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1 CIÊNCIA E TECNOLOGIA: ENCONTROS E DESENCONTROS Vanessa Oliveira Fagundes 1  Ciência e tecnologia parecem estar, hoje, em todos os lugares. Em casa e no trabalho, estamos cercados por aparelhos e apetrechos que, antes de chegar às nossas mãos com promessas de melhoria da qualidade de vida, demandaram anos de pesquisa e desenvolvimento. Nos meios de comunicação, novelas falam sobre clonagem e cadernos esportivos, sobre avanços da medicina que prometem recuperar atletas lesionados em tempo recorde. Muitas questões deixaram de ser projeções e  preocupações futuras e se tornaram pauta do cotidiano em instâncias legislativas, como produtos transgênicos ou segurança na rede mundial de computadores. Essa forma de conhecimento chamado ciência, normalmente associada a novidades, à superação de obstáculos e ao futuro, tem suas raízes na Antiguidade. É na Grécia do século VI a. C. que podemos identificar as primeiras manifestações desse modo de pensar racional e argumentativo. Como a palavra ciência surgiu apenas séculos mais tarde, os pensadores do período ficaram conhecidos como filósofos. A Filosofia tinha, então, um sentido mais amplo: todo aquele que se dedicava ao estudo da natureza e da vida era considerado, na época, um filósofo. Dentre eles, haviam algumas subdivisões. Os teóricos que se dedicavam a observar os fenômenos da natureza, por exemplo, acabaram conhecidos como filósofos naturais. Ciência e Filosofia tomaram caminhos diferentes apenas na Idade Moderna, época da chamada revolução científica, quando um novo modo de observar o mundo passou a imperar. Esse divórcio, para 1  Jornalista, especialista em História da Ciência e mestre em Divulgação Científica e Cultural. Coordenadora do programa de divulgação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais   FAPEMIG.

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    CINCIA E TECNOLOGIA: ENCONTROS E DESENCONTROS

    Vanessa Oliveira Fagundes

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    Cincia e tecnologia parecem estar, hoje, em todos os lugares. Em casa e no trabalho, estamos

    cercados por aparelhos e apetrechos que, antes de chegar s nossas mos com promessas de melhoria

    da qualidade de vida, demandaram anos de pesquisa e desenvolvimento. Nos meios de comunicao,

    novelas falam sobre clonagem e cadernos esportivos, sobre avanos da medicina que prometem

    recuperar atletas lesionados em tempo recorde. Muitas questes deixaram de ser projees e

    preocupaes futuras e se tornaram pauta do cotidiano em instncias legislativas, como produtos

    transgnicos ou segurana na rede mundial de computadores.

    Essa forma de conhecimento chamado cincia, normalmente associada a novidades, superao

    de obstculos e ao futuro, tem suas razes na Antiguidade. na Grcia do sculo VI a. C. que podemos

    identificar as primeiras manifestaes desse modo de pensar racional e argumentativo. Como a palavracincia surgiu apenas sculos mais tarde, os pensadores do perodo ficaram conhecidos como filsofos.

    A Filosofia tinha, ento, um sentido mais amplo: todo aquele que se dedicava ao estudo da natureza e

    da vida era considerado, na poca, um filsofo. Dentre eles, haviam algumas subdivises. Os tericos

    que se dedicavam a observar os fenmenos da natureza, por exemplo, acabaram conhecidos como

    filsofos naturais.

    Cincia e Filosofia tomaram caminhos diferentes apenas na Idade Moderna, poca da chamada

    revoluo cientfica, quando um novo modo de observar o mundo passou a imperar. Esse divrcio, para

    1Jornalista, especialista em Histria da Cincia e mestre em Divulgao Cientfica e Cultural. Coordenadora do programa

    de divulgao cientfica da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais FAPEMIG.

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    ZINGANO (2000), aconteceu mais como uma separao amigvel, j que, na verdade, as duas reas

    continuam a manter muitos pontos e interesses comuns, que dizem respeito principalmente

    racionalidade e argumentao. nessa poca, tambm, que cincia e tcnica (que posteriormente darorigem ao termo tecnologia) comeam a se aproximar.

    Embora atualmente estejamos habituados com a estreita relao entre cincia e tecnologia

    reas algumas vezes condensadas em termos como tecnocincia ou conhecimento tecno-cientfico ,

    essa relao nem sempre foi to prxima. Suas origens e desenvolvimentos histricos so bem

    diferentes, registrando momentos em que um conhecimento era visto como superior ao outro. Como

    pontua COND (2002), cincia e tcnica eram prticas totalmente distanciadas, vinham de tradies

    distintas e os seus praticantes, que possuam formaes e posies sociais diferentes, em sua maioria

    no tinham a mesma viso de mundo, interesses e muito menos a mesma condio social.

    A fim de entender as respectivas dinmicas e a forma como hoje cincia e tecnologia so

    representadas como reas vinculadas, muitas vezes interdependentes, interessante examinar a origem

    dos termos, desde a Grcia antiga, e alguns momentos histricos que ajudaram a moldar a concepoatual da produo de conhecimento.

    AS ORIGENS DA QUESTO

    Por volta do sculo VI a.C., os gregos conseguiram desenvolver uma comunidade nica de

    lngua, religio e cultura. A cidade-estado de Atenas, em especial, se destacava pelo comrcio,

    arquitetura e vida cultural efervescente. Nesse ambiente floresceu uma atitude intelectual particular: ao

    invs de aceitar mitos e relatos sobre a origem e a ordem do mundo, sobre o sentido e o destino da

    existncia humana, como era comum, passou-se e a questionar qual era o princpio do mundo e o que o

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    constitua. Como resposta, procurava-se no outro relato, mas crenas justificadas por razes e

    apoiadas em observaes empricas.

    Tal busca de uma unidade racional, que organiza, integra e dinamiza os conhecimentos, seriaresultado de um longo processo de racionalizao da cultura que, acelerado pela convergncia de

    fatores econmicos, sociais, polticos e geogrficos, teriam permitido a ecloso do milagre grego,

    que teve na Filosofia sua mais grandiosa manifestao (PEANHA, 1978). ZINGANO (2002), por sua

    vez, destaca a contribuio e a forma como os filsofos gregos influenciaram a evoluo do

    pensamento cientfico, em especial Plato e Aristteles.

    Para ficar apenas nestes dois exemplos, Plato e Aristteles tornaram-se clebres, entre outros,

    por propor uma reflexo sobre o saber e a natureza da argumentao. Eles tambm produziram

    conhecimento. Plato, que registrou suas ideias por meio de dilogos, dedicou-se em particular

    Matemtica, abordando tambm a Qumica e a Fsica. De forma simplificada, ele estava preocupado

    em compreender a essncia mais profunda da realidade, que atribua ao mundo das ideias, povoado de

    formas geomtricas puras, que jamais se transformam. Para Plato, os sentidos podiam confundir ohomem; assim, apenas a ideia de um crculo perfeita, sua representao em desenho, mesmo que

    aparentemente fiel, jamais alcanaria a perfeio.

    Uma de suas alegorias mais famosas, a da caverna, ajuda a ilustrar seu pensamento. Aquele que

    acredita somente no que v e sente como um homem acorrentado no fundo de uma caverna, que

    assiste ao espetculo das sombras de objetos que lhe so projetadas em seus muros. Tomando as

    sombras pelas prprias coisas, no suspeitam que os objetos verdadeiros estejam l fora. Quem

    consegue se libertar e sair da caverna, primeiro ser cegado pela luminosidade e, depois, descobrir um

    mundo novo. O Sol, no caso, representa a Ideia suprema, a sada da caverna designa o abandono do

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    mundo das sensaes em proveito do pensamento e os grilhes, nossa obstinao com o mundo da

    experincia.

    Aristteles, por sua vez, tendeu mais ao estudo emprico na natureza, principalmente a Biologia,mas tambm registrou ideias sobre Astronomia, Fsica e os metais. Ele preferia explicar o mundo

    atravs de argumentos lgicos e pragmticos, baseados no mundo dos sentidos e no no mundo dos

    conceitos e das formas abstratas. A razo servia para organizar os fatos percebidos de forma lgica, a

    partir de explicaes de grande apelo intuitivo. Os que seguem sua linha de raciocnio diferenciam-se,

    assim, por serem bem mais pragmticos, baseando suas teorias e explicaes em argumentos de grande

    apelo lgico, prestando maior ateno a problemas mais concretos.

    Entre suas teorias est a dos quatro elementos, segundo a qual tudo que composto de matria

    poderia ser reduzido, em ltima instncia, a uma composio de quatro elementos bsicos: gua, ar,

    terra e fogo (mais tarde ele acrescentaria um quinto elemento, o ter, que existiria apenas fora da Terra

    e explicaria o movimento dos astros). Isso se aplicaria tanto a folhas e pedras como ao corpo humano.

    Essa concepo serviu de base para o estudo da Qumica e orientou a compreenso da natureza at oincio do sculo XVII (BEN-DOV, 1996). Ainda segundo o filsofo, cada um desses elementos possui

    um lugar natural, ao qual procura espontaneamente chegar. Uma pedra lanada para o alto cai no

    cho porque composta pelo elemento terra, e sua tendncia retornar ao lugar de origem.

    Como ressalta ZINGANO (2000), dizer que os filsofos gregos influenciaram o

    desenvolvimento da cincia no significa afirmar que os pesquisadores contemporneos raciocinam

    como eles, mas que certas tendncias de seu modo de pensar sobre o mundo sobrevivem at hoje.

    Depois de Plato e Aristteles, nenhum homem honesto pode ignorar que outra atitude intelectual foi

    experimentada, a de adotar crenas com base em razes e evidncias e questionar tudo o mais a fim de

    descobrir seu sentido ltimo (ZINGANO, 2000, p. 110). BEN-DOV (1996) acrescenta que a maior

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    contribuio dos pensadores gregos para a cincia foi talvez a introduo da prpria ideia de que a

    cincia possvel e de que a razo humana pode fornecer uma interpretao coerente dos fenmenos

    perceptveis pelos sentidos.O termo grego do qual se originou nosso conceito de cincia episteme2, que em geral significa

    conhecimento de algo (OLIVEIRA, 2000). O sentido da palavra tambm aparece associado

    experincia disciplinada ou habilidade. A episteme grega, enquanto saber racional, buscava

    compreender a complexa estrutura do real, dedicando-se ao estudo e explorao metdica do mundo

    natural atravs da razo, tentando explicar tanto a ordem quanto a desordem da natureza atravs de

    padres geomtricos e argumentos intuitivos e lgicos. Os gregos partiam do pressuposto de que existe

    uma ordem a priorida realidade que pode ser apreendida pelo homem a partir de uma contemplao

    da realidade. Esse trabalho intelectual era realizado pelos homens letrados, desobrigados de rotinas de

    trabalho.

    O carter abstrato fez da cincia grega um saber especulativo distanciado da tcnica, ou tchne.

    O conceito, que est relacionado a ofcios e artes mecnicas, tambm se refere a um tipo deconhecimento, mas est ligado ao saber fazer dos artesos. Ele se dirige para a produo de algo (por

    exemplo, a construo de uma casa ou a fabricao de uma flauta), enquanto epistemediz respeito

    gerao de um discurso racional demonstrativo, que serve para comunicar o conhecimento.

    A episteme tambm se distinguiria da tchnepela natureza dos objetos a que se aplica. Como

    explica OLIVEIRA (2000), o objeto da primeira necessariamente , ou seja, imutvel e eterno. J a

    segunda no um fim em si mesma e seu conhecimento serve ou torna possvel a obteno dos fins

    humanos. Assim, certo tipo de rvore ser sempre o mesmo graas aos princpios intrnsecos que

    determinam seu crescimento e suas caractersticas. Mas uma cadeira ou mesa feita da madeira dessa

    2Epistemeoriginou a verso latina scientia, da qual deriva a palavra cincia.

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    rvore se tornam o que so graas ao do homem. A tchne seria instrumental e seu valor e

    significado, determinados por algo que lhe exterior, e no intrnseco.

    J que a natureza encarada como possuidora de um carter divino, os que se dedicavam acompreend-la (os filsofos) ocupavam posio de destaque na sociedade. Consequentemente, os

    ofcios humanos tendiam a ser vistos como inferiores, no dignos de um homem livre e, algumas vezes,

    at mesmo como uma espcie de condenao. Tal diferenciao foi sustentada por muito tempo, at

    que uma valorizao maior da tcnica, conhecimento capaz de fornecer ferramentas e inovaes que

    atenderiam a necessidades dos homens, foi progressivamente ganhando fora. Paralelamente, a cincia

    comeou a ser percebida menos como contemplao e mais como instrumento de transformao da

    natureza e da realidade. Dessa forma, estaria inserida no modo de produo e sua aplicao poderia

    resultar em maior ou menor poder poltico e econmico. Essa mudana de olhar, que ficou conhecida

    como revoluo cientfica, deu origem cincia experimental moderna formada, por um lado, pela

    episteme, enquanto tradio do homem letrado, portador de uma cincia terica desvinculada do mundo

    do trabalho, e, por outro, pela tchne, enquanto tradio do homem da tcnica acostumado ao fazerexperimental, que utiliza o mundo material sua volta para sua aprendizagem.

    UM NOVO OLHAR

    Crticas tradio filosfica livrescapassaram a ganhar fora a partir do sculo XIV. Em seu

    livro Os Filsofos e as Mquinas, Paolo Rossi relata como homens ligados tcnica procuraram

    mostrar que o livro da natureza seria muito mais rico que as abstratas especulaes filosficas. A

    ideia difundida afirmava que alguns dos procedimentos utilizados pelos homens para produzir objetos

    de uso ou construir mquinas, para modificar e alterar a natureza atravs do trabalho das mos,

    favoreceriam o efetivo conhecimento da realidade muito mais do que as construes intelectuais. Nas

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    obras dos artistas e experimentadores do sculo XV, nos livros sobre mquinas e nos tratados dos

    engenheiros e tcnicos do sculo XVI, ganha corpo uma nova apreciao sobre o trabalho, a funo do

    saber tcnico, o significado dos processos artificiais de alterao e transformao da natureza .(ROSSI, 1989, p.17).

    As relaes estabelecidas entre o trabalho dos filsofos e o dos artistas/artesos esto nas bases

    do nascimento da cincia moderna. Essa mudana de olhar e de mtodos foi batizada como revoluo

    cientfica e seu apogeu, localizado temporalmente no sculo XVII. O filsofo francs Alexandre Koyr

    foi o grande responsvel por precisar o termo e difundi-lo, o que aconteceu apenas na dcada de 1930.

    Em sua formulao, o conceito de revoluo cientfica no denotava tanto um perodo histrico ou

    determinados eventos, mas, sim, uma srie de mudanas tericas e uma nova maneira de encarar

    antigos fenmenos. Entre as transformaes mais radicais estaria a substituio da concepo grega e

    medieval, que via o Cosmos como algo qualitativo, fechado, intencional e contendo uma finalidade e

    sentido, pela concepo de espao infinito, homogneo (sem qualidades) e preciso (matematizvel),

    como o da geometria euclidiana (OLIVEIRA, 2000, p.33).Esse perodo marcado pela posio privilegiada do pensamento lgico, racional. O universo

    era encarado como absoluto: atravs da descrio de pequenas partes, seria possvel conhecer o todo.

    Para CAPRA (1996), o mundo passou a ser visto como uma mquina, governada por leis matemticas

    exatas. Quebrando essa mquina em pedaos, o homem poderia compreender o comportamento do todo

    a partir das propriedades de cada parte.

    As transformaes foram operadas no apenas por teorias cientficas como as de Coprnico,

    Kepler ou Galileu, mas tambm pelas crescentes inovaes tecnolgicas que originaram instrumentos e

    ferramentas capazes de sustentar a produo de um saber mais exato e preciso. Galileu, por exemplo,

    defendia os artefatos tecnolgicos dizendo que eram objetos para serem cientificamente pesquisados,

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    fontes de hipteses novas e abertos para serem aperfeioados pela aplicao do conhecimento

    cientfico. Descartes, por sua vez, falava em aumentar o domnio humano sobre a natureza, o que seria

    consequncia da obteno de conhecimento cientfico. J Francis Bacon defendia o carter ativo eprtico da cincia, tendo produzido um programa de reforma do conhecimento que se tornou um dos

    discursos estruturantes do empreendimento cientfico moderno.

    De acordo com ROSSI (1989), Bacon acreditava que as cincias intelectuais, celebradas como

    perfeitas, no haviam realizado progresso significativo ao longo de muitos sculos, ao passo que o

    avano das artes mecnicas, alm de rpido, contribuiu para suprir as necessidades dos homens. Vale

    lembrar que, nessa poca, a Europa ainda colhia os louros das viagens martimas, cujo sucesso

    aumentou com os instrumentos de navegao que permitiam maior autonomia e preciso em alto mar.

    Com essas viagens, centenas de novas espcies biolgicas tornaram-se conhecidas, modificando

    crenas e teorias. A imprensa, derivada da inveno do tipo mvel por Gutenberg, promovia intensa

    circulao de textos e auxiliava na divulgao do conhecimento. Os avanos proporcionados pela

    tcnica, de um lado, encantavam e, de outro, faziam sentir a limitao das doutrinas dos antigos.A interao entre a cincia e a tcnica uma das principais caractersticas do programa

    baconiano de reforma do conhecimento. Esse discurso teve enorme repercusso e influenciou a ideia de

    geraes a respeito do conhecimento, particularmente da cincia e seu desenvolvimento. Algumas

    categorias tpicas do saber tcnico a colaborao, a progressividade, a perfectibilidade e a inveno

    tornam-se, para o filsofo, categorias de valor universal, aplicveis a todo o campo do saber humano

    (ROSSI, 1989, p.79).

    Bacon concebe a cincia como tcnica e, reciprocamente, a tcnica como cincia. Essa relao

    entre as reas tem, para o filsofo, trs dimenses. A primeira instrumental: o desenvolvimento do

    conhecimento cientfico dependeria de avanos tecnolgicos. Os artefatos permitiriam, alm de coletar,

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    observar, explorar, tambm desmontar, manipular, moldar e recriar. O conhecimento que se tem, por

    exemplo, de galxias distantes ou partculas subatmicas estaria subordinado aos avanos tecnolgicos

    equivalentes a telescpios e lentes de maior alcance.A segunda dimenso experimental. Para o filsofo, no existiria conhecimento cientfico sem

    experimentos que possam ser repetidos. O sucesso prtico na atividade experimental no apenas a

    chave para a conquista e a confirmao do conhecimento cientfico, como, tambm, o primeiro passo

    em direo aplicao tecnolgica. Alm disso, ele acreditava que, para dominar a natureza, era

    preciso seguir um mtodo, que evitaria o erro e colocaria o homem no caminho do conhecimento. O

    conhecimento experimental se baseia no apenas nos sentidos (que enganam) nem apenas na razo

    (que, por si, abstrata), mas tambm na aliana entre os dois por meio de um mtodo e graas ao uso

    dos instrumentos tcnicos, que multiplicam, corrigem e padronizam os sentidos (CASTELFRANCHI,

    2008, p. 176). Por essa reflexo, considera-se que Bacon ajudou a sedimentar as bases do que

    conheceramos como mtodo cientfico.

    A terceira dimenso a utilidade. A noo de que a cincia deveria servir sociedade centralna filosofia de Francis Bacon. Assim, a produo de recursos, tecnologias ou materiais que aliviem as

    dificuldades da vida, como os avanos da medicina ou da agricultura, vista como finalidade da

    pesquisa cientfica. No mundo antigo, as necessidades tinham outro dinamismo, e uma vez alcanado o

    equilbrio entre desejos e meios de satisfao, se podia e devia devotar o tempo livre vida

    filosfica, verdadeiro fim dos homens. No programa baconiano, o tempo liberado a partir do

    desenvolvimento e uso dos novos instrumentos deveria ser reinvestido no progresso das tcnicas e das

    teorias.

    Nota-se que, at aqui, utilizamos os termos tcnica e tecnologia sem distino. Em geral,

    tcnica costuma figurar como algo mais bsico e rudimentar que a tecnologia, que normalmente

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    entendida como uma sofisticao cientfica resultante da tcnica. OLIVEIRA (2000) destaca que o

    acrscimo do sufixo logia d um sentido consciente, discursivo e sistemtico a um saber-fazer que,

    embora j fosse conhecimento, no era necessariamente algo articulado. importante no pensar natecnologia como uma evoluo da tcnica. Para o autor, o mais apropriado seria considerar a tecnologia

    como um estilo de conhecimento tcnico que, se no surge, ao menos se firma de maneira crescente a

    partir dos sculos XVI e XVII.

    No entanto, no raro historiadores descrevem o surgimento da tecnologia como um

    desdobramento da cincia moderna. Tais interpretaes tendem a tratar a tecnologia como uma cincia

    aplicada ou a considerar ter havido uma fuso entre ambas. Essa confuso pode ter origem nas prprias

    indagaes da cincia moderna, que deixa de perguntar o que (qual o significado) para questionar

    sobre como (como funciona). A cincia passa a ser um know-how(saber como) e torna-se difcil

    distingui-la, com seu carter operacional, da tecnologia emergente (OLIVEIRA, 2000, p. 64).

    A formulao de Bacon da cincia como tecnologia parece estar, assim, na origem da

    indistino entre as duas reas. Algumas de suas ideias tornaram-se paradigmticas, como aidentificao que ele faz da verdade com a utilidade (cincia e tecnologia). Para o filsofo, utilidade

    comporta uma ampla gama de conotaes: poder, melhora das condies de vida, novas invenes,

    domnio da natureza. A nova cincia, com sua exigncia experimental, teria um compromisso com a

    utilidade social no apenas para uma nica pessoa ou grupo, mas para todos os seres humanos.

    Bacon tambm defende a institucionalizao da investigao e da cooperao como forma de se

    fazer avanar o conhecimento. Para ele, a colaborao e, portanto, a criao de institutos seria

    essencial para o progresso da cincia. Essa outra ideia forte em seu programa de reforma do

    conhecimento: a cincia como progresso, j que esta aumenta e cresce a partir de sucessivas

    contribuies de geraes de estudioso. Ainda hoje, o desenvolvimento do conhecimento cientfico

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    considerado como responsvel pelo progresso material e social da humanidade sem, contudo, tirar

    desse conhecimento uma aura de pureza que lhe confere prestgio social. A noo de cincia e

    tecnologia como progresso, ou um bonde histrico que no se pode perder sob o risco de ser deixadopara trs no desenvolvimento social e econmico das naes, algo facilmente identificvel no

    discurso da tecnocincia contempornea.

    CAMINHOS ENTRELAADOS

    Para COND (2002), a associao entre ideias cientficas e novas tecnologias acabou por

    reformular o modelo de sociedade existente. A cada nova tecnologia surge a necessidade de outra,

    marcando a sociedade moderna como uma sociedade cientfica e tecnolgica. Esse acmulo de

    novidades e invenes dar modernidade o sentido de progresso:

    Essa produo sucessiva, ao longo do tempo, no apenas produzir

    mudanas sociais e econmicas imediatas, mas, sobretudo, imprimir

    uma radical transformao na sociedade moderna, tornando uma das

    caractersticas bsicas dessa cultura a constante necessidade de se

    renovar, de ser original, de superar o que j tinha sido conhecido,

    isto , de romper com a tradio. (COND, 2002)

    Nos sculos seguintes, cincia e tecnologia passaro por vrias transformaes. Por um lado,

    possvel mencionar mudanas na forma de encarar o empreendimento cientfico. A racionalidade, to

    marcante no pensamento moderno, entra em crise no final do sculo XIX, incio do sculo XX. Nesse

    perodo, surgem questes para as quais as leis existentes mostraram-se insatisfatrias, como as

    derivadas da teoria da relatividade, que muda os conceitos de tempo e espao, e de correntes da

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    Filosofia, que defendem outra dimenso alm da racional o subconsciente. Isso abriu espao para

    novos modelos, como a teoria sistmica.

    Sua principal caracterstica inverter a relao entre as partes e o todo. Ao contrrio dopensamento analtico at ento dominante, a teoria sistmica defende que as propriedades das partes

    no so propriedades intrnsecas, e que s poderiam ser entendidas dentro de um contexto mais amplo.

    Ou seja, as partes no forma um retrato fiel do todo. O contexto ganha relevncia, por isso no seria

    possvel falar no absoluto. O conhecimento no seria a descrio direta e factual do mundo e explicar

    alguma coisa significaria considerar o que est volta. Por meio dessas associaes, a cincia vai sendo

    construda.

    Tambm se identifica uma conexo entre as cincias, que passariam a ser vistas mais como

    interligadas, e menos como hierarquizadas entre si. Os fenmenos descritos pela Fsica no seriam,

    assim, mais fundamentais que os descritos pela Biologia, apenas parte de nveis sistmicos diversos.

    Alm disso, o avano de uma significaria o avano da outra. Muda, tambm, a noo de verdade.

    Enquanto no pensamento clssico ela poderia ser alcanada atravs de leis gerais, agora se admitechegar a apenas um conhecimento aproximado do real. Tais mudanas, que no se encerram neste

    perodo, constituem temas de estudo para os historiadores e filsofos da cincia.

    Por outro lado, preciso destacar o processo de profissionalizao da cincia especialmente a

    partir do sculo XIX. O primeiro laboratrio cientfico moderno da Inglaterra, operado por

    pesquisadores assalariados, surgiu em 1799. Para reconhecer os homens que queriam fazer da cincia

    uma profisso, no apenas um hobby, e diferenci-los dos filsofos naturais, William Whewell props,

    por volta de 1830, a palavra cientista, que rapidamente se incorporou ao vocabulrio e ao uso comum.

    Surgem tambm as academias cientficas e a atividade de pesquisa consegue sua legitimao nas

    universidades. Ela passa a ser organizada e comea a ser financiada, na Europa, com recursos pblicos.

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    A divulgao cientfica, realizada principalmente pelos prprios cientistas, ajudou a propagar o

    discurso sobre o valor da cincia como forma de conhecimento fundamental para o progresso e para a

    humanidade. Progressivamente, a instituio cincia passou a ocupar uma posio visvel e ter umpapel de destaque na sociedade.

    Cincia e tecnologia trilharam juntas esse percurso. Apesar de diferentes, as reas so, hoje,

    cada vez mais representadas e geridas como se fossem produzidas em conjunto. Segundo OLIVEIRA

    (2000), uma das principais razes para a indiferenciao entre cincia e tecnologia estaria relacionada

    tendncia de nos defrontarmos com a cincia atravs de sua substancializao em procedimentos e

    artefatos tcnicos. a tcnica que constitui essa mediao concreta, material, entre a cincia e a vida

    cotidiana, e que representa, assim, como que a face visvel do fenmeno cincia (OLIVEIRA, 2000,

    p.11).

    A tecnologia vista com frequncia, assim, como a materializao, na forma de produtos e

    processos, do conhecimento cientfico gerado nas academias. No entanto, essa relao nem sempre

    direta. No possvel afirmar que o avano cientfico sempre traz desenvolvimento tecnolgico, ou queeste depende daquele. Alm disso, tecnologia no se resume cincia aplicada e tambm constitui um

    corpo de conhecimento que, algumas vezes, coloca questes para a prpria cincia.

    Para CASTELFRANCHI (2008), o que temos, atualmente, o discurso da tecnocincia,

    definida no apenas como fuso entre cincia e tecnologia, mas como acontecimento que funciona no

    interior de uma especfica economia de poder e que caracterizado pela interao e a retroalimentao

    mtua do capitalismo, da cincia e da tecnologia (CASTELFRANCHI, 2008). Esse seria, assim, um

    conhecimento cientfico baseado em clculos de eficincia, custos e benefcios. Ao mesmo tempo em

    que se retrata como neutra, objetiva e universal, recebe feedbacksdo mercado e escuta as demandas e

    preocupaes dos cidados.

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    A cincia e tecnologia, hoje, so diferentes do que foram para os antigos e os modernos. Sua

    produo passou a incluir novos atores, alm dos cientistas. Por exemplo, os meios de comunicao,

    que defendem causas especficas e conseguem influenciar os rumos de investigaes cientficas etecnolgicas, ou grupos organizados da sociedade civil, que chegam inclusive a questionar a validade e

    a legitimidade de respostas oferecidas pela cincia. Cincia e tecnologia tambm englobam novas

    negociaes, especialmente com o mercado: o discurso do conhecimento como mercadoria a ser

    explorada (por meio de contratos de transferncia de tecnologia, royaltiese patentes) sobrepe-se, hoje,

    noo de conhecimento como bem comum. Existe, ainda, toda uma nova retrica de participao e

    engajamento, que exige transparncia na construo do conhecimento e que busca caracterizar a cincia

    como um empreendimento coletivo, no qual a sociedade teria voz e poder de influncia (FAGUNDES,

    2013). Ao mesmo tempo em que so construes do homem, cincia e tecnologia, ou a tecnocincia,

    moldam a viso de mundo e a compreenso que os seres humanos tm de si mesmos. Estud-las ajuda

    a compreender alguns dos principais anseios da poca na qual vivemos: progresso, sucesso, inovao.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

    BEM-DOV, Y. Elementos e Causas. In: Convite Fsica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,

    1996.

    CAPRA, F.A Teia da Vida uma nova compreenso cientfica dos sistemas vivos. So Paulo: Editora

    Cultrix, 1996.

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    CASTELFRANCHI, J. As serpentes e o basto: tecnocincia, neoliberalismo e inexorabilidade. Tese

    (Doutorado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de

    Campinas. Campinas: 2008.

    COND, M. Mundo reinventado: a cincia, a tecnologia e a condio do homem moderno. Artigo

    publicado no cadernoPensardo jornal Estado de Minas. 21 de setembro de 2002.

    FAGUNDES, V. Blogs de cincia: comunicao, participao e as rachaduras na Torre de Marfim.

    Dissertao (Mestrado em Divulgao Cientfica e Cultural). Instituto de Estudos da Linguagem,

    Universidade Estadual de Campinas. Campinas: 2013.

    PEANHA, J. Os Pr-Socrticos: vida e obra. In: Os pr-socrticos. So Paulo: Abril Cultural,

    1978.

    OLIVEIRA, B.Francis Bacon e a Fundamentao da Cincia como Tecnologia. Tese (Doutorado em

    Filosofia). Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo

    Horizonte: 2000.

    ROSSI, P. Os Filsofos e as Mquinas. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    ZINGANO, M. Plato e Aristteles os caminhos do conhecimento. So Paulo: Odysseus Editora,

    2002.

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    Links que podem trazer informaes complementares:

    Museu da Vida da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz)

    http://www.museudavida.fiocruz.brO Museu da Vida coordena uma srie de aes, entre cursos e pesquisas, com o tema divulgao

    cientfica. No local possvel encontrar notcias, dicas de eventos e artigos sobre cincia e tecnologia.

    Journal of Science Communication

    http://jcom.sissa.it

    As edies trimestrais trazem artigos sobre comunicao e educao cientfica. Os textos, disponveis

    em ingls e na lngua ptria do autor, podem ser acessados gratuitamente.

    ScienceBlogs Brasil

    http://scienceblogs.com.br

    O ScienceBlogs um condomnio que rene blogs de cincia de autores de diversas especialidades e

    regies do pas. Os textos geralmente abordam temas atuais, discutidos em outros canais de

    comunicao e, por isso, podem ser uma interessante fonte para discusso em salas de aula.

    http://www.museudavida.fiocruz.br/http://www.museudavida.fiocruz.br/http://jcom.sissa.it/http://jcom.sissa.it/http://scienceblogs.com.br/http://scienceblogs.com.br/http://scienceblogs.com.br/http://jcom.sissa.it/http://www.museudavida.fiocruz.br/