Família e vida doméstica no Brasil - Eni de Mesquita Samara

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ESTUDOS

CEDHAL

nova srie - n. 10

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho aos cafezais

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JLO F A C U L D A D E D E F I L O S O F I A , L E T R A S E CINCIAS HUMANAS

ISSNUSP U N I V E R S I D A D E DE SO PAULO Jacques Marcovitch Adolpho Jos Melfi

1414-9419

Reitor. Vice-Reitor:

FFLCH F A C U L D A D E DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS H U M A N A S Diretor: Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Renato da Silva Queiroz C E D H A L CENTRO DE ESTUDOS DE DEMOGRAFIA HISTRICA DA AMRICA LATINA Eni de Mesquita Samara

ESTUDOS

CEDHAL

Diretara:

nova srie - n. 10

Conselho Diretor: Baris Fausto (Depto. de Cincia Poltica) Fernando Augusto A. Maura (Depto. de Sociologia) Jos Francisco Quirino dos Santas (Depto. de Antropologia) Leonel Itaussu de A. Mello (Depto. de Cincia Poltica) Margarida Maria de Andrade (Depto. de Geografia) Maria de Ftima R. das Neves (representante discente) Maria Luiza Tucci Carneira (Depto. de Histria) Marx Lucy Murray dei Priare (Depto. de Histria) Orlando P. de Miranda (Depto. de Sociologia) Rosa Ester Rossini (Depta. de Geografia) Vilma Laurentino Paes (representante tcnico) Werner Almann (Depto. de Histria) ESTUDOS C E D H A L - NOVA SRIE - n. 10 Organizao geral da calea: Eni de Mesquita Samara

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho aos cafezais

Endereos p a r aCOMISSO E D I T O R I A L

correspondnciaC O M P R A S K/OU ASSINATURAS HUMANITAS LIVRARIA - FFLCH/USP

C E D H A L - FFLCH/USP Av. Prof. Lineu Prestes, 338 Cid. Universitria 05508-900 - So Paulo - SP - Brasil Tel: (00-55-11) 818-3745 Fax: (00-55-11) 815-5273

Rua do Lago, 717 - Cid. Universitria 05508-900 - So Paulo - SP - Brasil Telefax: (011) 818-4589 e-mail: pubflch@edu. usp.br http://www.fflch.usp.brSERVIO DE DIVULGAO E INFORMAO

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Estudos CEDHAL n . 10 nova srie p. 1-54 1999Humanitas Publicaes agosto/1999

FFLCH

Copyright

1999 da Humanitas FFLCH/USP

proibida a reproduo parcial o u integral, sem autorizao prvia dos detentores do copyright Servio de Biblioteca e Documentao da FFLCH/USP Ficha catalogrfica: Mrcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608 Estudos Cedhal / Centro de Estudos de Demografia Histrica da Amrica Latina. Faculdade de Filosofia. Letras e Cincias Humanas. Universidade de So Paulo. - - n . 1 (1986) - . - So Paulo: Humanitas / FFLCH/USP. 1 9 8 6 Nova Srie a partir do n . 10 (1999) ISSN 1414-9419 1. Demografia histrica I. Universidade de So Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Centro de Estudos de Demografia Histrica da Amrica Latina CDD 304.6 2. A v i d a f a m i l i a r n a s plantaes de c a n a

SUMRIO

1. Introduo

3. A famlia n a e c o n o m i a m i n e r a d o r a d o sculo X V I I I

4. A e c o n o m i a cafeeira e a famlia p a u l i s t a n o sculo X I X

HUMANITAS PUBLICAES

FFLCH/USP

e-mail: [email protected] Tel.: 818-4593Editor Responsvel Nascimento

Bibliografia

Prof. D r . M i l t o n M e i r a d o Coordenao

editorial

M . Helena G. Rodrigues Diagramao M . Helena G. Rodrigues Capa Walquir da Silva

Emendas Selma M . C o n s o l i Jacintho Reviso Jandira A l b u q u e r q u e de Q u e i r o z

Estudos

CEDHAL

- n. 10- nova srie - 1999

FAMLIA E VIDA DOMSTICA NO BRASIL: DO ENGENHO AOS CAFEZAIS*

Eni de Mesquita

Samara

1.

INTRODUO

o B r a s i l , desde o incio d a colonizao, a famlia desempen h o u u m papel f u n d a m e n t a l , sendo possvel entender m e l h o r a n o s sa histria p o r meio desse rico vis. Sendo a s s i m , nossa i n t e n o neste t r a b a l h o a n a l i s a r as transformaes que o c o r r e r a m n a sociedade b r a s i l e i r a e tambm n a e s t r u t u r a d a famlia, e m difer e n t e s sistemas econmicos, ao longo dos q u a t r o sculos d a H i s tria do B r a s i l . N a p r i m e i r a p a r t e , v a m o s focalizar as reas de l a v o u r a c a n a v i e i r a do Nordeste, d u r a n t e os sculos X V I e X V I I . C o m p u n h a m esse cenrio as famlias dos donos de engenhos, dos p l a n t a d o r e s , dos agregados e dos escravos que, c o n j u n t a m e n t e , f o r m a v a m a sociedade d a poca. Nesse u n i v e r s o , foi possvel detectar diferentes p a dres f a m i l i a r e s q u e c o n v i v e r a m c o m o modelo p a t r i a r c a l de faml i a extensa. C o m o sculo X V I I I , a minerao e a mudana do eixo econm i c o p a r a o S u l do pas t r o u x e r a m novas realidades p a r a a v i d aEste artigo c o n t o u c o m a colaborao de E l i a n e C r i s t i n a Lopes e dos bolsistas C N P q : Janaina C a r n e i r o , Sandra Pinho Leite, C a r o l i n a M o r e i r a do Vale, Fbio Borges de A q u i n o , I g o r M a c h a d o de L i m a e Regiane A u g u s t o . Professora A s s o c i a d a d o D e p a r t a m e n t o de Histria, da Faculdade de F i l o s o f i a , Letras e Cincias H u m a n a s da U n i v e r s i d a d e de So Paulo e D i r e t o r a d o Centro de Estudos de D e m o g r a f i a Histrica da Amrica L a t i n a da U n i v e r s i d a d e de So Paulo, C E D H A L / U S P . Renato

SAMARA.

ni de Mesqu/ta.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos cafezais. i'

Estudos CEDHAL

-n.

10- nova srie - 1999

s o c i a l e f a m i l i a r b r a s i l e i r a . C o m a urbanizao, s u r g i u u m o u t r o tipo de famlia, c o m u m carter m a i s regional e democrtico: a famlia m i n e i r a . Nessas paragens, era c o m u m e n c o n t r a r m o s predominncia de famlias nucleares, casais c o n c u b i n a d o s e f i l h o s ilegt i m o s . E r a alto, tambm, o ndice de s o l t e i r i s m o e o nmero de m u l h e r e s chefiando famlias. Esse p a n o r a m a , de a l g u m m o d o , tambm se r e p e t i u n a sociedade p a u l i s t a , d u r a n t e o sculo X I X , especialmente n a s reas u r b a n a s . Ao lado disso, e n c o n t r a m o s , n a s zonas r u r a i s cafeicultoras, u m modelo de famlia p a t r i a r c a l do t i p o extenso, que, e m b o r a m o d i ficado, e r a b a s t a n t e s e m e l h a n t e ao d a elite c o l o n i a l canavieira. conclusivo, p o r t a n t o , dizer que a famlia b r a s i l e i r a apresent o u diferentes padres q u a n t o e s t r u t u r a e f u n c i o n a m e n t o ao l o n go d o t e m p o , c o m diferenas m a r c a n t e s p o r regies, classes sociais e etnias. Isso significa q u e o m o d e l o genrico de e s t r u t u r a f a m i l i a r , d e n o m i n a d o c o m u m e n t e de " p a t r i a r c a l " e q u e s e r v i u de base p a r a caracterizar a famlia b r a s i l e i r a de m o d o geral, no pode ser c o n s i derado, a p r i o r i , como o nico existente n a nossa sociedade. Por o u t r o lado, estudos e pesquisas m a i s recentes tm t o r n a d o evidente q u e as famlias extensas d o t i p o p a t r i a r c a l no f o r a m as p r e d o m i n a n t e s , sendo m a i s c o m u n s aquelas c o m e s t r u t u r a s m a i s s i m p l i f i c a d a s e m e n o r nmero de i n t e g r a n t e s . Isso significa q u e a famlia a pre s e n t a d a p o r G i l b e r t o Freyre, e m Cosa-grande e senzala, e d e s c r i t a como caracterstica d a s reas de l a v o u r a c a n a v i e i r a do Nordeste, foi i m p r o p r i a m e n t e u t i l i z a d a p a r a i d e n t i f i c a r a famlia b r a s i l e i r a como u m todo. Essa apropriao de u m conceito r e g i o n a l p e l a h i s t o r i o g r a f i a levou a q u e se fizesse u m a ligao pouco p e r t i n e n t e e n t r e famlia p a t r i a r c a l e famlia extensa, que p a s s o u a ser sinnimo de famlia brasileira. C o m base nessa constatao, e e n t e n d e n d o ser m a i s especfico p a r a o caso do B r a s i l t r a b a l h a r a questo n a p e rs p e c t iv a d a p l u r a l i d a d e de modelos familiares, q u e p r e t e n d e m o s a n a l i s a r os diferentes tipos de padres existentes, b u s c a n d o s e m p re resgatlos a p a r t i r das transformaes econmicas q u e e s t a v a m o c o r r e n d o do sculo X V I ao X I X . 8

2. A VIDA

FAMILIAR

NAS

PLANTAES

DE

CANA

A descoberta do Novo M u n d o insere-se n o processo d a e x p a n so c o m e r c i a l e d a l u t a pela h e g e m o n i a e n t r e as grandes potncias d a E u r o p a , d u r a n t e os sculos X V e X V I . Dessa f o r m a , as Amricas d e v e r i a m se o r gani zar e f u n c i o n a r e c o n o m i c a m e n t e , vo l tando -se p a r a as necessidades dos mercados europeus. E r a preciso que se p r o d u z i s s e m m e r c a d o r i a s de alto v a l o r c o m e r c i a l p a r a exportar. A s s i m , n o B r a s i l , i m p l a n t o u - s e a grande l a v o u r a , p r i n c i p a l eixo d a colonizao, destacando-se, i n i c i a l m e n t e , n a regio Nordeste, o acar. A introduo desse p r o d u t o , n a Colnia, explica-se pela experincia a n t e r i o r n a s A n t i l h a s e n a I l h a d a M a d e i r a , a l i a d a ao fato dos po r tugueses t e r e m e n c o n t r a d o a q u i as condies propcias p a r a o seu c u l t i v o . Atravs d a s sesmarias , os donatrios i n s t a l a v a m engenhos construdos c o m a a j u d a de seus parentes prximos. Vale dizer q u e a Coroa P o r t u g u e s a concedia esses d o c u m e n t o s a pessoas ligadas nobreza, o u c o m posses suficientes p a r a levar a d i a n t e o oneroso projeto d a colonizao. Dessa f o r m a , os po r tugueses q u e a q u i se i n s t a l a r a m a s p i r a v a m p o r ttulos de nobreza e reconhecimento d a Coroa n a legitimao do s e u status social. Nesse sentido, a l g u n s t o r n a r a m - s e abastados senhores de engenho, donos de extensas regies e formadores de famlias t r a d i c i o n a i s . A s grandes propriedades de t e r r a e r a m conhecidas c o m o fazendas o u roas, onde, alm do c u l t i v o de cana, h a v i a a criao de gado e a a g r i c u l t u r a de exportao, de p r o d u t o s como gengibre e algodo. Nessas reas de produo canavieira, as construes d i s tribuam-se e m trs edifcios: a casa-grande, o engenho e a senzala e, f r e q u e n t e m e n t e , a capela. S u r g i n d o ao l a d o dos canaviais, a casa-grande, m a i o r expresso do latifndio m o n o c u l t o r e escravista, constitua-se n u m a vas1 2

S C H W A R T Z , Stuart. Segredos

internos:

engenhos e escravos na sociedade c o l o n i a l . So Paulo:

C o m p a n h i a das Letras, 1988. p. 3 1 . A s sesmarias e r a m documentos de carter medieval que encerravam a posse da terra recm-conquistada.

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SAMARA,

ni de Mesquita.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos cafezais.

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t a e slida manso trrea o u n u m sobrado de estilo sbrio e i m ponente. D i s p o n d o de beirais largos que faziam s o m b r a sobre s u a s paredes de adobe e tijolo o u de pedra, c o m espessuras q u e v a r i a v a m de 5 0 c m a l m , e r a a p r o p r i a d a ao c l i m a . Alm disso, possua v a r a n d a s que p r o t e g i a m c o n t r a a ao d i r e t a d a l u z e do sol. A z u l e j o s r e v e s t i a m o i n t e r i o r , como o vestbulo e o saguo, e os espaos vazios das fachadas, destinavam-se a defender a casa c o n t r a os ardores do c l i m a .3

desde g r a n d e s proprietrios, b a s t a n t e prximos dos d e t e n t o r e s dos engenhos, at roceiros e artesos, q u e se a v e n t u r a v a m n o s negcios do acar. E m s u a m a i o r i a , n o incio do sculo X I X , c m P e r n a m b u c o , e r a m b r a s i l e i r o s de o r i g e m b r a n c a , pouco mesclados c o m m u l a t o s . E n t r e 1680 e 1725, de 4 0 0 pessoas i d e n t i f i c a das como lavradores, apenas u m foi arrolado como par do , n o e n t a n t o , j n o f i n a l do sculo X V I I I , e m censos p a r c i a i s de p o p u l a o, s u r g e m menes a lavradores negros.4

O engenho e r a a poro q u e apresentava m a i o r e s propores, pois abrigava todos os i n s t r u m e n t o s necessrios produo do acar. M u i t a s vezes, era r e p a r t i d o e m vrios edifcios, o r a isolados o r a contnuos. A s s i m , existia a casa d a m o e n d a , a casa d a s f o r n a l h a s , a casa dos cobres, o t e n d a l das foras, a casa de p u r g a r e os galpes e reas anexas. A senzala, p o r s u a vez, e r a u m a construo trrea que servia de m o r a d i a p a r a os escravos. E s t r e i t a s e longas, no e r a m assoalhadas, sendo m u i t a s vezes d i v i d i d a s e m cubculos cobertos p o r telhas o u folhagens. O l h a n d o - s e p a r a a constituio e o f u n c i o n a m e n t o dessa e m p r e s a aucareira, podemos verificar a existncia de d u a s p a r t e s d i s t i n t a s : a d a p l a n t a g e m d a c a n a e a de s e u b e n e f i c i a m e n t o , o n d e era t r a n s f o r m a d a e m acar. E m o u t r a s colnias p o r t u g u e s a s , a separao e n t r e a plantao e a produo no existia. No B r a s i l , essa distino no aparecia n o sculo X V I I , porm u m a diviso p r o cessou-se ao longo d a evoluo d a e m p r e s a agrcola aucareira, t o r n a n d o possvel u m a especializao de funes. A s s i m , h o u v e o a p a r e c i m e n t o de u m a p a r c e l a s i g n i f i c a t i v a de indivduos q u e se d e d i c a v a m ao p l a n t i o e c o l h e i t a d a c a n a , c h a m a d o s de lavradores. Ser l a v r a d o r de c a n a e r a u m c a m i n h o p a r a a ascenso social, o que levava m u i t o s colonos a a d q u i r i r e m o u a r r e n d a r e m t e r r a s , objetivando o p l a n t i o d a cana-de-acar. Os l a vradores no constituam u m g r u p o social q u e concorresse c o m os senhores de engenho, e r a m u m a g a m a v a r i a d a de indivduos p r o venientes de diferentes condies econmicas e sociais, i n c l u i n d o

E n t e n d e r o s u r g i m e n t o e a organizao dessa c a m a d a d a populao, alm de ser i m p o r t a n t e p a r a o e s t u d o d a economia d o acar, revela q u e a polarizao d a sociedade c o l o n i a l e m d u a s categorias f u n d a m e n t a i s - senhores e escravos -, n a verdade, escondia u m a g a m a v a r i a d a de indivduos que f o r m a v a m g r u p o s intermedirios, i m p o r t a n t e s p a r a e n t e n d e r m o s a complexidade social do Nordeste aucareiro.5

A h i e r a r q u i a social d a Colnia, p o r s u a vez, e s t r u t u r a v a - s e de acordo c o m as posses: e m p r i m e i r o l u g a r , v i n h a m os senhores de engenho, donos do p r i n c i p a l meio de produo; e m seguida, aparec i a m aqueles ligados s atividades de a g r i c u l t u r a e gneros de exportao e, p o r ltimo, os camponeses que p r a t i c a v a m u m a a g r i c u l t u r a de subsistncia. E n c o n t r a m o s , a i n d a , a l g u n s t r a b a l h a d o r e s autnomos, q u e se l i g a v a m a essa e c o n o m i a agrcola c o m e r c i a l , como b a r q u e i r o s , mercadores, artesos, e n t r e o u t r o s . Essa h i e r a r q u i a , p o r s u a vez, explica o processo de formao de famlias nessa rea e o t i p o de t r a b a l h o q u e era executado n o s d i s t i n t o s setores. E m relao produo do acar, teoricamente, e r a o senho r de engenho q u e c u i d a v a desde o p l a n t i o d a c a n a at a s u a t r a n s f o r mao e m melao e "acar e m b a r r a " (rapadura), s u p e r v i s i o n a n d o t od o o processo. N a prtica, e n t r e t a n t o , era substitudo pelo feitorm o r , devido especializao q u e este possua q u a n t o ao p l a n t i o e fabricao do acar. Fazer o engenho f u n c i o n a r , o u seja, " b o t a r o engenho p a r a m o e r " e r a u m r i t u a l m u i t o interessante: a casa-grande "enfeitavase p a r a os co nvi dado s a q u e m cabia, aps o padre, lanar, ao lento

1

A Z E V E D O , Fernando. Canaviais Completas, v o l . X I ) .

e engenhos

na vida poltica

do Brasil.

E n s a i o sociolgico sobre o4

elemento poltico na civilizao do acar. 2.ed. So Paulo: M e l h o r a m e n t o s , 1958. p. 80. (Obras

F E R L I N I , Vera Lcia A m a r a l . Terra, trabalho I d e m , p. 2 0 9 .

e poder.

So Paulo: Brasiliense, 1988. p. 2 2 1 .

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SAMARA,

Eni de

Mesquita.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos cafezais.

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desenrolar das m o e n d a s polidas, as p r i m e i r a s canas... E s c o r r i a o p r i m e i r o caldo q u e seria, d e n t r o e m pouco, o ferver d a p r i m e i r a m e l a d u r a ; e n q u a n t o o capelo, seguindo o c r u c i f i x o q u e levava o filho m a i s velho do s e n h o r do engenho, i a aspergindo gua b e n t a e l a t i m , n a bno dos picadeiros, atestados de 'caiena', 'salang' e 'roxa'; d a casa de bagao vazia e v a r r i d a ; do t e n d a l o u d a casa de p u r g a r . . . B en z i a cochos de cachaa; tachas; f o r n a l h a s ; a mquina que arfava e b u f a v a e m r e s p i r o s cadenciados e t u d o m o v i a , parecendo u m cavalo a galope; caldeiras e b u e i r o s . Be nz ia t u d o " . Os escravos, p o r s u a vez, recusavam-se a comear a t r a b a l h a r se no ocorresse t a l cerimnia. H a v i a b a n q u e t e n a casa-grande e esses b e b i a m g a r a p a antes de i r e m p a r a a longa j o r n a d a diria d a l a v o u r a e do engenho.6

O c a s a m e n t o f o i o u t r o r e c u r s o u t i l i z a d o pelo E s t a d o p o r tugus n o s e n t i d o de i n t e g r a r os indgenas s atividades dos e n genhos. E r a m , p o r t a n t o , p e r m i t i d a s as unies entre ndios livres, cativos e africanos, fossem o u no s a c r a m e n t a d a s . E r a u m a f o r m a de " m o r a l i z a r " a v i d a n o s plantis, a m p l i a n d o a d i s p o n i b i l i d a d e de mo-de-obra. A s s i m , as prticas m a t r i m o n i a i s indgenas f o r a m p r e o c u p a o d a Igreja d u r a n t e m u i t o tempo. Todo o esforo missionrio c o n c e n t r o u - s e e m e l i m i n a r "as unies poligmicas a f i m de transformlas e m unies monogmicas, u m a vez que s essas p o d i a m servir de base ao s a c r a m e n t o do matrimnio" . Nesse sentido, no f o r a m r a r a s as vezes e m que o casamento entre tios e s o b r i n h a s , p r o i b i d o pelas Leis Cannicas, e r a defendido pelos prprios jesutas, q u a n d o conveniente p a r a i m p l a n t a r a m o n o g a m i a entre os ndios.9

O d i a - a - d i a nessas propriedades no era, e n t r e t a n t o , to h a r mnico e regrado. M u i t o s empeclios os s e n h o r e s t i v e r a m p a r a comear a c u l t i v a r c a n a e p r o d u z i r acar. E n t r e as m u i t a s d i f i c u l dades enfrentadas, p r i n c i p a l m e n t e pelos p r i m e i r o s colonizadores, podemos destacar a carncia de mo-de-obra. D i a n t e disso, os n a t i vos d a t e r r a f o r a m u t i l i z a d o s , i n i c i a l m e n t e , n a manuteno do e n genho. No houve, e n t r e t a n t o , a interao esperada pelos p o r t u gueses p o r p a r t e dos indgenas, o q u e le v ou s u b s e q u e n t e s u b s t i tuio do brao ndio pelo negro escravo.7

No podemos deixar de mencionar, tambm, al gumas peculiaridades d a sociedade indgena e m relao ao convvio familiar. Ass i m , u m a de suas caractersticas m a r c a n t e s era o forte sentido de coletividade, presente at mesmo nos m o m e n t o s d a escravizao. E r a frequente, p o r t a n t o , famlias indgenas inteiras deslocarem-se, de acordo c o m as necessidades, p a r a que permanecessem j u n t a s n o engenho. Desse m o d o , o chefe d a famlia, u m a vez escravizado, acarretava a escravido de s u a esposa, filhos, irmos e o u t r o s parentes. Nessa sociedade, o t r a b a l h o das m u l h e r e s indgenas tambm foi b a s t a n t e i m p o r t a n t e , u m a vez que, n a diviso de papis entre os sexos, as atividades p r o d u t i v a s , como a l a v o u r a , e r a m de s u a responsabilidade. Alm desse, o u t r o fator que podemos destacar e m relao s ndias a s u a participao n o processo de miscigenao e de formao d o povo b r a s i l e i r o , sendo, n o incio d a colonizao, m u i t o com u m a s u a unio c o m b r a n c o s e, posteriormente, c o m negros. Nesse s e n t i d o , a m u l h e r g e n t i a , p a r a Freyre, c o n s i d e r a d a a base fsica d a famlia b r a s i l e i r a .10 11

Q u a n t o a isso, sabemos que, p a r a o b t e r u m m e l h o r a p r o v e i t a m e n t o e conseguir u m a participao m a i s efetiva e l u c r a t i v a do indgena n a e c o n o m i a c o l o n i a l , seja c o m o f o r n e c e d o r de a l i m e n t o s , seja como t r a b a l h a d o r n o s engenhos, os p o r t u g u e s e s r e c o r r e r a m a trs expedientes: a escravizao, a aculturao e destribalizao e a integrao desses indivduos como t r a b a l h a d o r e s assalariados. i m p o r t a n t e ressaltar, e n t r e t a n t o , q u e essas estratgias no f o r a m u t i l i z a d a s de f o r m a i s o l a d a e e m t e m p o s d i s t i n t o s . F o r a m aplicadas, s i m , c o n c o m i t a n t e m e n t e , de m o d o a t i r a r m a i o r e s benefcios d a mo-de-obra indgena.8

6

A Z E V E D O , Fernando, op. cit. p. 69-70. Sobre o assunto ver: M O N T E I R O , S C H W A R T Z , S t u a r t . Segredos p.45. J . Os negros da terra: ndios e bandeirantes nas origens. So Paulo: C o m p a n h i a das Letras, 1995.

*

S I L V A , M a r i a B e a t r i z N i z z a da. Sistema de casamento Edusp,1984.p.31. F R E Y R E , G i l b e r t o . Casa-grande I d e m , p. 9 4 .

no Brasil

colonial.

So Paulo: T. A . Queiroz/

7

10

e senzala. Formao da famlia brasileira sob o regime da economia

8

internos:

engenhos e escravos n a s o c i e d a d e c o l o n i a l , o p . c i t .11

patriarcal. 2 5 . ed. R i o de Janeiro: Jos O l y m p i o , 1987. p. 116.

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SAMARA,

fni

de

Mesquita.

Estudos CEDHAL

- n. 10 - nova srie - 1999

E, se esse u m aspecto b a s t a n t e i m p o r t a n t e a ser consider a d o n a formao d a n o s s a sociedade, a introduo d a mo-deo b r a escrava tambm foi f u n d a m e n t a l , d e t e r m i n a n d o a n a t u r e z a das relaes a l i estabelecidas e, sem dvida, i n f l u e n c i a n d o a v i d a familiar. N a verdade, esse c o n j u n t o de fatores p r o v o c o u a instalao de u m a sociedade do t i p o p a t e r n a l i s t a , onde as ligaes de carter pessoal a s s u m i r a m v i t a l importncia. A famlia p a t r i a r c a l era a base desse s i s t e m a m a i s a m p l o e, p o r s u a s caractersticas q u a n t o composio e ao r e l a c i o n a m e n t o e n t r e seus m e m b r o s , e s t i m u l a v a a dependncia d a a u t o r i d a d e p a t e r n a e a s o l i d a r i e d a d e entre os p a r e n t e s . E no apenas as relaes f a m i l i a r e s dos g r a n des proprietrios r u r a i s f o r a m i n f l u e n c i a d a s p o r isso, m a s t a m bm, as famlias de seus agregados e escravos.12

das e d i a m a n t e s . Os h o m e n s no h a v i a adereos custosos de esp a d a s e adagas, n e m v e s t i d o s de n o v a s invenes c o m q u e se no o r n a s s e m . " P r o c u r a v a m , desta m a n e i r a , d e m o n s t r a r seu pod e r i o e u m a " s u p o s t a s u p e r i o r i d a d e " d i a n t e de o u t r a s p a r c e l a s d a populao d a Colnia.14

Os estratos inferiores a g r up a v a m -s e e m t o r n o dos senhores r u r a i s , pois a s s i m p o d e r i a m viver c o m segurana e t r a n q u i l i d a d e u m a vez q u e a riqueza, o poder, o prestgio e a s u a fora m a t e r i a l os protegia c o n t r a a r b i t r a r i e d a d e s e injustias. F o r m a v a m - s e , a s s i m , os c h a m a d o s cls r u r a i s , c o m indivduos ligados d i r e t a m e n t e a t i vidade canavieira, pequenos proprietrios, vendeiros, c o m e r c i a n tes das aldeias, mestres de ofcios, e o u t r o s q u e b u s c a v a m a m p a r o j u n t o aos senhores de e n g e n h o .13

C r i t i c a n d o essa s u n t u o s i d a d e d a a r i s t o c r a c i a r u r a l b r a s i l e i r a , G i l b e r t o Freyre diz q u e e r a m h a b i t u a i s "grandes comezainas p o r ocasio d a s festas; m a s n o s dias c o m u n s , alimentao deficient e m e n t e , m u i t o lorde falso passando at fome. T a l era a situao de g r a n d e p a r t e d a a r i s t o c r a c i a e p r i n c i p a l m e n t e d a b u r g u e s i a c o l o n i a l b r a s i l e i r a e q u e se p r o l o n g o u pelo t e m p o do Imprio e d a Repblica. O m e s m o velho hbito dos avs portugueses, s vezes guenzos de fome, m a s sempre de r o u p a de seda o u v e l u d o , dois, trs, oito escravos atrs, c a r r e g a n d o - l h e s escova, chapu-de-sol e pente" .15

E m c o n t r a p a r t i d a a essa s u n t u o s i d a d e das v e s t i m e n t a s e adereos, os senhores no possuam m u i t o conforto domstico. O m o bilirio e r a r e d u z i d o , sendo os mveis de f o r m a s r e t a n g u l a r e s e r o b u s t a s . Os m a i s i m p o r t a n t e s m o t i v o s decorativos no e r a m q u a dros, rarssimos nesse perodo, m a s s i m almofadas, tapetes de ls e tecidos de seda. Alm do m a i s , a sociedade colonial, e m s u a m a i o r i a , e r a m u i t o m a l a l i m e n t a d a , u m a vez que " t u d o faltava: carne fresca de b o i , aves, leite, legumes, f r u t a s (...). F a r t u r a s a de doce, gelias e pastis ..." . O po foi novidade i n t r o d u z i d a d u r a n t e o sculo X I X . O cardpio h a b i t u a l dos t e m p o s coloniais era " b e i j u de t a p i o c a ao a l moo, e ao j a n t a r a farofa, o piro escaldado o u a m a s s a de f a r i n h a de m a n d i o c a feita n o caldo de peixe e de carne" .16 17

No topo dessa h i e r a r q u i a social, os senhores de engenho p r o j e t a v a m u m a i m a g e m de nobreza e ostentao, s u s t e n t a d a p r i n c i p a l m e n t e pelo c o n t r o l e latifundirio e pela posse de escravos. Dessa f o r m a , d i t a v a m os padres sociais n a Colnia e p r o c u r a v a m v i ver como fidalgos d a corte p o r t u g u e s a , u s a n d o vesturio l u x u o s o e adornos, c o m os q u a i s at m e s m o as escravas se e nf e it a v a m . Sobre este a s s u n t o F r e i M a n o e l Callado, observando a v i d a n a a l t a c a m a d a d a sociedade b r a s i l e i r a , escreveu: "as d a m a s so to ricas n a s vestes e n o s adereos, c o m q u e se a d o r n a m , q u e parecem 'chovidas e m s ua s cabeas e gargantas as prolas, r u b i s , e s m e r a l -

I d e m , p. 2 4 .12

S A M A R A , E n i de M e s q u i t a , k famlia Histria, 7 l ) . p . 10. V I A N N A , O l i v e i r a . Populaes

brasileira.

So Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleo T u d o histria, organizao, psicologia. B e l o H o r i -

F R E Y R E , G i l b e r t o . Casa-grande e c o n o m i a patriarcal, o p . cit. p. 4 4 1 . I d e m , p. 39. I d e m , p. 459.

e senzala.

Formao d a famlia b r a s i l e i r a sob o r e g i m e da

"

meridionais

do Brasil:

zonte/Niteri: Itatiaia/EDUFF, 1987.

14

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SAMARA,

Fni de

Mesquita.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos

cafezais.

Estudos CEDHAL

-n.W-

nova srie -

1999

A p e s a r de d e s t i n a d a ao p a p e l d a submisso, a m u l h e r b r a n ca e r a e l e m e n t o i m p o r t a n t e d a estratgia f a m i l i a r , c o m p a r t i l h a v a do status do m a r i d o , d e n t r o dos l i m i t e s i m p o s t o s pela sociedade c o l o n i a l . E x e r c i a , i g u a l m e n t e , o c o n t r o l e domstico d e n t r o d a c a s a - g r a n d e , r e s p o n s a b i l i z a n d o - s e pela h o n r a d a famlia, u m a vez q u e esse conceito v i n c u l a v a - s e c o n d u t a m o r a l f e m i n i n a . A s s i m , e n q u a n t o as m u l h e r e s e r a m o p r i n c i p a l elemento da formao e perpetuao dos valores f a m i l i a r e s , a p r o p r i e d a d e era a base d a sobrevivncia d a l i n h a g e m . Propriedade e famlia estav a m , p o r t a n t o , i n t i m a m e n t e v i n c u l a d a s concepo do engenho, u m a vez q u e t o d o s os a c o n t e c i m e n t o s sociais, econmicos e r e l i giosos o c o r r i a m d e n t r o dos l i m i t e s do prprio latifndio. D a m a nuteno d a famlia d e p e n d i a m a manuteno d a l i n h a g e m e d a propriedade.19

Gravura 1: O jantar Fonte: DEBRET, Jean Baptist. Viagempitorescae histrica ao Brasil. Trad. Srgio Milliet. 2.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1949. Prancha 164/7 e 8.

Nesse cenrio que mesclava ostentao e s i m p l i c i d a d e , cab i a ao p a t r i a r c a d a famlia a r i s t o c r a t a e x e r c e r u m c o n t r o l e p a t e r n a l i s t a sobre os m e m b r o s consanguneos, demais dependentes, escravos e agregados. Devia-lhes proteo, que retribuam c o m lealdade e obedincia, j que o ncleo f a m i l i a r congregava p a r e n tes distantes de status inferior, filhos ilegtimos, agregados, afilhados, escravos, todos assentados n a grande propriedade fundiria, sobre a q u a l o senhor de engenho exercia poder e a u t o r i d a d e .18

A famlia p a t r i a r c a l , p o r t a n t o , b e m como as inmeras relaes q u e s u r g i a m ao seu redor, constitua o contexto n o q u a l se a p r e s e n t a v a a p r o p r i e d a d e e, desse m o d o , os conflitos relativos posse de bens, que s u r g i a m entre parentes, p r e j u d i c a v a m , e m m u i t o , a sociedade r u r a l . E m t a i s d i s p u t a s , os ideais de famlia e sociedade e r a m postos e m c o n f r o n t o direto c o m a base econmica. Dessa form a , "ao s e n t i r e m a p r o x i m a r - s e a m o r t e , p e n s a v a m os senhores n o s HCUS b e n s e escravos e m relao c o m os filhos legtimos, seus descendentes; os t e s t a m e n t o s a c u s a m a preocupao econmica de p e r p e t u i d a d e p a t r i a r c a l atravs dos descendentes legtimos" e m u i lu vezes de seus descendentes ilegtimos.2 0

A famlia era, p o r t a n t o , a p e d r a a n g u l a r do m o d o de v i d a s e n h o r i a l . Frequentemente, era o p o n t o de apoio p a r a a m p l i a r rel a c i o n a m e n t o s n a poltica e n a economia. C o m o ideal p a t r i a r c a l f o r t e m e n t e a r r a i g a d o , famlia, nesse m o m e n t o , i m p l i c a v a autoridade e hierarquia.

18

V I A N N A , O l i v e i r a . Populaes p.49.

meridionais

do Brasil:

histria, organizao, psicologia, op. cit.

'* "'

S( ' I I W A R T Z , Slunrt. Segredos l ' U I ! Y U I i , Gilberto. Casa-grande

internos:

engenhos e escravos na sociedade c o l o n i a l , op. cit. p. 243.

e senzala, op. cit. p . 4 3 6 .

16

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SAMARA,

Eni de Mesquita.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos cafezais.

Estudos CEDHAL - n. 10 - nova srie - 1999

Gravura 2: Um empregado do governo saindo de casa com sua famlia Fonte: DEBRET, Jean Baptist. Viagem pitoresca e histrica ao Brasa. Trad. Srgio Milliet. 2.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1949. Prancha 2/5.

A p r i n c i p a l preocupao dos senhores de engenho q u a n t o p r o p r i e d a d e e r a a s u a manuteno, s e n t i m e n t o presente, essenc i a l m e n t e , n o m o m e n t o d a herana. Nos c a s a m e n t o s p o r "dote e a r r a s " , m a r i d o e m u l h e r m a n t i n h a m , s e p a r a d a m e n t e , os b e n s c o m a q u a l e n t r a v a m n a unio. Isso, e n t r e t a n t o , foi m a i s r a r o n o B r a s i l . O que v i g o r o u , preferencialmente, foi a comunho de b e n s , onde u m dos cnjuges, caso o o u t r o viesse a falecer, ficava c o m a m e t a d e d a p r o p r i e d a d e , excluda a tera. O r e s t a n t e dos bens dividia-se d a seguinte f o r m a : dois teros r e p a r t i d o s e m p a r t e s i g u a i s e n t r e os f i l h o s , desde q u e legtimos o u l e g i t i m a d o s . N a ausncia destes, e r a m b e n e f i c i a d o s o u t r o s descendentes o u ascendentes e, p o r ltimo, o E s t a d o . A tera r e s t a n te p o d i a ser legada e m t e s t a m e n t o , s e g u n d o a v o n t a d e d o t e s t a d o r . E r a m dessas p a r c e l a s q u e saam os d o n a t i v o s b e n e f i c e n t e s , as a l f o r r i a s de escravos e o f a v o r e c i m e n t o de u m f i l h o o u a f i l h a d o . 18

C o m o se pode perceber, t a l s i s t e m a no p e r m i t i a m a i o r f l e x i b i l i dade n a repartio d a herana e essa necessidade de d i v i d i r , i g u a l m e n t e , a p r o p r i e d a d e e n t r e os h e r d e i r o s s e m p r e ameaava a s u a integridade. Nesse c o n t e x t o , o c a s a m e n t o era u m a estratgia i m p o r t a n t e , pois atravs dele e r a possvel a u m e n t a r os bens e ascender socialm e n t e . Por isso, os senhores de engenho e s c o l h i a m os m a r i d o s para s u a s f i l h a s baseados, p r i n c i p a l m e n t e , n o princpio de igualdade pregado pelos m o r a l i s t a s d a poca. D. Francisco M a n u e l de Melo, e m s u a Corta de Guia de Casados d i z i a q u e " u m a das cousas, q u e m a i s p o d e m assegurar a f u t u r a felicidade dos casados, a p r o poro do c a s a m e n t o . A desigualdade n o sangue, n a s idades, n a fazenda, c a u s a contradio; a contradio discrdia" . A p e s a r dessa preocupao, n a prtica, a desigualdade e r a com u m e m e s m o aceitvel. E r a frequente e n c o n t r a r m u l h e r e s j o v e n s casando-se c o m h o m e n s m u i t o m a i s velhos e comerciantes pobres u n i n d o - s e a moas abastadas, n a falta de pretendentes a l t u r a . A l g u m a s vezes, e n t r e t a n t o , s u r g i a m s i n a i s de insatisfao nesses r e l a c i o n a m e n t o s , sendo q u e "...os parentes no h e s i t a v a m e m rec o r r e r a u t o r i d a d e d o governador p a r a i m p e d i r t a i s enlaces" . Nas famlias s e n h o r i a i s era m u i t o c o m u m o lao endogmico, concretizado a p a r t i r de casamentos e n t r e p r i m o s de vrias geraes o u de parentescos p o r afinidade, contrados e m b a t i s m o s , c r i s m a s e c a s a m e n t o s . Unies como essas e entre m e m b r o s de difer e n t e s famlias abastadas contribuam p a r a a u m e n t a r o patrimnio. Esse c o s t u m e e r a to visvel n a s famlias p a t r i a r c a i s do Nordeste c a n a v i e i r a q u e a v i a j a n t e M a r i a G r a h a m n o t o u - o e c o n c l u i u que: "...tm o s e u lado m a u n o s constantes casamentos e n t r e parentes prximos c o m o t i o s e s o b r i n h a s , tias e s o b r i n h o s e t c , de m o d o que os c a s a m e n t o s e m vez de alargar as ligaes, d i f u n d i r a p r o p r i e d a de e p r o d u z i r m a i o r e s relaes gerais n o pas, parecem estreitlas, a c u m u l a r f o r t u n a s e c o n c e n t r a r todas as afeies n u m crculo fechado e egosta" .21 22 23

2 1

M E L O , D . Francisco M a n o e l de. Carta de Guia de Casados. p.8. S I L V A , M a r i a B e a t r i z N i z z a da. Sistema de casamento G R A H A N , M a r i a . Dirio de uma viagem ao Brasil.

L i s b o a : O f f i c i n a Croefbecchiana, 1 6 5 1 . colonial, o p . c i t . p. 6 9 .

2 1

no Brasil

"

So Paulo: So Paulo-Editora, 1956. p. 2 5 3 .

19

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Eni de Mesquita.

Famlia e vida domstica no Brasil: do engenho

aos

cafezais.

Estudos CEDHAL

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A complexidade dessas relaes n a sociedade do acar, e n a c o l o n i a l b r a s i l e i r a como u m todo, d e u m a r g e m a "desvios m o r a i s " , p r a t i c a d o s t a n t o p o r h o m e n s q u a n t o p o r m u l h e r e s . Aos m a r i d o s e r a m p e r m i t i d a s relaes e x t r a - c o n j u g a i s de q u a l q u e r espcie, seja c o m o u t r a s m u l h e r e s de s u a m e s m a condio social, seja c o m s u a s escravas. Ap e s a r d a h o n r a d a famlia p a t r i a r c a l estar v i n c u l a d a c o m a v i r t u d e das s e nhora s , estas, m u i t a s vezes, tambm c o m e t i a m adultrio. Q u a n d o esse c r i m e o c o r r i a e e r a descoberto, a m u l h e r poderia receber, legalmente, a m o r t e pelas mos do m a r i d o u l t r a j a d o . O adultrio m a s c u l i n o , p o r s u a vez, no era condenado pela sociedade, sendo u m a p r o v a de m a s c u l i n i d a d e . A s s i m , no podendo v o l t a r s u a s frustraes sobre seus m a r i d o s , m u i t a "sinh" castigava as escravas que, p o r v e n t u r a , se envolvessem c o m eles. Tais castigos i m p l i c a v a m e m s u r r a s , m a u s t r a t o s , humilhaes, mutilaes e, at m e s m o , assassinato. Dessas unies, consideradas "ilcitas", a s s i m como o c o n c u b i n a t o , as ligaes transitrias e a prostituio, n a s c i a m f ilhos ilegtimos que a u m e n t a r a m a complexidade dessa sociedade. A Igreja Catlica exigia que fossem batizados e, g e r a l m e n t e , t i n h a m como p a d r i n h o s h o m e n s b r a n c o s , o que p r o p o r c i o n a v a , de c e r t a f o r m a , u m a m a n e i r a de c o n q ui s t a r , f u t u r a m e n t e , m a i s prestgio e ascenso social. v i d a das crianas legtimas, p o r s u a vez, t r a n s c o r r i a j u n t o famlia, desde que essa tivesse condies p a r a cri-las. No e n t a n t o , a infncia era u m perodo c u r t o d a s u a existncia. Sabemos, p o r descrio de viajantes, que por v o l t a dos nove anos, estas crianas p e r d i a m p a r t e de s u a vivacidade e espontaneidade, t o r n a n d o - s e verdadeiros a d u l t o s e m m i n i a t u r a , c o m olhares t r i s t e s e v e s t i m e n t a s soturnas. Para a elite, e m dias de festas o filho "devia apresentar-se de r o u p a de h o m e m ; e d u r o e c o r r e t o , s e m m a c h u c a r o t e r n o p r e t o e m b r i n q u e d o de criana. Ele q u e e m presena dos m a i s velhos devia conservar-se calado, u m a r serfico, t o m a n d o a bno a t o d a pessoa que entrasse e m casa..." .24

Os p a i s e x i g i a m que os filhos se d i r i g i s s e m a eles c h a m a n do-os de " s e n h o r p a i " e " s e n h o r a me" e a obedincia e respeito d e v e r i a m ser t o t a i s . A s s i m , somente "depois de casado a r r i s c a v a se o f i l h o a f u m a r e m presena do p a i ; e fazer a p r i m e i r a b a r b a era cerimnia p a r a que o rapaz necessitava sempre de licena especial. Licena sempre difcil, e s o b t i d a q u a n d o o buo e a p e n u gem d a b a r b a no a d m i t i a m m a i s d e m o r a " .25

A educao dos filhos, q u e r legtimos o u ilegtimos, m u i t a s vezes no passava de r u d i m e n t o s referentes l e i t u r a , e s c r i t a e aritmtica. A s p r i m e i r a s a u l a s o c o r r i a m e m casa e e r a m m i n i s t r a das, e m geral, p o r u m clrigo o u u m p a r e n t e prximo. C o m frequncia, a educao das m e n i n a s encerrava-se neste p o n t o . U m t r a d i c i o n a l provrbio pode m u i t o b e m i l u s t r a r essa questo, como o b s e r v o u o v i a j a n t e C h a r l e s E x p i l l y , " u m a m u l h e r j b a s t a n t e instruda, q u a n d o l co er entemente as s u a s oraes e sabe escrever a r e c e i t a de goiabada. M a i s do que isso seria u m perigo para o l a r " .2 6

Os m e n i n o s , q u a n d o chegavam adolescncia, i a m p a r a os colgios jesutas, onde a p r e n d i a m Teologia e L a t i m , entre o u t r a s matrias. Como n o B r a s i l , d u r a n t e os sculos X V I e X V I I no existia n e n h u m a u n i v e r s i d a d e , os rapazes que q u i s e s s e m avanar e m seus e s t u d o s d e v e r i a m p a r t i r p a r a Po r tugal . E se esse era o q u a d r o m a i s caracterstico das famlias d a elite c o l o n i a l b r a s i l e i r a , no podemos deixar tambm de m e n c i o n a r q u e o u t r a s f o r m a s de organizao f a m i l i a r c o n v i v i a m c o m esse m od e lo e i n t e g r a v a m a nossa sociedade. o caso das famlias dos agregados ', dos p l a n t a d o r e s de c a n a e m e s m o dos escravos.27

S a b e m o s que famlias i n t e i r a s agregavam-se p r o p r i e d a d e do s e n h o r de engenho, sendo, a l g u m a s vezes, f o r m a d a s p o r m u lheres solteiras c o m filhos. E r a c o m u m estas a j u d a r e m nos servios domsticos n a casa-grande, ficando os h o m e n s , p o r s u a vez,I d e m , p. 4 2 1 . E X P I L L Y , Charles. Mulheres e costumes do Brasil. So Paulo: C i a . E d . N a c i o n a l , 1935. p. 4 0 1 . Os agregados e r a m h o m e n s l i v r e s e s e m p r o p r i e d a d e q u e no f o r a m i n t e g r a d o s na produo m e r c a n t i l p r o p r i a m e n t e d i t a , mas m a n t i n h a m ligaes c o m o sistema, c o n t r i b u i n d o e m parte para o seu s u s t e n t o . Ver: S A M A R A , E n i de M e s q u i t a . O papel do agregado na regio de I t u - 1 7 8 0 a 1830. I n : Coleo Museu Paulista. Srie Histria. So Paulo: M u s e u Paulista/USP, 1977, v. 6.

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F R E Y R E , Gilberto, op. cit. p. 420.

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responsveis pela proteo d a s fazendas. C a s a d o s o u s o l t e i r o s , sozinhos o u a c o m p a n h a d o s p o r o u t r o s p a r e n t e s , c o m o u s e m escravos prprios, esses elementos e r a m i n c o r p o r a d o s n o d i a - a - d i a do ncleo domstico, estando presentes n o s m o m e n t o s de defesa a r m a d a , n o s d e s e n t e n d i m e n t o s e d i s p u t a s polticas. Como fenmeno socialmente aceito, a famlia agregada aparece, p o r t a n t o , n a periferia d a famlia p a t r i a r c a l , gozando, m u i t a s vezes, de u m a situao p r i v i l e g i a d a o u apenas " m o r a n d o de favor". Q u a l q u e r q u e fosse a condio, e n t r e t a n t o , e r a certo q u e desenvolvia laos de servios mtuos e de solidariedade, q u e r e s u l t a v a m em auxlio, defesa e lealdade.2 8

Na sociedade p a t r i a r c a l , os escravos p o d i a m , tambm, ser considerados u m a extenso d a famlia. E os senhores catlicos deparavam-se c o m u m a srie de obrigaes, pregadas pelos religiosos, p a r a q u e t r a t a s s e m b e m os seus cativos. Segundo J . Bencl, clrigo jesuta, "Missionrio d a Provncia do B r a s i l " , essas obrigaes t r a d u z i a m - s e em: Po, Doutrina, Castigo e Trabalho. Po para que no peream n o seu fardo de cativo; D o u t r i n a p a r a e n c a m i nh-los n o B e m e n o s preceitos d a S a n t a M a d r e Igreja Catlica; Castigo p a r a que no se h a b i t u e m a e r r a r c o m frequncia e T r a b a l h o p a r a que meream o Po e no v i v a m n a ociosidade, p r a t i cando ms aes.30

A p a r t i r disso, podemos dizer q u e os agregados d e s e n v o l v i a m dois t i p o s de relaes familiares: as do t i p o p a t r i a r c a l , p o r p a r t i c i p a r e m d a famlia do proprietrio, e as no-patriarcais, t r a v a d a s d e n tro de seu prprio ncleo f a m i l i a r . A organizao domstica desse grupo, b e m como a dos lavradores de cana, pautava-se, s e m p r e q u e possvel, pela complexidade, organizao e e s t a b ilid a d e de relacion a m e n t o s existentes n a famlia dos senhores de engenho. Essa e r a u m a m e t a , u m modelo a ser a t i n g i d o , m a s q u e , n a m a i o r i a d a s vezes e r a p r e j u d i c a d o pelas dificuldades de c a s a m e n t o , a v i d a i n s tvel e a precariedade das condies econmicas. Isso significa que, apesar de se e s p e lha re m n a famlia do sen h o r , a falta de condies econmicas, a i n s t a b i l i d a d e e a m o b i l i d a de espacial dos agregados r e d u z i a m as p os s ib ilid a d e s de unies estveis, d a n d o o r i g e m a o u t r a s formas de organizao de famlias e domiclios. E n t r e t a n t o , q u a n d o a u m e n t a v a m o patrimnio, d e s e n v o l v i a m padres s e m e l h a n t e s aos e s t r a t o s sociais m a i s a l t o s , m o s t r a n d o u m a possvel correlao e n t r e a base econmica e o t i p o de famlia. Nesses casos, geralmente, possuam seus prprios escravos e m u i t o s a p r e s e n t a v a m relaes de parentesco, a m i z a d e o u t r a b a l h o c o m o dono d a propriedade. E r a m famlias de filhos casados o u vivos, p r i n c i p a l m e n t e filhas, que c o n t i n u a v a m m o r a n d o c o m o p a i , proprietrio e s e n h o r do engenho.2 9

M a s , diferenas de t r a t a m e n t o e x i s t i a m e estavam ligadas, p r i n c i p a l m e n t e , ao a m b i e n t e de t r a b a l h o . Os servios i n t e r n o s e r a m m a i s a m e n o s e os escravos que se o c u p a v a m d a casa possuam u m a v i d a m e l h o r do que aqueles que t r a b a l h a v a m n a roa. C h a r l e s R i b e y r o l l e s , descrevendo os escravos responsveis pelo servios d a casa-grande, dizia que "cada q u a l t e m s e u ofcio, p o r c u r t a s e m p r e i t a d a s . T e m suas distraes, suas i n t r i g a s , seus colquios. E q u a n d o os senhores d o r m e m , o que acontece f r e q u e n t e m e n t e , eles b o c e j a m o u t a g a r e l a m . V e s t e m - s e e c o m e m m e l h o r , so m e n o s vigiados n o t r a b a l h o do que m u i t o s civilizados... P e r t e n c e m ao c a s t e l o " .31

Os escravos q u e t r a b a l h a m n a l a v o u r a , " d u r a n t e os trs m e ses de m o a g e m d a c a n a e fabricao do acar, j u n h o , j u l h o e agosto e a l g u m a s vezes setembro, l a b u t a m d i a e noite. Revezamse de q u a t r o e m q u a t r o h o r a s , e somente os m a i s fortes se e m p r e g a m n o servio d a s c a l d e i r a s . . . " . V e s t i a m - s e " c o m calas e c a m i s a s de algodo lavadas todas as semanas e renovadas d u a s o u trs vezes ao a n o . A s m u l h e r e s recebem saias do m e s m o pano , e a i n d a , conforme o sexo, d i s t r i b u e m - s e r o u p a s de l, camisas o u c a m is olas. T u d o isso t r a z a m a r c a e o nmero d a matrcula" .32 33

Q u a n t o formao d a famlia escrava, o senho r de engenho era q u e m m a i s i m p u n h a dificuldades. E r a c o m u m , p o r t a n t o , q u e"' " B E N C I , J. Economia RIBEYROLLES, Idem. Idem. crist dos senhores no governo Charles. Brasil pitoresco: dos escravos. So Paulo: E d i t o r i a l Grijalbo, 1977.

histria, descrio, viagens, colonizao, instituies.

B e l o Horizonte/So Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980. v. 2. p. 50.2 8

I d e m , p. 87. I b i d e m , p. 85.

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r e s t r i n g i s s e m o u n i v e r s o social do cativo, m a n t e n d o - o n a fazenda o mximo possvel. Isso l i m i t a v a as o p o r t u n i d a d e s desses indivd u o s constiturem famlia, e m decorrncia d a carncia de p a r c e i ros e d a presena de p a r e n t e s consanguneos. A s s i m , "o poder do proprietrio p o d i a expressar-se n o i m p e d i m e n t o s unies, designaes de parceiros, determinao d a poca do c a s a m e n t o e, e m ltima anlise, n a separao d a s famlias" . O u t r o fator q u e d i f i c u l t a v a a formao d a famlia escrava era a desproporo e n t r e os sexos: u m grande nmero de h o m e n s p a r a p o u c a s m u l h e res.34

U m a vez batizados e casados, os negros a d o t a v a m o n o m e de famlia dos senhores b r a n c o s , o que, p a r a Gilberto Freyre, devese "influncia do p a t r i a r c a l i s m o , fazendo os pretos e m u l a t o s , e m s e u ' esforo de ascenso social, i m i t a r e m os senhores b r a n -

Alm disso, os senhores e v i t a v a m colocar n u m a m e s m a senzala, escravos q u e p u d e s s e m estabelecer alianas, d i f i c u l t a n d o a ecloso de revoltas d e n t r o de s e u engenho. U n i a m , ento, negros