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 Olho d´água, São José do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.–Jul./2014 142 “FALAR DA TORTURA NÃO É FALAR DO TORTURADO E DA VÍTIMA, É FALAR DA SOCIEDADE QUE É CAPAZ DE TORTURAR” — ENTREVISTA COM O PSICANALISTA MARCELO VIÑAR  Apresentação  O médico e psicanalista uruguaio Marcelo Viñar é conhecido, no Brasil, sobretudo, por seu livro Exílio e Tortura, publicado em 1992, e escrito em parceria com sua esposa Maren Viñar. O livro, que explora as relações entre psicanálise e contexto sócio-político autoritário, registrando o trabalho psicanalítico realizado com ex-torturados e exilados políticos, teve repercussão internacional, tendo sido publicado também na Argentina e na Franç a. Marcelo Viñar é membro titular da Associação Psicanalítica do Uruguai (APU) e membro titular da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Foi presidente da Federação Psicanalítica da América Latina, integrou a Clínica La Chesnaie, na França, onde também dirigiu a École de Psychiatrie Institutionelle La Chesnaie. É autor de diversos artigos em revistas especializadas e desenvolve, também, um trabalho ligado à infância e à adolescência marginalizadas. É autor dos livros: Psicoanalizar hoy  (Ediciones Trilce, 2002) e Mundos adolescentes y vértigo civilizatorio (Ediciones Trilce, 2009). De suas outras publicações, destacam-se, além do já citado Exílio e tortura (Ed. Escuta, 1992), Fracturas de la Memória – Crônicas para una memoria por venir  (Ediciones Trilce, 1993) – ambos escritos em parceria com Maren Viñar –, e a compilação Semejante o Enemigo? entre la tolerancia y la exclusión (Ediciones Trilce, 1998). Tem capítulos publicados nas seguintes coletâneas: Identidad Uruguaya mito crisis o afirmación?  (Ediciones Trilce, 1992);  Antíguos crímenes - Edipo, Narciso, Caín (Ediciones Trilce, 1994); Uruguay: Cuentas pendientes: Dictadura, Memorias y Desmemorias (Ediciones Trilce, 1995); Memoria social  (Ediciones Trilce, 2001),  Adolescentes hoy  (Ediciones Trilce,2005); Niños fuera de la ley  (Ediciones Trilce,2005). A entrevista que apresentamos a seguir foi realizada em 2008, e abordou, dentre outros temas a relação entre poder, violência e memória, a tortura e suas representações. A tradução desta entrevista foi realizada por Wanderlan da Silva Alves. Entrevista  Arnaldo Franco Jr. – Eu gostaria de lhe agradecer pela entrevista. Elaborei algumas perguntas, e gostaria de apresentá-las e ouvir o senhor. Pode ser assim? No seu livro, Exílio e tortura, com Maren Viñar, há uma crítica à separação entre a Psicanálise e o compromisso social, no sentido de que a teoria não pode desconsiderar a constituição do sujeito na relação com o tecido social. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso. Marcelo Viñar – Bem, sua pergunta é muito importante e muito extensa. Eu poderia falar sobre isso durante várias horas. Nos anos 60, essa questão era colocada de uma forma muito diferente da que se apresenta na atualidade. Trata-se da relação das Ciências Humanas na  Entrevista concedida pelo psicanalista Marcelo Viñar ao professor Arnaldo Franco Junior em 21/08/2008. Tradução e notas: Wanderlan da Silva Alves.

Falar da tortura não é falar do torturado e da vítima, é falar da sociedade que é capaz de torturar - entrevista com Marcelo Viñar

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Entrevista com o psicanalista uruguaio Marcelo Viñar.

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  • Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014 142

    FALAR DA TORTURA NO FALAR DO TORTURADO E DA VTIMA, FALAR DA SOCIEDADE QUE CAPAZ DE TORTURAR ENTREVISTA COM O PSICANALISTA

    MARCELO VIAR Apresentao

    O mdico e psicanalista uruguaio Marcelo Viar conhecido, no Brasil, sobretudo, por seu livro Exlio e Tortura, publicado em 1992, e escrito em parceria com sua esposa Maren Viar. O livro, que explora as relaes entre psicanlise e contexto scio-poltico autoritrio, registrando o trabalho psicanaltico realizado com ex-torturados e exilados polticos, teve repercusso internacional, tendo sido publicado tambm na Argentina e na Frana.

    Marcelo Viar membro titular da Associao Psicanaltica do Uruguai (APU) e membro titular da Associao Psicanaltica Internacional (IPA). Foi presidente da Federao Psicanaltica da Amrica Latina, integrou a Clnica La Chesnaie, na Frana, onde tambm dirigiu a cole de Psychiatrie Institutionelle La Chesnaie. autor de diversos artigos em revistas especializadas e desenvolve, tambm, um trabalho ligado infncia e adolescncia marginalizadas. autor dos livros: Psicoanalizar hoy (Ediciones Trilce, 2002) e Mundos adolescentes y vrtigo civilizatorio (Ediciones Trilce, 2009). De suas outras publicaes, destacam-se, alm do j citado Exlio e tortura (Ed. Escuta, 1992), Fracturas de la Memria Crnicas para una memoria por venir (Ediciones Trilce, 1993) ambos escritos em parceria com Maren Viar , e a compilao Semejante o Enemigo? entre la tolerancia y la exclusin (Ediciones Trilce, 1998). Tem captulos publicados nas seguintes coletneas: Identidad Uruguaya mito crisis o afirmacin? (Ediciones Trilce, 1992); Antguos crmenes - Edipo, Narciso, Can (Ediciones Trilce, 1994); Uruguay: Cuentas pendientes: Dictadura, Memorias y Desmemorias (Ediciones Trilce, 1995); Memoria social (Ediciones Trilce, 2001), Adolescentes hoy (Ediciones Trilce,2005); Nios fuera de la ley (Ediciones Trilce,2005).

    A entrevista que apresentamos a seguir foi realizada em 2008, e abordou, dentre outros temas a relao entre poder, violncia e memria, a tortura e suas representaes. A traduo desta entrevista foi realizada por Wanderlan da Silva Alves. Entrevista Arnaldo Franco Jr. Eu gostaria de lhe agradecer pela entrevista. Elaborei algumas perguntas, e gostaria de apresent-las e ouvir o senhor. Pode ser assim? No seu livro, Exlio e tortura, com Maren Viar, h uma crtica separao entre a Psicanlise e o compromisso social, no sentido de que a teoria no pode desconsiderar a constituio do sujeito na relao com o tecido social. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre isso. Marcelo Viar Bem, sua pergunta muito importante e muito extensa. Eu poderia falar sobre isso durante vrias horas.

    Nos anos 60, essa questo era colocada de uma forma muito diferente da que se apresenta na atualidade. Trata-se da relao das Cincias Humanas na

    Entrevista concedida pelo psicanalista Marcelo Viar ao professor Arnaldo Franco Junior em 21/08/2008. Traduo e notas: Wanderlan da Silva Alves.

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    Modernidade. O que a Modernidade? Bem, nos anos 60, mais ou menos na Modernidade tardia, havia Cincias Humanas que exigiam campos e paradigmas muito concretos, por exemplo, o campo da Sade Mental, o da Medicina, o da Psicanlise, o da Histria. Cada esfera tinha muito cime do seu campo de ao, do seu mtodo, do seu objeto, e se acreditava, ou se pensava, luz do pensamento iluminista da Cincia, na Modernidade tardia, que se devia preservar a especificidade de cada campo. E o campo freudiano era o do inconsciente e dos fenmenos psquicos. A Psicanlise se especializava na sexualidade infantil, o plano da intimidade, na causalidade fantasmtica, e tinha uma ideia muito fechada da experincia psicanaltica, muito presa ao consultrio psicanaltico, onde os fenmenos transferenciais aconteciam ao vivo, na experincia psicanaltica. Tinha-se muita cautela em preservar essa especificidade. E ns, que pensvamos que se deveria dar espao aos fenmenos sociais, ramos recebidos ou lidos como aqueles que diluam, num espao psicossocial indistinto, a qualidade especfica do descobrimento freudiano de A Interpretao dos Sonhos, como se perdssemos a especificidade da estrutura psquica. Perdia-se o territrio. E, ento, ramos tratados como uma maldio. Dizia-se: isso no Psicanlise. A causalidade do inconsciente e o objeto da Psicanlise eram suficincias que aconteciam na intimidade. E se tinha certeza de certas variantes, da noo de famlia, da noo de prazer, da noo de censura.

    Eu lhe diria que, ao final do sculo XX alguns situam o fenmeno na dcada de 70, outros na de 80 , na transio do que alguns chamaram de o pensamento frgil da Ps-modernidade, j se tinha menos cime do campo de ao de cada esfera. A transdisciplinaridade foi valorizada. Vimos como a associao de antroplogos, de cientistas polticos, de algumas formas de Sociologia, cuidando para manter a especificidade do ofcio, para no misturar qualquer coisa com qualquer coisa, a partir da sua leitura, e da especificidade dela, s vezes, tocava em regies de articulao. Um caso tpico o da antropologia levistraussiana com o freudismo, por exemplo, e a aplicao de certas noes da Psicanlise ao campo da Antropologia, no que se refere s leis de parentesco e descoberta de que o horror ao incesto e a estrutura edpica se manifestavam tanto na intimidade do indivduo quanto em toda a sociedade. Isso indicava que a interpenetrao de campos, longe de ferir a especificidade do mtodo, podia se mostrar enriquecedora. Ou seja, se trata de um fenmeno epistemolgico geral de todas as Cincias Humanas, que eu prefiro chamar de Cincias do Sujeito ou Cincias do Discurso, em que o objeto tem a ver no com um objeto da natureza, mas, sim, com um objeto que um produto da mente humana. Um lapso um produto da mente humana, um sonho, um pressentimento um produto da mente humana. Isto , o que especfico para cada cincia so, na verdade, produtos. Como a criao literria, que outro produto da mente humana, da mesma forma que ocorre com o modo de organizao das diversas culturas. As Cincias do Sujeito tm em comum, ento, o fato de que, a partir de mtodos distintos, e privilegiando e ressaltando algumas particularidades, elas constituem olhares sobre como a mente humana funciona, em que a noo fundamental a do indivduo. Isso funcionava como uma maneira de opor-se s concepes tradicionais da Psicanlise Psicologia ou Sociologia, acerca das quais se dizia que uma se voltava para algo do indivduo e a outra para os fenmenos concernentes s sociedades humanas. Ento, em vez de separar para compreender, hoje, procura-se articular, ou tomar regies de articulao e de fronteira entre diferentes reas. Na atualidade, do ponto de vista do campo epistemolgico, isso me parece um fato radicalmente diferente do que era nos anos 60 e 70, dentro dos limites de onde ns conduzamos as relaes entre a Psicanlise e o tecido social. O que estava separado e banido, naquela poca, , hoje, um ponto de ateno.

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    O prximo Congresso Internacional Latinoamericano de Psicanlise, que realizado pela Federao Latinoamericana de Psicanlise, apresenta um grupo de trabalho que se intitula Comunidade e Cultura, e outro que se intitula Psicanlise e os Direitos Humanos, coisa dificilmente imaginvel em congressos realizados h 30 ou 40 anos, em que se estudava a transferncia, o narcisismo e os objetos tpicos do corpo, a partir de Freud.

    Por outro lado, eu no sei o que vem primeiro, se a Epistemologia ou o que acontece no espao urbano e do pensamento, se a cidade que muda o pensamento e a cultura, ou se so influncias recprocas, mas alguns parmetros que ns considervamos irredutveis mudaram suas posies-chave.

    A revoluo sexual, nos anos 60 e 70, que no alheia descoberta dos meios de controle da procriao, dos mtodos contraceptivos, que viabilizam a existncia de tcnicas as quais permitem separar a finalidade reprodutiva da sexualidade de seus aspectos de prazer e de envolvimento. As mudanas no que se refere ao lugar da mulher na sociedade, a crise da famlia, os ndices de divrcio e a famlia que se desfaz e se reconstri, ou seja, o lugar do modelo patriarcal, que guiou o Ocidente durante sculos ou milnios, est muito diferente agora, muito fragmentado, degradado ou, ao menos, no apresenta mais a mesma fora legislante, uma fora de legitimao de uma ordem estabelecida, qual, normalmente, a gente no podia se opor, que a gente podia respeitar ou podia transgredir, mas existia um referente ao qual podamos aderir ou contra o qual nos rebelar. Hoje, com o declnio da figura da ordem patriarcal e com a queda dos metarrelatos, todo esse grande Outro, que colocava ordem em nossos ofcios e em nosso pensamento, est muito mudado.

    Mudou a noo de famlia, a noo de sexualidade. A homossexualidade deixou de ser uma doena para ser algo legitimado pela sociedade e pelo Direito. claro que as mudanas nunca so do branco para o preto, no so de cento e oitenta graus, mas houve uma poca em que os psicanalistas pensavam que a sexualidade era uma doena, uma perverso, uma coisa curvel, e hoje se acredita que um direito legtimo que homens e mulheres ocidentais podem escolher, ao menos em um setor. E, alm disso, os discursos do Direito e do Estado vo, cada vez mais, rumo a uma legitimao a esse respeito. O lugar da mulher, o lugar da sexualidade, o lugar da famlia, tudo isso muda as regras de parentesco. Com isso, do ponto de vista das mudanas epistemolgicas, as relaes entre o espao sociopoltico e o espao da intimidade mudaram muito nesses ltimos quarenta-cinquenta anos. Certas coisas parecem ser muito determinantes em tudo isso. O aparecimento da televiso e do computador na vida cotidiana, o crescimento das cidades, como tantos autores dizem, isso muda as relaes. Na minha infncia, havia sedentarismo, as relaes tinham um carter pessoal, eram duradouras; hoje, no sei qual o tamanho da sua cidade de So Jos do Rio Preto, mas So Paulo tem vinte milhes de habitantes, e, mesmo nas cidades pequenas, podemos ver a mobilidade das pessoas. E a violncia do tempo social na relao com o tempo vivencial interiorizado muda todos os cdigos de pertencimento. Isso, por sua vez, altera muito a relao entre o pblico e o privado.Bem, a sexualidade era um assunto da intimidade, um assunto da vida privada. Hoje, todos os dramas familiares e seus exageros e modelos do os ibopes mais altos da televiso o Big Brother o espetculo mais caracterstico disso , e muitas novelas mostram o adultrio, o incesto, a perverso, o sadomasoquismo, a traio, com muita trivialidade, ou seja, o que era solene e sagrado se tornou trivial, se tornou banal, se tornou no sabemos exatamente o qu.

    O senhor me conhece por meio do meu livro que se chama Exlio e tortura, no qual temos o modelo de sociedade em que a mentalidade latinoamericana de meados do sculo passado, e at os anos 70, tinha o poltico como um espao,

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    um polo atrativo de referncia. ramos de direita ou de esquerda, ramos socialistas ou comunistas ou catlicos, mas o referente poltico de como a sociedade de produo mudava funcionava como uma espcie de dilogo de bandeira, era uma razo de ser. Hoje, isso est muito fragmentado, muito desvalorizado, e os valores so a msica, o sucesso ou a esttica do corpo, a volta s religies sincrticas, o que mostra as mudanas na mentalidade coletiva e seu alcance, entre o que chamamos o espao poltico dos anos 70 e os da atualidade.

    Eu era psicanalista, e no podia me furtar s situaes de crueldade em meu pas. O Uruguai era um pas buclico, um pas manso, sem golpes de Estado. Para os uruguaios do sculo XX, esse talvez fosse o pas mais tranquilo do mundo, um pas de classe mdia, com poucas diferenas, sem trfico e sem pobres, com escolas mistas de ambos os gneros, aonde iam meninos e meninas, com a mulher com direito ao voto, uma mulher com direito de exigir o divrcio pela sua prpria iniciativa, com um Estado separado da Igreja-com-Estado, pois, no Uruguai, a luta anticlerical aconteceu no fim do sculo XIX e incio do XX, diferentemente de muitos pases da Amrica Latina, e quando eu vim ao mundo, em meados do sculo, ou ao mundo adulto, ns estvamos num pas laico, progressista, a Sua da Amrica, que caiu. A comea o problema do ovo e da galinha: se foram os movimentos guevaristas ou inspirados na revoluo cubana o que se chamava a ideologia marxista estrangeira , o que motivou a represso armada, ou se foi a deteriorao do espao democrtico e de justia social o que incentivou os movimentos revolucionrios. Isso j um problema de leitura. O fato que se passou de uma situao de convivncia cordial democrtica a uma situao de barbrie, e no foi uma deciso, como o senhor escolheu a Literatura, eu escolhi ser psicanalista, mas foi a vida de todos os dias, a crueldade, a presena de vtimas o que nos levou a tomar tudo isso como campo de estudos. Eu, como psicanalista, no podia fugir disso. No silenci-lo, e ver, cada vez com mais clareza, os modelos que a Psiquiatria e a Psicanlise nos ofereciam, para pensar as sequelas e o dano psquico que o horror provocado por outros homens produzia, ou seja, a especificidade da tortura como trauma foi o que foi nos impondo uma espcie de campo de reflexo, um campo de estudos, um campo de auxlio. E, depois, eu tive de ir para o exlio. Ento, mais do que qualquer outra coisa, foi o furaco da Histria o que nos imps a eleio do campo de pesquisa.

    Quando a gente tem uma formao, uma aprendizagem dentro de certos paradigmas, em que se situa a qualificao em Psiquiatria ou em Psicanlise, a gente modelado por esse ensino e essa aprendizagem, e houve um momento em que a realidade clnica e a realidade dos fatos comearam a entrar em coliso, e a os conceitos freudianos nos deixavam de calas curtas para o que queramos pensar. E o que nos ajudou muito a pensar foi toda a literatura do universo da conscincia, com Robert Antelme, Primo Levi, Kertsz, Steinberg, Sarah Kofman1... E ns fomos aprendendo como, s vezes, conseguir adentrar em quadros patolgicos e como medicar a tortura eram modos de trair a realidade. Ento, eu penso que alguns modelos da Literatura foram o que mais

    1 Robert Antelme (1917-1990), escritor francs que lutou na resistncia aos nazistas e foi prisioneiro nos campos de concentrao de Buchenwald e Dachau. Publicou, em 1947, o livro A espcie humana, no qual registrou a experincia vivida naqueles campos. Primo Levi (1919-1987), qumico e escritor italiano, famoso pelo livro isto um homem?, originalmente publicado em 1947 e escrito com base em sua experincia como prisioneiro em nos campos de concentraos de Auschwitz-Birkenau. Imre Kertsz (1929-...), escritor hngaro sobrevivente da Shoah, de cuja obra se destaca Sem destino (1975), no qual narra a vida de um adolescente em Auschwitz-Birkenau. Samuel Steinberg (1928-2010), testemunha das atrocidades do nazismo. Sarah Kofman (1934-1994), escritora, filsofa e uma das mais importantes pensadoras do ps-guerra na Frana. Dentre suas obras, destacam-se, alm dos estudos sobre psicanlise e filosofia, Palavras sufocadas (1987) e Rue Ordener, rue Labat (1994), em que a ao dramtica decorre da priso de seu pai pela polcia do governo de Vichy, simptico ao nazismo.

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    nos ajudou. Temos, tambm, algumas reflexes de Hannah Arendt, fundamentalmente, no que se refere ideia de que os homens pensam no s a partir de determinaes intrapessoais, mas a partir do modo como uma cultura e seus desajustes influenciam a sua maneira de viver em grupo, nas origens do Totalitarismo2 e do Nazismo. Isso tudo foi o que mais nos deu fora para reconectar essa experincia da intimidade, que a experincia freudiana da Psicanlise procurava, com as feridas e a noo medicada de trauma ou de estresse ps-traumtico.

    Agora est na moda a noo de resilincia3: so modos de se adentrar num campo muito estrito de conceitualizao. A aventura humana de quando o homem vira o lobo do homem, quando o prximo vira inimigo. Procuramos, ento, no interrogar a relao do torturado com a psicopatologia, mas do torturado com o espao social e poltico em que vivia. Essa , de modo geral, a orientao que inspirou o relato de casos e o relato de situaes que tentamos fazer no livro que o senhor leu. Esse foi o passo inicial para desenvolver a reflexo. Ou , ainda, o que caracteriza a leitura de Castella, a leitura de Zygmunt Bauman. Um tema que me deu, e a mim mais do que a qualquer outro, os limites da capacidade interpretativa de cada campo de reflexo.

    No holocausto, amos olhar as leituras no-psicanalticas, a abertura de campos de reflexo diferentes dos especficos da literatura psicanaltica. Eu acredito que todos esses campos conduzem ao mesmo fim: de pensar o que o cidado do sculo XXI, o que o homem da Ps-modernidade, como ele pensa, como ele sente. E, ento, a partir do tema da tortura e do tema da violncia poltica daquela dcada que vocs estudam, passamos a regimes sociais e psquicos nos quais a noo de lao social e de vnculo entre grupos e multides humanas diferente do que era no meu tempo de jovem. E, ao procurar esses referentes e a articulao com essa invaso, o modo como se apresenta o mal-estar na cultura e na sintomatologia dos pacientes, sobretudo nos jovens e adolescentes, isso , hoje, muito diferente do que antes se apresentava. Tanto que alguns autores falam de novas patologias, ou, ao menos, novas formas de manifestao do transtorno mental que so diferentes. Chaves diferentes para entender o sujeito, a penria do sujeito, que o psicanalista trata, agora, com chaves diferentes das que lamos h algumas dcadas. Do mesmo modo, esboamos uma compreenso de como, nessa Ps-modernidade e nessa revoluo do poltico e do privado, o dilogo com historiadores da poca contempornea nos enriqueceu muito. Ajuda-nos a entender a sensibilidade, entender o fenmeno das tribos, das gangues, dos piercings, das tatuagens, das maras4 e todos esses que so fenmenos da atualidade de uma juventude destruda, de uma juventude ferida, de uma juventude que no tem lugar no espao comunitrio, que no tem um lugar de acolhida e que adota formas daninhas ou nocivas de convivncia.

    Antes, os pacientes nos contavam sua histria como um conto, eram romancistas de si mesmos (digo: alguns, certo?); agora no, os sujeitos no costumam romancear sua existncia, trazem sintomas, ou a droga, ou a bulimia e a anorexia, ou fenmenos, ou o ataque e a agressividade, ou seja, a sintomatologia, que antes se chamava transtorno psquico, agora est ou no corpo ou nas relaes com os demais, e h algo relacionado perda de uma sensibilidade interior para pensar e sentir os conflitos. H uma crise disso que chamamos de liberdade interior. E o que ns procuramos escutar como isso se 2 Origens do totalitarismo foi publicado originalmente por Hannah Arendt em 1951. 3 Conceito da Psicologia, derivado da Fsica, que indica a capacidade de um indivduo de superar situaes traumticas e estressantes. 4 Maras ou Marabuntas so gangues compostas por jovens latinos de origem norte-americana deportados para pases da Amrica Central, atuando, particularmente, em El Salvador, Guatemala e Honduras. Atuam, tambm, nos Estados Unidos da Amrica, seu pas de origem.

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    junta com o que ns j sabamos da escuta psicanaltica, com os modelos herdados. Franco Jr. A segunda pergunta diz respeito representao a tortura. No seu livro, fica claro que aquele que sofre a tortura vai elabor-la de modos distintos. O senhor fala de dois casos bastante diferentes: um que consegue dar uma resposta positiva na elaborao, e outro que sucumbe. Mas a minha pergunta se desloca para a representao no campo da arte. Porque, no seu livro, h passagens em que h uma tomada de posio contra formas de representao da tortura que podem satisfazer voyeurismos ou sadismos. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco da relao entre a tortura e a representao deste tema, ou problema, pela arte. Marcelo Viar O senhor faz umas perguntas muito interessantes e muito difceis, mas muito inspiradoras. Eu precisaria de algumas horas para pensar em respostas adequadas, e o que eu vou lhe dizer uma interpretao.

    Tomemos um ponto de partida. O que constitui o humano e o sujeito ter uma linguagem, habitar um mundo de palavras. Por isso, o senhor e eu concordamos quanto ao fato de que vocs na Literatura e eu na Psicanlise o sujeito precisa ser um romancista de si mesmo. A tortura rompe essa capacidade porque transforma o sujeito em vtima. E a noo de vtima implica uma negao da singularidade do sujeito humano. Existe algo da criatividade humana que consiste no fato de que ele semelhante a outros seres humanos, mas pode delinear um panorama de singularidade. Um dos apoios do enfoque freudiano no transtorno mental est em ressaltar esse carter de singularidade. O mesmo estmulo, o mesmo trauma a morte da me, de um ente amado da famlia, um terremoto, uma tragdia natural , tudo isso, enfim...; a reao dos indivduos a um mesmo estmulo daninho na guerra muito diferente. Isso quer dizer que a tragdia humana, em vez de anular e apagar a singularidade, a acentua. E procurar categorias, como a de vtima, unificar algo que diferente para cada um. O modo como cada sujeito pde viver depois de uma experincia num campo de concentrao, ou numa priso poltica latinoamericana, muito diferente de um sujeito para o outro. O que mais me assusta como o modo adaptativo muito variado, o modo de capitular ou de se salvar dessa experincia de terror, isto , a vida posterior. Insiste-se muito na noo de sequela, de dano, que algum sofreu um dano em sua prpria pele, que sofreu um dano na sua mente, que sofreu um dano em suas relaes. Eu acredito que um torturado afeta o prprio torturador, mas, alm disso, que o torturado uma espcie de polo atrativo de efeitos sobre todo o seu redor, sobre seus amigos, seus descendentes, seus ascendentes, ou seja, a tortura no atinge apenas o individuo afetado, mas modifica todo o sistema de relaes ao seu redor. Isto me parece uma noo bsica: pensar o efeito sobre os arredores, isto , para pensar o torturado h que pensar em sua esposa, em seu filho, em seu amigo, em todo o seu redor, porque um dos efeitos, ao menos Kertsz define dessa maneira, e eu estou de acordo com ele, algo da ordem da condio que d origem ao ser humano, a diferenciao em relao ao rosto do semelhante, a identificao com um ambiente protetor na famlia. Isso um requisito fundamental da humanizao.

    O senhor como e eu sou como sou porque tivemos, em nossos primeiros anos de vida, um meio que nos permitiu ou que nos deu uma mo durante um, dois, cinco ou quinze anos, que nos ajudou a comear a ser o que somos, e difcil dizer se vamos ou no tomar o que herdamos em seu todo ou esquec-lo totalmente. E com base nessa herana que configuramos nossa prpria singularidade, a partir da herana simblica que recebemos de nossa cultura e

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    de nossa famlia. A tortura rompe esse calor, h nela uma ruptura bsica da confiana em seu semelhante, a qual explode em todos os vnculos. E o trabalho que o indivduo realiza, depois de um trauma extremo, depois de uma guerra, depois de um dio, as sequelas de rancor que podem permanecer nesse nvel, tudo isso opera no s durante anos, mas ao longo de dcadas e geraes. Ns podemos ver isso na segunda ou terceira gerao do holocausto judeu ou do genocdio armnio. Ns podemos ler tais marcas no afetado e em sua descendncia o que expressa a magnitude, o abalo que isso implica para a humanidade do indivduo. Eu, em vez de falar de sequelas prefiro falar de marcas, para ver que a experincia do terror, a experincia da dor sofrida pode ir no na direo do prprio dano, mas tambm na direo de uma criatividade possvel, por isso eu falo de marcas que podem ser conquistas ou que podem ser sequelas ou danos. Um filsofo e psicanalista francs que trabalhou o tema da tortura, Michel de Certeau, diz que preciso pensar muito a fundo para entender que relao pode existir entre um ato de extermnio, como o caso da tortura, da guerra, do genocdio, e uma iniciativa de representao. Que relao existe, diz Certeau, entre um ato de extermnio e um empreendimento com palavras? Eu acredito que existe um abismo terrvel, que a ideia de que se pode voltar ao trauma original e exorciz-lo mediante a confisso uma histria para criana, uma histria boba. Eu acredito que a gente nunca chega a reproduzir a experincia original do dano, mas apenas rode-la, e o que importa no trabalhar sobre o trauma em si, mas com os efeitos metafricos, os efeitos metonmicos, os efeitos elaborativos. A marca em si, a representabilidade da marca, nunca total. No existe nenhuma cmera, nem fotogrfica, nem de cinema, nem nenhum artista plstico, nem nenhum literato que possa dar conta disso. Todos os autores que trabalharam seriamente sobre esse tema concordam que h um ncleo enigmtico indecifrvel para sempre, e que ns podemos, no mximo, rondar a representabilidade do terror, a gente s pode se aproximar dele. E, ento, um terapeuta no deve procurar a confisso voyeurista do que fizeram ao paciente, a exposio do dano. Isso tambm vale para a violncia sexual, o incesto e para todas essas coisas, e, ainda, para os caminhos tortuosos do que fazer com essa experincia, com essa marca do incio, o que fazer com o resto da vida anmica, no resto do projeto profissional, por exemplo. Os sobreviventes de Auschwitz dizem que os que estiveram em Auschwitz no puderam sair de l, e os que nunca foram para l nunca podero terminar de entrar l. Ou seja, o abismo do incomunicvel ou do representvel da experincia tem seus limites. De qualquer modo, o que se projeta em cada um, ou no outro, diferente. A diferena diferente. diferente ser um espectador livre do terror e ser uma verdadeira testemunha, isto , ser um humano capaz de entrar numa relao de empatia, numa relao de proximidade, numa relao de calor humano com algum, no para ver o inferno com ele, mas para ver quais marcas dessa visita ao inferno permanecem e o que pode ser feito com isso. Por isso, s vezes, os testemunhos crus, a declarao que se v nos documentos, os processos, eles tm algo de montono, algo de inexpressivo, algo no qual o ato da declarao tem muito menos fora do que a criao literria, do que a criao plstica. Por isso Antelme dizia que para dar conta do horror preciso ter uma qualidade de poeta. Ele diz: preciso inventar uma mquina de expressar, de expressar metaforicamente, de dar-nos uma aproximao. como a experincia do amor, que tambm no pode ser traduzida apenas com palavras, existe algo do corpo sensvel, algo do corpo ertico e sensvel que est presente e que nem sempre pode ser traduzido diretamente para o universo discursivo. E h que respeitar essa tenso ou essa distncia de no poder colar a imagem, a ideia da imagem, ideia da experincia, que so duas coisas muito diferentes. Algum pode nos contar: me

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    deram choque eltrico, fizeram afogamento, e tudo isso pode produzir um testemunho montono e, s vezes, at obsceno, diferente, por exemplo, do grito, do gemido de algum que sofre, que se expressa numa de suas relaes em seus vnculos, na sua experincia consigo mesmo. Estou sendo claro? No sei se estou me fazendo entender. Arnaldo F. Jr. Sim, est. Corrija-me, por favor, se eu estiver errado: o senhor faz uma certa distino entre a descrio crua e a narrao dos efeitos... Marcelo Viar ... e a criatividade dessa narrao muito varivel de um indivduo para outro... Arnaldo F. Jr. ... eu acredito, pela sua fala, que se pode pensar que a narrao dos efeitos pode alcanar mais impacto de sensibilizao do que a descrio crua dos atos. Marcelo Viar Por isso, tambm, o sucesso dos filmes de Lanzmann5, de Shoah, que nos mostram que, sem mencionar um ato de terror, simplesmente o testemunho daqueles que sobreviveram a tudo isso, dos sobreviventes, conseguiu provocar um impacto muito comovente no espectador. Os livros do universo da conscincia provocam um impacto muito diferente de ler o dirio de um fugitivo, um material descartado por um torturador, ou, ainda, os declarantes dizendo o que fizeram a eles. H, nisso, uma distncia enorme. H um trabalho do torturado em narrar e um trabalho do interlocutor, de passar da condio de espectador condio de testemunha. Eu acredito que a condio de espectador de uma conversa diferente quando h uma testemunha interessada como o senhor est interessado, agora, no que eu digo de quando algum conta a outro, que, simplesmente, grava e registra, sem estar envolvido. Mas em todas as experincias extremas, a representabilidade uma arte quase impossvel. E, principalmente, respeitar a singularidade das narrativas. Todo esse principio que existe nas Cincias Mdicas, de recorrer a regularidades observveis e a tal porcentagem de sintomas e etc., essas coisas, em vez de provocar um efeito teraputico, provocam um efeito dessubjetivante, um efeito aniquilador daquilo que cada indivduo precisa sentir como prprio e como nico: a necessidade de se singularizar, a necessidade que todo ser humano tem, apesar de sermos seis bilhes no planeta, de ser nico como expresso de vida. E isso, nas vtimas, nos afetados por traumatismos extremos, no se anula nem se homogeneza numa categoria de vtima. Em vez disso, a dor exagera a diferena, no a anula. A dor a acentua, a enfatiza. Cada um tem seu mtodo de sofrer e seu modo de elaborar o sofrimento, e esta a ajuda que ns podemos oferecer: no anular essa singularidade com regularidades observveis o que prprio das Cincias da Natureza, no da Literatura e da Psicanlise. Falar da tortura no falar do torturado e da vtima, falar da sociedade que capaz de torturar e da sociedade que capaz de conviver com o adversrio e com o inimigo sem destru-lo. Esse um desafio para toda a humanidade. Por isso, pensar na tortura pensar na humanidade do sculo XXI, pensar por que ns temos, no mundo todo, as condies para que se produzam fenmenos de barbrie, no Iraque, na frica, nos Blcs... uma pandemia cujos efeitos, se no forem vistos como coletivos, e como efeito macro, vo continuar sendo reproduzidos. Eu acredito que somente a tomada de conscincia coletiva e de grandes massas, algo como uma geopoltica, pode barrar a reproduo desse dano da convivncia.

    5 Claude Lanzmann (1925-...), cineasta francs. Dentre sua filmografia, se destacam: Shoah (1985), O relatrio Karski (2010), O ltimo dos injustos (2013).

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    Agora, temos o fundamentalismo islmico de Bin Laden, e tudo volta, como h mil anos, a dividir o planeta em duas partes que se odeiam. Arnaldo F. Jr. Sua ltima observao introduz, acredito, o tema do esquecer ou lembrar, que um tema muito atual, hoje, no Brasil, que sofreu uma presso da Corte Internacional de Direitos Interamericanos para abrir processos de investigao de Crimes contra a Humanidade cometidos na ditadura. Pelo que eu pude ler nos jornais, aqui o processo semelhante, embora eu acredite que o Uruguai j esteja, de alguma maneira, tocando no problema de, enfim, retomar os casos de Crimes contra a Humanidade cometidos na ditadura, e instaurar processos para, ao menos, nomear os responsveis. No Brasil, h uma espcie de defesa, certos setores que defendem o esquecimento o que me parece preocupante. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco sobre esse problema que se pe entre lembrar ou esquecer crimes de ditadura ou Crimes contra a Humanidade numa experincia que passa do individual para o coletivo. Marcelo Viar Colocada como absoluta, essa dicotomia entre lembrar e esquecer um falso dilema. um falso dilema porque uma iluso ingnua e boba pensar que se pode esquecer o horror, por ordem de um decreto, que existe um mandato de esquecimento. Um helenista relata que j se tentou fazer isso. Um autor de teatro grego, no me lembro como ele se chamava, cinco sculos antes de Cristo, foi condenado priso porque fez uma representao teatral da guerra entre os oligarcas e a democracia, e o decreto dizia proibido evocar desgraas. E como ele infringiu essa proibio, essa ordem de esquecer as desgraas? Essa iluso poltica de que se pode esquecer por decreto, como se fosse possvel, uma falsidade, eu penso que uma falsidade, porque nenhum indivduo, nenhuma comunidade pode viver sem o seu passado. So necessrias trs geraes para se fazer um ser humano. O ser humano tem uma vida biolgica, desde que nasce at quando morre, porm tem uma vida psquica e social durante trs geraes. Ns nos modelamos desde nossos avs e pais at nossos filhos, e assim desde o princpio dos tempos, quer dizer que qualquer decreto, qualquer lei de anistia, de proibio de lembrar o passado, no um problema. A prescrio do esquecimento muito injusta e muito boba, porque impossvel, porque esse passado vai continuar ferindo a comunidade. O esquecimento diferente depois que se produz uma catarse coletiva, depois que se elabora coletivamente o castigo para os culpados. Essa iluso de que se pode esquecer e de que, a partir de hoje, somos outros e bola pra frente, faz, na verdade, comunicar que o horror existiu, e fazemos como a avestruz, escondendo a cabea debaixo da terra, ou seja, no comunicamos o esquecimento, mas, sim, propagamos uma banalizao do horror. como se algum dissesse ao filho de um torturado: voc tem de fingir que no aconteceu nada. Mas no possvel esquecer, Freud j disse isso h um sculo, em Totem e tabu, que nenhuma gerao consegue ocultar o acidente, nenhum ato simblico significativo. E a tortura um ato to simbolicamente significativo, que essa utopia de apaga e bola pra frente, de esqueamos o passado, e agora vamos ser todos irmos daqui pra frente, uma utopia irrealizvel, impraticvel, ao passo que se sabe que quando as geraes que ficam de luto elaboram os terrores do passado, podem, nesse mesmo ato, ir transformando a convivncia. Quanto ao efeito, a ordem do mandato a prescrio de esquecer provoca paralisia, e isso incompreensvel para a vida anmica, que s ganha vitalidade no movimento de muitas memrias contraditrias, de memrias das batalhas, dos conflitos entre os que defendiam a revoluo e os que defendiam a ordem do passado constitutivo, como est acontecendo agora, no Uruguai, trinta anos depois, como est acontecendo na Espanha, setenta anos depois da marcha

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    de morte de Franco. essa mobilidade que d uma vitalidade sociedade que est envolvida. Eu sou um militante da memria, mas penso que nem toda memria boa, por isso digo que a dicotomia entre esquecer e lembrar falsa. Esquecer no, porque impossvel. Mas o que chamamos memria? necessrio matiz-lo, existe uma memria monumentalista, existe uma memria escatolgica que detm a Histria no momento dos mrtires e do martrio e que anula tudo o que acontece depois. Eu acredito que nossa tarefa mais complexa termos que viver o presente e o futuro encarregando-nos de nossas dvidas com o passado. Como nivelar isso? As duas tarefas so simultneas, e a simultaneidade das tarefas imprescindvel: lembrar, elaborar, memorizar, guardar os lutos junto com a tarefa de assumir. O passado tambm no contm toda a nossa verdade. No podemos apag-lo, mas tambm no podemos transform-lo em um fetiche que contenha toda a verdade do presente. Ento, temos de trabalhar na contradio: de arcar com o peso desse passado, de entender os conflitos, de aprofundar, em termos sociolgicos, polticos, ideolgicos, o que foi que deu lugar a essa guerra, enquanto construmos os debates polticos do presente. Eu acredito na luta pelo futuro, uma luta para construir um espao democrtico, um espao que tolere as diferenas sem aniquilar o inimigo. Eu sei que pareo um utopista, dizendo isso, sim, eu pareo, mas estou certo de que sim, a democracia uma negociao da hostilidade, uma negociao da inimizade, e que, enquanto o conflito social estiver vivo, estiver ativo, estiver pressionado entre capital e trabalho, entre emprego e desemprego, entre ter um lugar no mundo e ser um excludo, esses dilemas, que so o presente e o futuro, vo exigir, tambm, assumir a herana, assumir os lutos e trabalhar o como isso acontece. No s para monumentalizar o passado, no s para dizer que a nica coisa que devemos fazer adorar os nossos mrtires. Eu tenho muito medo dessas memrias monumentalistas. Nossos pases, o Brasil, o Uruguai, so povos jovens. A gente tem uma histria de duzentos/trezentos anos de conquista, de barbrie, de evangelizao forada, todas essas coisas de morte, de escravido... Todas essas coisas causam algo como um no se esquecer de que somos herdeiros, e que a angstia de hoje tem essa herana. Ento, essa herana j conhecida: aqui, Artigas6, o pai de todos os uruguaios, l o Grito do Ipiranga, a fundao de uma nao. Suas barbries e suas conquistas civilizatrias exigem, tambm, um passado para construir um presente. Ento, nem todas as memrias so boas, e a memria melanclica no boa. Existe uma memria que afunda a vtima e os que esto a seu redor num luto perptuo, que probe a felicidade. Em muitas famlias, os herdeiros sofrem tanto quanto os que sofreram na pele. No fcil ser um filho ou ser um neto das transmisses intergeracionais desses danos, ser filho de um torturado, ser filho de um negro, de um escravo. A histria dos negros, nos Estados Unidos e, agora, um candidato presidncia7 mostra como possvel elaborar e transformar os conflitos sociais de segregao. H sempre o risco de o Totalitarismo voltar. Bem, tivemos o sculo XX... O que dizem que se deve esquecer, eu acredito que, na verdade, incentiva a reproduo, no sculo XXI, dos horrores do sculo XX. Temos de arcar com nossos males e nossos dios, e os levarmos como pudermos, para conseguir, no digo uma sociedade justa, mas, ao menos, o menos injusta possvel. Porque o esquecimento diferente depois que a lembrana e o luto aconteceram. E como a experincia do luto? O homem tem de sobreviver a suas perdas e a seus valores e viver o hoje e o amanh, no mesmo? Eu acredito que os atos de justia e as reivindicaes dos Direitos Humanos so uma centelha de luz no centro da Humanidade, e so uma pequena e breve fagulha de toda a vocao de exame 6 Jos Gervasio Artigas (1764-1850), militar e poltico considerado um heri nacional do Uruguai. 7 poca da entrevista, Barack Obama.

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    do que os imprios tm. Mas preciso continuar. Eu, ao menos, vivi tudo nesse caminho. Havia o caminho para o qual fazer justia no era vingana, mas, sim, reconhecer, dar valor material e simblico, condenar, sancionar as experincias. A fertilidade da verdade mais fecunda, mais rica do que o mandato de esquecimento, que como uma lpide que esquece o passado. No existe futuro sem passado. Franco Jr. A outra questo trata, mais propriamente, do exlio. No seu livro, h uma descrio da experincia do exilado como um sujeito incompleto, um sujeito que se estranha e que sofre, afastado de sua histria, afastado de seus vnculos. Eu acredito que um caso especificamente forte, no caso do exilado poltico. Mas eu gostaria de saber se o senhor v uma relao entre essa experincia do exilado poltico e a experincia das identidades chamadas minoritrias, e que sofrem preconceito ou segregao: negros, homossexuais, crianas de rua... Marcelo Viar O senhor quer um panorama pessoal ou quer saber sobre minha experincia pessoal? Franco Jr. Como o senhor quiser. Marcelo Viar O exlio, no mundo atual, afeta a centenas de milhes de pessoas e, sobretudo, o exlio econmico, que , sempre, numericamente maior. Poucos vo embora se esto bem. O exilado algum que foge, foge da perseguio poltica, e, ento, um exilado poltico, ou da pobreza material, e, ento, um exilado econmico. Diz-se que o exilado econmico vai embora com a iluso de um futuro, com a iluso de um mundo melhor, e que o exilado poltico vai embora com o peso da derrota. Esse me parece um esquema um pouco superficial. De qualquer modo, a experincia do transplante de um pas para outro, de uma lngua para outra, de uma cultura para outra ou de uma geografia para outra uma experincia muito forte, di. E, s vezes, a dor algo bom, porque enriquece, mas, s vezes, algo ruim, porque fere e provoca danos. um processo misto. Eu, que sou um exilado, j estou na velhice, com todos os anos que o senhor pode ver, acredito que o exlio enriqueceu minha vida. Arnaldo F. Jr. Minha pergunta se centra na experincia do exilado. Seu livro descreve a experincia do exilado poltico, mas, alm disso, eu gostaria de saber se possvel estabelecer relaes entre essa experincia e a experincia do marginalizado socialmente, o que vtima de preconceito, por exemplo. Marcelo Viar Eu lhe dizia que existe uma diferena entre o exilado poltico e o exilado econmico, porque um vai embora com o peso da derrota e o outro vai em busca de um mundo melhor. Nos fatos, e nos dois caminhos, toda a experincia diferente. Uma pessoa pode ir para o exlio quando criana, quando adulta, idosa, fora... Coube a mim ir na metade de minha vida. Todo exilado tem que saldar dvidas com sua cultura de origem e precisa integrar-se cultura que encontra. Muitas vezes, saldar dvida com o que se deixou para trs muito pesado, porque, quando se um exilado poltico, h toda a angstia de ter se salvado, o que todo um momento de felicidade, mas leva a pensar nos companheiros que ficaram na priso, que ficaram mortos, machucados. Ento, como se fosse a culpa do sobrevivente: eu me salvei, mas deixo para trs os que no puderam se salvar. s vezes, esse pode ser um peso muito grande. Outra possibilidade se isolar num gueto, isto , procurar reconstruir um fio, atravs

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    de atividades de solidariedade e atravs de tarefas de militncia, tudo isso como sendo uma ponte imaginria com o pas e a cultura que foram abandonados. Aqui, ainda hoje, temos a Sociedade Espanhola de Socorros Mtuos, os italianos, os britnicos. Todas as comunidades mantm algumas instituies que so smbolos das culturas de origem. No Brasil acontece a mesma coisa. Ento, h um processo de saldar dividas com a cultura de origem, e de assimilar a cultura qual se chega. Isso implica uma mudana de costumes, principalmente uma mudana de lngua, uma mudana nos cdigos de relao. Minha experincia pessoal entre o Uruguai, um pas pequeno, e a Frana, em Paris, e eu guardo muita gratido. Claro, eu fui um exilado universitrio, no um exilado operrio, pude manter minha profisso, meu ofcio. s vezes, h escrivos ou arquitetos que acabam virando eletricistas ou varredores de rua, ou seja, h uma perda do status social de reconhecimento. A gente vai construindo um lugar para si no grupo, um lugar simblico de pertencimento. A gente atravs do que produz, mas isso atravessa o reconhecimento que os demais nos do. Ento o senhor pode dizer eu sou um professor de Literatura, e isso implica que existe um grupo de pertencimento, ou seja, um grupo de lealdade. Eu acredito que ter esse mbito de lealdades e pertencimento uma condio de sade e que perder essas referncias uma ferida muito dolorosa. No entanto, o trabalho de assimilao de uma nova cultura, de uma nova lngua e de novos cdigos nos lana no abismo da incapacidade ou nos leva a um trabalho de redescoberta que nos enriquece. E muitas das experincias de transplante tambm foram experincias de enriquecimento, de descobrimento de novas perspectivas. Montesquieu dizia: eu viajo no s para descobrir novos mundos, mas para saldar dvidas com minha prpria cultura. Ento, existe um ditado popular que diz: diferente olhar o bosque,/ quando se est dentro do bosque/ que olhado l de fora. Olhar o pas, a terra querida e o grupo de pertencimento, quando se faz parte do cotidiano, diferente de quando a gente o olha com a perspectiva distanciada. O Uruguai um pas muito pequeno, um pas de vizinhana, onde muita gente se conhece, onde existe familiaridade, e isso tambm faz com que perfumes e venenos venham nos menores frascos. Desse modo, se o olharmos de longe, podemos descobrir que o mundo no termina no Aeroporto de Carrasco, e que existem outros mundos, outras sensibilidades e serem descobertas. O exlio me deu uma abertura diversidade. E isso de ser uma minoria distinta uma condio muito dolorosa, mas , tambm, uma condio muito fecunda. Todos ns deveramos viver essa experincia do exlio, inclusive dentro de nossa prpria sociedade de origem, s vezes. O poder de se centrar, provocar uma pane no que a gente , e criar uma identidade fechada e circular, a capacidade de se centrar e de se re-centrar no espao de pertencimento e lealdade, tudo isso uma condio de sade psquica. Eu escolhi voltar, a volta minha lngua materna foi muito importante. Eu no poderia lhe dizer, em francs, tudo o que eu lhe disse hoje, fluentemente, na minha lngua materna. Voltar implicou deixar um filho l, quer dizer, a volta dos exilados implica as rupturas familiares, e vice-versa. Quando a gente volta, no encontra mais o pas que deixou, mas encontra um pas que viveu durante esse imprevisto e, ento, a gente volta a ser um exilado quando retorna, quer dizer, a experincia da volta muito difcil, por um lado, e, por outro, pode ser ainda mais dolorosa, porque a gente vem acreditando que vai encontrar o que no vai encontrar nunca mais. Encontra a lngua, encontra a luminosidade, o ar, a luz... Eu fico muito feliz de ter voltado ao Uruguai, e tenho muitos amigos uruguaios que permaneceram por l, na Frana. E a saudade dura a vida toda. Na segunda gerao, muitos optam por uma unio de amor com suas origens, a metade, e existem outros que optam pela ruptura, de modo que, nisso tambm, a diversidade e a gama de reaes ante um mesmo fato de transplante so, hoje,

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    muito diferentes. H os que vo embora para nunca mais voltar, e h os que sempre voltam. E, ento, o que define o homem em seu espao um lugar na famlia, a lngua, o ar, a luz. So coisas muito elementares e muito importantes. Eu, quando estou fora, vejo desse modo, e sinto isso rapidamente no corpo, a saudade, a saudade do que foi perdido, mais ainda quando foi imposto, forado pela conjuntura poltica e econmica, porque um exlio por prpria escolha diferente de um exlio imposto pela imposio da fora. Eu tambm voltei, acho, para rebater o destino que tinha me imposto a ditadura, quer dizer, por que voc vai embora de Paris me diziam se Paris o centro do mundo? E eu respondia: eu estou indo. Mas, no fundo, nunca cheguei, eu sempre deixei um pedao da minha alma l. diferente quando quem vai embora vai porque quer se instalar de forma definitiva, e, sem dvida, existem projetos que se realizam melhor em alguns lugares. Por exemplo, para certas aptides profissionais, provavelmente as oportunidades dos grandes pases so maiores. O senhor sabe que os caminhos pelo Uruguai continuam, mesmo depois da ditadura, seguem at o Brasil, at a Argentina, at os Estados Unidos, at a Europa. Fala-se, a respeito do exlio, em foras exclusivas e em foras atrativas, mas, como psicanalista, o que eu destaco, na experincia de descentramento que o exlio proporciona, so a mudana de perspectiva e a abertura diversidade, o efeito de estranhamento, com todos os aspectos da dor. Mas , tambm, significativa a riqueza que tudo isso proporciona, o enriquecimento em ver que existem muito modos de enxergar as coisas. Pois um judeu que mora em Israel no vive seu Judasmo do mesmo modo que outro que mora num pas anti-semita ou um judeu da dispora. O problema identitrio que existe, hoje, entre os judeus da dispora e os judeus de Israel muito exemplar dessa diversidade das perspectivas humanas. Isso pode ser pensado em termos polticos e pode ser pensado em termos econmicos. Fala-se em fuga de crebros. Pode ser pensado a partir de muitos pontos de vista. O tema do exlio admite muitas perspectivas. Eu o observo do ponto de vista da subjetividade, adiciono isso ao trabalho psquico, que implica saldar dvidas com a sociedade que a gente abandonou e deixou para trs, e a assimilao dos desafios da sociedade que recebe a gente. O desafio da ordem do trabalho, lingustico, cultural, e de como fazer para manter certa coerncia consigo mesmo, nessas dvidas. E depois, vem o dilema do retorno, por exemplo, e a difcil deciso entre voltar ou ficar definitivamente no pas que nos deu asilo. Eu estive na Frana durante quinze anos, e no tive nenhuma dvida na hora de ir, porque ou era o exlio ou a priso. Ento, os militares tinham decidido por mim. Mas a escolha e o trabalho pessoal e familiar de decidir se vamos seguir cultivando o lugar que conquistamos o lugar no trabalho, por exemplo, tudo isso a gente vai conquistando com os anos de trabalho um comear de novo, na metade da vida. E a volta, o desexlio, , tambm, um trabalho muito mais pesado do que a gente imagina. H um reencontro com o ambiente familiar, mas h muitos desencontros, porque o pas que a gente encontra no o pas que a gente deixou. A ditadura alterou os cdigos de vida, e dez anos mudam os perfis de um pas. Quando a gente est dentro dele no percebe as mudanas. Eu vou Frana o ms que vem e tenho certeza de que a Frana que eu vou encontrar no a mesma Frana que eu deixei. Ento, tudo isso que a gente assimila no dia-a-dia como um rosto. A gente envelhece, mas, como se olha no espelho todos os dias, se acostuma. De repense, a gente se encontra, na esquina, com um amigo que no via h anos e pensa: mas como ele est velho, como est mudado. s vezes, isso depende da gradao das mudanas e de como o lugar em que a gente est certos gestos, reaes, cdigos, que so impostos pelo lugar onde a gente vive, pela terra querida vai nos modelando. Ento, uma experincia de descentramento. E existe uma patologia do transplante. Existem pessoas que so feridas pelo exlio,

  • Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014 155

    que as marca, lhes provoca danos. As taxas de suicdio e de doenas so mais altas entre os exilados. Bem, o senhor falava da experincia xenfoba, da experincia de averso ao estrangeiro, da experincia de pertencer a uma minoria diferente, das dificuldades de ser diferente, seja pela maneira como fala, seja pela cor da pele ou pela forma do cabelo. Como cada um conduz seus estigmas, se o conduz com vergonha, com afronta ou com dignidade, isso um trabalho muito difcil. s vezes, os capitalistas preferem contratar os operrios exilados, porque eles esto to desesperados para conquistar um lugar, que so muito mais eficientes do que aqueles que esto instalados confortavelmente em seu lugar e tm reivindicaes. Como eu disse, uma experincia. Hoje eu j estou nas ltimas etapas da minha vida, mas eu tenho que agradecer por ter vivido essa experincia, essa vida. Eu vejo a experincia do exlio e do retorno como uma experincia de solidariedade e de xenofobia. Em muitos casos, a solidariedade foi maior do que a xenofobia, mas pode acontecer o inverso, em questes de trabalho, por exemplo. E, ainda, ser diferente por ser um estrangeiro , muitas vezes, uma vantagem, uma distino. sempre um balano acerca de como age quem est procurando e como recebido. As leis de hospitalidade so muito tnues, muito complexas. Eu no sei como os japoneses so tratados em So Jos do Rio Preto... Arnaldo F. Jr. So bem tratados, porque se integraram comunidade. Eles se integraram. Mas, por sua fala, eu entendi que existe o risco de que no se aceite bem... Marcelo Viar Bem, em todo caso, o Brasil sempre um exemplo da assimilao da diversidade, de povos novos que aceitam origens muito diversas. E a xenofobia aos descendentes de escravos, por exemplo, foi menos intensa na Amrica Latina. Na Europa, que os povos no so jovens, o estrangeiro se torna uma marca mais ntida. Aqui, somos todos estrangeiros. Somos... Quantos somos? Duas geraes, trs, quatro, cinco geraes, na Amrica? O genocdio indgena nos fez ocupar terras. A civilizao evangelizadora nos suprimiu a metade da populao autctone, e, agora, o ndio o estrangeiro. E, agora, temos a rebelio dos povos indgenas e o exlio da cultura. O que est acontecendo na Bolvia, com a volta do Aimar e do Quchua, o problema da diversidade cultural num planeta globalizado. Mas a globalizao cultural um tema apaixonante, isso dos critrios da tolerncia ou da intolerncia. Mas existem tribos de negros, de muulmanos, que, na Frana, faziam a exciso dos grandes lbios em todas as meninas. O movimento feminista francs, ento, alegou que as leis francesas importavam mais que a tradio milenar, e foi aprovada uma lei. Hoje, o uso dos turbantes e da niqab, de todas essas coisas, livre. Ou seja, so os problemas da convivncia e da diversidade. Mas, por outro lado, a riqueza do cosmopolitismo enorme. Eu sinto saudades do cosmopolitismo europeu, de encontrar diversas culturas. Eu comemorei meus cinquenta anos no exlio parisiense com um colega judeu egpcio. E foi uma festa para a qual ele convidou seus amigos do Oriente Mdio, libaneses, srios, egpcios, africanos. Eu levei colombianos, mexicanos, chilenos, brasileiros, e havia, tambm, franceses como minorias. E como presente, cada um levava um prato e uma bebida que representavam seu pas. Foi uma festa muito bonita, e foi o encontro das diversidades. Tomara que tudo isso acabe em festa, e no em guerra! Eu termino assim, com um gracejo e uma festa de aniversario, porque, em geral, as minorias desencadeiam a xenofobia e o dio ao diferente, o que leva intolerncia e guerra. E isso , sempre, um perigo. um perigo em relao ao qual preciso estar alerta de verdade, todos os dias, em seus menores sinais, porque quando ele cresce, como o cncer, requer um

  • Olho dgua, So Jos do Rio Preto, 6(1): 1-169, Jan.Jul./2014 156

    diagnstico precoce para ser curado. Se o diagnstico for tardio, ele se torna incurvel. Arnaldo F. Jr. Obrigado. VIAR, M.; FRANCO Jr., A. Speaking of torture is not to mention the tortured and the victim, is speaking about the society that is capable of torturing An interview with psychoanalyst Marcelo Viar. Olho dgua, So Jos do Rio Preto, v. 6, n. 1, p. 142-156, 2014.