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“FADO TROPICAL”: PROTONARRATIVAS DE JOVENS ALUNOS
BRASILEIROS E PORTUGUESES, ESCRITAS A PARTIR DAS LEITURAS E
ESCUTAS DE UMA CANÇÃO “ENGAJADA”
Luciano de Azambuja
Universidade Federal do Paraná
Resumo: O trabalho consiste na investigação das ideias históricas de jovens alunos brasileiros e portugueses do ensino médio de escolas públicas, narrativizadas por escrito e oralmente, a partir das leituras e escutas de uma canção considerada “engajada”, na perspectiva dos fundamentos epistemológicos da Educação Histórica. Foi realizado um estudo piloto para verificar as ideias históricas mobilizadas pelas leituras e escutas da canção “Fado Tropical”, de autoria de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra, aplicado a jovens alunos brasileiros do segundo ano do Ensino Médio do Curso Técnico Integrado de Mecânica, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR. De modo a operacionalizar uma comparação, esse mesmo estudo exploratório foi aplicado a jovens alunos portugueses da turma do 10º. ano do secundário do Curso Científico-Humanístico de Línguas e Literaturas da Escola Dom Afonso Sanches, Vila do Conde, Portugal. O objetivo deste artigo é partilhar e refletir sobre os resultados parciais da investigação apresentados a partir de uma categorização das protonarrativas dos jovens alunos.
Palavras-chave: Canção Popular; Juventude; Educação Histórica.
Introdução
A investigação sobre a consciência histórica de jovens alunos brasileiros e
portugueses, narrativizada por escrito e oralmente, a partir das leituras e escutas de uma
canção popular “engajada”, tem como ponto de partida as seguintes hipóteses: (1) a canção
popular urbana, produto e processo da indústria fonográfica-cultural, está presente nos
processos de escolarização, faz parte do cotidiano e é um dos elementos significativos na
constituição das múltiplas identidades juvenis; (2) a canção popular “engajada” pode ser
significativa nos processos de ensino e de aprendizagem históricas, e na subjacente
constituição, formação e progressão da consciência histórica, podendo apresentar e
mobilizar elementos de uma consciência utópica. Estas hipóteses deverão ser justificadas e
fundamentadas através de um quadro conceptual que está em fase de construção. Pretende-
se articular um constructo teórico capaz de configurar os conceitos e categorias históricas,
que serão dialética e simultaneamente instrumentalizadas nas situações específicas da
investigação empírica.
Esboçadas as hipóteses podemos passar para o próximo passo: a delimitação das
questões de investigação. No caso específico dessa pesquisa eis as principais questões de
investigação: (1) Que ideias históricas, jovens alunos brasileiros e portugueses do ensino
médio de escolas públicas, narrativizam por escrito e oralmente, a partir das leituras e
escutas de uma “canção engajada”? (2) A “canção engajada” mobiliza a consciência
histórica de jovens alunos brasileiros e portugueses? (3) A “canção engajada” mobiliza a
consciência utópica de jovens alunos brasileiros e portugueses?
A Educação Histórica consiste em uma linha de pesquisa que tem como ponto de
vista privilegiado a cognição histórica situada, entendida como a aprendizagem histórica
“situada na ciência da História” (SCHMIDT, 2009, p. 30). Seu objeto principal é a
investigação das relações de ensino e aprendizagem histórica: as relações que alunos e
professores estabelecem com o conhecimento histórico e, por desdobramento, seus
conceitos, categorias, fontes, estratégias, manuais, objetos, currículos, parâmetros,
diretrizes, narrativas, linguagens, enfim, tudo aquilo que esteja relacionado à ideia de
História e contribua para a formação e progressão da consciência histórica dos sujeitos
envolvidos nas relações de ensino e aprendizagem. Em suma, delimita-se provisoriamente
Educação Histórica como o campo de pesquisa e conhecimento que tem como objeto a
investigação da consciência histórica de sujeitos envolvidos em situações de ensino e
aprendizagem histórica.
A Educação Histórica vem se desenvolvendo com resultados efetivos em vários
países como Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Em Portugal, é representada por Isabel
Barca, e no Brasil, pelo trabalho desenvolvido por Maria Auxiliadora Schmidt e Tânia
Braga, cujo enfoque de pesquisa, ainda que relativamente recente, vem se consolidando em
diálogo com a comunidade científica internacional (BARCA, 2005, p. 15). Isabel Barca
“acentua a natureza culturalmente situada da aprendizagem, chamando a atenção para os
fenômenos de interação social enquanto fatores essenciais no processo individual de
construção do conhecimento” (2007, p. 32). Nesse sentido, a cognição histórica situada
circunscreve-se nos fundamentos epistemológicos da Ciência da História e nas situações
específicas em que sujeitos específicos estabelecem relações de ensino e aprendizagem de
História. Em síntese, cognição histórica situada é a cognição situada na História e na
situação de cognição histórica.
Todas essas perspectivas sinalizam para o ponto de partida de uma pesquisa em
Educação Histórica: o ponto de vista da aprendizagem do aluno. Uma intervenção
transformadora da qualidade da aprendizagem histórica demanda um conhecimento
sistemático das ideias históricas dos alunos por parte dos professores, pois não podemos
modificar aquilo que não conhecemos, insiste Peter Lee (BARCA, 2009, p.60). Os jovens
quando vão à escola carregam além das suas pesadas mochilas, uma outra bagagem
simbólica: um repertório de idéias, concepções e pontos de vista, experiências que não
devem ser menosprezadas e nem consideradas como um obstáculo à aprendizagem. O meio
familiar, os amigos do bairro e da escola, a televisão, os jogos, a internet, a música, o
futebol, enfim, a interação social específica vai moldando formas de consciência e
inconsciência que configuram o modo de os jovens verem o mundo. Pois é justamente esse
senso comum dos jovens alunos que deverá ser acolhido como um ponto de partida para a
progressão de idéias históricas mais elaboradas a partir de novos conceitos de aula de
História.
A partir dessas reflexões, foi realizado um estudo piloto para verificar as ideias
históricas mobilizadas pelas leituras e escutas de uma canção popular considerada
“engajada”, “Fado Tropical”, de autoria de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra,
aplicado a jovens alunos brasileiros do segundo ano do Ensino Médio do Curso Técnico
Integrado de Mecânica, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, UTFPR, Curitiba,
Brasil. O fato de ter sido professor substituto dessa instituição no período de 2007 a 2009, a
minha experiência em sala de aula no Ensino Médio, a possibilidade de assumir a
perspectiva de um professor-investigador, foram alguns dos fatores que justificaram a
delimitação desse público alvo juvenil.
De modo a operacionalizar uma comparação, esse mesmo estudo exploratório foi
aplicado a jovens alunos portugueses da turma do 10º. ano do secundário do Curso
Científico-Humanístico de Línguas e Literaturas, correspondente a segundo ano do ensino
médio, da Escola Dom Afonso Sanches, localizada na Vila do Conde, conselho da Grande
Porto, Portugal.
Referenciais conceituais e teóricos
As ideias históricas de jovens alunos são construídas a partir das concepções
advindas da experiência social cotidiana, portanto, o conceito histórico deve ser
significativo para quem os vai aprender. Os conceitos são históricos, não porque remetem
ao passado, mas porque lidam com a relação intrínseca que existe entre a lembrança do
passado e a expectativa do futuro, no quadro de orientação da vida prática presente
(RÜSEN, 2007, p. 92). Rüsen dialeticamente, primeiro distingue e opõe conceitos
históricos em nomes próprios e categorias históricas, para depois sintetizá-los em um
conceito mais amplo, que visa uma interpretação de fatos concretos no tempo. Nessa
perspectiva, em diálogo com os pressupostos epistemológicos da História, procurou-se
identificar nas investigações empíricas, os conceitos históricos nomes próprios, ou
conceitos históricos substantivos e as categorias históricas ou conceitos de segunda ordem,
consciência histórica, narrativa histórica e fonte histórica, a partir da perspectiva teórica
de Jörn Rüsen. Grosso modo, em função dos limites desse texto, apenas esboçamos
definições ponto de partida: (1) consciência histórica é a interpretação-orientação da
experiência humana no tempo; (2) a narrativa histórica constitui a consciência histórica por
meio de uma relação entre experiência do passado, interpretação do presente e orientação
do futuro, mediada por uma representação abrangente da continuidade, que organiza essa
relação estrutural das três dimensões temporais; a consciência histórica se constitui e se
expressa mediante o movimento da narrativa; (3) não é nas fontes históricas que reside o
caráter especificamente histórico do passado humano, é pelo método que a fonte é
transformada em resíduo para se conseguir extrair as informações que ela própria não pode
formular.
Pois é justamente a partir dessa definição de fonte histórica que estabelecemos uma
articulação com a fonte privilegiada da pesquisa: a “canção engajada”. Definimos
inicialmente canção popular enquanto produto de um conjunto indissociável constituído de
palavra, a letra; música propriamente dita, melodia, harmonia, ritmo e timbre; a
performance vocal, e por último, os aspectos técnicos, tecnológicos e mercadológicos de
todo o processo que envolve a produção fonográfica (AZAMBUJA, 2007). No caso
específico brasileiro, podemos definir canção popular brasileira como um fenômeno
cultural amplo, plural e complexo, que tem como fio condutor da formação da ideia de
música popular brasileira, três gêneros fundamentais na nossa auto-imagem musical: o
samba, a bossa nova e a MPB. O surgimento da sigla MPB na segunda metade da década
de 1960 confunde-se com o advento da “canção engajada” ou a “canção de protesto”.
Nessa perspectiva, a estratégia da MPB acabou por incorporar a música folclórica
“esquerdizando-a”, e a idéia de “ruptura moderna” da Bossa Nova, “nacionalizando-a”
(NAPOLITANO, 2002, p. 64).
Para completar esse referencial delimitamos uma noção de leitura e escuta da
canção. Adoto como ponto de partida a proposta de leitura histórica da canção desenvolvida
no Mestrado em Literatura, enquanto uma leitura-escuta atenta a multidimensionalidade do
objeto que privilegia os aspectos históricos, em suas relações com os indissociáveis
parâmetros poéticos, musicais, técnicos, tecnológicos e mercadológicos que constituem a
especificidade e complexidade da canção (AZAMBUJA, 2007). Enquanto artefato estético,
evidenciam-se os diversos sentidos possíveis de uma canção; seus múltiplos significados
podem flutuar e se deslocar de acordo com as circunstâncias em que emergem e são
recepcionados por diversos e diferentes ouvintes na sucessão do tempo. No entanto, o
caráter polissêmico da canção não deve se tornar um obstáculo intransponível e uma tarefa
impossível para o historiador. A partir de uma leitura histórica, os diversos sentidos de uma
canção se constroem no tempo e no espaço, sob determinadas condições de produção, sob
determinadas relações de poder; devem se apoiar na leitura do suporte fonográfico, situado
no contexto histórico em que o compositor se insere como agente, e em que a sua obra
emerge e é re-significada com o passar do tempo. É nesse sentido que vislumbramos uma
leitura histórica da canção, a partir da especificidade de sua linguagem, apropriada
enquanto fonte histórica para o ensino e aprendizagem de História.
Metodologia da investigação e pressupostos de análise
O primeiro estudo piloto foi realizado no dia 26 de junho de 2009, em uma aula
ministrada pelo professor e investigador deste trabalho, na turma 3AT51 do Curso Técnico
Integrado de Mecânica da UTFPR, correspondente ao segundo ano do Ensino Médio, para
uma amostra de 20 alunos participantes, de uma turma de aproximadamente 40 alunos. A
UTFPR, Universidade Tecnológica Federal do Paraná, localizada no centro urbano da
cidade de Curitiba, é uma instituição educacional centenária de tradição reconhecida no
Paraná e no Brasil que oferece educação básica, técnica e tecnológica.
Pudemos traçar em linhas gerais, o perfil sócio-econômico-cultural da amostra
delimitada na turma 3AT51. As informações e dados foram fornecidos pelos próprios
alunos através do Projeto História de Vida, desenvolvido de forma intuitiva pelo professor-
investigador desse trabalho no início do ano letivo de 2008, e a princípio, sem nenhuma
relação com a atual investigação. A partir da apresentação do professor através de uma
narrativa de sua história de vida em um primeiro dia de aula, foi solicitado aos alunos que
escrevessem as suas histórias de vida a partir do seguinte roteiro: título original; nome
completo, data e local de nascimento; nome, profissão e ascendência étnica dos pais; vida
escolar; fatos marcantes; o que gosta de fazer; e projetos futuros. Ao ser incorporado à
atual investigação, as histórias de vida ou narrativas de vida, demandam uma
fundamentação conceitual, teórica e metodológica que se pretende desenvolver no quadro
conceptual a construir, a partir das reflexões coordenadas por Concepción Medrano na obra
Las Historias de Vida: Implicações educativas.
No dia 26 de junho de 2009, o professor-investigador desse trabalho, em um
primeiro momento solicitou aos alunos que escutassem e lessem a canção Fado Tropical,
de autoria de Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra. Em seguida foi solicitado aos
alunos que escrevessem uma narrativa histórica sobre a canção e identificassem um
possível destinatário. O próximo passo foi, a partir dessa experiência, aplicar o mesmo
estudo piloto, com algumas poucas adaptações, aos jovens alunos portugueses.
O estudo piloto foi aplicado nos dias 16 e 17 de dezembro de 2009, pela
professora Maria Manuel Lopes dos Santos Moreira. A amostra é constituída de 25 jovens
alunos portugueses, com média de idade em torno de 15 anos, da turma do 10º. ano do
secundário do Curso Científico-Humanístico de Línguas e Literaturas da Escola Dom
Afonso Sanches, uma escola pública em atividade desde 2003, localizada em Vila do
Conde, região metropolitana da cidade do Porto, norte de Portugal.
O primeiro estudo aplicado no dia 16 de dezembro consistiu em solicitar aos
alunos por meio de enunciado escrito: Imagine uma situação em que um novo professor de
História, para se apresentar à turma no primeiro dia de aula, conta a sua história de vida.
Em seguida ele solicita que você escreva a sua própria história de vida, a partir do mesmo
roteiro proposto aos alunos brasileiros. O segundo estudo sobre a canção, realizado no dia
17 de dezembro, consistiu na reprodução do mesmo instrumento aplicado a jovens
brasileiros.
Análise comparativa dos estudos
Comparação das narrativas de vida
No caso brasileiro, a amostra trata-se de um grupo de 20 alunos, constituída de 18
garotos e apenas 02 garotas, com idades variando em torno dos 15 e 16 anos; jovens de um
curso técnico profissionalizante de ensino médio, de uma universidade tecnológica federal,
localizada no centro urbano de uma capital de um dos estados do sul Brasil. No caso
português, a amostra é constituída por 25 alunos, 15 garotas e 10 garotos, de uma turma do
10º. ano do curso secundário de Línguas e Literatura, de uma recente escola pública, de
uma cidade satélite de uma região metropolitana de uma importante cidade de Portugal.
Quanto ao título original solicitado às narrativas de histórias de vida, a maioria dos
jovens alunos, tanto no Brasil quanto em Portugal, utilizaram em seus títulos as palavras
vida e história. Dos títulos brasileiros destacam-se os seguintes títulos considerados
originais: “História é vida”; “Passado, Presente e Futuro da Minha Vida” e “Vivo o
presente, me baseando no passado e com esperança no futuro”; dentre os títulos
portugueses: “Memórias do meu passado”, “Biografia do Pevide”, e “Uma visita ao
passado e o presente”. Os títulos brasileiros fizeram menção à vida prática, às três
temporalidades do tempo histórico e uma clara referência à noção de consciência histórica;
os títulos portugueses se referem à memória e ao passado, expressa a noção de biografia e
estabelece relação passado presente.
A amostra brasileira é constituída de jovens de famílias nucleares de classe média
assalariada, cuja profissão dos pais pressupõe formação em curso superior ou de formação
técnica; são em sua maioria descendentes de imigrantes europeus com destaque para
italianos, alemães, poloneses e portugueses. A maioria estudou em escolas privadas na pré-
escola e no ensino fundamental; um número significativo fez curso preparatório particular
para o concorrido teste de seleção da UTFPR.
A amostragem portuguesa é constituída de jovens de família nucleares de classe
trabalhadora assalariada, cuja profissão dos pais pressupõe pouca formação em curso
superior e baixa qualificação técnica. Nenhum aluno português fez menção à sua
ascendência étnica. Em uma análise geral dos sobrenomes podemos supor que trata-se de
alunos europeus, de descendência portuguesa. A maioria estudou em escolas públicas no
infantário, primário e básico; são jovens alunos vindos de diversas escolas e localidades,
iniciando uma nova etapa de escolarização em uma nova escola.
Quanto aos fatos marcantes e o que gosta de fazer, é verificável certa semelhança
entre ambos os casos. Enquanto jovens de uma determinada geração, têm como fatos
marcantes negativos o falecimento de parentes, doenças, acidentes; e positivos, namoros,
amigos e família. Gostam de esportes, de estar com os amigos, ouvir música, computador-
internet-jogos, televisão, família, namorar, ler, escrever, desenhar, tocar, cantar, teatro,
cinema, futebol, e outros.
Em relação aos projetos futuros, os jovens alunos brasileiros, na perspectiva da sua
condição de classe média assalariada, expressaram uma expectativa de futuro que prevê
prolongamento do processo de escolarização em curso superior na área das Engenharias,
pós-graduações, intercâmbios de línguas e estágios de especialização no exterior. Quanto
aos jovens portugueses, na perspectiva da sua condição de classe trabalhadora assalariada,
observa-se a expectativa de futuro diretamente relacionada a uma escolarização com vistas
à profissão e emprego, com alguma inclinação para as áreas do esporte, música, moda e
teatro.
Em suma, podemos verificar que em ambos os casos, os projetos futuros dos jovens
alunos, estão diretamente relacionados aos processos de escolarização, profissionalização e
empregabilidade, o que constitui uma perspectiva pragmática do ponto de vista de
trabalhadores assalariados de uma sociedade capitalista.
Comparação das narrativas da canção
Façamos agora uma comparação entre as narrativas da canção escritas por jovens
alunos brasileiros e portugueses. Após uma primeira leitura das narrativas produzidas pelos
alunos buscou-se uma “codificação aberta” empírica visando identificar mensagens
nucleares e recorrentes nas narrativas (BARCA, 2001, 2006). A partir dessa primeira
codificação foram identificadas e selecionadas nos dois estudos as seguintes categorias de
análise: referências à canção; gênero musical fado; título da canção; refrão;
morfodinâmica da canção: expressões; referências ao compositor, cantor, recitador e
narrador da canção; conceitos históricos-substantivos; marcos temporais; relações
passado-presente e outras relações; inferências à letra da música; destinatários.
A maior parte dos alunos brasileiros fez uma simples referência à canção Fado
Tropical e ao autor, Chico Buarque de Holanda, e poucos se reportaram ao título e nenhum
ao gênero da canção; já os alunos portugueses fizeram referências ao gênero fado;
referências à canção, título, intérprete, e refrão; nenhum aluno fez referência ao letrista Ruy
Guerra. Nenhum aluno brasileiro se reportou à especificidade e complexidade da linguagem
cancional, principalmente no que diz respeito à forma e ao conteúdo da letra e da música na
acoplagem de som e sentido da canção; o mesmo ocorreu com alunos portugueses. Em
ambos os casos expressões como “a canção fala”, “escrever a música”, “este fado narra”, “o
homem fala, não canta, mas fala”, “como diz no poema”, podem constituir o ponto de
partida para a reflexão e discussão junto aos alunos sobre a especificidade e complexidade
do objeto canção em seus diversos parâmetros e esferas. Quanto às categorias autor-
compositor, cantor-intérprete e narrador da canção, em ambos os casos, pudemos
observar certa dificuldade e confusão ao identificar e distinguir as categorias, misturando os
papéis reais e fictícios, fazendo inferências equivocadas interpretativa e historicamente, não
distinguindo a voz do cantor da voz do recitador dos versos da canção.
Com relação aos conceitos históricos-substantivos, no estudo brasileiro predominou
por ordem de incidência Colonização Portuguesa no Brasil, Descobrimento e Conquista do
Brasil; no estudo português, inversamente, Descobrimentos e Colonização Portuguesa no
Brasil. Um aluno brasileiro fez uma inferência pertinente à ditadura militar brasileira,
porque se referiu ao contexto histórico das condições de criação e produção da canção;
alguns alunos portugueses equivocaram-se interpretativa e historicamente porque
associaram a ditadura salazarista e a Revolução dos Cravos à letra da canção que não faz
referência direta a esse período específico. No entanto, tanto a ditadura militar brasileira
quanto a portuguesa da década de 1970, estão diretamente relacionadas ao contexto
histórico em que a obra emergiu, foi recepcionada e significados a ela foram atribuídos.
Parte dos alunos brasileiros e portugueses fez inferências pertinentes a tal conceito,
segundo a letra da canção; alguns alunos portugueses fizeram algumas inferências
equivocadas em relação à letra da canção, mas pertinentes do ponto de vista do contexto
histórico da produção da canção. Dois alunos brasileiros estabeleceram relações temporais
entre o passado e o presente; apena um aluno português estabeleceu de uma forma bem
simplificada. Em relação à categoria de análise outras relações, mais da metade dos alunos
brasileiros assim como alunos portugueses, reproduziram as relações paradoxais entre
Brasil e Portugal expressas na canção; alguns alunos estabeleceram a relação colonizador-
colonizado.
Em relação à categoria inferências à fonte, subdividimos esta categoria de análise
em uma tipologia: inferências relacionadas à fonte, mas equivocadas interpretativamente;
inferências não relacionadas à fonte, mas pertinentes tematicamente; inferências não
relacionadas à fonte e equivocadas interpretativamente; e inferências não relacionadas à
fonte e equivocadas historicamente . Em ambos os estudos foi possível aplicar a tipologia
de categorias de análise, para identificar e classificar as inferências feitas pelos alunos ao
documento-canção.
E para finalizar, na categoria destinatários, enquanto jovens brasileiros delimitaram
diversos interlocutores, a maior parte dos alunos portugueses não identificou um
destinatário. Foi retida a noção de destinatário da canção: em um primeiro plano externo,
trata-se do público-ouvinte do cantor-compositor que consome seus fonogramas; no plano
interno, o destinatário é o interlocutor da voz do narrador da canção, a quem ele se dirige,
a quem se destina a canção.
Análise qualiquantitativa
Para a análise qualitativa das narrativas escritas pelos alunos nos fundamentamos na
perspectiva desenvolvida por BARCA e GAGO (2004) que, ao desenvolverem estudos
sobre a compreensão histórica de jovens alunos portugueses, identificaram três categorias
de análise: compreensão fragmentada, compreensão restrita e compreensão global
(SCHMIDT, 2006). No caso brasileiro, metade dos alunos apresentou uma compreensão
fragmentada da canção trabalhada; um quarto uma compreensão restrita e apenas quatro
alunos manifestaram uma compreensão global; no caso português, 15 alunos expressaram
uma compreensão fragmentada, 04 apresentaram narrativas restritas e apenas um expressou
uma compreensão mais global.
Apesar da contribuição da categorização utilizada para a análise quantitativa e
qualitativa, detectamos a necessidade de buscar uma categorização mais adequada à
situação dessa investigação empírica, na direção dos fundamentos da epistemologia da
História. Os alunos que escreveram narrativas mais elaboradas e complexas manifestaram,
em ambos os casos, os seguintes pressupostos epistemológicos relacionadas à História:
estabelecimento de relações entre o passado e o presente; multiperspectividade de versões
históricas; postura crítica e questionadora a partir das suas próprias vivências; inferências
históricas pertinentes à fonte canção; identificação de conceitos históricos-substantivos
pertinentes à temática expressa na canção. Por outro lado, a maior parte dos alunos nos dois
estudos de caso, não se reportou à especificidade e complexidade da linguagem cancional;
poucos fizeram referência às condições de produção da canção; tiveram dificuldades em
distinguir compositor, intérprete e narrador da canção; fizeram inferências à fonte
equivocadas interpretativamente e historicamente, apesar da liberdade conferida pela
natureza polissêmica da canção.
A canção permite múltiplas leituras e escutas; o que não quer dizer que qualquer ou
nenhuma leitura é válida. Os significados das canções se constroem no tempo e no espaço
da experiência humana, portanto, são históricos. Essas possibilidades e limitações apontam
para a condição e necessidade de uma literacia histórica, ou seja, uma alfabetização
histórica de professores e alunos para o trato metódico adequado à especificidade dessa
fonte na aprendizagem histórica.
Considerações parciais e perspectivas de investigação
Os principais objetivos deste artigo foram partilhar e refletir sobre os resultados
parciais da investigação, apresentados a partir de uma categorização das protonarrativas dos
jovens alunos. O estudo exploratório constituiu o ponto de partida empírico da pesquisa e
forneceu dados, informações e prospecções teóricas para a continuidade da investigação
sobre os significados da canção popular “engajada” na formação da consciência histórica e
utópica de jovens alunos brasileiros e portugueses.
A análise dos resultados parciais vem constatar, confirmar e corroborar alguns
princípios inerentes à aprendizagem histórica, identificados em diversos estudos realizados
na perspectiva da Educação Histórica (BARCA, 2001, 2006): relacionar as ideias tácitas
dos alunos advindas da vida prática à conceitos históricos; interpretar fontes históricas
através da escritura de narrativas; investigar os processos cognitivos de constituição,
formação e progressão da consciência histórica, têm sido objetivos centrais no campo da
Educação Histórica, claramente observáveis nesse estudo piloto.
As ideias históricas dos jovens alunos são construídas a partir das concepções
advindas da vida prática, portanto, o conceito histórico deve ser significativo para quem os
vai aprender. Segundo Rüsen, os conceitos são históricos, não porque reportam ao passado,
mas porque se articulam com a relação que existe entre a lembrança do passado e a
expectativa do futuro, no quadro de orientação da vida prática presente. A partir da
distinção e síntese teorizada por Rüsen entre conceitos históricos nomes próprios e
categorias históricas, delimitamos na investigação empírica o conceitos históricos-
substantivos Colonização Portuguesa no Brasil e Ditadura Militar no Brasil e em
Portugal, e as categorias históricas ou conceitos de segunda ordem, já configuradas no
referencial conceitual e teórico: consciência histórica, narrativa histórica e fonte histórica.
A constituição do pensamento histórico se dá nas relações entre as operações da
vida prática presente e as operações mentais de interpretação da experiência no tempo; no
caso da investigação, tais operações podem estar expressas e representadas respectivamente
nas narrativas de vida, nas histórias de vida dos alunos, e nas narrativas da canção, nas
narrativas históricas escritas pelos alunos sobre a canção.
Segundo Rüsen, a narrativa histórica constitui a consciência histórica como uma
relação entre experiência do passado, interpretação do presente e orientação do futuro,
mediada por uma representação abrangente da continuidade, que organiza essa relação
estrutural das três dimensões temporais. Nessa perspectiva, configurou-se na investigação
empírica a seguinte tipologia de narrativas: narrativas de vidas, narrativas da canção e
narrativa da canção. A primeira trata-se das histórias de vidas escritas pelos jovens alunos;
a segunda consiste nas narrativas escritas pelos alunos a partir das suas leituras e escutas da
canção “engajada”; e a terceira trata-se da narrativa da canção Fado Tropical.
Para Rüsen, as fontes históricas documentam a sucessão de um processo temporal,
cuja historicidade só se estabelece posteriormente; não é nas fontes que reside o caráter
especificamente histórico do passado humano, é pelo método que a fonte é transformada
em resíduo para se conseguir extrair as informações que ela própria não pode formular.
Nessa perspectiva e em relação às investigações: primeiramente, a apropriação da canção e
das narrativas históricas escritas pelos alunos enquanto fonte histórica; a canção enquanto
fonte histórica em sua especificidade e complexidade de linguagem acoplada de letra e
música, e as narrativas históricas dos alunos, narrativas de vida e narrativas da canção,
enquanto fonte para investigar as suas ideias históricas relacionadas às suas vidas práticas.
Nessa perspectiva e no caso da investigação, nas narrativas de vida, e nas
narrativas da canção, os jovens alunos estabeleceram relações entre a experiência do
passado, interpretação do presente e orientação do futuro? Os alunos mobilizaram outros
fatos, carências de orientação da vida prática e conceitos históricos, ao extrair informações
da fonte? Em relação à narrativa da canção os alunos levaram em conta a especificidade da
fonte histórica? A todas essas perguntas formuladas à tríade de categorias o estudo
exploratório responde: sim e não, ou seja, as questões permanecem em aberto e demandam
uma reflexão mais apurada.
Uma mudança significativa na rota de viagem precisa ser justificada: no transcorrer
da investigação empírica e do percurso teórico, mais especificamente entre o primeiro e o
segundo estudo piloto, emergiu um quarto elemento, uma nova categoria substancial, um
conceito-categoria: a noção de utopia. Essa nova e profunda senda perspectiva procura
incorporar com igual peso a pouco explorada dimensão temporal do futuro, e sua correlata
utopia, como objeto de investigação das três dimensões temporais da consciência histórica.
A própria dimensão utópica da canção enquanto artefato estético, a constatação e reflexão
sobre o conteúdo utópico da letra da canção selecionada, e o fato de o conceito-categoria
ser muito pouco explorado nas relações de ensino e aprendizagem atuais, justificam o
itinerário adotado e o aproveitamento e pertinência das primeiras investigações empíricas.
Ainda não configuramos o conceito de utopia, o que por enquanto inviabiliza a
instrumentalização da reflexão teórica em uma situação empírica específica. Entretanto, nas
narrativas de vida, o tópico projetos futuros constituiu o campo de pesquisa de enunciados
que podem nos remeter às noções de futuro e utopia, já que essas noções não estavam
explicitamente suscitadas na investigação. Por outro lado, a narrativa da canção Fado
Tropical, possui potencialidade de significados utópicos: no plano externo, pela própria
dimensão utópica da canção enquanto obra de arte; no plano interno, pela própria letra da
canção, principalmente no refrão, que evoca um ideal de certa forma utópico. Ai, esta terra
ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um imenso Portugal, sugere um efeito
com um que de profético e prognóstico, de um “ainda vai”, projeção do “dia que virá”, que
nos remete às promessas de um futuro grandioso e idealizado: de colonizado a colonizador,
o Brasil vai cumprir seu ideal, ainda vai se tornar um “império colonial”.
Podemos constatar que as narrativas da canção de jovens brasileiros expressaram
expectativas otimistas em relação ao futuro do Brasil, ao valor do povo brasileiro, às
riquezas e belezas do país em uma visão um pouco idílica; nas narrativas escritas por
jovens portugueses, alguns alunos expressaram uma visão um pouco idealizada da História
de Portugal, que em certo sentido se aproxima da noção de utopia como lugar ideal, mas
que talvez esteja mais relacionada a uma visão historiográfica tradicional, como no caso
brasileiro. Talvez nossa lente ainda esteja desfocada e o nosso instrumento desafinado.
A principal contribuição dessa primeira investigação empírica foi clarificar e indicar
teórica e metodologicamente as instigantes relações entre histórias de vida e ideias
históricas de jovens alunos, ou como prefere denominar Rüsen, vida prática e consciência
histórica. A consciência histórica se constitui e se expressa na vida prática; a consciência
histórica interpreta e orienta a vida prática. No caso específico desse trabalho, as relações
entre narrativas de vida e narrativas da canção constituem o nosso sítio de investigação
dos processos de constituição, formação e progressão da consciência histórica de jovens
alunos brasileiros e portugueses, a partir das leituras e escutas, escritas e falas sobre uma
canção “engajada”, na perspectiva da Educação Histórica. A experiência do percurso
transcorrido nos remete às perspectivas de investigação: leitura heurística, análise crítica e
interpretação histórica das fontes históricas produzidas, narrativas de vida e narrativas da
canção, à luz da configuração de um quadro conceptual teórico, com vistas afinar o
instrumento de investigação.
Referências bibliográficas
AZAMBUJA. L. Leitura, Canção e História: Mundo Livre s/a contra o Império do Mal.
Florianópolis, 2007. 149f. Dissertação (Mestrado em Literatura). Programa de Pós-
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BARCA, Isabel. Os jovens portugueses: ideias em História. In: Perspectiva: Revista do
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