais e preferências alimentares para uma vida saudável”, não estando, também, integradas na perspetiva do direito hu-mano à alimentação adequada (FAO, 2003, 29). A aparente ideia de “bem-estar social” dos países da Europa Ocidental terá, provavelmente, contribuído para a implementação de políticas de alimentação centradas na prevenção da obesidade e de outras doenças crónicas associadas, considerando como um problema com baixa expressão a insegu-rança alimentar, enquanto dificuldade no acesso a alimentos. De facto, na generalidade dos países Europeus, dos quais Portugal não é exceção, as questões relacionadas com a garantia da segurança alimentar têm sido pouco debatidas, quer no seio das políticas alimentares, quer na intervenção política na área da ação social.

No entanto, no âmbito das políticas de ação social, desde 1986 que existem progra-mas na área da assistência alimentar promovidos pela Comissão Europeia. O Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados (PCAAC), que vigorou entre 1986 e

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2014, tinha como objetivo a atribuição de recursos aos Estados Membros para o forne-cimento e distribuição de alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeco-nómica, bem como às instituições que apoiam estas populações vulneráveis. Em Portu-gal, a coordenação e operacionalização deste programa resultava de uma ação conjunta entre o Instituto da Segurança Social e o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (Segurança Social, 2014). Em 2014, o PCAAC foi substituído pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC), visando, também, prestar assistência não-financeira às pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica, nomeadamente através da distribuição de alimentos, vestuário e outros bens essenciais (União Europeia, 2014).

Nos últimos anos, e, em particular, a partir da crise económica de 2008, com o au-mento das desigualdades sociais na Europa, o crescimento do desemprego e o aumento da pobreza, as questões relacionados com a garantia da segurança alimentar (food securi-ty) voltaram a ocupar um lugar central nas políticas de saúde. Prova disso é o novo Pla-no de Ação para as Políticas de Alimentação e Nutrição (2015-2020), apresentado pela OMS para a Região Europeia, o qual reconhece a importância de respeitar, proteger e promover o direito humano à alimentação adequada, presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos (United Nations, 1948), como parte integrante das estratégias políticas na área da nutrição que tenham como objetivo prevenir e controlar as doenças crónicas associadas à alimentação (World Health Organization, 2014).

A par das tendências europeias, até então, as estratégias alimentares e nutricionais portuguesas tinham, também, deixado de lado as questões relacionadas com a garantia da segurança alimentar (food security). Na verdade, só muito recentemente, em 2012, Portugal implementou uma estratégia nacional em matéria de alimentação e nutrição, o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS). Este progra-ma surgiu como um dos oito programas nacionais de saúde prioritários a desenvolver pela DGS, com o objetivo de “melhorar o estado nutricional da população incenti-vando a disponibilidade física e económica dos alimentos constituintes de um padrão alimentar saudável e criar as condições para que a população os valorize, aprecie e con-suma integrando-os nas suas rotinas diárias” (Graça & Gregório, 2013, 6). O PNPAS, enquanto estratégia para a promoção da alimentação saudável, compreende um con-junto de medidas com o objetivo de garantir a segurança alimentar (food security) da população portuguesa. A este nível, o PNPAS implementou um sistema de avaliação e monitorização da situação de segurança alimentar (food security) dos agregados familia-res portugueses (estudo INFOFAMÍLIA) e tem procurado capacitar os cidadãos para escolhas alimentares a baixo custo, através do desenvolvimento de manuais pedagógicos e do apoio a projetos de intervenção comunitária em populações vulneráveis. Adicio-nalmente, tem desenvolvido medidas com vista à capacitação dos profissionais de saúde e outros profissionais para a deteção e intervenção no tema da insegurança alimentar e desigualdades no acesso a uma alimentação saudável e na saúde.

Porém, a intervenção do Estado Português em prol da garantia da segurança alimen-tar (food security) é ainda muito pouco evidente, sendo as políticas alimentares escolares, provavelmente, a área onde se verificou uma ação mais efetiva do Estado na tentativa

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de garantir o acesso a uma alimentação nutricionalmente adequada. De notar que as cantinas escolares surgiram na Primeira República Portuguesa (1910-1926) como uma medida de apoio social às crianças mais carenciadas. As refeições escolares sugiram, assim, como medida de carácter assistencialista durante o Estado Novo (1933-1974) e a cobertura deste apoio foi sendo alargada ao longo do tempo. Mais tarde, em 1979, o “direito à alimentação escolar” foi, mesmo, expresso com uma das condições que o Estado deveria assegurar, de modo a permitir em pleno o cumprimento da escolaridade obrigatória, através da publicação do Decreto-Lei N.º 538/79, de 31 de dezembro. Nes-ta mesma década, para além do papel social das refeições escolares, começou, também, a ser evidente uma preocupação crescente com a importância da adequação nutricional das mesmas. Em 2005, foi implementado o Programa de Generalização das refeições escolares aos alunos do 1.º Ciclo do Ensino Básico, com o propósito de promover o acesso a uma refeição nutricionalmente adequada a todos os alunos das escolas públicas deste ciclo de ensino (Truninger, Teixeira, Horta, Alexandre, & Silva, 2012). Durante a última década, diversas ações conjuntas entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde têm sido levadas a cabo e alguns regulamentos têm sido aprovados com o objetivo de regulamentar a oferta alimentar a nível escolar. Assim, é, provavelmente, a nível escolar que o Estado Português tem apresentado um papel regulador mais efetivo no contexto das políticas de alimentação e nutrição.

Ainda no âmbito da ação do Estado Português em matéria de assistência alimen-tar, o Governo Português implementou pela primeira vez, em 2009, um Programa de Emergência Alimentar para atenuar os efeitos da pobreza que as atuais medidas de aus-teridade têm feito crescer. Este programa, de carácter transitório – pois deveria vigorar apenas durante o Plano de Ajustamento Económico e Financeiro – pretende “garantir a distribuição de refeições a quem não as consegue prover”2, financiando, para isso, a criação de uma rede solidária de cantinas sociais geridas e implementadas pelas Institui-ções Privadas de Solidariedade Social, de modo a permitir garantir o acesso a refeições diárias gratuitas a pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica (Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, 2009).

Por sua vez, na área da assistência alimentar, as instituições de solidariedade social e de caridade e, também, a sociedade civil têm desempenhado um papel bastante mais ativo.

Posto isto, a intervenção, em Portugal, na área da segurança alimentar (food security) é, ainda, muito incipiente e carece de uma intervenção mais concertada entre os di-versos atores com responsabilidades a este nível, nomeadamente os setores da saúde, educação, proteção social, agricultura e economia.

Importa, ainda, salientar que, a este nível, as políticas de alimentação e nutrição enfrentam, atualmente, realidades e problemas bem distintos e, eventualmente, bem mais complexos. Sabemos, atualmente, que situações de carência alimentar coexistem com o excesso de peso e obesidade, bem como as doenças crónicas associadas a uma alimentação inadequada. O facto de as doenças crónicas como a obesidade, a diabetes ou o cancro serem mais prevalecentes nas populações desfavorecidas exige novas solu-

2 http://www.mercadosocialarrendamento.msss.pt/docs/programa-de-emergencia-social.pdf.

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ções e obriga a rever completamente antigos paradigmas entre a pobreza, o consumo alimentar e a doença.

De futuro, e para uma intervenção mais eficaz nesta área, será necessário: 1) conside-rar o conceito de segurança alimentar como um conceito abrangente e multifacetado, pelo que a construção de uma estratégia nacional que vise garantir a segurança alimen-tar da população portuguesa deve ser uma estratégia intersectorial e partilhada entre os sectores da saúde, proteção social, educação, agricultura e economia; 2) assegurar a qua-lidade nutricional dos alimentos/refeições distribuídos pelos programas de assistência alimentar, assegurando, para isso, a existência de profissionais de saúde, nomeadamente de nutricionistas nas instituições que têm responsabilidades a este nível; 3) promover a capacitação dos profissionais na área da ação social, que lidam diariamente com estas populações, com conceitos básicos sobre alimentação saudável; e 4) contribuir para a literacia alimentar e nutricional e para a capacitação dos cidadãos, em especial dos gru-pos mais desfavorecidos, para escolhas e práticas alimentares saudáveis.

A este nível, convém sublinhar a importância de uma intervenção multidisciplinar e da presença de profissionais qualificados para este tipo de ação, profissionais capazes de uma avaliação do estado nutricional das populações carenciadas, que têm grandes especificidades. Esta avaliação implica a capacidade de recolher informações de grupos populacionais habitualmente pouco colaborativos, em particular quando desconhecem as intenções do inquiridor. Implica a utilização de inquéritos de avaliação do estado nutricional específicos e que necessitam de validações próprias e, também, a presença regular junto destas populações com rotinas alimentares muito diferentes ao longo das semanas, tornando difícil efetuar avaliações exatas da ingestão nutricional e do que é considerado “usual”, aspeto central para a qualidade deste tipo de medições.

Para além da qualidade do diagnóstico da situação nutricional, os profissionais de saúde e, em particular, os nutricionistas envolvidos deverão possuir uma boa capacidade de avaliar e mapear os apoios institucionais existentes e a sua capacidade de disponibi-lizarem alimentos adequados ao estado nutricional das populações e suas necessidades, aspeto que somente pode ser realizado em colaboração próxima com as instituições presentes no terreno. A este mapeamento institucional associa-se o mapeamento das redes de entreajuda “informal” alimentar, que podem ir desde a ajuda familiar até aos vários suportes de proximidade e de vizinhança.

A intervenção nutricional tem como objetivo garantir a existência de alimentos nutri-cionalmente adequados às necessidades energéticas da população, mas, também, garan-tir as necessidades de macro e micronutrientes. Ou seja, garantir a presença de produtos frescos, nomeadamente frutos e hortícolas, e de uma oferta diversificada de alimentos, condição essencial para uma alimentação equilibrada.

Por fim, deve referir-se que a intervenção nutricional de qualidade não deve ser ape-nas capaz de instalar uma monitorização atenta, uma intervenção eficaz do ponto de vista dos profissionais das ciências da nutrição, mas deve, acima de tudo, aspirar a criar condições para que a população seja capaz de, mínima e progressivamente, caminhar para situações de maior segurança alimentar e de maior autonomia. Tal significa uma necessidade de ser capaz de fazer uma intervenção de qualidade na capacitação destas

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famílias e grupos populacionais em todo o percurso do alimento, desde a compra ou aquisição do alimento, passando pelo seu transporte, armazenamento, processamento culinário e, de novo, armazenamento e gestão dos resíduos. A gestão da alimentação e as competências culinárias em contexto de carência económica assumem, neste contexto, uma enorme relevância, podendo, também, surgir como uma forma de aproximação com as populações, necessitando os técnicos de uma formação adequada a estes níveis.

As enormes complexidades deste tipo de intervenções fazem da segurança alimentar e das boas práticas para implementá-la no contexto nacional uma área específica de investigação-ação que esperamos que possa ter iniciado, nestes últimos anos, o seu per-curso de forma consistente.

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OS PROGRAMAS DE APOIO ALIMENTAR EM PORTUGAL: CARATERIZAÇÃO E DESAFIOS PARA O FUTURO

Adriana Botelho, Ana Helena Pinto, Carolina Almeida e Joana Pereira

“Now is the time to act, now is the time to create,

now is the time for us to live in a way

that will give life to others.”

– �e Manifest Against Hunger, 1981

1. IntroduçãoO contexto social e económico em Portugal tem vindo a traduzir-se, ao longo dos

últimos anos, no aumento acentuado de situações de carência como resultado de uma mais elevada carga fiscal, do desemprego, da redução de salários e de medidas sociais prestadas pelo Estado (Vieira, Gregório, Cervato-Mancuso, & Graça, 2013).

A nível europeu, Portugal é um dos países com maior desigualdade na distribuição de rendimentos e com maiores taxas de risco de pobreza monetária (Vieira et al., 2013), com 19,5% da população com rendimentos monetários líquidos anuais por adulto inferiores a 5.059 euros em 2014, equivalente a cerca de 422 euros por mês, superando a média da União Europeia (UE), que se situa nos 17,2% (INE, 2015; PORDATA, 2016). Registou-se, ainda, um aumento do risco de pobreza para a população idosa e para agregados familiares com crianças (INE, 2015).

Neste contexto, multiplicam-se situações de vulnerabilidade socioeconómica, com diminuição do poder de compra e restrição no acesso a bens essenciais, tais como a alimentação (Truninger & Teixeira, 2013).

Podendo definir-se a insegurança alimentar como a “disponibilidade limitada ou in-certa, de alimentos nutricionalmente adequados e seguros ou capacidade limitada para adquirir alimentos apropriados de maneiras socialmente aceitáveis” (Mahan & Escott--Stump, 2010), é compreensível a relação direta entre risco de pobreza e níveis aumen-

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tados de insegurança alimentar, o que reforça a importância desta temática no contexto nacional atual (Gregório et al., 2014).

O desenvolvimento de programas estruturados, ajustados e dimensionados a este problema e à população à qual se destinam, constituem, por isso, importantes medidas promotoras de uma maior segurança alimentar.  

No entanto, devem ser tidas em conta informações adicionais que visem facilitar o acesso a alimentos nutricionalmente adequados e promotores de saúde. Vários estudos indicam que a alimentação assume uma elevada carga no orçamento mensal de agrega-dos familiares com menores rendimentos, registando-se um consumo mais reduzido de hortofrutícolas, a par de um consumo aumentado de alimentos ricos em gordura e sal (Leung, Epel, Ritchie, Crawford, & Laraia, 2014).

Apesar de não existirem dados recentes sobre o consumo efetivo de alimentos em Portugal, dados da disponibilidade alimentar (no período de 2008 a 2012) indicam um consumo excessivo de produtos dos grupos “Carne, pescado e ovos” e “Óleos e gorduras”, e um défice no consumo de “Hortícolas”, “Frutos” e “Leguminosas secas”, sendo expectável que, em famílias em vulnerabilidade socioeconómica, estes desequi-líbrios sejam ainda mais acentuados, caraterizando-se por um afastamento daquelas que deveriam ser as disponibilidades alimentares padrão seguindo o padrão da Dieta Mediterrânica, com uma diminuição da qualidade alimentar (Rodrigues, Caraher, Tri-chopoulou, & Almeida, 2007).

Reconhecendo-se a relação entre a alimentação e o estado de saúde, importa, ainda, salientar alguns dados epidemiológicos. Segundo dados do Inquérito Nacional de Saú-de, em 2014, mais de metade dos adultos portugueses (52,8%) apresentava excesso de peso (Vieira et al., 2013). De igual forma, e a par do que é descrito a nível internacional, esta prevalência é superior em níveis educacionais mais baixos (Vieira et al., 2013).

Considerando a pertinência desta temática, o presente capítulo visa caraterizar alguns dos programas de apoio alimentar, utilizando como fontes as informações disponíveis e publicadas sobre os mesmos, bem como os testemunhos de atores sociais que, cola-borando com estes programas, integraram o projeto SIMETRIA. De igual forma, pre-tende refletir-se sobre potencialidades e propostas de melhoria concretas para o futuro.

2. Caraterização dos programas de apoio alimentar em Portugal Em Portugal, os Programas de Apoio Alimentar distinguem-se entre os que são pro-

movidos pelo Estado e os que emergem de iniciativas da Sociedade Civil. As respostas das políticas públicas promotoras de inclusão são apresentadas em dois sentidos distin-tos, mas complementares. Por um lado, através de políticas reparadoras que pretendem corrigir os problemas já existentes mediante o acesso a recursos básicos (contributo do FEAC – Fundo Europeu de Auxílio aos Carenciados e do PO – Programa Operacio-nal); por outro lado, através de políticas de intervenção precoce que visam prevenir a agudização de necessidades, agindo antecipadamente e de forma estrutural (apoiadas pelo Orçamento do Estado (OE) e por outras fontes comunitárias). As prioridades de investimento e as respetivas medidas a implementar no PO do Fundo Social Europeu (FSE) em Portugal são sinalizadas em articulação com as medidas a desenvolver no Pro-

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grama Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (PO APMC) (Portugal2020, 2014). Nos programas promovidos pelo Estado está incluído o Sistema de Segurança Social, que pretende assegurar os direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de opor-tunidades, bem como promover o bem-estar e a coesão social para todos os cidadãos portugueses ou estrangeiros que exerçam atividade profissional ou residam no território português (Portugal2020, 2014). A lei de bases gerais do Sistema de Segurança Social (Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro) define as bases gerais em que assenta o sistema, bem como as iniciativas particulares com fins análogos (Portugal2020, 2014). A alimenta-ção, mesmo não fazendo parte da Constituição da República Portuguesa como direito, constitui um dos âmbitos de ação. Dos programas e apoios sociais fazem parte os Pro-gramas de apoio ao desenvolvimento social, nos quais se insere o Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados (PCAAC), e das respostas para a Família e Comunidade, os Refeitórios/cantinas sociais e Ajudas alimentares (Portugal2020, 2014).

Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados – PCAACEste programa consistia numa ação anualmente promovida pela Comissão Europeia,

que adotava um plano de atribuição de recursos aos Estados-Membros para o forneci-mento e distribuição de géneros alimentícios provenientes das existências de interven-ções da UE (Segurança-Social, 2016). Destinava-se a pessoas em situação de carência ou Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSSs) (Segurança-Social, 2016).

No âmbito do Regulamento (CEE) n.º 3129/92, de 29 de outubro, Portugal, enquan-to Estado-Membro, informaria anualmente a Comissão do seu desejo de realizar o PCAAC (Segurança-Social, 2016). Cabia, depois, à Comissão Europeia discriminar por Estado-Membro a quantidade, em toneladas, dos produtos no caso de existên-cia de excedente comunitário, ou a dotação financeira a atribuir para a aquisição da matéria-prima para a produção dos produtos (Segurança-Social, 2016). O programa de distribuição alimentar da UE constituiu, desde 1987, uma importante fonte de apro-visionamento para as organizações que trabalham em contacto direto com as pessoas mais carenciadas, dando-lhes apoio alimentar (Segurança-Social, 2016). Este programa distribuía cerca de 500 mil toneladas de alimentos por ano, tendo sido criado com o intento de dar destino aos excedentes agrícolas de então (Segurança-Social, 2016). A nível nacional, a gestão do programa era da responsabilidade da Segurança Social.

Programa Operacional de Apoio a Pessoas Mais Carenciadas – PO APMCA partir de 2013, o PCAAC foi substituído pelo atual programa designado por POA-

PMC, financiado pelo FEAC e pelo OE, caraterizando-se por ser um programa de apoio alimentar, e medidas de acompanhamento promotoras da autonomia, respon-sabilização e qualificação das pessoas mais carenciadas, apoiando-as na redução das dificuldades e contribuindo para a promoção da inclusão social (Portugal2020, 2014). Além disso, complementa três outros dispositivos nacionais:

i) o Programa de Cantinas Sociais;ii) o apoio alimentar, através de vale ou cartão, implementado na Região Autónoma

da Madeira desde 2013;

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iii) prestações pecuniárias de caráter eventual, atribuídas no âmbito da ação so-cial, parte integrante do sistema de segurança social português (Portugal2020, 2014).

FEACConsiste num fundo que financia a compra, o armazenamento e o transporte de

alimentos a distribuir às pessoas em situação de maior carência económica e social (Por-tugal2020, 2014). Substitui o PCAAC, adotando um plano de atribuição de recursos aos Estados-Membros para a fornecimento e distribuição de géneros alimentícios (Na-dkarni & Chaal, 2013). Os produtos alimentares são adquiridos por entidades públicas, diferenciadas em função das competências territoriais (Continente, Açores e Madeira) e entregues a organizações parceiras (Portugal2020, 2014). As organizações parceiras (públicas ou privadas sem fins lucrativos) distribuem os produtos às pessoas/famílias mais carenciadas, diretamente ou através de outras organizações parceiras. Os produtos alimentares são distribuídos em cabazes ou em refeição (Portugal2020, 2014).

Cantina SocialTrata-se de uma resposta social destinada ao fornecimento de refeições a pessoas e

famílias economicamente desfavorecidas, podendo integrar outros serviços, nomeada-mente de higiene pessoal e tratamento de roupas (Associação de Solidariedade Social de Farinhão, 2016). Tem como objetivos: (i) garantir alimentação à população carenciada; (ii) promover a autoestima através da prática de hábitos de higiene; e (iii) sinalizar e diagnosticar situações, tendo em vista um encaminhamento (Associação de Solidarie-dade Social de Farinhão, 2016). A Rede Solidária de Cantinas Sociais, criada no âm-bito do Programa de Emergência em 2012, é uma resposta de emergência que permite assegurar às pessoas e/ou famílias em maior vulnerabilidade o acesso a refeições diárias gratuitas completas compostas por pão, sopa, prato e fruta, sete dias por semana, para consumo na própria cantina ou no domicílio (take-away) (Segurança-Social, 2015).

Além dos apoios ligados à Segurança Social e de âmbito europeu ou nacional, existe uma série de apoios de responsabilidade local, quer sejam de autarquias, de juntas de freguesia, ou do âmbito da sociedade civil, de IPSSs, empresas, associações, grupos ou movimentos.

Para além dos programas governamentais, e atendendo ao contexto socioeconómico do país, multiplicou-se, nos últimos anos, o número de iniciativas locais, desenvolvidas por autarquias, organizações da sociedade civil e grupos informais. De entre estas inicia-tivas destacam-se a criação dos Bancos Alimentares, com campanhas de angariação em cadeias de supermercados em datas estratégicas, a distribuição de cabazes e de refeições prontas a consumir em diferentes espaços das cidades, movimentos de redução do des-perdício alimentar e a criação de hortas sociais.

Bancos Alimentares (BA)Em Portugal, esta é uma IPSS que tem como objetivo central “lutar contra o desper-

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dício, recuperando excedentes alimentares, para os levar a quem tem carências alimen-tares, mobilizando pessoas e empresas, que, a título voluntário, se associam a esta causa” (Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, 2010a). 378.000 portu-gueses recorrem à ajuda de BAs, quer através de cabazes de alimentos, quer através de refeições confecionadas (Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, 2010a). Os bens alimentares são adquiridos através das doações dos excedentes e des-perdícios das empresas, de programas da UE, de campanhas de recolha de alimentos, do Mercado Abastecedor, do Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola, de Hortas, da FPBACF (Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome) e de grandes superfícies, entre outras entidades (Federação Portuguesa dos Bancos Ali-mentares contra a Fome, 2010b). A sua distribuição é feita para dois tipos de institui-ções, as beneficiárias e as mediadoras. As beneficiárias recebem bens alimentares quatro vezes ao ano (em março, junho, setembro e dezembro) e estes destinam-se à confeção de refeições nas instalações. As instituições mediadoras recebem os produtos alimentares uma vez por mês e procedem à sua distribuição através da oferta de cabazes a famílias identificadas como carenciadas. Os diferentes alimentos são atribuídos às instituições mediante o número de utentes, de agregados familiares, de idades e do tipo de apoios que oferecem (Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares contra a Fome, 2010b).

Re-food, Movimento Zero Desperdício e Outros ProjetosA Re-food é um movimento comunitário independente, integrado numa IPSS, cujo

fim consiste na recuperação de comida em boas condições para alimentar pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconómica (Re-food, 2016). O objetivo é, assim, eli-minar o desperdício alimentar e erradicar a fome, incluindo neste esforço todos os membros da comunidade (Re-food, 2016).

O Movimento Zero Desperdício é um movimento promovido pela Associação DariA-cordar com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, que faz parcerias entre estabe-lecimentos que tenham refeições e outros bens alimentares que nunca foram servidos, e IPSSs, Misericórdias, Organizações Não Governamentais (ONGs) e outras Associações de Solidariedade que encaminham esses bens alimentares para quem deles precisa (Da-riacordar. Associação contra o Desperdício, 2016).

Tal como estes, existem inúmeros outros projetos promovidos por IPSSs, associações, empresas, grupos ou movimentos a nível local.

Ajuda Alimentar/CabazesEsta iniciativa consiste na distribuição de géneros alimentícios, com periodicidade

variável, por entidades sem fins lucrativos, grupos informais ou, mesmo, empresas, visando-se contribuir para a redução de situações de carência alimentar de pessoas e famílias desfavorecidas (Segurança-Social, 2015).

A distribuição dos cabazes, assim como a identificação das famílias/beneficiários, é realizada a partir de métodos próprios de cada grupo.

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Supermercado Social e Apoio Alimentar Através de Vale ou CartãoEm Portugal, o primeiro Supermercado Social abriu no corrente ano, em Lisboa,

numa iniciativa da Junta de Freguesia de Santo António (TSF-Notícias, 2016). As fa-mílias beneficiárias têm “o poder de escolha” sobre os produtos de que necessitam e que querem comprar, através de créditos atribuídos pela Junta de Freguesia, apelidados de ‘Santos Antónios’, e que funcionam como moeda de troca (TSF-Notícias, 2016). O supermercado destina-se apenas aos residentes desta freguesia, tendo em conta a condição social em que se encontram, e prevê-se que abranja “mais de 1.000 pessoas de 360 famílias” (TSF-Notícias, 2016). Para além do poder de escolha, o projeto permite que as famílias não percam a capacidade de gerir um orçamento, “mesmo que virtual” (TSF-Notícias, 2016).

Dentro deste tipo de apoios insere-se a atribuição de vales ou cartões prevista pelo PO APMC.

3. Os programas de apoio alimentar nos Estados Unidos e no Brasil Nas últimas décadas, alguns países têm-se destacado pelo desenvolvimento de políti-

cas alimentares, como são os casos dos Estados Unidos da América (EUA) e do Brasil. No caso dos EUA, de entre os vários programas existentes, destaca-se o �e Emer-

gency Food Assistance Program (TEFAP). Este é um programa de apoio alimentar de emergência a famílias americanas com baixos rendimentos (United States Department of Agriculture, 2016). Os alimentos são comprados pelo United States Department of Agriculture (USDA) e, posteriormente, são distribuídos pelos estados (United States Department of Agriculture, 2016). A quantidade recebida por cada estado depende da população existente que está desempregada e que possui baixo rendimento (United States Department of Agriculture, 2016). São selecionadas organizações locais que dis-tribuem diretamente os alimentos aos agregados familiares, servem-nos em refeições ou distribuem-nos a outras organizações (United States Department of Agriculture, 2016).

O Supplemental Nutrition Assistance Program (SNAP), também designado por Food Stamp Program (Programa de Senhas de Alimentos), é, igualmente, um programa de ajuda alimentar governamental direcionado a famílias com baixo rendimento (United States Department of Agriculture, 2016). Os agregados familiares selecionados recebem um cartão de débito (Electronic Benefits Transfer – EBT), com o qual podem comprar alimentos (United States Department of Agriculture, 2016). O subsídio de alimentação é depositado na conta mensalmente. Este subsídio apenas pode ser utilizado na compra de alimentos, estando proibida a compra de cerveja, vinho, licores e tabaco (United States Department of Agriculture, 2016).

Também o Brasil constitui um bom exemplo da participação e empenho governa-mental na criação de estratégias que visam a redução da pobreza e da insegurança ali-mentar, incluindo diversos programas em parceria com os Ministérios. São exemplos os programas Fome Zero, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDA), o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Fa-miliar – PRONAF, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar, em parceria com o Fundo Nacional de

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Desenvolvimento da Educação – FNDE, Ministério da Educação (MEC). De entre as estratégias implementadas, destaca-se o reforço da agricultura familiar, assegurando a venda de produtos para os restaurantes populares, com uma lógica de funcionamento similar à das Cantinas Sociais em Portugal.

Destes exemplos, sobressai o desenvolvimento de políticas integradas com envolvi-mento de múltiplos ministérios públicos e, por outro lado, a implementação de estraté-gias que visem a autonomização de agregados familiares, quer através de um modelo de atribuição de verbas para a compra de alimentos, facilitadora do acesso, por exemplo, a produtos frescos, quer pelo desenvolvimento de estratégias que visem a promoção, não só da autossuficiência, mas, também, da venda de produtos a nível local com reforço dos orçamentos familiares.

4. A experiência do projeto SIMETRIA – reflexões críticas sobre modelos e paradigmas de intervenção

Em situações de carência económica, o acesso à alimentação adequada e o combate à insegurança alimentar dependem da qualidade e da diversidade de alimentos distri-buídos pelos programas de apoio alimentar (Darmon, Andrieu, Bellin-Lestienne, Dau-phin, & Castetbon, 2008). No entanto, poucos são os estudos que avaliam a qualidade alimentar deste tipo de programas, bem como a relação entre o que é distribuído, aquilo que é, efetivamente, consumido e as reais necessidades do público-alvo.

No âmbito do projeto SIMETRIA, no qual foram envolvidos diretamente 231 atores sociais, a maioria dos quais com experiência direta na gestão destas respostas sociais, foi possível percecionar e explorar algumas limitações dos programas acima descritos.

Apesar de serem importantes respostas no acompanhamento que é realizado a fa-mílias em situação de maior vulnerabilidade, de uma forma geral, considera-se serem insuficientes e desagregadas, registando-se casos de sobreposição de ações (sobretudo de ações desenvolvidas por grupos informais e organizações sociais) como resultado da falta de estratégias definidas de forma integrada a nível local e nacional (Pereira, 2015-2016).

No que diz respeito às respostas estatais, destacaram-se partilhas sobre o programa PCAAC, recentemente convertido no programa FEAC (Pereira, 2015-2016). O pri-meiro foi descrito como sendo “exagerado” pela quantidade de alimentos a serem dis-tribuídos num curto espaço de tempo, pois afirmava-se que “Era impossível a qualquer agregado consumir aquela quantidade de alimentos” e “tínhamos um período bastante limi-tado de tempo para fazer a distribuição de alimentos” (Pereira, 2015-2016). Relativamen-te aos produtos distribuídos, foi reportada a quantidade exagerada de produtos lácteos, como queijos e manteigas (Pereira, 2015-2016). Posteriormente, pelo programa FEAC regista-se a redução significativa de alimentos distribuídos para quantidades manifes-tamente insuficientes, predominantemente compostos por produtos enlatados e pro-cessados, com elevados teores de sal e gordura (Pereira, 2015-2016). Nesta dimensão, e tendo o Estado, alegadamente, autonomia na escolha de alimentos adquiridos, seria de extrema importância uma reflexão sobre a qualidade nutricional dos alimentos que são distribuídos, podendo-se, a título exemplificativo, reforçar a quantidade de legumi-

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nosas secas (Pereira, 2015-2016). Por outro lado, partindo do exemplo dos EUA, seria de extremo interesse a distribuição de cartões de débito para compra de alimentos de forma autónoma por parte dos beneficiários, podendo, inclusivamente, restringir-se o tipo de alimentos a comprar. Dos relatos realizados no âmbito do projeto SIMETRIA, registaram-se indicações a instituições locais (juntas de freguesia e IPSSs) que já desen-volvem estes modelos atribuindo verbas a agregados, as quais são direcionadas para a compra direta de alimentos (Pereira, 2015-2016).

Outra importante fonte de produtos alimentares para as instituições de ação social em Portugal são os Bancos Alimentares, contando não apenas com doações individuais, mas também assumindo um importante papel no redireccionamento de desperdícios alimentares da indústria alimentar e de cadeias de distribuição.

Apesar de estas ações poderem constituir um contributo para a redução da insegu-rança alimentar, dependem sempre da qualidade das suas doações. Não tendo uma distribuição de produtos frescos (como frutas e hortícolas) na mesma quantidade e fre-quência que a dos outros alimentos, e sabendo-se que o número de doações diárias não é suficiente para as respostas aos pedidos de apoio, através deste modelo não é possível, de uma forma efetiva e completa, assegurar o acesso contínuo e permanente a todos os grupos alimentares.

É de realçar que, apesar de a função dos BAs se prender com a diminuição do desperdício, o aumento da obesidade e de doenças relacionadas com a alimentação tem levado a que alguns BAs, como os americanos, promovam ativamente produtos de maior qualidade nutricional. A implementação de políticas alimentares que proíbem a distribuição de produtos nutricionalmente pobres, como refrigerantes e doces, são um exemplo. No entanto, tais medidas foram controversas pelo risco de reduzirem a quantidade de alimentos distribuídos, pela dificuldade na seleção de quais os produtos a proibir e por poderem debilitar as relações entre doadores e bancos (Handforth, Hen-nink, & Schwartz, 2013). A colaboração com instituições governamentais, tal como acontece nos EUA e no Brasil, poderia potenciar as doações e maximizar a atuação dos BAs, não prejudicando a gestão dos mesmos.

Para além desta questão da qualidade nutricional dos produtos distribuídos através do BA, no Projeto SIMETRIA sobressaíram outras dificuldades, tais como a conser-vação de produtos perecíveis (“muitas vezes quando vamos levantar os alimentos já estão completamente deteriorados”, “aconteceu até com um carregamento de melancias que pare-ciam estar em perfeitas condições, mas, ao abrir, estavam completamente estragadas”), com datas de validade muito próximas de expirarem, registando-se muitas dificuldades na gestão destes produtos por parte, quer do BA, quer das Instituições que procedem à distribuição dos produtos a nível local (Pereira, 2015-2016).

A gestão de alimentos não própria para consumo parece ser, inclusivamente, uma questão de gestão muito sensível, porquanto “se nos veem a deitar alimentos ao lixo pensam que estamos a desperdiçar aquilo que nos é dado”, “…na nossa instituição temos o cuidado de deitar fora longe da sede, em sítios onde ninguém sabe da nossa existência” (Pereira, 2015-2016).

Neste modelo de intervenção de entrega de cabazes alimentares, será importante,

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também, promover espaços de capacitação para beneficiários, de forma a promover um aumento da literacia alimentar e o desenvolvimento de competências culinárias, possi-bilitando a exploração de receitas que, usando os alimentos que, frequentemente, são distribuídos por estes programas, permitem elaborar pratos diferenciados.

Por outro lado, e de forma a complementar os típicos cabazes de alimentos, as hortas sociais, dirigidas a moradores de uma determinada comunidade, podem constituir es-tratégias relevantes na promoção do consumo de produtos hortofrutícolas (Centraide du Grand Montreal, 2013). Apesar de o número de hortas urbanas ter aumentado de forma significativa nos últimos anos, não se encontram publicadas informações relati-vas aos seus beneficiários e à sua forma de funcionamento. Neste contexto, deverá real-çar-se que, destinando-se a públicos desfavorecidos com baixos níveis de literacia e sem relação com processos agrícolas, é fundamental a existência de um acompanhamento profissional técnico especializado, e que o acesso a sementes, água e materiais essenciais para o processo de cultivo esteja, também, facilitado. Reforça-se, ainda, a importância da exploração de métodos de cultivo ambientalmente sustentáveis.

Finalmente, os supermercados sociais, enquanto lojas de venda de produtos alimen-tares a baixo preço e com fornecedores locais de produtos alimentares (Centraide du Grand Montreal, 2013), juntamente com as cozinhas sociais, já existentes em alguns países, poderiam conduzir a um aumento da disponibilidade de grupos de alimentos menos consumidos pelas populações mais vulneráveis, sendo, em associação com outras iniciativas já existentes, uma mais-valia. No entanto, para esta medida ser efetiva, seria fundamental a existência de programas bem estruturados.

5. O Profissional de Nutrição como fator chave na intervenção em Insegurança Alimentar

Em Portugal os programas de apoio alimentar não têm previsto que da sua organiza-ção estrutural façam parte profissionais da área alimentar nem tem como preocupação primária assegurar o acesso a alimentos com elevada qualidade nutricional. No projeto SIMETRIA, esta foi, sem dúvida, uma evidência bastante clara com a participação no projeto de técnicos da área social, com interesse em intervir nesta dimensão, mas com identificação da falta de tempo e competências profissionais para desenvolverem e implementarem práticas da promoção de uma alimentação adequada nos seus locais de trabalho.

Explorando exemplos de outros países, citamos a Rede de Bancos de Alimentos do Rio Grande do Sul, no Brasil, e a rede Feeding America, nos EUA. A primeira conta com nutricionistas que intervêm em diversas áreas, como a segurança alimentar, a vigilância nutricional e a promoção da saúde. Dentro da segurança alimentar, as suas funções são controlar a qualidade dos alimentos perecíveis e não perecíveis, desde a sua chegada até à distribuição nas instituições. No âmbito da vigilância nutricional, a atuação consiste na avaliação do estado nutricional da população que recebe ajudas alimentares. Relati-vamente às intervenções de promoção da saúde, estas incluem o atendimento individual e o desenvolvimento de atividades de educação alimentar com crianças e adolescentes das instituições apoiadas. Para além disso, é dada formação a manipuladores de alimen-

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tos, tendo como objetivo a qualificação, não só relacionada com a higienização, mas, também, com o reaproveitamento alimentar. Nos EUA, a rede de BAs Feeding America, em parceria com a Academy of Nutrition e o Dietetics and National Dairy Council, criou, em 2013, o projeto e plataforma Healthy Food Bank Hub (Feeding America, 2013). Esta plataforma surge com os objetivos de (i) aumentar a consciencialização sobre a insegurança alimentar como um problema de saúde pública; (ii) identificar estratégias e recursos de forma a modificar os alimentos distribuídos e a aumentar o acesso a ali-mentos nutricionalmente ricos; e (iii) apoiar a educação nutricional dentro da rede. A plataforma disponibiliza informação e recursos, de forma a promover a comunicação entre a rede de BAs e os profissionais de nutrição (Feeding America, 2013).

Tendo em conta os Programas de Apoio Alimentar existentes em Portugal, a realidade das famílias em situação de vulnerabilidade socioeconómica e partindo, também, dos exemplos dos EUA e do Brasil, propomos cinco principais eixos de atuação dos profis-sionais de nutrição nos programas e medidas de apoio alimentar:

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Quadro 1. Eixos de atuação dos profissionais de nutrição nos programas e medidas de apoio alimentar

Eixo de Atuação Responsabilidades a Assumir/Atividades Sugeridas

Segurança Alimentar • Controlar os alimentos e/ou refeições desde a receção até à distribuição.

Vigilância Nutricional• Avaliar o estado nutricional da população que recebe apoio alimentar.

• Identificar necessidades alimentares.

Promoção da Saúde e Educação Alimentar

• Fazer o aconselhamento alimentar ao nível individual, familiar e comunitário.

• Capacitar para uma gestão familiar promotora de saúde, trabalhando estratégias de planeamento de refeições, compra, confeção e conserva-ção de alimentos.

• Formar voluntários, colaboradores e dirigentes das instituições.

• Promover atividades de educação alimentar com as famílias e/ou nas instituições.

• Criar ementas saudáveis e económicas que incluam os produtos forne-cidos.

Formação

• Formar manipuladores de alimentos com boas práticas de higiene e se-gurança alimentar e modos de confeção mais saudáveis e económicos.

• Elaborar critérios e guidelines para a constituição e formação dos cabazes alimentares, de acordo com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS).

• Consciencializar e formar os profissionais da área social.

• Formar a população beneficiária para a promoção da sua autonomia e autossuficiência digna.

Pesquisa Científica/Coordenação/

Investigação/Intervenção Académica

• Estudar formas de intervenção em situações de insegurança alimentar.

• Criar estratégias de intervenção.

• Recolher, tratar e divulgar dados estatísticos relativos aos programas de apoio alimentar.

• Coordenar projetos.

• Consciencializar para a intervenção em insegurança alimentar como um problema de saúde pública

6. ConclusãoApesar das medidas de Apoio Alimentar já existentes em Portugal, a prevalência de

insegurança alimentar atinge proporções que demonstram a necessidade urgente de uma análise da situação e procura de novas respostas e soluções. Os Programas já exis-

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tentes constituem, muitas vezes, medidas assistencialistas, caraterizadas por não pro-moverem o desenvolvimento autossuficiente, perpetuando, frequentemente, situações de insegurança alimentar. De uma forma geral, as medidas existentes proporcionam o acesso gratuito a alimentos sem uma preocupação muito aprofundada relativamente à qualidade nutricional do que é distribuído e do seu impacto nos hábitos e na saúde das populações apoiadas. A inacessibilidade a frutas, hortícolas e produtos frescos constitui um dos principais problemas de saúde pública caraterístico das populações e famílias em situação de vulnerabilidade socioeconómica e a quem os Programas de Apoio Ali-mentar não dão efetivas respostas. Em contrapartida, alimentos enlatados e processados e de elevada densidade energética são, em regra, os mais oferecidos. Neste sentido, consideramos que é crucial uma intervenção de profissionais de nutrição junto de or-ganizações sociais para a adaptação dos Programas já existentes, de forma a que estes sejam, também, promotores de saúde e mais adequados às necessidades das populações beneficiárias.

A colaboração intersectorial e transdisciplinar pode, efetivamente, facilitar o acesso mais equitativo aos alimentos, contribuindo para a mudança do tipo de alimentos ha-bitualmente doados e de paradigmas de intervenção, reduzindo-se o mero assistencia-lismo e procurando-se a capacitação, autonomia e sustentabilidade das comunidades (Freedman, Blake, & Liese, 2013).

De igual forma, será importante refletir-se brevemente sobre os atores responsáveis pelo desenvolvimento, implementação e coordenação dos programas de apoio alimen-tar: Estado ou sociedade civil?

Ao Estado cabe a criação e implementação de políticas públicas de segurança alimen-tar e nutricional, devendo o acesso de forma igualitária à alimentação estar na agenda de atuação do poder público (Sen, 2000). Em 2014, na X Conferência de chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, confirmou-se o papel de relevo da nutrição como tema permanente de agenda nacional. Reforçou-se o compromisso com o direito humano à alimentação adequada nas políticas nacionais e comunitárias (X Conferência de Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, 2014). Tem vindo a concentrar-se esforços no sen-tido de reabilitar os mercados, gerando emprego e estimulando o poder de compra. O Programa de Emergência Alimentar e o Programa Escolar de Reforço Alimentar constituem exemplos da resposta ao aumento significativo da insegurança alimentar em Portugal. No entanto, a inconsistência de uma resposta eficiente e coordenada das redes de provisão estatais que alcance todas as pessoas em maior vulnerabilidade faz com que parte da solução passe por uma sociedade civil atenta e disponível para intervir (Tei-xeira, Truninger, Horta, Alexandre, & Aparecida, 2012). No entanto, diversos atores da sociedade civil, tais como paróquias, associações, entidades privadas e organizações não-governamentais, entre outras, subsistindo de doações, trabalham, muito frequen-temente, de forma isolada, não sustentada ou coordenada, intervindo de forma nem sempre eficaz e efetiva.

Se, por um lado, o Estado Social não deverá demitir-se das suas responsabilidades, por outro lado, é fundamental uma maior articulação entre todos os atores que inter-

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vêm no sentido da redução da insegurança alimentar, podendo a Estratégia de Seguran-ça Alimentar e Nutricional ser o início de um novo modelo de intervenção promovido pelo Estado com a colaboração da rede social e da sociedade civil (DGS, 2016). Afirma--se a necessidade do envolvimento de diversos setores da sociedade na procura de solu-ções para a melhoria do consumo e oferta alimentar, relembrando o que, em 2012, se contemplou nas orientações programáticas do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável. São necessárias estratégias multissetoriais e transversais a todos os setores governamentais, ao setor privado, à sociedade civil, às redes profissionais, aos meios de comunicação e às organizações a todos os níveis (nacional, regional e local).

É essencial a consciencialização pública e governamental para o cumprimento, com outras iniciativas, do 25.º artigo da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua famí-lia a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação” (ONU, 1978).

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DIREITO E ACESSO À ALIMENTAÇÃO: CONTRIBUTOS DO CAMPO EDUCATIVO PARA UMA ‘CIDADANIA ALIMENTAR’

Norberto Ribeiro

1. IntroduçãoQualquer reflexão sobre a alimentação e a saúde se vê na inevitabilidade de invo-

car a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Não constituindo objeto de análise deste texto nomear as razões sócio-históricas (i.e., a devastação humana e material causada pela Segunda Grande Guerra) que antecederam e que, de certo modo, impulsionaram a importância de se estabelecer um compromisso relativamente aos direitos humanos que têm de ser universalmente protegidos, nunca é demais lembrar que, entre os direitos firma-dos, encontram-se o “direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (Artigo 3º), e o direito a um “nível de vida suficiente para assegurar a si e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente [entre outros aspetos mencionados] quanto à alimenta-ção” (Artigo 25º)3. Portanto, a Declaração não nomeia somente o direito à vida, mas, também, o direito a esta poder ser desenvolvida mediante um conjunto de condições favoráveis à saúde e ao bem-estar dos indivíduos e das famílias. Esta preocupação, não só com a vida, mas, também, com a sua própria qualidade, torna-se ainda mais evidente nos documentos que se seguiram à Declaração Universal dos Direitos Humanos – tais como o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (Organiza-ção das Nações Unidas, 1966)4, a Declaração Universal sobre a Erradicação da Fome e Má Nutrição (Organização das Nações Unidas, 1974)5, a Declaração de Roma Sobre a

3 A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas encontra-se disponível em: http://www.un.org/en/universal-declaration-human-rights/.

4 Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh--dudh-psocial.html.

5 Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_16/IIIPAG3_16_2.htm.

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Segurança Alimentar Mundial e Plano de Ação da Cimeira Mundial da Alimentação (Or-ganização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, 1996)6, e as Diretrizes Voluntárias em apoio à realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional (FAO, 2004)7 – que chamaram a atenção da comunidade internacional para a necessidade de se responder a problemas globais como a fome, a má nutrição e a insegurança alimentar.

Após algumas décadas de sucessivos diagnósticos, estes problemas persistem e con-tinuam a impelir as autoridades internacionais para a procura de novas estratégias e medidas para os ultrapassar definitivamente. O último relatório da Organização das Nações Unidas (United Nations, 2015), que estabelece uma agenda para o desenvolvi-mento sustentável tendo como horizonte o ano de 2030, demonstra bem a emergência que esses problemas continuam a ter no mundo atual. Este relatório apresenta, especi-ficamente, 17 objetivos principais para a concretização de um desenvolvimento susten-tável. O 2.º objetivo dos 17 elencados não poderia ser mais ilustrativo da importância que é, ainda, atribuída ao flagelo da fome. O objetivo em questão define como meta al-cançar o nível zero de fome (End hunger, achieve food security and improved nutrition and promote sustainable agriculture). O modo muito concreto e ‘quantificável’ (zero) como este objetivo procura passar a sua mensagem revela, no meu entender, um certo assumir de que a resolução deste problema em particular foi sendo sucessivamente adiada e que, presumo, chegou agora o momento de se estabelecer uma posição (numericamen-te falando) irrepreensível. Para tal urgência desta irrepreensibilidade concorrem factos como, por exemplo, os seguintes: uma em cada nove pessoas no mundo (795 milhões) sofre de desnutrição; a má nutrição é responsável por quase metade (45%) das mortes em crianças menores de cinco anos (3,1 milhões de crianças a cada ano); uma em cada quatro das crianças do mundo sofre de atrasos de crescimento. Nos países em desen-volvimento, a proporção pode aumentar para uma em cada três crianças; 66 milhões de crianças em idade escolar frequentam as aulas com fome, 23 milhões só em África8.

Apesar de ser predominantemente associado a países considerados pobres ou em vias de desenvolvimento9, o problema do direito à alimentação também tem sido colocado em contexto nacional devido à crise financeira, económica e social que afetou nos úl-timos anos Portugal. Concretamente a este respeito, o relatório do Comité Português para a UNICEF de 2013 concluiu que “cerca de uma em cada três crianças (28,6%)

6 Disponível em: http://www.fao.org/docrep/003/w3613p/w3613p00.HTM.7 Disponível em: http://www.fao.org/3/b-y7937o.pdf.8 A lista de todos os factos elencados pelas Nações Unidas para ilustrar a profundidade do problema, bem

como outras informações relevantes colocadas relativamente a objetivos específicos que se pretendem atingir, pode ser consultada no seguinte sítio da internet: http://www.un.org/sustainabledevelopment/hunger/.

9 Não sendo este o lugar para tal reflexão, não podia deixar, no entanto, de ressalvar que o conceito de desenvolvimento não é tido aqui como sendo um conceito inquestionável e que representa per se uma condição eminentemente ideal e positiva para todos/as. Quem é que definiu o conceito de desenvolvi-mento? Qual é o modelo que ele outorga? Que valores e princípios estão na sua base? A quem é que favorece ou prejudica esse modelo? Quais as consequências do desenvolvimento? À custa do quê e de quem? Estas são algumas das questões levantadas por cientistas sociais, que discutem a neutralidade e imparcialidade de um modelo de desenvolvimento que pode não ser o mais adequado e que pode criar e perpetuar subdesenvolvimentos – a este respeito, ver, por exemplo, Andre Gunder Frank (1966) e Boaventura de Sousa Santos (2002).

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encontrava-se em risco de pobreza ou exclusão social em 2011, i.e. numa situação de carência monetária, de privação face a bens essenciais e/ou em agregados que trabalham um número reduzido de horas” (p. 20). Por sua vez, os dados divulgados pelo Eurostat indicam que 31,5% do total da população portuguesa com menos de 18 anos se en-contrava, no ano de 2014, em risco de pobreza e de exclusão social, acima da média da União Europeia a 28 países (27,8%). No que se refere ao total da população em termos etários, os dados do Eurostat (embora com valores significativamente inferiores) reve-lam a mesma tendência: 27,5% do total da população portuguesa em risco de pobreza e exclusão social, também acima da média da União Europeia a 28 países (24,5%)10.

Com efeito, são números inegavelmente ainda muito severos e, de certa forma, con-traditórios com uma certa narrativa (pelo menos implícita) que coloca a União Euro-peia como sendo um contexto político, social e económico dito desenvolvido. Bem revelador dessa narrativa implícita, como divulgado pela FAO (Food and Agriculture Organization) das Nações Unidas, é o facto de nenhum país da União Europeia reco-nhecer e proteger explicitamente nas suas constituições o direito a uma alimentação adequada11. A constituição portuguesa, em concreto, não faz qualquer menção explícita a esse direito, embora integre implicitamente no seu texto a proteção desse mesmo direito, como pode verificar-se no seu Artigo 64.º12. Não obstante, essa proteção implí-cita do direito a uma alimentação adequada não está, ainda assim, presente em todas as constituições da União Europeia. Essa presença apenas se verifica em 1313 países, incluindo Portugal. Os restantes 1514 países da União Europeia a 28 não integram, nas suas constituições, referências implícitas e/ou explícitas ao direito a uma alimentação adequada. Por conseguinte, importa ainda sublinhar, as constituições que reconhecem e protegem explicitamente o direito a uma alimentação adequada são exclusivamente de países que não pertencem à União Europeia, sobretudo de países africanos e sul--americanos. As únicas duas exceções geograficamente mais próximas da realidade da

10 Dados disponíveis no seguinte sítio da internet: http://ec.europa.eu/eurostat/data/database.11 Os dados sobre o ‘nível de reconhecimento’ presente nas constituições mundiais relativamente ao direito

a uma alimentação adequada podem ser consultados no seguinte sítio da internet: http://www.fao.org/right-to-food-around-the-globe/level-of-recognition/en/.

12 O Artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa é constituído pelos seguintes pontos: 1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover. 2. O direito à proteção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito, pela criação de condições económicas, sociais e culturais que garantam a proteção da infância, da juventude e da velhice e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular e, ainda, pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo. 3. Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preven-tiva, curativa e de reabilitação; b) Garantir uma racional e eficiente cobertura médica e hospitalar de todo o país; c) Orientar a sua ação para a socialização da medicina e dos sectores médico-medicamentosos; d) Disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde; e e) Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso dos produtos quí-micos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.

13 Os 13 países cujas constituições fazem uma referência implícita são: Bélgica, Croácia, Chipre, Eslová-quia, Espanha, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália, Lituánia, Holanda, Portugal e Roménia.

14 Os 15 países que não fazem referências explícitas ou implícitas são: Alemanha, Áustria, Bulgária, Dina-marca, Eslovénia, Estónia, França, Irlanda, Letónia, Luxemburgo, Malta, Polónia, Reino Unido, Repú-blica Checa e Suécia.

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União Europeia são as constituições da Bielorrússia e da Ucrânia.Assim, apesar das diferenças sociais, económicas e culturais intercontinentais, que

devem ser, obviamente, salvaguardadas pelo peso político que certamente tiveram no desenho das suas constituições – dito de outro modo: à partida, é expectável que países com realidades socioeconómicas mais vulneráveis priorizem mais a questão do direito a uma alimentação adequada do que países que não se veem nessas condições e que, portanto, não concebem a necessidade de o consagrar constitucionalmente –, a União Europeia, e Portugal em particular, apresenta, ainda, números muito preocupantes de risco de pobreza e de exclusão social, cuja resposta pode estar, eventualmente, a ser di-ficultada por um discurso que se caracteriza por não os assumir explicitamente, ou, no mínimo, por não refletir em letra de constituição o problema que, de facto, constituem. Bem entendido, a ausência de um discurso que assuma claramente que existe um pro-blema real para quase 1/3 da população europeia e portuguesa pode estar a introduzir um nível de ambiguidade na leitura da sociedade que prejudica uma consciência indi-vidual e coletiva informada e crítica que seja capaz de elaborar e implementar propostas de ação mais eficazes.

É precisamente nesse contexto de ambiguidade que penso que o campo da educação pode desempenhar um papel importante na procura gradual e também persistente para a superação do problema da pobreza e exclusão social (no qual, obviamente, se encontra subsumida a questão do direito a uma alimentação adequada), uma vez que se constitui como espaço privilegiado de construção individual e coletiva de uma cidadania efetiva, na qual julgo poder residir a solução mais sustentável. Entendo que uma cidadania efetiva, verdadeiramente cidadã, resulta de cidadãos e cidadãs informados de todas as valências que integram o exercício da sua cidadania e que se sentem livres para, de forma crítica e reflexiva, as poderem desenvolver ou não. Para tal, entendo igualmente que a dimensão educativa assume um papel absolutamente crucial na promoção de uma cidadania informada, crítica e reflexiva. No entanto, também reconheço, a partir de contributos de várias áreas científicas (e.g., Filosofia da Educação, Ciência Política, Psicologia Política), que a educação, consoante os moldes políticos, filosóficos, sociais e culturais em que se inscreve, pode ou não promover uma cidadania efetiva. Havendo, assim, essa não garantia por parte da educação relativamente à promoção de uma cidadania efetiva, e sendo a própria educação uma dimensão ininterruptamente presente na vida dos indivíduos, torna-se necessário e legítimo que esta seja alvo de uma permanente ponderação e reflexão.

2. Contributos do campo educativo O principal argumento que aqui se procura apresentar consiste, portanto, na ideia de

que é importante desenvolver estratégias educativas que contribuam para uma maior reflexividade e conscientização dos/as cidadãos sobre as suas práticas quotidianas15. Nesse sentido, embora não sendo um texto que pretenda direcionar-se exclusivamente

15 Para aprofundar os contributos decorrentes dos processos de ‘experiência refletida’ e ‘conscientiza-ção’ no desenvolvimento de uma cidadania mais democrática e emancipatória, ver os trabalhos de John Dewey (2001 [1916]) e Paulo Freire (1979).

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para profissionais de educação, podendo assim ser apropriado por agentes educativos em geral que queiram refletir sobre esta temática, considero que estes e estas assumem uma particular relevância pela possibilidade que têm de trabalhar de uma forma mais permanente com os jovens, cujos efeitos podem atravessar várias gerações e que, portan-to, podem ter uma maior magnitude na construção de sociedades mais democráticas, mais cidadãs, mais justas e menos desiguais. Em síntese, advoga-se neste texto que, para se combater a pobreza e a exclusão social, em geral, e promover o direito a uma alimentação adequada, em particular, é importante considerar a dimensão da educação para a construção de uma cidadania mais informada, crítica e reflexiva com capacidade de dar resposta a esses problemas.

Um exemplo que ilustra claramente o argumento que aqui se pretende apresentar e que, no meu entender, contribui para a reflexão da pertinência social e científica em se cruzar o tema do direito a uma alimentação adequada com o campo da educação (focando-se especialmente neste último a dimensão da cidadania), é o caso do ‘consu-merismo político’ (cf. Stolle, Hooghe, & Micheletti, 2005) que resulta de cidadãos e cidadãs mais conscientes das injustiças, dos atropelos aos direitos humanos, dos des-perdícios alimentares, e que podem intervir individual ou coletivamente no sentido de pressionar política e economicamente empresas, organizações e, mesmo, países. Ci-dadãos e cidadãs mais informados e inconformados com as desigualdades e injustiças podem boicotar produtos, pressionar governos na gestão dos recursos, solidarizar-se com pessoas ou causas, promover uma consciência coletiva crítica e reflexiva, promo-ver uma cidadania efetiva. O movimento ‘Zero Desperdício’16 e o projeto ‘REFOO-D’17 são duas iniciativas que estão atualmente a ser desenvolvidas em Portugal, que procuram responder a carências alimentares através, especificamente, dos desperdícios alimentares resultantes dos excessos do consumismo (é caso para dizer, ironicamente, que existem excessos bem-vindos pelo potencial de solidariedade que trazem, ainda que não intencionalmente, consigo), e que me parecem ser representativas desse ideal de cidadania18.

Um outro exemplo que poderia ser aqui colocado e que é, de certo modo, também um caso de consumerismo político – levado, contudo, ao extremo de uma completa ausência de consumo (de alimentos) que coloca em causa a própria vida e, portanto, transforma o corpo no último reduto de poder político dos indivíduos19 – é a greve de fome. O caso mediático mais recente de greve de fome que teve um impacto político efetivo foi o do rapper-ativista angolano Luaty Beirão, que procurou, através dessa

16 Para mais detalhes sobre o movimento ‘Zero Desperdício’, consultar o seguinte sítio da internet: http://www.zerodesperdicio.pt/.

17 Para mais detalhes sobre o projeto ‘REFOOD’, consultar o seguinte sítio da internet: http://www.re-food.org/pt.

18 Estas duas iniciativas foram, aliás, recorrentemente invocadas no módulo de ‘Exclusão Alimentar e Cidadania’ que integrou a formação desenvolvida no Projeto Simetria para se promover uma refle-xão sobre possibilidades de se exercer uma cidadania individual e coletiva relacionada com o direito ao acesso a uma alimentação adequada.

19 Esta ideia do corpo como sendo o último reduto de poder político dos indivíduos é uma ideia que tomo de empréstimo da reflexão que Isabel Menezes fez no seminário: ‘Direito e acesso à alimenta-ção: é para todos? Reflexões em torno do projeto Simetria’, realizado na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto no dia 26 de novembro de 2015.

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ação extrema que surge na sequência da sua detenção e de mais 14 companheiros por contestarem o atual regime político, chamar a atenção para a questão da liberdade e dos direitos humanos em Angola. Embora nunca assumido pelo governo angolano, essa greve de fome que durou 36 dias levou, entre outras situações, a um apelo e pressão da comunidade internacional (como demonstra bem o pedido que a Human Rights Foun-dation fez a Nick Minaj para cancelar o concerto em Luanda e, desse modo, se associar politicamente à luta do seu congénere), que culminou com a passagem dos 15 acusados para prisão domiciliária. O processo judicial continua a decorrer e não se sabe ainda qual irá ser o seu desfecho; contudo, já não é possível negar que houve, efetivamente, uma ingerência positiva na governação e justiça angolanas.

Em suma, considero que é na promoção destes cidadãos e cidadãs informados e in-conformados com as injustiças e desigualdades que a educação desempenha um pa-pel crucial, no sentido em que é possível, através desta, proporcionar aos indivíduos um conjunto de aprendizagens significativas que lhes permitam procurar informação, interpretá-la, avaliá-la crítica e reflexivamente, e usá-la de acordo com a sua posição política. Este tipo ideal de indivíduo é um indivíduo que tem mais consciência de si e do contexto que o rodeia. É, portanto, parece-me, um indivíduo mais empoderado, no sentido em que detém maior controlo da sua vida. Um indivíduo mais livre de uma ignorância que o limita a um sentido único. Um indivíduo que aumenta o seu potencial de cidadão. Não obstante, penso que a educação, como já referi noutro lugar (Ribeiro, 2014), tem sofrido de algumas tendências que têm obstaculizado o potencial que ela detém na promoção de uma cidadania democrática, politizada, enfim, de uma cidada-nia efetiva. Tendo já sido dada a justificação relativamente à pertinência de se considerar o campo da educação na promoção (politizada) do direito a uma alimentação adequa-da, o objetivo será, agora, o de apresentar, muito sucintamente, alguns argumentos que decorrem da denúncia de tendências educativas que não contribuem para uma cidadania efetiva. Apresentar-se-ão de seguida três tendências educativas em relação às quais é importante que todos os agentes educativos, particularmente os profissionais de educação, as contrariem permanentemente para a cidadania efetiva se ir afirmando cada vez mais nos quotidianos de cada um e uma de nós; são elas: a Tendência Funcionalista e Individualista; a Tendência Socializadora (Regulatória); e a Tendência Conformista (Consensual). Em cada uma das tendências apresentar-se-ão, também, algumas pro-postas para as contrariar e que emergem da argumentação que sustenta as críticas que lhes são colocadas.

3. Tendência funcionalista e individualistaA tendência funcionalista e individualista baseia-se numa conceção tradicional de

cidadania que assenta no pressuposto de que os jovens são cidadãos-em-formação. Esta é uma conceção de cidadania que tem ainda uma influência significativa sobre as atuais políticas e práticas educacionais e que, como um grupo crescente de autores tem vindo a denunciar, é necessário contrariar (e.g., Biesta, Lawy, & Kelly, 2009; Kahne & Wes-theimer, 2006; Lawy & Biesta, 2006; Osler & Starkey, 2003). Esta forma tradicional de conceber a cidadania tem origem, sobretudo, no trabalho de T. H. Marshall (1950),

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ao nomear pela primeira vez o conceito cidadãos-em-formação (citizens in the making) (p. 25). Um conceito que, como a própria designação sugere, veicula a ideia de que a condição de jovens é uma condição de ainda-não-cidadania. Dito de outro modo, que a condição de jovens é uma condição de incompletude cívica que é necessário, portanto, completar para se aceder ao patamar de plena cidadania. Seria a partir dessa noção de condição incompleta, que transmite a ideia de um défice que era necessário ultrapassar, que se olhava para a dimensão educativa como sendo um instrumento plausível para se promover a aquisição de competências cívicas nos jovens e para se contribuir para a legitimação e manutenção, através de uma lógica funcionalista de educação cívica, das democracias institucionalizadas. Mais, esta ideia de jovens-cidadãos-em-construção viria também onerar os jovens de uma responsabilidade individual relativamente ao próprio processo de aquisição de competências cívicas, ignorando assim uma visão mais global e integrada de cidadania que, pela sua natureza eminentemente política, rela-cional e situacional, apela uma responsabilidade partilhada, i.e., autoridades públicas, famílias, pares, média, etc..

Esta tendência funcionalista e individualista encerra, assim, limitações relativamente à construção da cidadania e aos pressupostos democráticos de igualdade, inclusão e justiça que têm sido amplamente discutidos. Sobretudo porque uma educação funcio-nalista e individualista assume, como já se sugeriu, um caráter instrumental que pres-supõe uma dinâmica acumulativa de experiências que discrimina os jovens dos adultos. Isto porque, não estando os jovens completamente formados, se viam automaticamente excluídos dos processos de discussão e de deliberação democráticas, que só poderiam ser usufruídos por adultos já pretensamente formados. Portanto, este carácter instrumental contém em si um efeito contrário ao que é esperado de uma cidadania democrática, e que é, concretamente, a segregação entre quem já é cidadão e cidadã e aqueles e aquelas que ainda não o são e que vão ser sujeitos a uma avaliação individual em função do que acumularam que irá determinar, ou não, a posse desse estatuto. A tendência funciona-lista e individualista remete, assim, para a ideia de cidadãos-recipiente que necessitam de ser preenchidos para atingirem a plenitude da cidadania e, nesse sentido, poderem usufruir de todas as possibilidades de ação cívica e política que são inerentes ao desen-volvimento de uma cidadania plena.

Com efeito, considerando os argumentos subjacentes a esta tendência, é importante considerar que os jovens são cidadãos aqui e agora, não podendo ser tratados como me-ros objetos estáticos desprovidos das características que formam a sua individualidade. Penso que, para se poder promover uma efetiva cidadania entre os jovens, é necessário considerá-los como os agentes mais importantes no seu processo de mudança. Conside-ro que é importante olhá-los não como recipientes à espera de serem preenchidos com conteúdos, mas sim como agentes que se apropriam dos conteúdos e que produzem os seu próprios significados, podendo operar-se assim uma mudança mais consciente e sustentada que parte, fundamentalmente, dos próprios jovens. Remetendo especi-ficamente esta reflexão para a questão alimentar, e deixando aqui mais um exemplo para argumentar a importância da dimensão educativa, penso que é consensual a ideia de que é melhor um/a jovem informado/a e consciente do que é um comportamento

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saudável em termos alimentares, tendo depois autonomia para colocar em prática esse conhecimento, do que um/a jovem que se limita a reproduzir o que lhe foi transmitido, ignorando a lógica e a fundamentação que lhe está subjacente. O/a jovem que se limita a reproduzir nunca atinge verdadeiramente a autonomia desejável, e corre o risco de apresentar comportamentos não saudáveis sem o saber e sem abertura para o poder sa-ber. Em conformidade com essa crítica, argumento assim que qualquer ação educativa deverá ambicionar ir para além da mera transmissão de conteúdos e estabelecer como horizonte a emancipação dos jovens em todas as suas dimensões, incluindo o direito e saúde alimentar.

Propõe-se a aprendizagem pela práticaA partir da crítica que se faz à tendência funcionalista e individualista, sugiro um

modelo educativo tributário da aprendizagem pela prática. Baseada numa conceção de democracia que se define enquanto forma partilhada de vida social (cf. Dewey, 2001 [1916]), a proposta é a de um modelo educativo que não separe os indivíduos da socie-dade, e que assenta no pressuposto de que a aprendizagem da cidadania deve incidir es-sencialmente na vida quotidiana dos/as jovens. Uma melhor compreensão dos contex-tos em que a sua cidadania se desenvolve contribui para a clarificação dos modos como os/as jovens estão implicados na sociedade. São, em última instância, os contextos que proporcionam as oportunidades para os/as jovens concretizarem a sua cidadania, para serem de facto “cidadãos democráticos e aprenderem a partir da sua atual ‘condição de cidadania’” (Biesta et al., 2009, p. 6).

Assim sendo, propõe-se que uma educação estritamente fechada e disciplinar da cida-dania seja substituída pela aprendizagem de uma cidadania democrática que é eminen-temente relacional e que, por isso, só se torna possível a partir dos indivíduos-em-con-texto. É uma proposta que procura, portanto, problematizar um modelo de educação que coloca no centro da sua atenção as capacidades individuais dos/as jovens e não a relação entre os/as jovens e os contextos onde concretizam as suas práticas quotidianas. No essencial, a aprendizagem pela prática assenta numa ideia de democracia que é “na sua fórmula mais curta”, de acordo com Biesta (2011a),

[...] aprender com a diferença e aprender a viver com outros que não são como nós. Por esta mesma razão, a democracia só pode ser aprendida a partir da vida. E este tipo de aprendizagem democrática é verdadeiramente uma tarefa que ocorre ao longo da vida (p. 70).

Por outras palavras, a aprendizagem pela prática é tributária da ideia de que a demo-cracia (e por inerência, a cidadania) assenta na prática social (cf. Hedtke, 2013; Zittel, 2007).

A partir da proposta da aprendizagem pela prática, advoga-se, por conseguinte, a ideia de que uma ‘cidadania alimentar’ só se concretiza efetivamente através da prática, isto é, quando se verifica a apropriação crítica e reflexiva de determinados conteúdos nas práticas quotidianas efetivas dos/as jovens. O conteúdo só ganha sentido e utilidade quando transportado para a prática, na medida em que é somente através da prática

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que os/as jovens concretizam as suas aprendizagens: a prática é o espaço de aprendiza-gem permanente onde os conteúdos são objeto de uma constante avaliação, adequação, atualização e testagem prática. Invocando contributos clássicos da Filosofia Pragmática (e.g., Dewey, James e Pearce), que Nunes (2009) descreveu de forma bem elucidativa na sua análise, a prática é imprescindível porque é impossível “abordar o conhecimento a não ser através das relações mutuamente constitutivas que mantém com a experiência do mundo e com as condições do envolvimento com este no quadro de comunidades” (p. 224).

4. Tendência Socializadora (Regulatória)A tendência socializadora (regulatória) dos modelos educativos advém fundamen-

talmente da pretensão em reduzir o propósito educativo ao mero acumular de com-petências cívicas que são (numa lógica funcionalista) necessárias para que os/as jovens se integrem efetivamente na ordem política e social que existe. Esta tendência sugere, assim, uma crítica sobre uma educação para a cidadania que parte do princípio de que a cidadania é uma conceção estabilizada e garantida a priori que se fecha a formas mais diversas e heterogéneas de se poder exercer a cidadania. Em concreto, essa conceção garantida de cidadania manifesta-se na utilização de abordagens educativas baseadas em objetivos de aprendizagem que transformam os indivíduos numa espécie de recipientes acumuladores de conhecimento, que os impossibilita de expressarem a sua subjetivida-de e a sua capacidade crítica, isto é, a sua ação política. Por conseguinte, a crítica sub-jacente à tendência socializadora e regulatória decorre fundamentalmente da existência de modelos educativos que se remetem de modo excludente a conteúdos, imagens e, enfim, conceções de cidadania que são previamente definidas e que não dão espaço para a problematização e discussão política no interior das salas de aula, promovendo uma socialização que promove nos/as jovens uma cidadania (con)formada, em detrimento de uma cidadania não-conformista com a ordem política estabelecida (cf. Hedtke & Zimenkova, 2013; Katunarić, 2009).

Assim, considera-se que a tendência socializadora e regulatória deve dar lugar a uma conceção político-educativa de educação que, “antes de tudo, empodere as crianças e os jovens para refletir criticamente e articular politicamente as suas necessidades, exigên-cias e julgamentos razoáveis” (Hedtke, 2013, p. 55). Por outras palavras, considera-se que a aprendizagem da cidadania deve recusar a postura passiva dos jovens, promoven-do a sua agência política, no sentido de lhes conferir

[...] a possibilidade de serem autores das suas próprias vidas e de, assim, contribuírem efetivamente para uma verdadeira cidadania democrática participatória e heterogénea, em detrimento de formas homogeneizantes de cidadania capazes, perigosamente, de suprimir as diferenças e de ignorar as desigualdades dos indivíduos e dos grupos no que se refere ao exercício dos direitos formais que lhes foram garantidos (Ribeiro, 2014, p. 93).

Por conseguinte, defende-se uma conceção de educação para a cidadania que con-sidere a heterogeneidade e a liberdade dos/as jovens para influenciar individual e co-letivamente os contextos onde estão inseridos, no sentido de promover efetivamente a

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fruição da sua dimensão política e, consequentemente, a sua emancipação.Posto isto, advoga-se, a partir da crítica a esta tendência socializadora (regulatória), a

ideia, como já se salientou aqui, de que os/as jovens são agentes incontornáveis de pro-dução de conhecimento e de mudança. Em conformidade, considero que as interven-ções educativas servem fundamentalmente o propósito de emancipar os/as jovens, pro-movendo a sua autonomia e independência no que se refere, por exemplo, à inclusão e saúde alimentar, e não o de socializá-los acriticamente, promovendo uma dependência de ações externas que os/as informem e orientem permanentemente quanto ao que é considerado correto fazer-se e não se fazer. Mais do que regular, é necessário emancipar. Regular promove situações de mudança transitórias e impostas nos sujeitos. Emancipar promove a mudança dos próprios sujeitos que, por sua vez, impõem mudanças sobre o quotidiano em função das suas necessidades e visões relativamente ao direito e acesso a uma alimentação adequada.

Propõe-se a subjetificação do sujeitoComo pode se depreender, a crítica subjacente à tendência socializadora da educação

para a cidadania (que considera os/as jovens como objetos estáticos e passivos) sugere a adoção de um modelo de subjetificação que promova efetivamente a agência política do sujeito, recusando, portanto, modelos educativos que incorrem no risco de “‘domesti-car’ o cidadão” (Biesta, 2009, p. 154). Inspirado nos trabalhos de Mouffe (1993, 2000, 2005) e Rancière (1995a, 1995b, 1999, 2003), Biesta (2011b) advoga, assim, uma conceção subjetificadora da aprendizagem da cidadania, ressaltando que esta não era so-bre “a aquisição de conhecimento, capacidades, competências e disposições, mas tinha que ver com a ‘exposição’ e o envolvimento com a experiência da democracia” (p. 152). Com efeito, atendendo que a democracia não se concretiza ao nível da cognição, não podendo, assim, ser simplesmente ensinada (mas somente alimentada), Biesta (2011b) argumenta conclusivamente que “as formas mais significativas de aprendizagem cívica são suscetíveis de ocorrer através dos processos e práticas que compõem o quotidiano das crianças, jovens e adultos” (pp. 152-153).

Em síntese, advoga-se a ideia de que cada indivíduo é um indivíduo com caracte-rísticas específicas que exigem uma apropriação singular e, consequentemente, uma concretização prática do conhecimento que se adeque aos seus interesses e necessidades.

5. Tendência Conformista (Consensual)Confirmando alguns dos argumentos colocados nas tendências anteriores, a crítica

à tendência conformista e consensual assenta numa conceção de democracia que não pode ser cristalizada numa dada ordem política. Que está, como Biesta (2011b) afir-ma, para além da ordem. Estimulado pelos trabalhos de Mouffe (1993, 2000, 2005) e Rancière (1995a, 1995b, 1999, 2003), Biesta (2011b), como atrás já salientámos, argumenta que a política democrática não pode ser capturada tendo como premissa a ideia de que a democracia consiste numa ordem política estável. Para justificar esse argumento, o autor refere que a ordem política desempenha um papel importante na gestão democrática quotidiana; contudo, acrescenta também que esta só existe devido

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à divisão entre aqueles/as e que estão dentro e os/as que se encontram fora dela. Não se justificaria de outra maneira a existência de uma ordem política. De modo a sustentar a sua crítica, que rejeita uma conceção colonialista de democratização, em que os que estão dentro da ordem política vigente incluem os que estão fora, Biesta (2009) defen-de que as fronteiras da ordem democrática devem ser exclusivamente consideradas em termos políticos e não em termos morais ou naturais. Esta posição analítica permite considerar uma relação diferente entre os/as que estão dentro e os/as que estão fora, na medida em que possibilita “contestar as fronteiras da ordem democrática em vez de assumir, axiomaticamente, que a ordem existente é a ordem ideal” (Ribeiro, 2014, p. 100).

Apesar de se salientar a importância da dimensão conflitual na ação política, como sugere a contestação das fronteiras da ordem democrática, não se defende a presença de um ‘pluralismo sem fronteiras’ em que se tem necessariamente de aceitar como legítimas todas as exigências colocadas numa dada sociedade. Defende-se, antes, aquilo que Mou-ffe (1999, 2000) designa por ‘pluralismo agonístico’, conceito que rejeita um ideal de política democrática baseado na possibilidade de se ‘criar unidade num contexto de con-flito e diversidade’ e de se ‘superar a oposição entre nós e eles’. Um conceito que propõe, portanto, que as posições antagonistas se transformem em posições agonistas, no sentido de ‘eles’ não serem entendidos como inimigos que devem ser a todo o custo eliminados ou assimilados por uma determinada ordem política, mas sim entendidos como adversá-rios com os quais partilhamos princípios ético-políticos democráticos como a liberdade e a igualdade, apesar de discordarmos relativamente à sua interpretação.

Em suma, e no que se refere à articulação com o direito e acesso a uma alimentação adequada, esta tendência apresenta-nos alguns argumentos que sustentam a ideia de que é importante promover uma cidadania vigilante, questionadora e inconformista que possibilite aos jovens poderem avaliar permanentemente as condições políticas de-mocráticas que os/as envolvem e, em conformidade, poderem livremente desencadear (ou não) ações individuais e coletivas de contestação.

Propõe-se o inconformismoNo essencial, os argumentos da crítica à tendência conformista sustentam que a po-

lítica democrática não pode estar refém de uma dada ordem política, uma vez que esta só se materializa nos momentos de oposição que se faz a essa mesma ordem. A política democrática, utilizando termos caros a Mouffe e a Rancière, só acontece na presença de relações de interrupção, conflito e dissenso com a ordem política estabelecida. Portanto, uma educação que pretenda efetivamente contribuir para a construção de sociedades mais democráticas deve apelar às dimensões da discussão, do confronto, isto é, do in-conformismo. De outro modo, a dimensão política não será, em bom rigor, atendida. Ou seja, a socialização e a regulação dos/as jovens exclusivamente com o objetivo de integrá-los/as numa determinada ordem política existente, não passível de ser desafiada e colocada em causa, sequestra a dimensão política (eminentemente relacional e con-flitual) que é necessária para a presença de uma democracia efetivamente democrática. Por outras palavras, propõe-se uma educação que não seja, por princípio, acrítica e

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conformada com as ordens políticas estabelecidas: propõe-se uma educação que, por princípio, se baseie no inconformismo.

Em suma, a proposta do inconformismo sustenta a ideia de uma ‘cidadania alimen-tar’ crítica e reflexiva para se promover, em função de uma avaliação permanente dos/as jovens sobre as suas necessidades e interesses, o direito e acesso a uma alimentação adequada.

6. ConclusãoOs estudos e relatórios internacionais têm divulgado dados que nos dizem que o

acesso a uma alimentação adequada continua a constituir um problema na Europa e em Portugal. No entanto, o direito implícito à alimentação que domina a legislação portu-guesa e europeia pode sugerir que o acesso não constitui um problema e que, portanto, não é motivo para ser explicitamente mencionado em texto de lei. Estes dois níveis de informação podem criar alguma ambiguidade na leitura que pode, por sua vez, pro-mover alguma indiferença relativamente ao problema. Por outras palavras, tomar-se como garantido que o direito implícito significa, por si só, que o problema é um não--problema ou um problema que não é socialmente relevante pode levar a que não seja prestada a devida atenção ao mesmo e que, em consequência disso, não se desenvolvam estratégias legais e socioeducativas capazes de produzir respostas mais adequadas e efi-cientes. Nesse contexto de ambiguidade da leitura face a uma presença ainda concreta do problema, penso que a educação assume um papel muito importante para promover no quotidiano individual e coletivo disposições e atitudes que questionem permanen-temente o estado atual das sociedades e que conduzam à emergência de ações (também individuais e coletivas) que operem transformações sociais e políticas de maior igualda-de e justiça, incluindo a questão sobre a qual se está aqui a refletir – o direito e acesso a uma alimentação adequada. Não obstante, para a educação poder ter esse efeito ideal é necessário que ela contrarie algumas tendências que têm sido prejudiciais ao desenvol-vimento de uma consciência individual e coletiva mais politizada, isto é, mais atenta às desigualdades e mais propensa a desenvolver ações de transformação social e política que recusam contribuir para a manutenção de problemas como o não acesso a uma alimentação adequada. Tendo como pano de fundo essa preocupação, o presente texto procura apresentar alguns argumentos que criticam o efeito despolitizador das tendên-cias funcionalista e individualista, socializadora (regulatória) e conformista (consensual) sobre os indivíduos e as sociedades, e que caracterizam os atuais modelos político--educativos. A partir desses argumentos apresentam-se algumas propostas que, por opo-sição a lógicas educativas (meramente contemplativas) de manutenção, são tributárias de modelos que assentam no potencial transformativo da educação. As propostas aqui apresentadas, e que serão, obviamente, deixadas à consideração e avaliação dos agentes educativos em geral, são: a aprendizagem pela prática, na medida em que a cidadania é eminentemente relacional e só acontece a partir dos indivíduos-em-contexto; a subjeti-ficação do sujeito, que apela à emancipação dos indivíduos, por oposição à domesticação dos cidadãos e cidadãs; e o inconformismo, que faz a apologia de um questionamento e vigilância permanentes das condições que envolvem os cidadãos e as cidadãs e que é

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97Direito e acesso à alimentação: Contributos do campo educativo para uma “Cidadania alimentar”

a base a partir da qual se podem desenvolver ações com potencial de transformação de situações de desigualdade e injustiça. Não tenho a pretensão de constituírem propostas imunes a limitações e críticas. Pensar de outra maneira seria ser incongruente com os argumentos aqui colocados. Porém, considero que podem oferecer alguns contributos relativamente significativos para se refletir a construção de uma cidadania cada vez mais democrática, onde se inclui, evidentemente, a ‘cidadania alimentar’.

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A CONSULTORIA COLABORATIVA NO PROJETO SIMETRIA

Sofia Castanheira Pais, Joana Pereira e Pedro Daniel Ferreira

1. IntroduçãoNuma história que tem já várias décadas, a consultoria tem vindo a afirmar-se en-

quanto estratégia útil no trabalho com profissionais de várias áreas, envolvidos no apoio e assistência a populações diversas.

Num artigo já clássico, publicado originalmente na década de 60 do século XX, Caplan (1995) dá conta de um dos seus primeiros sentidos: a consultoria de saúde mental visava apoiar profissionais de diversas áreas – professores, enfermeiros, médicos de família, polícias, etc. – envolvidos em relações de cuidado de outros, e não espe-cializados na área, a desenvolverem ações capazes de concorrer para a promoção da saúde, assim como para a prevenção e reabilitação na doença mental. Num quadro em que não se vislumbrava possível dar formalmente formação em saúde mental a todos estes profissionais, ou colocar profissionais especializados em todos os locais em que estes eram necessários, a consultoria permitia, a partir de um conjunto relativamente pequeno de especialistas, intervir, ainda que de forma intermediada, num conjunto alargado de contextos, estendendo os programas de promoção, prevenção e reabilitação a um número muito maior de pessoas. Trabalhando com os profissionais envolvidos na prestação de serviços a outros ou em relações de cuidado de outros, os consultores poderiam fazer com que estes solucionassem problemas que identificavam nas suas prá-ticas e, assim, melhorassem a sua capacidade de intervenção junto dos seus clientes e utentes (Caplan,1995).

2. A consultoria: da dimensão instrumental à dimensão relacionalA consultoria era, e é ainda, vista como um processo de interação entre profissionais

de uma determinada área, agindo como consultores para questões dessa mesma área, e outros profissionais, enquanto consulentes que, não sendo especialistas de uma área que identificam como relacionada com os problemas profissionais que o cuidado aos seus

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clientes e utentes lhes pede ou exige, procuram junto dos consultores soluções que per-mitam a melhoria dos serviços prestados e das condições de vida dos mesmos clientes ou utentes com quem trabalham (Clare, 2009; Menezes, 2010). É possível identificar aqui, claramente, uma dimensão instrumental e pragmática da intervenção que utiliza esta estratégia: quando um determinado profissional se depara, na sua prática, com problemas que escapam à sua área de especialidade mas que têm implicações no modo como exerce a sua profissão – por exemplo, um professor com problemas em lidar com uma criança com diabetes mellitus na sala de aula ou um técnico de serviço social com dificuldade em aconselhar uma família em situação de endividamento excessivo – esse profissional poderá consultar outros profissionais especialistas nessas áreas que o apoiem na forma de resolver esses problemas e dificuldades. Assim sendo, os consulto-res são instrumentos de apoio à resolução de problemas e dificuldades que se colocam na prática de outros profissionais (Gutkin & Curtis, 2009; Sheridan & Cowan, 2004). Caplan (1995) identificava já, no entanto, uma outra preocupação neste processo, a qual remetia para o que podemos designar por dimensão relacional, e que se prende com a capacitação dos profissionais a quem é prestada consultoria. Ou seja, consulto-res e consulentes devem envolver-se num processo de interação – numa relação – que favoreça a aquisição, por parte dos consulentes, de conhecimentos e competências que os tornem capazes de lidar com situações similares no futuro sem o apoio dos consul-tores. Neste sentido, espera-se, portanto, que o processo de consultoria seja facilitador da construção, transferência e apropriação de saberes e competências relevantes ao de-senvolvimento do consulente e da sua prática profissional. A consultoria é, também, um processo de mudança. Mais, na forma como é posta em prática, a consultoria deve prever uma preocupação com o desenvolvimento e a autonomia dos consulentes (Jo-hannessen, 2004; Newman & Ingraham, 2016).

Envolvendo, comummente, três figuras numa relação triádica, a consultoria, enquan-to estratégia de intervenção e de promoção de mudança, tem vindo a alargar-se a dife-rentes áreas e a tornar-se um conjunto diferenciado de práticas, obedecendo a diferentes modelos e a diferentes formas de gerir a tensão entre as já identificadas: dimensão instrumental e dimensão relacional (Menezes, 2010; Parent & Bégin, 2010; Rimehaug & Helmersberg, 2010). Traduzindo-se, por vezes, na distinção entre uma consultoria centrada no cliente e uma consultoria centrada no consulente (Lambert, 2004), ou entre modelos orientados para a gestão e modelos orientados para o desenvolvimento (Parent & Bégin, 2010), a tensão entre estas dimensões tem vindo a verificar-se. Isto significa que, desta relação tensional, resulta incontornavelmente uma outra, entre a centração na resolução eficaz de um problema e a valorização de um processo que crie o contexto e o desafio necessários ao desenvolvimento profissional dos consulentes, cujos efeitos têm vindo a servir de mote a diversas propostas de articulação e integração (e.g. Parent & Bégin, 2010; Rimehaug & Helmersberg, 2010), pelo que se mantém, não apenas estruturante, mas, também, importante para se compreender o que tem sido e pode ser esta estratégia.

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2.1 A consultoria tal como a entendemos neste projeto

Numa fase embrionária deste projeto e ao longo do mesmo, foi-nos sendo neces-sário construir e reconstruir uma visão da consultoria que desse resposta às diferentes circunstâncias em que os processos foram ocorrendo e às diferentes exigências que nos foram sendo colocadas em cada caso.

A consultoria é, frequentemente, justificada porque se reconhece que um profissio-nal, um conjunto de profissionais ou uma instituição/organização se deparam, na sua ação, com problemas ou dificuldades, passíveis de transformação, que afetam a relação de cuidado que mantêm com os seus utentes (Menezes, 2010). Ter isto em considera-ção implica olhar para o modo como a consultoria contribui para resolver o problema colocado de forma eficaz (Parent & Bégin, 2010; Sheridan & Cowan, 2004). Os pro-fissionais ou instituições que recorrem a consultores ou que com eles se disponibilizam a trabalhar têm, muito frequentemente, a expectativa de que as equipas de consultoria possuam um saber especializado, em termos de conteúdos específicos, que possam dis-ponibilizar no momento de encontrar os problemas e as dificuldades a abordar e os pos-síveis modos de as diminuir ou resolver em cada caso (Newman & Ingraham, 2016). Na constituição da equipa de consultores do projeto este aspeto foi, efetivamente, tido em consideração. Assim, tratando-se de um projeto sobre a redução de desigualdades no acesso à alimentação e à saúde, foram incluídos na equipa especialistas da área da nu-trição, da educação para a saúde e da intervenção social e educativa. Assegurou-se, pois, o domínio de saberes relevantes e a possibilidade de estes serem mobilizados no traba-lho a realizar com os consulentes, as instituições e os seus profissionais, expectando-se que resultassem em práticas e ações com potencial na melhoria do acesso dos utentes a uma alimentação e a uma vida mais saudáveis. Admite-se, por conseguinte, que este co-nhecimento especializado diversificado é importante para que se possa olhar para cada situação e identificar práticas alternativas e possibilidades de transformação, embora se reconheça insuficiente para que se consiga construir um conhecimento contextualmen-te validado daquilo que poderão ser problemas e dificuldades relevantes a abordar e a procurar transformar. Trata-se, por um lado, de reconhecer a importância das diferentes especialidades, incluindo as dos consulentes, e o conhecimento do contexto e das práti-cas trazidas pelos próprios consulentes para o processo de consultoria; e, por outro lado, de afirmar que, a partir do próprio processo de consultoria, deve ser possível desenvolver em conjunto novas formas de compreender os problemas ou dificuldades, expandindo aquele que é o reportório de conceptualização e ação que o consulente tem disponível (Lambert, 2004). Isto implica não recusar a importância do saber técnico da equipa de consultoria e da sua função complementar, muitas vezes essencial para a construção de soluções e alternativas (Rimehaug & Helmersberg, 2010; Schulte & Osborne, 2003). Mas implica, também, a assunção de uma relação não hierárquica, quer em termos de papéis, quer em termos de conhecimento, que favoreça a colaboração e o diálogo, que invista num processo aberto e participado de construção do que poderão ser os proble-mas e daquelas que poderão ser soluções viáveis e adequadas para os mesmos (Newman & Ingraham, 2016). É a partir deste processo que, frequentemente, se vão construindo compreensões dos problemas que são mais ecológicas e contextualizadas. Similarmente,

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é, também, a partir de uma genuína inclusão dos consulentes – quer no que toca às suas visões, quer no que respeita às suas experiências – nestes processos que se conseguem encontrar, por um lado, formas de abordar os problemas e, por outro, ver apropriadas pelos próprios consulentes estratégias de resolução com maior probabilidade de serem postas em prática (Newman et al., 2016).

2.2 As instituições envolvidas em processos de consultoria

A experiência da consultoria no projeto SIMETRIA: Promoção da Igualdade Nutricio-nal e Social envolveu quatro instituições, embora se reflita, neste texto, sobre os processos decorridos apenas em duas delas. A dimensão, a composição e o modo de funcionamento das instituições em que decorreram processos de consultoria foi substancialmente diferen-te. Desde logo, o contexto sociogeográfico em que se encontram estes contextos torna as realidades e os diálogos interinstitucionais muito distintos.

A primeira organização envolvida num processo de consultoria é uma Instituição Parti-cular de Solidariedade Social (IPSS) localizada em zona rural, designadamente em Arouca. A sua atividade inclui as valências do lar de infância e juventude, jardim-de-infância, cre-che, centro de atividades e tempos livres, centro de atividades ocupacionais, e rendimento social e de inserção. Estas valências distribuem-se em diferentes espaços da instituição, não existindo uma ligação orgânica entre valências e, sobretudo, entre os próprios utentes e funcionários operacionais. Um dos aspetos valorizados no âmbito da formação centrou--se, precisamente, nesta questão: a criação de um espaço na semana em que funcionários pudessem partilhar dificuldades e aprofundar o conhecimento do trabalho realizado pelas colegas. Não obstante, uma das respostas sociais da instituição revelou não ter disponibili-dade para participar ativamente na construção de propostas advindas do processo de con-sultoria. Esta indisponibilidade foi justificada com excesso de trabalho pelas funcionárias da instituição. Entende-se, pois, que esta dispersão terá dificultado a compreensão daque-les que seriam os objetivos centrais e o envolvimento efetivo nas propostas que surgiram da ligação entre consultores e técnicos. O não envolvimento efetivo de um elemento da direção/diretor técnico no plano que foi traçado terá sido, também, limitativo em termos de efetivação deste processo. A existência desta figura teria sido central para acompanhar o trabalho a nível local e, sempre que necessário, articular com a equipa de consultores.

A segunda instituição, também uma IPSS, localiza-se em Santo Tirso, num território semirrural. Em termos de resposta social, esta instituição dirige a sua atividade para a população idosa, oferecendo serviços de apoio domiciliário, lar e centro de dia. No que respeita às valências da instituição, regista-se o facto de as suas atividades estarem concentradas num mesmo edifício, com cozinha própria e serviço de lavandaria. A co-zinha foi, precisamente, o ponto de partida para o arranque do processo de consultoria e, apesar de se ter expandido para outras dimensões, foi neste setor que a ação principal da consultoria se situou. O envolvimento ativo dos funcionários da instituição e a fi-gura facilitadora da sua diretora técnica configurou o processo de consultoria de forma particularmente distinta, atendendo comparativamente ao que aconteceu na instituição de Arouca. Este revelou-se um aspeto significativamente benéfico para a manutenção de compromissos, tomadas de decisão e motores de mudança.

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3. A experiência de terrenoDe seguida refletir-se-á em torno da experiência de consultoria, vivenciada por alguns

elementos da equipa do projeto SIMETRIA, decorrida nas duas instituições anterior-mente apresentadas. Do compêndio de notas de terreno e da (re)leitura de relatórios e outros materiais mais ou menos organizados resulta o esboço de uma reflexão parti-lhada que perpassa, neste capítulo, dimensões relevantes do desenvolvimento da con-sultoria, tais como a formalização deste processo, o envolvimento dos consulentes, a importância do compromisso e os riscos de co dependência.

3.1 Da formalização ao desenvolvimento da consultoria

A experiência de consultoria nas instituições decorreu de forma muito dissemelhante, proporcionando, desde logo, à equipa de trabalho uma entrada no universo das suas rotinas particularmente díspar. No caso da instituição de Santo Tirso, a consultoria adveio de uma solicitação explícita decorrente da experiência de participação nos ciclos formativos por parte de um conjunto de funcionárias, das mais variadas áreas de atua-ção e com níveis de decisão distintos na instituição. Como revelam as notas de terreno, “houve dimensões abordadas ao longo da formação que entendemos fundamentais para explorar na instituição. De facto, há práticas que merecem um olhar mais cuidado atra-vés da consultoria” (Pais, 2015- 2016).

Contrariamente a esta, a proposta de parceria da instituição de Arouca partiu da en-tidade promotora do projeto, tendo sido consolidada por várias reuniões no sentido de clarificar os objetivos e métodos previstos para desenvolver este processo. Desde a fase inicial, a dimensão colaborativa em que se pretendia vir a trabalhar foi sempre focada. No entanto, na fase inicial, a própria equipa procurava perceber qual seria a sua esfera de atuação e que métodos de trabalho deveriam ser adotados.

De facto, em Arouca, o processo iniciou após alguma insistência por parte da enti-dade promotora do projeto, reservando-se vários momentos para aprofundamento e clarificação do que seria esperado do desenvolvimento do processo de consultoria. Num destes momentos com um dos diretores técnicos da instituição sobressaíram algumas necessidades iminentes, tais como

[...] a melhoria das condições alimentares das jovens da Instituição. Espero poder melhorar aspetos relacionados com a alimentação fornecida e o uso de doces como compensação emocional. Acredito que não encontraremos muitas resistências e o pessoal que trabalha na Instituição é bastante recetivo, embora realisticamente não espere mudanças radicais (Pais, 2015-2016).

Em Santo Tirso, e tendo em atenção que o grupo-alvo da instituição é composto por pessoas idosas, os dados recolhidos num primeiro momento tinham já eco em registos escritos construídos a propósito do ciclo formativo em que boa parte dos seus funcio-nários tinha estado anteriormente envolvida. A este respeito, o excesso de sal e gorduras e o tipo de confeção com recurso a fritos e assados predominaram como principais problemas a resolver.

Em ambas as instituições, nos primeiros contactos, os consultores tiveram oportu-

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nidade de visitar as instalações para conhecerem e serem apresentados às diferentes equipas. Destas visitas resultaram notas importantes para compreender a forma como poderiam configurar-se os processos de consultoria. Mais, estas visitas permitiram, tam-bém, sublinhar a lógica colaborativa e focada em questões essenciais em torno das quais a consultoria deveria desenvolver-se. A este respeito, a nota de terreno aquando de uma das primeiras visitas à instituição de Arouca é reveladora desta preocupação:

[...] o intuito foi, naturalmente, transmitir a ideia de que a nossa atuação irá orientar-se para a melhoria ou criação de serviços e/ou respostas com potencial para diminuição de situações de risco a respeito do acesso à alimentação e ao bem-estar de forma geral (Pereira, 2015-2016).

Ainda nesta linha,[…] apresentávamo-nos como a equipa que irá trabalhar questões relacionadas com a alimentação na Instituição. Apesar de não ser totalmente confortável esta forma de apresentação, compreendemos que era rápida e facilmente inteligível para a maioria dos profissionais. Depreendemos, no entanto, que desconstruir a imagem de ‘avaliador’ poderia ser, de facto, um objetivo inerente ao trabalho com alguns técnicos da Instituição (Pais, 2015-2016).

As visitas seguintes efetuadas pela equipa tiveram como objetivos centrais, entre ou-tros, conhecer o trabalho realizado relativamente às respostas sociais das instituições, os seus técnicos e utentes, e identificar dificuldades sentidas no terreno e estratégias desen-volvidas para as gerir. Desta auscultação inicial foi percetível, em ambas as instituições, a identificação da área da alimentação como um espaço de intervenção muito impor-tante para ser trabalhado, mas sempre numa perspetiva de identificação de melhorias que poderiam ser implementadas na prática de terceiros e não na própria. A mudança, conforme explicam Hawkins e Smith (2006), tem consequências não apenas no que toca às práticas das pessoas envolvidas na consultoria, mas na sua vivência nas institui-ções e no desempenho dos seus papéis. Assim, o potencial de “mudança transforma-dor” (Hawkins & Smith, 2006, XII) foi, tendencialmente, visto enquanto exterior aos próprios funcionários, o que sugeriu à equipa de consultores a necessidade de explorar paulatinamente, com os implicados no processo, as implicações emergentes do desafio (um entre tantos!) da consultoria.

3.2 Dos documentos às pessoas – ambas ferramentas de trabalho

No decorrer do processo de consultoria foram construídas, na instituição de Arouca, diversas ferramentas, entre elas um documento com propostas de trabalho baseadas (i) nas dificuldades/fragilidades identificadas pelas técnicas; (ii) nas observações realizadas nas visitas da equipa de consultores; e, ainda, (iii) nos grupos de trabalho integrados no âmbito da formação. No caso da instituição de Arouca, a discussão em torno deste documento e, particularmente, sobre as problemáticas/desafios foi aprofundada de tal forma que se entendeu que este documento, na sua versão final, seria um instrumento de trabalho sólido, com o qual os técnicos e funcionários se identificavam e que, por-

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tanto, constituiria um ponto de partida para o desenvolvimento e a implementação de medidas na instituição.

A experiência de consultoria na instituição de Santo Tirso foi, igualmente, permeável à co construção de inúmeros documentos de trabalho e ferramentas para discussão e delineamento de propostas. De notar que os documentos produzidos no âmbito deste processo foram partilhados, ajustados e readaptados com base na relação de trabalho se-dimentada entre equipa de consultores e funcionários da instituição. Desde o momento da auscultação nas diversas valências de ambas as instituições à tomada de decisão pelo corpo executivo das mesmas, reconhece-se que as ferramentas de trabalho construídas foram alvo de múltiplas versões. É, precisamente, este processo de vaivém participado e assente na abordagem de explorar propostas de modo fiel às expectativas e necessidades dos contextos que é potenciador de relações de abertura e confiança entre as partes. Veja-se:

[...] estivemos cá a semana passada e hoje trazemos as ideias que registaram anonimamente. Gostaríamos que vissem se espelham as vossas opiniões, para que, daqui em diante, possamos traçar propostas objetivas conjuntamente [uma das funcionárias da cozinha intervém:] sim. Não tenho nada a acrescentar e até acho que há aqui coisas escritas que não é preciso estar a trabalhar, porque não são problemas [um dos elementos da equipa de consultores rebate, afirmando:] mas se colocámos aqui é porque certamente alguma das colegas escreveu. Não lhe parece que devamos atender a esta dimensão? [novamente a funcionária da cozinha:] se assim é, acho que sim. E por onde começamos? (Pereira, 2015-2016).

Este excerto, retirado de uma das notas de terreno, permite, também, desconstruir a ideia de que é possível prever ou controlar a participação dos diversos intervenientes no processo. É, porventura, a possibilidade desta imprevisibilidade participada que con-dimenta a consultoria e motiva novas dinâmicas de implicação dos diferentes atores da instituição. A este respeito, Baird (2014) corrobora a ideia de que, embora reconhecen-do as diversas formas de poder, designadamente na relação entre consultor e consulente, não significa que se deva descurar o papel destas relações e diminuir os seus impactos.

3.3 Do sentido de compromisso à resistência de co dependências

Embora o tempo em que este processo de consultoria esteve ativo tivesse sido apro-ximadamente o mesmo em ambas instituições, no caso da instituição de Santo Tirso, à medida que as semanas avançavam, tornou-se particularmente evidente a forma ali-nhada de planear, avaliar e perspetivar para futuro as ações desenvolvidas no seio da ins-tituição. Uma das intenções, senão aspetos essenciais do projeto, passou por assegurar um nível de implicação dos diversos intervenientes da instituição em todas as fases do processo de consultoria. Tal parece não ter acontecido na instituição de Arouca.

De facto, a experiência de consultoria na instituição de Santo Tirso pautou-se pelo estabelecimento de relações progressivamente mais empáticas e baseadas em princípios de confiança mútuos, o que se revelou, igualmente, essencial para a manutenção de estratégias de mudança na instituição. A registar:

Já com a reunião terminada e depois da desmobilização da maior parte das pessoas, o

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presidente da Direção sussurra que a relação entre a Dr.ª e as cozinheiras não é a melhor e que a Dr.ª tem uma postura autoritária e que ‘nunca as consegue levar’ (Pais, 2015-2016).

Como se depreende deste excerto, a partilha de confidências acentuou a necessidade de vigilância e sentido crítico por parte da equipa do projeto e, inevitavelmente, o garante da confidencialidade e do anonimato de todas as informações deste teor. A este respeito, Hawkins e Smith (2006, 250) esclarecem que é esperado que as pessoas envolvidas no processo de consultoria encontrem espaços de confidencialidade para explorarem a sua vulnerabilidade e as suas dificuldades, expectando que a equipa de consultores seja capaz de gerir a informação delicada e envidar esforços para uma res-posta ou conjunto de respostas adequadas para a situação atual ou futura da instituição.

Paralelamente, o exercício de vigilância e sentido crítico não se deteve apenas no que concerne às confidências em torno das práticas e das relações interpessoais dos diver-sos intervenientes, mas no que toca ao posicionamento da equipa face a intervenções propostas ou solicitações da própria instituição que, ao invés de complementadas pelos próprios envolvidos no contexto, implicariam uma sobreposição de tarefas e papéis. Isto é, a equipa do projeto viu-se, em algumas situações – e este desafio foi comum à experiência de ambas as instituições – confrontada e necessariamente impelida a resistir a determinadas funções que, de algum modo, iriam no sentido da consolidação de relações de co dependência, designadamente pela substituição do que não se pretende substituir na instituição (funcionários e suas responsabilidades).

Veja-se, a este respeito, que, na instituição de Arouca, os papéis inverteram-se e, de forma a assegurar a implementação de determinadas estratégias a nível institucional, a equipa de consultores acabou por assumir um conjunto de atividades/tarefas que, muito provavelmente, não foram sustentáveis – embora esta análise esteja, ainda, sujeita a avaliação pela equipa de consultores. Neste sentido, e numa linha dissemelhante do que estaria previsto inicialmente, teria sido fundamental focar a experiência de consul-toria em torno das práticas dos próprios técnicos, bem como sobre o que poderia ser desenvolvido pelos mesmos. De facto, e apesar das várias tentativas na desconstrução do carácter colaborativo sobre o qual se pretendia desenvolver este processo de consultoria, explicado a par da cautela que a equipa gostaria de expressar no que concerne a esta dimensão de dependência, nem sempre se conseguiu que, em Arouca, estas premissas fossem asseguradas. Constata-se pelo exemplo em que a direção técnica

[...] propôs à técnica que pensasse numa formação dirigida às famílias, dando a ideia que poderíamos ser nós a ministrá-la. Não desconstruímos a ideia no momento, mas será certamente um objetivo a não perder de vista. A ideia é apoiar os técnicos, não é desempenhar o seu papel na Instituição e na sua relação com os utentes!” (Pereira, 2015-2016).

Esta inversão de papéis não aconteceu durante o processo de consultoria na institui-ção de Santo Tirso; no entanto, foram várias as pressões nesse sentido.

Também em torno da fase de implementação efetiva das propostas que foram co construídas, a equipa deparou-se com experiências muito distintas no que concerne

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à implicação da equipa executiva no processo de consultoria. Atentando para a ex-periência de Arouca, este processo foi desenvolvido com assistentes operacionais e, a determinado ponto, os educadores de uma das respostas sociais teriam de se identificar com o trabalho que já tinha sido desenvolvido e implementar as propostas. Apesar de a equipa de consultores ter tido o apoio da direção técnica, foram apresentados múltiplos constrangimentos para o desenvolvimento do plano inicial, partindo-se para sucessivos momentos de reflexão em torno da problemática e daquilo que poderia ser melhorado em termos de práticas. Decorrido este tempo, reconhece-se que teria sido fundamental os elementos da direção técnica estarem presentes nestes momentos de construção/re-flexão conjunta e, de igual forma, distribuírem-se tarefas por entre os próprios técnicos, sendo totalmente necessária a existência de uma figura central a coordenar o trabalho a nível local.

4. Conclusão: A inevitabilidade da dimensão relacional na consultoriaAmbas as instituições e os vários profissionais com quem trabalhámos olharam para

a equipa de consultoria procurando encontrar nela um saber especializado ao nível dos conteúdos específicos envolvidos. Para além disso, a equipa de consultoria constituiu, em ambos os casos aqui relatados, um recurso que, pela via relacional, procurou intervir no modo como se conheciam e reconheciam problemas na ação profissional e institu-cional de apoio e cuidado nas relações e organizações em que esteve presente.

Foi possível valorizar diferentes aspetos presentes nesta dimensão relacional. Por um lado, tratou-se de estabelecer uma relação produtiva e colaborativa com as organizações e os profissionais. Tal implicou atender à qualidade das relações – por exemplo, à clari-ficação do que pode ser esperado de cada uma das pessoas envolvidas – e a um investi-mento na construção de uma atmosfera de confiança e abertura, assim como atender à dinâmica relacional que se foi desenvolvendo e que se procurou que favorecesse o en-volvimento, a colaboração e a autonomização (Johannessen, 2004; Menezes, 2010). No entanto, mesmo quando se aborda esta dimensão relacional da consultoria, não podem ficar totalmente alheios aspetos instrumentais. É importante notar a centralidade que recursos como o tempo disponível, o tempo dado como disponível pelos profissionais e organizações para o trabalho conjunto, assim como o tempo disponível para a im-plementação das mudanças, influenciam, também, a forma e o desenvolvimento destas relações e o que delas pode resultar (Newman et al., 2016).

Esta centração na relação pode implicar uma consultoria que, simultaneamente, tendo em conta os elementos instrumentais e relacionais de uma consultoria, procura que a relação possa estabelecer-se nos moldes que beneficiam essa relação e as suas finalidades a cada momento, isto é, em moldes que podem ir mudando ao longo do tempo, à medida que mudam, também, as posições e as necessidades das organizações e profissionais envolvidos (Rimehaug & Helmersberg, 2010). Propostas de modelos integrados (Parent & Bégin, 2010) e de modelos situacionais (Rimehaug & Helmers-berg, 2010) reforçam isto mesmo – a necessidade de se articular o trabalho de encontrar respostas eficazes em tempo útil com a tarefa de transformar e capacitar profissionais e organizações para desafios similares futuros. A experiência do projeto SIMETRIA veio

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demonstrar que a necessidade de se estabelecerem relações que são, fundamentalmente, não hierárquicas e não prescritivas, essenciais para que o processo decorra num clima autêntico de abertura e diálogo que não só permita a valorização dos diversos saberes, mas que favoreça, também, o compromisso de todos com as mudanças propostas e a implementação das mesmas, é condição nuclear para o sucesso de processos de consul-toria (Newman & Ingraham, 2016; Schulte & Osborne, 2003).

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