Upload
trinhngoc
View
219
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ISSN 2177-8892 2051
ENTRE A DISCIPLINA E A VIOLÊNCIA – O CASTIGO NO “MEU TEMPO DE
ESCOLA”
Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Edileusa Santos Oliveira
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Esse Artigo analisa a memória social da práxis pedagógica na região Centro-Sul da
Bahia, na primeira metade do século XX, que destaca o ideal de disciplina na educação e
enfatiza a definição de castigo escolar presente nos modelos pedagógicos da época. Para
tanto, traça um paralelo entre a práxis educacional em duas instituições particulares de ensino,
em Vitória da Conquista: o Ginásio de Conquista e o Educandário Juvêncio Terra,1 e as ideias
pedagógicas hegemônicas no país.
Os alunos e professores entre os anos 1940 e 1950 falam da escola “do seu tempo”
com muita saudade e cheios de orgulho. No Educandário Juvêncio Terra2 e no Ginásio de
Conquista,3 o ensino era “puxado”, os alunos respeitavam e temiam os professores, os
educadores eram aplicados e muitos dos ex-alunos saídos do primário ingressavam no Ginásio
e dali seguiam para o ensino superior. Alguns se tornaram profissionais liberais bem
sucedidos, políticos influentes, educadores, escritores, artistas, fundadores de escolas,
funcionários públicos com cargos de destaque, no âmbito da sua região, o que, segundo a
memória social, comprova a eficiência e a validade da educação escolar “daquela época”.
Janilde Novais,4 diz, com emoção e sorriso:
1Essas instituições de ensino foram inauguradas em Vitória da Conquista – BA, entre os anos 1940 e 1950.
2O Educandário Juvêncio Terra foi fundado pela professora Rosália Figueira Silveira. Rosália nasceu em 1915, era filha de uma grande
família protestante, formada por fazendeiros. Estudou em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, e foi missionária em Minas Gerais. Voltou
para Conquista na década de 1940, quando fundou a sua escola, que oferecia o Curso Primário.
3 Ginásio de Conquista foi fundado pelo padre Luiz Soares Palmeira. Nascido no Rio de Janeiro – RJ, em 25 de junho de 1906, e falecido em
Salvador – BA, em 1988, Palmeira era filho de uma família abastada, que combinava religião, educação e uma grande participação política.
Ele mudou-se para Caetité, município do interior baiano, onde recebeu as “ordens” eclesiásticas, em 1932, e fundou um Ginásio que, em
1939, foi transferido para Vitória da Conquista.
4 Janilde Novais Franco da Mota, ex-aluna do Ginásio de Conquista entre 1954 e 1959, e professora da instituição em 1969. Professora
aposentada, formada em Ciências Sociais. Entrevista concedida em 03 de junho de 2008, aos 64 anos.
ISSN 2177-8892 2052
[...] o Ginásio pra mim foi um marco muito importante. Hoje eu vejo em
Conquista muita gente bem situada, assim intelectualmente, bem, está bem,
muito médico, muito advogado que foi assim meu contemporâneo do
Ginásio do Padre e que a gente tem um carinho, uma amizade grande.
Segundo Aécio Cunha,5
Era um ginásio muito simples, mas uma educação dez, uma disciplina dez.
Todo mundo amigo. Parecia que era o regime militar, mas não era... O
regime militar é duro e o padre Palmeira era aquela pessoa que a aula dele
era cinco minutos de aula em cinco minutos de brincadeira. Ele falava
alguma coisa, aí a turma gritava hêêêê! Daqui a pouco ele falava “chega!”...
E lá vinha aula de novo.
Se a simples constatação do fato implica a sua má compreensão, o que realmente está
por trás de um fenômeno que me aparece imediatamente? Acerca do processo científico de
reconstrução histórica, Kosik (1976) explica que a “coisa em si”, de que trata a Dialética, não
se manifesta imediatamente à compreensão do homem e não pode ser captada pelo
pensamento sem a distinção entre aparência e realidade, entre representação e conceito. No
caso deste texto, que analisa a disciplina e o castigo escolar como fenômenos sociais, eles são
a “coisa em si” investigada: a sua materialidade, a sua estrutura organizativa, as suas
orientações do ponto de vista ideativo.
Recorremos à memória dos sujeitos, partindo da ideia de que os relatos pessoais
compõem uma memória social, na medida em que estão consoantes às experiências
vivenciadas por esse grupo social determinado, cujos indivíduos atribuem a mesma relevância
às recordações partilhadas (FENTRESS; WICKHAM, 1992). Contudo, não ficamos somente
no campo das lembranças narradas.
Tais lembranças existem mesmo que não sirvam, por si só, para explicar a essência da
práxis pedagógica do Ginásio e do Educandário. Se existem e estão povoando a memória de
um determinado grupo, constituem um fenômeno, falam sobre uma realidade a ser examinada,
um fato a ser refletido, uma “coisa em si” a ser reconstruída, afinal, podem dizer muito sobre
o contexto em que foram produzidas.
Pensando nas narrativas de Janilde Novais e de Aécio Cunha, vemos que a memória é
evocada, e quando vem, está selecionada, fala daquilo que tem uma forte significação para
determinado grupo social e, nesse jogo, outros elementos que compõem a totalidade são
5 Aécio de Sousa Cunha, 78 anos, ex-aluno, turma de 1950, Médico. Entrevista concedida em 07 de novembro de 2009.
ISSN 2177-8892 2053
descartados. Assim são lembradas as práticas escolares do Educandário Juvêncio Terra e do
Ginásio de Conquista, das décadas de 1940 e 1950, pelos seus sujeitos.
Não nos preocupamos aqui em comprovar ou desmentir qualquer fato ou ideia prévia.
Em contato com a memória social dos primeiros ginasianos de Vitória da Conquista e dos
primeiros estudantes e professores do Juvêncio Terra, nos interessou notar como esses
sujeitos olham para o seu passado; como as suas experiências são pensadas; o que é
selecionado e como é ordenado; onde surgem os esquecimentos, as pausas, as ênfases; quais
são os juízos emitidos sobre eventos ou comportamentos, e sobre as categorias “disciplina” e
“castigo” escolar.
I
Nossos conceitos atuais de escola, de educação, de disciplina, de castigo, de violência,
de certo ou errado, não estão, de forma anacrônica, fixados e definidos pelo passado; porém,
derivam dele e podem ser compreendidos sob as lentes da memória social.
Entendemos que “castigo escolar” é uma categoria empírica que explica as
penalidades infligidas aos alunos, para garantir a ordem nas relações estabelecidas no
ambiente escolar, com vistas à disciplina na educação. A “disciplina escolar”, outra categoria
empírica, significa: obediência às regras, regime de ordem imposta ou livremente consentida,
relação de subordinação do aluno para com o mestre, bom comportamento e princípios de
moral.
As categorias que mobilizamos se traduzem em conceitos que nos permitem
compreendê-las, aqui, segundo o linguajar das décadas focadas, ainda que indiquem, também,
procedimentos que são hoje definidos como violência escolar.
Confrontando as posturas dos sujeitos que hoje rememoram suas experiências no
ambiente escolar, com o contexto histórico em que foram vividas as referidas experiências, e
com as circunstâncias materiais vividas agora, podemos deduzir que, de acordo com a
memória social construída, as pessoas entrevistadas a respeito da escola que tínhamos na
primeira metade do século XX, na sua maioria, trazem uma visão harmoniosa e ideal do
passado, em detrimento do julgamento que fazem da escola de hoje.
A escola, como qualquer instituição, está preenchida de valores e de ideologias e ela
não existe independentemente dos sujeitos e do sistema social, com as organizações que a
ISSN 2177-8892 2054
perpassam. As fontes orais e documentais revelam, no interior de cada uma das duas escolas
pesquisadas, uma visão de mundo e de educação articulada ao conjunto de valores que
movimentavam e direcionavam a sociedade.
A partir dos saberes associados a um conjunto de valores é que vão surgir, na escola,
as problemáticas, os temas estudados, as opções metodológicas, os tipos de avaliação. Dessa
forma, nos arriscamos a dizer que os valores são pressuposições da educação e que
determinados meios e opções didáticas e metodológicas são buscados pela escola para
garantir que o conjunto de valores pré-estabelecidos pela sociedade seja transmitido,
respeitado e preservado.
Para evitarmos a super fragmentação ou especialização do processo de conhecimento,
os recortes que delineiam o nosso objeto não recortaram o alcance da análise, de modo que
esta não se estreitou a ponto de nos fazer perder de vista a totalidade que envolve o fenômeno.
Quando identificamos as práxis pedagógicas das duas instituições estudadas, situamo-las no
contexto educacional, político e econômico nacional, da primeira metade do século XX.
Nestas instituições de ensino particular, o Ginásio de Conquista, única alternativa de
curso ginasial num espaço regional que compreendia muitos povoados e municípios; o
Educandário Juvêncio Terra, uma escola primária que atendia crianças, em grande parte do
mesmo grupo familiar e religioso, as concepções de educação, as temáticas e conteúdos
trabalhados, os procedimentos didáticos e metodológicos, estavam em consonância com as
propostas oficiais vigentes na época. Tratava-se de um ensino marcado pelo dualismo
educacional em relação às classes e aos gêneros; um ensino elitista, cívico e enciclopédico;
um ensino cujo conhecimento era balizado pelo pensamento positivista.
Nas escolas em questão, o uso do poder era naturalizado e as ações de controle sobre o
indivíduo, passíveis de serem entendidas, atualmente, como “violência” física ou simbólica,
estavam incorporadas às suas práticas pedagógicas, como informa a memória social:
[...] tinha palmatória e tinha régua. Fazia sabatina de matemática e tabuada,
quem errasse... pam! pá! Tomava bolinho mesmo. Então, era uma
coisa...fazia parte da educação, não era uma coisa assim porque ele era ruim,
ele queria mostrar autoridade, não. Que ele tinha autoridade, mesmo sem
esse castigo, sabe? Mas era apenas para dizer: você não pode fazer isso! Não
era assim pra dizer assim que era aquele meio para usar a autoridade dele,
não, a autoridade dele, ele tinha autoridade, ele não tinha medo, ele
enfrentava qualquer um. Agora aquilo era pra dizer assim: olha se você sabe
ISSN 2177-8892 2055
que eu tenho então eu posso fazer até isso. Não era um castigo assim para
denegrir, sabe? Não era para denegrir. Era pra corrigir mesmo.6
[...] tinha uns mansinhos, conformados. E tinha uns meio rebeldes também;
mas depois voltava. E essa turma que fez comigo, tinha uns um bocadinho
rebeldes; mas depois acertou tudo... Todo mundo chegava pro eixo e
comportava direito. Agora outros são mais mansos... Mas deu certo tudo.7
Também era assim: “passa pra aqui, passa pra aqui”... Botava todos de
joelho e vai de murro. Ele (o Pe. Palmeira) batia. 8
Perderíamos a dimensão do todo se fosse ignorada a vinculação dessas práticas com as
orientações e determinações legais da educação nacional. Os conceitos partilhados pela Igreja
Católica e pelo Governo Varguista, principalmente nos anos 1930 (CUNHA, 1989), trazem
elementos ideológicos que podem ser identificados nos relatos de memória que recolhemos:
autoridade, lei, hierarquia social, domínio da elite moralizante, docilidade das classes
dominadas e defesa da ordem.
Todavia, o fato de que tais tratamentos dispensados aos alunos eram, naquele
momento, considerados como práticas pedagógicas disciplinares, não impediu que alguns
(poucos) sujeitos contemporâneos àquela experiência, no processo de rememoração, os
classificassem como “violência escolar”.
Bosi (1994) explica que, quase sempre, o ato de lembrar não significa reviver, pois,
não sendo um sonho, e sim um trabalho, a memória refaz, reconstrói, repensa, as experiências
do passado com imagens e ideias de hoje. Portanto, o passado não sobrevive na memória dos
indivíduos "tal como foi", se valendo do seu inconsciente.
A autora destaca que construímos a lembrança com os materiais que estão à nossa
disposição agora, entre as representações que compõem a nossa consciência atual. Mesmo
sugerindo nitidez, a lembrança de uma experiência antiga não é a mesma imagem
experimentada no passado, assim como não são os mesmos os nossos juízos e valores, as
nossas percepções e ideias. “O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a
identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de
vista” (BOSI, 1994, p.55).
6 Relato de Janilde Novais.
7 Jenísia Sales de Melo, aluna do Ginásio de Conquista, da turma de. 1940. Formada em Farmácia. Entrevista realizada em 15 de abril de
2008, aos 93 anos.
8 Valdelice Correia Silva, professora de reforço escolar e supervisora noturna, encarregada da disciplina, do internato masculino do
Educandário Juvêncio Terra, em Vitória da Conquista – Ba, em 1949; estudou no Ginásio de Conquista em 1950.
ISSN 2177-8892 2056
Nesse sentido, nos perguntamos sobre quem é o sujeito da rememoração. Sabendo que
a memória é, a um só tempo, fruto da experiência vivida num grupo social e “é de alguém”
que, ao lembrar, significa e que, portanto, deve ser motivo do questionamento: “como
significa?”. Os ex-alunos que narraram lembranças “do seu tempo” de escolinha primária ou
ginásio foram entrevistados em suas casas ou locais de trabalho. Estavam bem acomodados,
ao menos materialmente, e atribuíam o sucesso profissional e o status social de que
desfrutavam, à oportunidade de terem estudado nos anos 40 e 50, numa instituição de ensino
particular,9 um privilégio para quem viveu no “sertão da ressaca”, região com poucas
alternativas para quem desejava estudar, marcada pela exclusão econômica e pelo controle
político, sob o domínio dos representantes das consideradas “famílias tradicionais”.
A memória está relacionada à alteridade. Semelhanças nas considerações feitas sobre
uma série de assuntos, a exemplo do castigo e da disciplina nas escolas, indicam que as
lembranças dos ex-alunos entrevistados se coadunam. Nesse grupo social, a alteridade revela
determinado regime de verdade e demonstra a defesa de determinadas “certezas”:
Sobre os meios para garantir a disciplina:
A disciplina do ginásio era um pouco castrense, no sentido da disciplina
romana, era pra valer. Se o sujeito procedia mal, o Pe. metia a porrada no pé
do ouvido, dizia “passa aqui vagabundo”... Se estava brincando na aula ele
chamava a atenção. Se não se corrigia... Não era pela falta de estudos não;
pela indisciplina, molecada... O moleque entrava no porrete com ele. 10
Sobre a reação dos pais frente aos castigos empregados na escola:
[Os pais] eram perfeitamente compreensíveis. Naquela época os pais
achavam que “vagabundo tem que levar porrada mesmo”.
Os pais faziam questão que os filho tivessem respeito pelos mais velhos,
pelos professores, pelas pessoas. Os pais não admitiam também isso [a
indisciplina] não.
O castigo doméstico também existia. Isso não era nada de precisar de
psicólogo ou psicanalista.11
9 Inaugurado em 1935, o Grupo Escolar Barão de Macaúbas, cujo prédio já foi demolido, talvez tenha sida a primeira escola pública de
Vitória da Conquista (TANAJURA,1992).
10 Ubirajara Brito, ex-aluno do Ginásio de Conquista, da turma de 1951. Físico nuclear e engenheiro civil formado pela UFBA; escritor; ex-
professor da Universidade de Sorbonne, na França; Ministro Interino da Educação e Ministro da Ciência e Tecnologia, nos ano 1980 e, nesta
época, também membro da Comissão Consultiva de Desenvolvimento Nuclear. Entrevista concedida em 08 de maio de 2013.
11 Relatos de Ubirajara Brito.
ISSN 2177-8892 2057
Sobre o que poderia ser considerado como violência escolar, visto que todos os
episódios denominados de castigo eram recorrentes também na família e na sociedade:
Não tinha violência [escolar], ninguém caracterizava como violência. Tudo
normal. [...] para época era necessário, se não fizesse isso a coisa relaxava.
Eles tomavam pulso da instituição, os diretores, os professores.12
Eu me lembro que na época era isso mesmo, era normal e era comum para a
nossa época, porque a educação era muito rígida, muito séria... Agora, muito
rígida era a realidade social da época.13
Esse procedimento pedagógico não era institucional, não estava previsto nos
documentos que regulamentavam as instituições. Os regimentos ou estatutos não autorizavam
nem proibiam o emprego do castigo, simplesmente não traziam referências sobre isso.
Tratavam somente das penalidades (sem emprego do contato físico) empregadas para
restringir as diferentes práticas consideradas indisciplinas:
Isso era consuetudinário, era dos costumes... não tinha nada escrito... Tinha
as penalidades: advertência, suspensão (por curto espaço de tempo ou tempo
maior), até expulsão...14
Esses costumes denunciavam uma sociedade regida por práticas violentas, que se
davam comumente no universo escolar porque eram comuns nos processos que,
historicamente, envolviam as relações humanas em geral: marido-mulher, patrão-empregado,
pai-filho; eram práticas naturalizadas e, portanto, aceitas pela maior parte das pessoas. Na
esfera da vida privada ou da vida pública, a noção de castigo tinha uma dimensão pedagógica
e uma justificativa fundamentada no campo religioso, sobretudo, nas Escrituras Sagradas
proclamadas pelo Cristianismo.
II
Platão e Aristóteles pensavam na formação do homem político e, por isso, não
estavam preocupados com a discussão acerca “dos deuses”. Para Platão, por exemplo, o
12 Relatos de Ubirajara Brito.
13 Uady Barbosa Bulos, ex-aluno do Ginásio de Conquista de 1952 a 1955, “pessoa de notório saber”. Advogado. Entrevista concedida em
29 de maio de 2008, aos 68 anos.
14 Relatos de Ubirajara Brito.
ISSN 2177-8892 2058
problema estava em estabelecer os princípios para a garantia da ordem e para a vigência da
virtude, da busca suprema do bem, da sabedoria divina, princípios correlatos ao plano das
formas puras e ideais (RICOUER, 2007).
Platão apresentou a teoria da eikõn, que “sublinha principalmente o fenômeno de
presença de uma coisa ausente, permanecendo implícita a referência ao tempo passado”
(RICOUER, 2007, p.26). Na sua concepção, a memória estava inscrita, impressa, gravada na
alma. Marcada por princípios atemporais que se antecipariam a toda existência, a alma
apresentava-se como uma faculdade de discernimento e de temperança. Nesse esforço de
compreensão, a ideia é sempre objetiva, de forma que a aprendizagem intelectual era a
apreensão do conceito.
Toda a educação deveria, portanto, estar voltada para que as pessoas acordassem para
esses princípios “inscritos”, cabendo ao mestre despertar o indivíduo para algo que lhe é
inato. Se o papel do mestre é lembrar, significa dizer que o indivíduo está no esquecimento.
A doutrina platônica da distinção de dois mundos: um visível e sensível; e, o outro,
invisível e inteligível (das idéias), estabelece que “a ideia é mais do que um conhecimento
verdadeiro: ela é o ser mesmo, a realidade verdadeira, absoluta e eterna, existindo fora e além
de nós, cujos objetos visíveis são apenas reflexos” (JAPIASSÚ, 2006, p.218).
Aproximadamente três séculos posteriores, na interpretação Cristã, explicada pela Patrística e
influenciada pela doutrina ética do estoicismo,15
os dois mundos foram entendidos como
“terra e céu”; a “ideia universal e absoluta” foi chamada de Deus; e, como um dos resultados
dessa interpretação, temos no princípio de mortificação ou purificação do corpo, supostos
caminhos para elevarmos a nossa espiritualidade.
No Cristianismo, o castigo é um importante elemento educativo e disciplinador,
presente nos livros bíblicos do Antigo e do Novo Testamento. Nos 78 versículos da Bíblia
Sagrada, que se referem ao castigo, este está associado às situações de vingança, de traição, de
justiça, de moral e de opressão de um dominador.16
O castigo existe em função do pecado e de
uma regra rompida, preposições definidas e relacionadas com as ações ditas virtuosas.17
15 Chamamos de Estoicismo a “escola filosófica de se caracteriza sobretudo pela consideração do problema moral, Impassibilidade em face
da dor ou da adversidade” (FERREIRA, 2001, p.296).
16http://www.bibliacomentada.com/Busca.aspx?Palavra=castigo
17 Na Bíblia, os castigos são aplicados àqueles que: cometerem adultério; desfrutarem da renda do ímpio; servirem-se da mentira;
necessitarem da remissão dos pecados; tiverem o gênio difícil; forem ímpios, insensatos ou se alegrarem com a desgraça; zombarem dos
pobres; prestarem falso testemunho; agirem como tolos; semearem a injustiça; agirem com arrogância; tentarem enriquecer-se depressa;
ISSN 2177-8892 2059
As passagens bíblicas apontam os seguintes tipos de castigo: exílio, açoite, fome, dor,
morte, inferno, imposição da nudez, sequestro dos filhos, morte pela espada, prolongação da
pena até a terceira e quarta geração daqueles que pecaram, epidemia de tumores, chicotadas,
açoites, sofrimento perpétuo e eterno.
As regras de obediência cristã, herdadas do Deuteronômio, são aquelas sintetizadas
nos dez mandamentos e na catequese cristã, instituídas para evitar os pecados capitais,
pecados mortais ou veniais, contrários às virtudes e obras de misericórdia.
Aos desvelos do Cristianismo, que teve na prática do ascetismo, ou seja, na efetiva
realização da virtude, uma forte inspiração pedagógica, a Educação, desde o período
medieval, perseguiu a disciplina, sobretudo, a disciplina moral, que ensinava o total domínio
dos desejos corporais e das afeições humanas, para que mente e alma se consagrassem a uma
vida superior.
Se olharmos para a estruturação da educação de bases cristãs, veremos que o
Cristianismo se assentou na Patrística, incorporando e adaptando o ideal de busca da essência
das coisas, defendido pela filosofia neo-platônica. Esses elementos foram perfeitamente
encaixados na educação escolástica e integrados à educação humanística, a despeito de todos
os propósitos inovadores aclamados pelo movimento renascentista (MONROE, 1978). A
maioria desses elementos educativos religiosos permaneceu até o presente, perpetuados pela
teologia moral.
No século XVI, quando da montagem da estrutura pedagógica da Companhia de Jesus,
expressa, principalmente, na Ratio Studiorum, e de inspiração profundamente humanística, o
principio de disciplina moral permaneceu firme e o castigo seguiu sendo usado
indiferentemente.
Por quatro séculos, concentrada na figura da Igreja Católica, a religião no Brasil esteve
conjugada à vida pública e imbricada com a estrutura do Estado. Essa influencia histórica da
religião marcou o país que “encontrou no catolicismo um conjunto de valores, crenças e
práticas institucionalmente organizadas e incontrastadamente hegemônicas” que
estabeleceram “os limites e as interseções entre a vida pública e a vida privada” (MONTES,
1998, p.73).
agirem com perversidade; forem filhos de pais que pecaram e já não existem; praticarem a cobiça e a idolatria; deixarem-se enganar por
deuses falsos; servirem-se da escravidão, da perseguição ou da morte de irmãos da sua comunidade; praticarem o homossexualismo;
cometerem transgressões diversas; rejeitarem a lei do Senhor e não obedecerem aos seus decretos.
ISSN 2177-8892 2060
III
A partir da década de 1920, no Brasil, a Educação assume relevância política, pois, se
passou a creditar a ela o poder de moldar a sociedade através da mente, promover mobilidade
social e dar oportunidade de participação. Diante da inexistência de um sistema organizado de
educação pública, começou a ganhar corpo um movimento nacional em prol da educação,
com diferenças de orientação ainda não relevantes, visto que prevaleciam os esforços para
levar a educação ao povo (SCHWARTZMAN, 2000).
Duas políticas educacionais opostas, a liberal e a autoritária, que iniciaram o seu
processo de formação nos anos 20, entram em cena na Era Vargas, alimentadas pelo contexto
político e econômico. No primeiro caso, tratou-se de um liberalismo elitista que começou a
ceder lugar a um liberalismo igualitário, a partir de 1932. No segundo caso, tratou-se de uma
estratégia surgida a partir de medidas que pretendia impedir contestações à ordem social,
vindas dos trabalhadores ou dos “tenentes” (setor insurgente da burocracia do Estado)
(CUNHA, 1986a).
Podemos definir a educação escolar autoritária como um mecanismo sistemático de
inculcação da ideologia do Estado autoritário (CUNHA, 1986a). Sendo o seu papel definir os
caminhos da Nação, o Estado assumiu uma função educativa mais ampla, que direcionava “a
formação mental e moral dos elementos componentes da coletividade”, tanto nos limites da
dimensão pedagógica da função educadora, quanto “no sentido da plasmagem de uma
consciência cívica caracterizada pela identificação com a ideologia do regime” (AMARAL,
1938, p. 302).
A educação, nos moldes da doutrina liberal, se daria numa escola independente dos
interesses particulares de classe, credo religioso ou político. Numa escola capaz de “despertar
e desenvolver os talentos e as vocações dos indivíduos na medida de suas características
inatas”, para que eles tenham condições de “se posicionar na sociedade conforme suas
aquisições e não conforme a herança de dinheiro ou de títulos” (CUNHA, 1986a, p.257-258).
Os educadores liberais estavam divididos em elitistas e igualitaristas. O primeiro, um
formato dado pelos pensadores ingleses e franceses. O segundo, elaborado por muitos
educadores e filósofos, sobretudo pelo norte-americano John Dewey, nas primeiras décadas
do século XX, condenava o sistema escolar dualista, dividido em ensino primário-profissional
ISSN 2177-8892 2061
e o secundário-superior, que configurava uma forma de estratificação e discriminação social
(CUNHA, 1986a).
Dewey (2010) propôs uma nova pedagogia (a Escola Nova) para combater a tendência
da sociedade capitalista, de perpetuar as injustiças e os privilégios, utilizando-se da educação
escolar. A nova pedagogia pretendia formar indivíduos com vista à democracia, à cooperação
e à igualdade, suprimindo a subordinação, a competição e a desigualdade. Embora definida
para o aperfeiçoamento da sociedade capitalista, tal proposta nem sempre foi aceita pela
oficialidade governamental, que preferia a versão elitista (CUNHA, 1986a).
Ainda que não se constituísse num projeto definido e congregasse pensamentos
liberais não-homogêneos, o Movimento Escolanovista, representado no Brasil,
principalmente, por Anísio Teixeira, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo, defendia
grandes temas como: escola pública, universal e gratuita; igualdade básica de oportunidade
em que floresceriam as diferenças baseadas nas qualidades pessoais; setor público (ensino
leigo) com função de formar o cidadão livre e consciente para incorporá-lo ao grande Estado
Nacional; princípios pedagógicos afastados do autoritarismo, com processos mais criativos e
menos rígidos; conteúdos relacionados à vida comunitária, que seria pública, mas não
burocrática.
Na Bahia, entre l927 e l930, tiveram repercussão as doutrinas pedagógicas dos teóricos
norteamericanos. No momento, Archimedes Guimarães assumia a diretoria da Instrução
Pública do Estado da Bahia, substituindo Anísio Teixeira, que se afastara para realizar uma
viagem para os Estados Unidos da América, mas que não deixou de orientar os projetos e a
atuação do amigo, mediante correspondência regular.
As relações políticas e a afinidade com as idéias pedagógicas de Anísio Teixeira
custaram a Archimedes duras críticas por parte dos jornais de oposição ao grupo político do
qual participavam Anísio e Archimedes, liderado por Góes Calmon (o então Governador da
Bahia). Contudo, um jornal de circulação local, na cidade de Conquista, teceu elogios a uma
medida do Diretor de Instrução Pública do Estado da Bahia, em julho de 1931, que proibia o
uso da palmatória nas escolas públicas e particulares, fazendo chegar ao conhecimento do
professorado que agora ele seria “energicamente castigado dentro das penas da lei que rege os
estabelecimentos de ensino”. Como vemos, a mudança se fez lenta, a linguagem não mudou, a
proibição foi imposta sem alternativas ou discussões pedagógicas, somente redirecionou-se o
alvo do castigo que, agora, seria o professor. O texto do jornal argumenta, com linguagem
ISSN 2177-8892 2062
poética e pouca fundamentação teórica, o que é perfeitamente passível de compreensão, dada
a sua função informativa:
NÃO QUER MAIS O USO DA PALMATÓRIA - O Diretor da Instrução
não admite mais o uso da palmatória nas escolas públicas e particulares, e
neste sentido fez chegar ao conhecimento do professorado que, será
energicamente castigado dentro das penas da lei que rege os
estabelecimentos de ensino. Útil medida e elogiável esta. O século já não
permite o uso das palmatórias nas escolas, onde as inteligências devem ser
cultivadas com carinho e dedicação. A palmatória infunde o terror e estiola
com as inteligências da juventude, e por isso andou muito bem o Diretor da
Instrução Publica do Estado.18
Contudo, relendo as fontes oficiais sobre a Educação na Bahia – quais sejam: falas de
Presidentes da Província, mensagens e relatórios de Governadores, relatórios de diretores da
instrução e secretários da educação – observamos que a preocupação, entrevista na legislação
do Estado da Bahia, se limitava à construção de prédios escolares, ampliação de vagas,
regulamentação do funcionamento dos estabelecimentos e da situação do pessoal, instruções
para a realização de exames nas escolas primárias, controle e acompanhamento das escola
particulares, questões tributárias e financeiras. Estavam na ordem do dia discussões acerca das
disposições voltadas para os ensinos primário e secundário, que traziam poucas referencias às
questões pedagógicas e didáticas; essas, não são diretas ou estão mescladas em textos que dão
destaque e ênfase para outras questões (TAVARES, 2001).
O tempo da lei não é o mesmo tempo dos costumes. O estabelecimento de uma norma
não implica a mudança imediata do comportamento, de maneira que uma década depois do
anuncio do Jornal Avante o uso da palmatória ainda era comum nas escolas, como vemos nas
lembranças de Valdelice Correia Silva, professora de reforço escolar e supervisora noturna,
encarregada da disciplina do internato masculino do Educandário Juvêncio Terra, em
Conquista, em 1949, e estudante do Ginásio de Conquista em 1950; e de Nudd David de
Castro, ex- aluno do Ginásio de Conquista, da turma de 1948:
Aí tinha uma disciplina muito rígida, uma disciplina muito rígida. Lá pro
canto... e os meninos “ê” (som de palmadas), dando “bolo”. Os meninos
caíam no “bolo... e ela ia batendo nos meninos e eu segurava pra ela, eu
segurava aqui ó: “Passa pro bolo, passa pro bolo, passa pro bolo, passa pro
bolo... Com a palmatória”.19
18 Jornal Avante, de 22 de julho de 1931. Fonte: Acervo particular de Ruy Hermann de Araújo Medeiros. Dados da pesquisa feita em abril
de 2013.
19 Relatos de Valdelice Correia Silva.
ISSN 2177-8892 2063
Era um padre capaz de rezar e capaz de xingar ao mesmo tempo, capaz de
fazer gestos de amor e capaz de bater em seus alunos, tudo com espírito de
ensinar, naquela base do ensinar antigamente (o professor usava palmatória,
o que hoje é proibido).20
Nos anos 1930, estava em evidência na sociedade brasileira a realização da revolução
democrático-burguesa. Nesse cenário de transformação, a concepção pedagógica mais
avançada e conveniente era apresentada pelo movimento escolanovista. No Brasil, as
diferentes visões sobre o espírito da educação começam a preocupar os governantes, pois, as
ideologias tinham presença marcante na vida política e a Educação se tornava a arena
principal de combate entre as opiniões que começavam a se polarizar em: Movimento da
Escola Nova e Proposta da Igreja Católica. Depois de instalado o Estado Novo, não houve
espaço para propostas pedagógicas de esquerda.
Segundo Saviani (2008), entre 1932 e 1969, a concepção pedagógica escolanovista ou
pedagogia nova estava em amplo desenvolvimento. Se pensarmos nas transformações de 1940
e 1950, às quais a educação estava associada, veremos um apelo ao sentimento nacionalista.
Na Era Vargas, a escola que esteve a serviço do Estado, instrumentalizou e incorporou ao seu
arsenal pedagógico a prática cultural do castigo, empregado como meio eficaz para assegurar
a disciplina.
A disciplina era uma regra no cotidiano do Ginásio de Conquista e do Educandário
Juvêncio Terra, de forma que as relações estabelecidas entre os alunos e desses com o corpo
docente, técnico e administrativo, eram pautadas no respeito. A memória social revela esta
regra:
O Educandário Juvêncio Terra foi considerado sempre um colégio sério,
conservador, voltado para as normas religiosas, mais severo. Isso não
compromete o processo educacional de forma alguma, porque bons
professores lá estavam (VILAS BÔAS, 1996, p.88). 21
As relações no Ginásio eram sempre cordiais, não me lembro de nenhum
tipo de briga. A secretaria sim, estava sempre cheia de alunos, os mais
rebeldes. A disciplina era mantida, cantava-se os Hinos Nacional e de
Conquista, esporadicamente...22
20 Nudd David de Castro, ex- aluno da turma de 1948, “pessoa de notório saber”. Engenheiro Civil aposentado, filho de Everardo Públio de
Castro (ex-professor do Ginásio de Conquista). Entrevista concedida em 29 de maio de 2008, aos 70 anos.
21 Depoimento de Heleusa Figueira Câmara, sobrinha de D. Rosália; ex-aluna e atual sócia do Educandário Juvêncio Terra; ex-aluna do
Ginásio de Conquista; escritora; professora aposentada.
22 Aydil Fernandes dos Santos Silva, secretária do Ginásio de Conquista entre 1942 e 1947. Serventuária da Justiça aposentada. Entrevista
concedida em 22 de maio de 2008, aos 86 anos.
ISSN 2177-8892 2064
Era... era muito rigorosa a questão da disciplina... Havia uma distância
grande entre professor e aluno; mas, pela própria dinâmica, pela própria
didática do padre. Embora houvesse essa distância entre professor e aluno,
havia um respeito, um amor que a gente tinha pelos professores. Até hoje, eu
me lembro dos meus professores com muito carinho, os que estão vivos,
quando eu encontro, é assim aquele respeito, aquele carinho muito grande.23
Aqui se admirava porque já era uma escola de adolescentes né? de maiores.
Mas, a escola primaria tinha reguada, tinha palmatória. A escola que eu
estudei também... Talvez seja muito interessante também que faça uma
ressalva, até uma homenagem a uma educadora grandiosa em Conquista que
foi Dona Helena Cristália Ferreira, que era da Escola São José, uma das
primeiras escolas, que tem muita gente boa que estudou lá. E dona Helena,
escreveu não leu, tinha palmatória, palmatória mesmo, sabe o que é
palmatória?
Nudd David de Castro lembra que
[...] naquela época os estudantes eram – talvez por formação, ou por falta de
informação – eram mais disciplinados naturalmente.
A gente tinha o professor como uma autoridade natural, sem ele
necessariamente ser autoritário. Então a gente tinha um certo respeito pelo
nosso mestre, era uma consideração mais afetiva propriamente do que
medrosa. Hoje em dia parece que não existe mais isso na sala de aula, minha
atual mulher ela é professora e se queixa muito dessa famosa indisciplina na
sala de aula.
As defesas de cada prática, pedagógica ou não, se explicam também pelo
entendimento da época a que pertence aquele que lembra, pelo memento da rememoração e
pelo que é lembrado por ele. A memória social diz, sobre os tipos de castigo:
Geralmente de joelhos ou em pé, sem muita exigência, além disso. 24
A disciplina era rígida, inclusive com castigos infligidos contra os meninos
(murros).
Então havia castigos, cascudo, ficar de pé no canto da parede. Só que era
mais com os meninos.25
Elomar Figueira? Sim, caiu no pau também, com o padre Palmeira, que batia
em todos.26
23 Relatos de Janilde Novais.
24 Relato de Uady Barbosa.
25 Relato de Heleusa Camara
26 Relato de Valdelice Correia.
ISSN 2177-8892 2065
Os motivos do castigo:
Palavrão, não podia falar palavrão, se falasse ele botava de castigo.
Namorado? Também não. Você é doida! Levar namorado pra lá, de jeito
nenhum. Tinha que respeitar mesmo, dentro e fora do colégio.
Era mal comportada... Conversando, rindo, rebolando. Outro dia as meninas
desceram tudo, o ginásio desceu tudo, tudo cantando, tudo rebolando, e eu
bem quieta, bem quieta, eu sai do meio delas e fiquei pra traz, e ele já ficava
olhando da porta. Ele já ficava olhando da porta.
Era mal comportada (as alunas apelidadas Lua e Sol). Não era comportada
na escola, não era comportada na rua, e ele (O Padre Palmeira): Onde vocês
forem respeitem a minha farda, respeitem a minha farda! 27
Os professores não encontravam na indisciplina da própria juventude alguma
coisa que os atormentassem, a indisciplina normal de todo jovem, aquela
rebeldia natural da juventude, mais nada que justificasse algum problema
para o nível do magistério.28
O controle do corpo:
Eu tive um namorado no curso primário e um dia a professora flagrou, deve
ser que ele pegou em minha mão e a professora. por baixo da carteira, viu e
falou com minha mãe. Minha mãe deu doze bolos em mim, doze bolos nele,
apanhou eu e ele. O namoro acabou, o namoro acabou por causa da surra. Na
sala de aula. Na frente dos outros. Eu tinha uns dez anos e pouco.29
Lembro-me que a gente subia para estudar, os meninos e as meninas iam
juntos , até determinado momento, pois não poderiam chegar juntos no
Ginásio, por causa do padre. 30
Homens e mulheres estudavam em turnos opostos. 31
Nesse momento da educação tinha seus rigores, era uma educação muito
rigorosa porque a disciplina era muito rigorosa, basta dizer que no ginásio do
padre os meninos estudavam pela manhã e as meninas a tarde. E o padre
Luis Palmeira né?! O padre Palmeira, ele dizia assim: azeite não mistura
com água, então ele não queria que houvesse essa mistura.32
27 Relato de Valdelice Correia.
28 Relato de Nudd David.
29Anamária Figueira Silveira, filha da Professora Rosária, ex-aluna do Educandário Juvêncio Terra, entrevista concedida em18 de novembro
de 2012, aos 60 anos.
30 Yeda Raquel. ex-aluna do Ginásio de Conquista nos anos: 1950, 1953, 1954, 1955. Entrevista concedida por em 29 de maio de 2008, em
Vitória da Conquista – BA.
31Relato de Heleusa Camara.
32 Relatos de Janilde Novais.
ISSN 2177-8892 2066
A resignação, a aceitação e o exemplo:
Ficou quieta, quem é que iria contestar com ele (se ele reclamasse)?
Contestar, de jeito nenhum. E ele foi embora daqui, mas ele deixou muita
saudade, principalmente pra mim.
E ela (D. Rosália) era muito brava pra mim também, era brava pra mim
também. Eu tomava conta deles todos, levava para o cinema, dava banca,
apertar... Quando eu levava menino pra o dormitório masculino eu já ia com
a correia na mão: “Vamo dormir, se levantar cai na chibata!”
Eu nunca dei trabalho, nunca respondi, não. Respeitava a presença dele.33
A disciplina dentro Ginásio era muito grande, por medo e por respeito.
Certa vez ele puxou meu irmão pela orelha, com tanta força que rasgou e até
sangrou. O meu pai queria ir brigar com ele. Mas todos aconselharam a não
fazer isso. Eu acho que ele, sendo um padre e um educador, não deveria
fazer isso.34
Organização, repressão e a busca da qualidade e da excelência do ensino:
D. Rosália... era muito brava (risos). Era brava, na disciplina lá da escola, os
meninos no internato iam levantar cinco horas da manhã, morrendo de medo
de passar de hora. Eu, cinco horas da manhã pra dá banca aos meninos35
.
O Pe. Palmeira era um homem enérgico, com muita sabedoria, sabia se
impor, ensinava vários assuntos, falava muito bem. Lembro-me da sua aula
de latim... Ele ia pouco à Secretaria, alguns assuntos eram representados
pelos “bedéis”, funcionários que cuidavam dos alunos, arregimentavam,
disciplinavam...36
“Se não me falha a memória...”
Ela (D. Rosália) me levou ao Ginásio do Padre e me apresentou: “Padre, eu
vim pedir a bolsa pra Valdelice estudar”... E eu fui fazer o curso primário
todo completo eu tinha pouco, primário. Terminei o curso primário e fiz
admissão e passei... O Padre foi muito bom pra mim, até hoje eu tenho muita
saudade do Padre. D. Rosália foi uma mãe.37
Os sujeitos que conviveram no ambiente escolar nas décadas de 1940 e 1950, nutrem
carinho, admiração e respeito pelo Pe. Palmeira e pela Professora Rosália, e segundo eles, os
33 Relato de Valdelice Correia.
34 Relato de Yeda Raquel.
35 Relato de Valdelice Correia.
36 Relato de Aydil Fernandes.
37 Relato de Valdelice Correia.
ISSN 2177-8892 2067
adjetivos que caracterizam a ação pedagógica desses educadores na memória social são:
qualidade, disciplina e ordem.
Reconhecemos que a importância do convívio com outras pessoas, no momento das
construções ou eleição das imagens do passado, não suprime a sua dimensão pessoal
(FENTRESS; WICKHAM, 1992). Porém, se os sujeitos se lembram e se esquecem, falam e
silenciam, e o processo de memória desencadeado é influenciado pelos grupos dos quais eles
fazem parte, podemos dizer que a memória comum de um grupo está composta de
“representações” que, se não são uma verdade, tampouco são mentiras, posto que são “reais”
para o seu imaginário, e inspiram as práticas e os discursos desse grupo.
Ao que tudo indica, é um consenso entre os depoentes acreditar que, apesar dos
procedimentos pedagógicos rigorosos – atualmente entendidos como “violência”, física ou
simbólica –, o “Ginásio do Padre” e o “Colégio de D. Rosália” cumpriram o papel de
“preparar para a vida”, uma expressão comum nos relatos de memória. Dessa forma, os
sentimentos de revolta ou insatisfação não compuseram a totalidade da memória social
partilhada, apesar de essas categorias comparecerem, eventualmente, nos depoimentos dos
entrevistados.
Referencias:
AMARAL, Azevedo. O estado autoritário e a realidade nacional. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1938
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Cia das
Letras. 1994.
CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã. 2. ed. Rio de janeiro: Francisco
Alves,1986a.
CUNHA, Célio da. Educação e autoritarismo no Estado Novo. 2. ed. São Paulo: Autores
Associados, 1989. – (Coleção educação contemporânea. Série memória da educação).
DEWEY, John. Experiência e Educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
FENTRESS, James; WICKHAM, Chris. Memória Social: Novas perspectivas sobre o
passado. Lisboa: Teorema, 1992.
ISSN 2177-8892 2068
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI Escolar: O
minidicionário da língua portuguesa. 4ª. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
JAPIASSÚ, Hilton. Dicionário básico de filosofia. 4 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed.,
2006.
KOSIK, Karel. A Dialética do Concreto. Petrópolis, RJ: Paz e Terra, 1976.
MONROE, Paul. História da Educação. 13ª. ed., São Paulo: Editora Nacional, 1978.
MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In. NOVAIS.
Fernando A (Coord.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade
contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RICOUER, Paul. A Memória, a História e o Esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.
SAVIANI, Dermeval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores
Associados, 2ª ed., 2008. (Coleção Memória da Educação)
SCHWARTZMAN, Simon. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e Terra: Fundação
Getúlio Vargas, 2000.
TAVARES, Luis Henrique Dias. Fontes para o estudo da Educação no Brasil - Bahia. 2ª
edição. 508p. Gráfica da Editora da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Salvador –
Bahia. 2001.
VILAS BÔAS, Elzir da Costa. Memorial Professora Rosália Figueira Silveira. Vitória da
Conquista – BA: Educandário Juvêncio Terra, 1996.
Jornal: Jornal Avate (22 de julho de 1931). Acervo do Arquivo Particular do Professor Ruy Hermann
de Araújo Medeiros. Pesquisa realizada em maio de 2013.
Site:
Bíblia comentada
Disponível em: <http://www.bibliacomentada.com/Busca.aspx?Palavra=castigo>. Acesso em:
14 de maio de 2013.
Depoimentos e Entrevistas:
Aécio de Sousa Cunha, ex-aluno do Ginásio de Conquista da turma de 1950.
Anamária Figueira Silveira, filha de D. Rosária, ex-aluna do Educandário Juvêncio Terra.
Aydil Fernandes dos Santos Silva, secretária do Ginásio de Conquista entre 1942 e 1947.
Heleusa Figueira Câmara, sobrinha de D Rosália, ex-aluna e sócia do Educandário Juvêncio
Terra, ex-aluna do Ginásio de Conquista, entre 1955 e 1958.
Yeda Raquel Ferraz Santos, ex-aluna do Ginásio de Conquista nos anos 1950 a 1955.
Janilde Novais Franco da Mota, ex-aluna do Ginásio de Conquista entre 1954 e 1959.
ISSN 2177-8892 2069
Jenísia Sales de Melo, ex-aluna do Ginásio de Conquista, da turma de. 1940.
Nudd David de Castro, ex- aluno da turma de 1948, “pessoa de notório saber”.
Uady Barbosa Bulos, ex-aluno do Ginásio de Conquista de 1952 a 1955.
Ubirajara Brito, ex-aluno do Ginásio de Conquista, da turma de 1951.
Valdelice Correia Silva, professora de reforço escolar e supervisora noturna, encarregada da
disciplina do internato masculino do Educandário Juvêncio Terra (a partir de 1949); ex-aluna
do Ginásio de Conquista da turma de 1950.