146
Fátima Cristina Fontes da Costa A Questão da Adjudicação ao Banco Exequente do Imóvel Hipotecado Por Um Valor Inferior ao da Dívida Exequenda Em Virtude do Incumprimento do Contrato de Mútuo Para Aquisição de Habitação Um Problema a Carecer de Intervenção Legislativa Urgente Dissertação de Mestrado, na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas Apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Menção: Direito Civil Orientador: Professor Doutor António Pinto Monteiro Coimbra 2014

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  • \\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\ Ftima Cristina Fontes da Costa

    TTULO

    Dissertao de Mestrado, na rea de

    Especializao em Cincias Jurdico-

    Civilsticas

    Meno: Direito Civil

    Orientador: Professor Doutor Antnio Pinto

    Monteiro

    Ftima Cristina Fontes da Costa

    A Questo da Adjudicao ao Banco Exequente do Imvel Hipotecado Por Um Valor

    Inferior ao da Dvida Exequenda Em Virtude do Incumprimento do Contrato de Mtuo Para

    Aquisio de Habitao Um Problema a Carecer de Interveno Legislativa Urgente

    Dissertao de Mestrado, na rea de Especializao

    em Cincias Jurdico-Civilsticas Apresentada

    Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

    Meno: Direito Civil

    Orientador: Professor Doutor Antnio Pinto Monteiro

    Coimbra 2014

  • 2

    Ftima Cristina Fontes da Costa

    A Questo da Adjudicao ao Banco Exequente do Imvel Hipotecado Por

    Um Valor Inferior ao da Dvida Exequenda Em Virtude do Incumprimento do

    Contrato de Mtuo Para Aquisio de Habitao Um Problema a Carecer de

    Interveno Legislativa Urgente

    Dissertao Apresentada Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

    no mbito do 2. Ciclo de Estudos em Direito (Conducente ao Grau de

    Mestre), na rea de Especializao em Cincias Jurdico-Civilsticas, Meno

    em Direito Civil

    Orientador: Professor Doutor Antnio Pinto Monteiro

    Coimbra

    2014

  • 1

    Ao meu Pai que partiu [26.03.2013], ao Pedro e ao Tiago,

    os trs pilares da minha vida.

    minha querida Dra. Paula pela amizade demonstrada e

    pelas palavras de aconchego que me transmitiu

    nas diversas ocasies da vida.

    Aos meus avs Maria Adlia e Armnio pelas

    palavras de esperana que me foram transmitindo

    ao longo da elaborao da presente dissertao.

    Ao Professor Doutor Antnio Pinto Monteiro pela

    disponibilidade que sempre demonstrou,

    pela simpatia com que acolheu as minhas hesitaes

    e pelos sbios conselhos. Ficarei para sempre reconhecida.

  • 2

    Lista de Siglas e Abreviaturas

    AA Autores

    Al. Alnea

    BdP Banco de Portugal

    BGB Brgerliches Gesetzbuch

    CC Cdigo Civil

    CIRE Cdigo de Insolvncia e Recuperao das Empresas

    CIS Cdigo de Imposto de Selo

    cit. Citada/o

    CN Cdigo de Notariado

    Cd. Com. Cdigo Comercial

    Cd. Reg. Pred. Cdigo de Registo Predial

    CPC Cdigo de Processo Civil

    CRP Constituio da Repblica Portuguesa

    Ed. Edio

    Euros

    EUA Estados Unidos da Amrica

    FIIAH Fundo de Investimento Imobilirio de Arrendamento Habitacional

    IC Instituies de Crdito

    n. Nmero

    ob. Obra

    PARI Plano de Aco Para o Risco de Incumprimento

    PERSI Procedimento Extrajudicial de Regularizao das Situaes de

    Incumprimento

  • 3

    PPE Plano Poupana Educao

    PPR Plano Poupana Reforma

    pp. Pgina/s

    RACE Rede de Apoio ao Consumidor Endividado

    RGICSF Regime Geral das Instituies de Crdito e Sociedades Financeiras

    RJCS Regime Jurdico do Contrato de Seguro

    ROA Revista da Ordem dos Advogados

    ss Seguintes

    TAE Taxa Anual Efectiva

    TAN Taxa de Juro Anual Nominal

    UE Unio Europeia

  • 4

    Somos felizes. Acabmos de pagar a casa em Outubro,

    fechmos a marquise, substitumos a alcatifa por tacos,

    nenhum de ns foi despedido, as prestaes do Opel esto no fim.

    Antnio Lobo Antunes, A Propsito de Ti, 1. Edio, pp. 39-40

  • 5

    ndice

    INTRODUO ..................................................................................................................... 9

    CAPTULO I: O CRDITO HABITAO COMO CONTRATO DE MTUO

    BANCRIO ......................................................................................................................... 13

    1. O Reflexo da Crise Financeira e Econmica Mundial em Portugal, em Especial, no

    Mercado do Crdito Habitao: do Subprime dos Estados Unidos da Amrica

    Falncia do Banco Lehman Brothers ............................................................................... 13

    2. O Contrato de Mtuo ................................................................................................ 16

    2.1. O Mtuo Civil ........................................................................................................ 16

    2.2. O Mtuo Comercial ............................................................................................... 22

    2.3. O Mtuo Bancrio ................................................................................................. 23

    3. O Crdito Habitao ............................................................................................... 29

    3.1. A Regulamentao Legal do Crdito Habitao em Portugal, em Particular, os

    Regimes no Crdito Habitao .................................................................................. 29

    3.2. As Especificidades do Regime de Crdito Habitao........................................ 31

    3.2.1. Mtuo a Particulares ........................................................................................... 31

    3.2.2. Mtuo Formal ..................................................................................................... 32

    3.2.3. Mtuo de Escopo ................................................................................................ 32

    3.2.4. Mtuo Longo Prazo ......................................................................................... 34

    3.2.5. Mtuo Oneroso ................................................................................................... 34

    3.2.6. As Modalidades de Reembolso do Capital Mutuado ......................................... 37

    3.2.7. Crdito com Garantia (caucionado) .................................................................... 39

    3.2.8. A Estratgia do Cross-Selling ............................................................................ 40

  • 6

    CAPTULO II: DO INCUMPRIMENTO NO CRDITO HABITAO A

    TENTATIVA DE RESOLUO DO PROBLEMA PELA VIA LEGISLATIVA ............ 41

    1. O Regime Geral do Incumprimento - O Decreto-Lei n. 227/2012, de 25 de Outubro

    ...43

    2. O Regime Extraordinrio de Proteco dos Devedores de Crdito Habitao em

    Situao Econmica Muito Difcil - A Lei n. 58/2012, de 9 Novembro ........................ 49

    2.1. O mbito Objectivo .............................................................................................. 49

    2.2. Os Pressupostos ..................................................................................................... 50

    2.3. As Medidas de Proteco do Devedor Em Situao Econmica Muito Difcil .... 52

    2.4. A Vigncia da Lei n. 58/2012 .............................................................................. 58

    3. O Regime Geral Versus o Regime Extraordinrio de Incumprimento ..................... 58

    4. A Articulao entre o Regime Geral, em Particular o Procedimento Extrajudicial de

    Regularizao de Situaes de Incumprimento, e o Regime Extraordinrio de Proteco

    de Devedores de Crdito Habitao em Situao Econmica Muito Difcil A Carta-

    Circular n. 93/2012/DSC ................................................................................................ 59

    5. A (In)Aplicao do Decreto-Lei n. 227/2012, de 25 de Outubro, ao Crdito

    Multifunes .................................................................................................................... 61

    6. A Promulgao de Outros Diplomas Legais ............................................................. 62

    6.1. A Lei n. 57/2012, de 9 de Novembro ................................................................... 62

    6.2. A Lei n. 59/2012, de 9 de Novembro ................................................................... 63

    6.3. A Lei n. 60/2012, de 9 de Novembro ................................................................... 63

    7. A Directiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho da Unio Europeia,

    de 4 de Fevereiro de 2014, Relativa aos Contratos de Crdito aos Consumidores para

    Imveis de Habitao ....................................................................................................... 64

    8. As Solues Vigentes nos Outros Ordenamentos Jurdicos Para a Problemtica do

    Incumprimento no Crdito Habitao: o Caso da Hungria, da Colmbia e da Espanha

    ...67

  • 7

    8.1. O Exemplo a Evitar da Hungria ............................................................................ 67

    8.2. Outro Exemplo a Evitar: a Colmbia .................................................................... 67

    8.3. O Exemplo da Espanha: O Cdigo de Boas Prticas Espanhol ............................ 68

    9. Apreciao Crtica ........................................................................................................ 70

    10. A Proposta de Solues a Adoptar Para Resolver o Problema do Incumprimento dos

    Contratos de Crdito Habitao: Um Sistema Equilibrado Com Respeito Pelos

    Princpios Estruturantes ................................................................................................... 79

    CAPTULO III: DO INCUMPRIMENTO NO CRDITO HABITAO - A DECISO

    JUDICIAL DO TRIBUNAL DE PORTALEGRE DE 4 DE JANEIRO DE 2012 E O SEU

    IMPACTO NO ORDENAMENTO JURDICO PORTUGUS ......................................... 84

    1. A Concesso e a Contraco do Emprstimo Responsvel, os Riscos da Actividade

    Bancria e a Necessidade da Prestao de Garantias no Crdito Habitao ................. 84

    1.1. A Concesso e a Contraco do Emprstimo Responsvel .................................. 84

    1.2.Os Riscos da Actividade Bancria ......................................................................... 85

    1.3.Os Riscos de Incumprimento das Prestaes do Contrato de Crdito Habitao e

    a Exigncia de Prestao de Garantias ......................................................................... 87

    1.3.1. A Garantia Geral do Contrato de Crdito Habitao: o Patrimnio do Muturio

    87

    1.3.2. As Garantias Especiais do Contrato de Crdito Habitao ............................. 90

    1.3.3. As Garantias Substitutivas da Garantia Hipotecria .......................................... 95

    1.3.4. As Garantias Complementares da Garantia Hipotecria .................................... 97

    2. A Aco Executiva ................................................................................................. 102

    2.1. Traos Gerais ....................................................................................................... 102

    2.2. A Penhora ............................................................................................................ 104

    2.3. A Venda Executiva dos Bens Penhorados, In Casu, a Habitao Prpria e

    Permanente ................................................................................................................. 106

  • 8

    3. A Adjudicao dos Bens Penhorados Em Caso de Incumprimento do Contrato de

    Mtuo Para Aquisio de Habitao a Entrega da Casa ao Banco Liquida a Totalidade

    da Dvida Exequenda? .................................................................................................... 107

    3.1. A Deciso do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de Janeiro de 2012 .............. 109

    3.2. As Posies a Contrario ...................................................................................... 112

    3.3. O Estado da Problemtica nos Outros Ordenamentos Jurdicos ......................... 119

    3.3.1. Em Espanha - A Deciso da Audincia Provincial de Navarra n. 111/2010,

    de 17 de Dezembro .............................................................................................. 119

    3.3.2. Nos Estados Unidos da Amrica (EUA) ................................................... 120

    3.4. A Posio Adoptada: Uma Perspectiva Actual com Ajustamento do Montante a

    Reembolsar ................................................................................................................. 121

    CONCLUSO ................................................................................................................... 133

    BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 138

  • 9

    INTRODUO

    A actividade bancria tem sido uma forte impulsionadora da economia nacional e

    internacional na medida em que contribui para o desenvolvimento de sectores

    indispensveis vida dos vrios agentes econmicos. Tendo o recurso ao crdito

    habitao uma grande importncia na nossa sociedade e sendo o contrato de mtuo

    bancrio a forma primria de concesso desse tipo de crdito optmos pelo estudo desta

    temtica.

    A actividade bancria desenvolvida pelas Instituies de Crdito (doravante, IC) que,

    atravs da captao de aforro, por um lado, e da concesso de crdito, por outro, do vida

    actividade de intermediao financeira. As actividades levadas a cabo por estas entidades

    designam-se por operaes bancrias que, quanto sua natureza, so actos comerciais. As

    operaes bancrias concretizam-se atravs de contratos bancrios celebrados entre as

    Instituies Bancrias e os seus clientes.

    Em Portugal, a abertura ao crdito data de meados dos anos 90. A partir deste momento

    multiplicaram-se as formas de crdito, as Instituies que o concedem, os bens e os

    servios que atravs dele podem ser adquiridos e, inevitavelmente, os riscos de

    incumprimento. Vivemos numa sociedade de crdito. O crdito um dos motores do

    crescimento e do desenvolvimento econmico, uma vez que permite a aquisio antecipada

    de bens e de servios. Adquire-se, hoje, os bens e servios com o dinheiro que ir ser

    ganho amanh. A maioria dos portugueses considera o crdito uma soluo prtica para

    financiar as suas necessidades. O crdito representa para muitos indivduos a oportunidade

    de participarem no mercado e de assegurarem o seu lugar dentro de um grupo social com o

    qual se identificam ou ao qual aspiram pertencer. Neste sentido, o crdito constitui um

    factor de incluso social. O crescimento continuado do endividamento das famlias revela

    que o crdito se expandiu e que deixou de ser um privilgio de certas elites ou um sinal de

    pobreza para se tornar numa fonte de financiamento das despesas das pessoas dos diversos

    estratos socioeconmicos. Contudo, o recurso ao crdito significa penhorar parte do

    rendimento futuro, implicando um sacrifcio financeiro dos consumidores por longos

    perodos de tempo.

  • 10

    A aquisio de bens e servios atravs do crdito o resultado da expanso e da

    densificao dos hbitos de consumo. O crescimento das despesas relacionadas com o

    conforto da habitao, a compra de automveis e de viagens tursticas representam todas

    elas aquisies frequentemente realizadas a crdito.

    O crdito pode ser concedido a empresas ou a particulares. No entanto, verificou-se, nos

    ltimos anos, um redireccionamento do alvo dos Bancos: das empresas para os clientes

    particulares, ficando esta alterao a dever-se diminuio das taxas de juros bancrias e

    ao aumento do incumprimento por parte das empresas, em resultado da recesso

    econmica. Assim, o crescimento do sector bancrio ficou a dever-se a um forte impulso

    no crdito aos particulares. Sendo o crdito concedido a particulares, este crdito pode ser

    direccionado para o consumo (crdito ao consumo) ou para a compra de habitao prpria

    (crdito habitao). O crdito ao consumo, isto , um financiamento que tem como

    finalidade fazer face a despesas diversas, como a aquisio de bens duradouros, tem

    associado, em regra, garantias pessoais, pelo que o risco elevado, sendo a qualidade dos

    contraentes condio essencial, seno mesmo exclusiva, na deciso de atribuio do

    crdito. O crdito habitao, por ter associado, em regra, a hipoteca do imvel a

    financiar, apresenta, para a entidade financiadora, um risco atenuado.

    A aquisio de habitao prpria constitui, para a generalidade das famlias portuguesas, o

    maior investimento de toda a sua vida. Ser proprietrio de uma habitao constitui o anseio

    da generalidade da populao portuguesa. O crdito habitao permite a satisfao de

    uma necessidade bsica, sobretudo, quando se verifica a existncia de um mercado de

    arrendamento em crise, desde a dcada de setenta, e de um sector de habitao social quase

    inexistente.

    Nos ltimos 10 anos verificou-se, em Portugal, uma expanso do crdito habitao,

    ficando este crescimento a dever-se descida das taxas de juro1, existncia de regimes de

    crdito bonificados, ao aumento do rendimento das famlias portuguesas e quase

    inexistncia de um mercado de arrendamento. Por tudo isto, a concorrncia interbancria

    1 A evoluo das taxas de juro constitui um dos factores mais importantes na deciso das famlias para investir na habitao. A descida destas determina a reduo das prestaes mensais e permite o crescimento

    da capacidade de endividamento e de acesso a um maior volume de fundos para comprar ou mudar de

    habitao.

  • 11

    tem sido muito forte com cada Instituio Financeira a procurar alargar a sua quota de

    mercado.

    Todavia, mesmo com uma gesto cuidada e um endividamento controlado possvel que

    as famlias sejam afectadas por um acontecimento imprevisvel que as faa perder total ou

    parcialmente o seu rendimento ou aumentar as suas despesas. Com efeito, podero entrar

    em situao de desequilbrio financeiro e no limite em incumprimento. A ruptura

    financeira das famlias constitui o lado negativo da democratizao do crdito.

    O longo prazo na liquidao do crdito habitao, a subida das taxas de juro, a alterao

    do rendimento das famlias, o aumento do desemprego e da carga tributria podero

    conduzir a situaes de incumprimento. A proliferao de casos de famlias incapazes de

    cumprir com os seus compromissos financeiros traduz-se numa contraco das despesas de

    consumo. Sendo a casa um bem essencial, as famlias tendem a sacrificar primeiramente os

    crditos ao consumo, pelo que somente em situaes limite surge o incumprimento no

    crdito habitao. de concluir que na origem do incumprimento do crdito ao consumo

    esto, na grande maioria dos casos, dificuldades na satisfao de compromissos resultantes

    do peso do crdito habitao num cenrio de multi-endividamento. Em 1990, Portugal

    tinha uma taxa de endividamento de aproximadamente 18%, sendo que, em 2007, esta taxa

    subiu para 130%, pelo que uma das taxas mais elevadas da Unio Europeia. A

    consequncia do incumprimento no crdito habitao a perda da casa em virtude da

    constituio de hipotecas bancrias.

    O nosso trabalho est estruturado em trs captulos. Numa primeira parte iremos enquadrar

    o contrato de crdito habitao no mbito do contrato de mtuo bancrio analisando as

    suas caractersticas. Afigura-se-nos ser, assim, necessrio, para uma correcta

    caracterizao do mtuo bancrio, uma exposio do tratamento dado ao mesmo instituto

    em sede de direito privado, designadamente, no mbito do direito civil e do direito

    comercial.

    No segundo captulo iremos analisar as medidas legislativas implementadas, no nosso

    ordenamento jurdico, visando atenuar o problema do incumprimento no crdito

    habitao, sendo que tais solues no assumiram s relevncia para as famlias

    portuguesas, mas tambm assumiram um relevo especial para o sistema financeiro

    nacional.

  • 12

    No terceiro captulo propomo-nos a analisar um problema que se nos afigura ter o maior

    interesse prtico que consiste em saber se, no ordenamento jurdico portugus, a

    adjudicao Instituio Bancria exequente da casa hipotecada, no mbito de um

    emprstimo habitao que deixou de ser pago, suficiente para saldar a respectiva

    dvida, quando o valor da adjudicao inferior quantia exequenda. Recentemente, o

    Tribunal de Portalegre proferiu, neste mbito, uma deciso judicial indita, defendendo que

    a entrega do imvel ao Banco no extinguiria a totalidade da dvida exequenda. Do mesmo

    modo, os nuestros hermanos espanhis tomaram decises no mesmo sentido que a

    proferida em Portugal. A ttulo de exemplo apresentamos a Deciso da Audincia

    Provincial de Navarra de 17 de Dezembro de 2010.

    Resta-nos, assim, iniciar o nosso trabalho.

  • 13

    CAPTULO I

    O CRDITO HABITAO COMO CONTRATO DE MTUO BANCRIO

    1. O Reflexo da Crise Financeira e Econmica Mundial em Portugal, em Especial,

    no Mercado do Crdito Habitao: do Subprime dos Estados Unidos da Amrica

    Falncia do Banco Lehman Brothers

    Nos ltimos anos, a crise econmico-financeira propagou-se um pouco por todo o mundo.

    A crise mundial, com incio em Agosto de 2007, associada ao crash imobilirio Norte-

    Americano, constitui a pior crise desde de 19302. Na origem desta crise mundial est a

    bolha imobiliria Norte-Americana em que se registou um aumento exponencial do recurso

    ao crdito3 em resultado da diminuio das taxas de juro4. Consequentemente, a procura de

    casa aumentou, o que veio a originar o incremento das construes e a subida do preo

    destas. O valor das habitaes atingiu montantes nunca antes vistos, excedendo o custo do

    terreno e da construo5.

    Inicialmente, s podiam recorrer ao crdito habitao os agregados familiares cujos

    rendimentos permitissem pagar o capital e os juros, isto , as pessoas da classe mdia-alta

    Norte-Americana6, sendo este crdito garantido por hipoteca. Verifica-se uma situao de

    prime7, uma vez que o crdito era concedido a particulares com um nvel de vida mdio-

    alto e que dificilmente iriam incumprir as suas obrigaes contratuais, pelo que o

    emprstimo era seguro. Contudo, com o crash imobilirio Norte-Americano, as

    2 A crise dos anos 30 ou, tambm designada, de Grande Depresso considerada a pior e a mais longa

    recesso econmica do sculo XX. Com o fim da Primeira Grande Guerra Mundial, os pases europeus

    tinham uma economia enfraquecida e no sector do consumo verificava-se uma forte retraco. Por sua vez, os

    Estados Unidos da Amrica (EUA) exportavam produtos e alimentos em massa. Em virtude disto, no perodo

    de 1918 a 1928, a produo americana cresceu fortemente. Contudo, quando a economia europeia recuperou

    passou-se a importar cada vez menos dos EUA, originando um excesso de produo americana. Assim, a

    oferta era maior que a procura, determinando a subida dos preos, a diminuio da produo, o aumento do

    desemprego, bem como a quebra abrupta da bolsa de Wall Street. A crise de 1930 foi, assim, uma crise de

    superproduo. 3 O termo crdito teve a sua origem no vocbulo latino creditum, proveniente do verbo credere que significa

    acreditar. 4 A Reserva Federal Norte-Americana diminuiu as taxas de juro de tal forma que estas chegaram a atingir

    1%. 5 Vide, neste sentido, MENEZES CORDEIRO, Antnio, A Crise Planetria de 2007/2010 e o Governo das

    Sociedades, in Revista de Direito das Sociedades, Ano I, n. 2, 2009, pp. 268. 6 MARTINS, Andreia Marques, Do Crdito Habitao em Portugal e a Crise Financeira e Econmica

    Mundial. Em Especial: a Prestao de Garantias no Crdito Habitao, in Revista de Direito das

    Sociedades, Ano II, n. 3-4, Almedina, 2010, pp. 724. 7 Tambm designada de categoria A.

  • 14

    Instituies Bancrias baixaram o seu nvel de exigncia para a concesso do crdito

    habitao, permitindo a concesso de emprstimos hipotecrios a pessoas com rendimentos

    mais baixos8. Deixamos de estar perante situaes de primes e passamos a depararmo-nos

    com situaes de subprimes9. Ao interessado no se exige que consiga reembolsar o capital

    em dvida mas apenas os juros, pelo que estamos perante crditos com riscos. Com efeito,

    a qualidade dos emprstimos concedidos foi comprometida10.

    No auge do crash imobilirio, o preo das habitaes estabilizou e iniciou a sua baixa. A

    Reserva Federal Norte-Americana subiu de novo as taxas de juros e as famlias viram-se

    incapazes de saldar as suas dvidas, tendo esta situao originado uma enorme onda de

    execues hipotecrias. A oferta de habitaes era muito superior sua procura. A bolha

    imobiliria Norte-Americana caracterizou-se, numa primeira fase, pela supervalorizao e,

    posteriormente, pela desvalorizao dos imveis.

    A crise que inicialmente atingiu o sector financeiro, acabou por se expandir a outros

    sectores como o sector econmico, bem como a outros pases, tendo assumido uma

    repercusso mundial.

    A 15 de Setembro de 2008 d-se o colapso do Banco Lehman Brothers. Uma das

    participaes mais importantes deste Banco era um lote de 20% que este detinha no

    Ospraie Fund com uma remunerao anual em torno dos 15%. Com a retirada de fundos,

    que se verificou no incio de Setembro, o Lehman Brothers deparou-se com uma

    acumulao de perdas que obrigou sua recapitalizao para refazer o seu balano. A

    falncia do Lehman Brothers originou, de imediato, dois efeitos: despoletou as clusulas de

    8 Vrios diplomas legislativos incentivaram a atribuio do crdito a famlias com baixos recursos

    financeiros. Entre eles destaca-se o Community Reinvestment Act (CRA) de 1977 que estabeleceu directivas

    nesse sentido, nomeadamente, a no discriminao entre os clientes bancrios. 9 Subprime significa abaixo da taxa prime, isto , a taxa de juro que os Bancos cobram aos clientes de risco

    alto. Trata-se do crdito habitao destinado ao extracto social com rendimentos mais baixos e numa

    situao econmica mais instvel. A nica garantia exigida pelas Entidades Bancrias, neste tipo de

    emprstimos, o imvel. O subprime surgiu quando a Reserva Federal Norte-Americana baixou as taxas de

    juro para estimular o mercado imobilirio. Esta descida ficou a dever-se ao elevado nmero de

    desempregados e ao diminuto investimento empresarial. Posteriormente, quando a Reserva Federal Norte-

    Americana comeou a subir de novo os juros as famlias viram-se incapazes de saldar as suas dvidas. Nos

    subprimes temos as categorias AB, B e BB. 10 MENEZES CORDEIRO, Antnio A Crise Planetria, ob. cit., pp. 266, enumera trs tipos de crditos

    passveis de serem concedidos, consoante o rendimento auferido pelas famlias. Em primeiro, temos o

    financiamento fechado, cujo crdito era concedido aos particulares com rendimentos capazes de suportar

    todas as obrigaes contratuais: o capital e os juros. Em segundo, temos o financiamento especulativo, cujo

    crdito era atribudo aos particulares com rendimentos capazes de pagar os juros, mas no o capital. Por fim,

    temos o financiamento em pirmide que atribudo aos particulares que no tm meios de liquidar nem o

    capital nem os juros, pelo que vem-se obrigados a endividar-se continuamente.

  • 15

    incumprimento nos contratos em que era parte e colocou fim aos contratos em que era

    contraparte. A falncia deste Banco foi a pedra de toque da crise mundial, a qual

    despoletou consequentemente um clima de desordem nos mercados internacionais. Estava

    lanada a contaminao escala mundial.

    A crise, inicialmente, Norte-Americana, em virtude da onda de globalizao vivida,

    rapidamente contagiou a Europa. Portugal foi severamente afectado pela crise econmico-

    financeira mundial. Todos ns conhecemos as manifestaes da crise, seja nos cortes dos

    vencimentos, no aumento dos preos dos produtos, na especulao dos mercados bolsistas,

    na interveno da TROIKA e do Programa de Assistncia Econmica e Financeira a

    Portugal.

    No mbito do crdito habitao, verifica-se um aumento do incumprimento das famlias

    portuguesas, o designado crdito malparado. No contexto da actual crise, muitos

    particulares no conseguem cumprir as suas obrigaes contratuais decorrentes da

    celebrao do contrato de crdito habitao, levando ao aumento do crdito malparado11.

    O incumprimento neste sector fica a dever-se a diversos factores, entre eles, o aumento da

    taxa de desemprego em resultado da diminuio do consumo e da produo, levando

    perda da capacidade econmica e ao aumento das taxas de juros. O no pagamento das

    prestaes do crdito habitao pode, no limite, levar a execues hipotecrias e

    consequente perda de casa por muitas famlias portuguesas. Uma interveno

    Governamental tornou-se, ento, imperativa.

    11 O incumprimento no crdito habitao apresenta valores mais baixos do que no crdito ao consumo

    porque as famlias deixam primeiro de cumprir os crditos ao consumo. Quando o incumprimento se verifica

    no mbito do crdito habitao as famlias j se encontram em situao de insolvncia grave.

  • 16

    2. O Contrato de Mtuo

    O crdito habitao constitui um contrato de mtuo bancrio, o qual consubstancia uma

    modalidade especial de mtuo que se entronca no mtuo civil e no mtuo comercial12.

    Importa, assim, comear por analisar o mtuo civil e o mtuo comercial para depois nos

    debruarmos sobre o mtuo bancrio.

    2.1. O Mtuo Civil

    O contrato de mtuo civil, ou tambm designado de emprstimo de coisas fungveis,

    encontra-se regulado nos artigos 1142. e seguintes do Cdigo Civil. O referido artigo,

    reproduzindo o artigo 1813 do Cdigo Civil Italiano13-14, define o mtuo como o contrato

    pelo qual uma das partes empresta outra dinheiro ou outra coisa fungvel, ficando a

    segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo gnero e qualidade. A partir da noo

    avanada pelo Cdigo Civil podemos concluir que so trs os elementos essenciais deste

    tipo contratual: a entrega da coisa pelo mutuante ao muturio (datio rei), o objecto

    mutuado corresponde a dinheiro ou a uma coisa desde que fungvel15, e, por fim, a

    obrigao de restituir outro tanto do mesmo gnero e qualidade (o tantundem eiusdem

    generis).

    No mbito civilstico, o contrato de mtuo caracteriza-se por ser um contrato tpico e

    nominado. Designam-se por contratos tpicos os que possuem um nome prprio (nomen

    iuris) que os distingue dos demais, ou seja, aqueles que a lei reconhece como categoria

    jurdica, e por contratos nominados os que constituem objecto de uma regulamentao

    legal especfica (artigo 1142. e ss)16.

    12 MARTINS, Andreia Marques, Do Crdito Habitao, ob. cit., pp. 744. 13 O mtuo civil integra a categoria dos contratos de crdito semelhana da abertura de crdito, do leasing e

    do factoring. 14 O Codice Civile define o mtuo como o contrato pelo qual uma parte entrega outra uma determinada

    quantidade de dinheiro ou de outra coisa fungvel, e esta se obriga a restituir outra coisa da mesma espcie

    e qualidade, RENDINHA, Joo, Contrato de Mtuo, in Direito das Obrigaes, Volume III, Organizado

    por MENEZES CORDEIRO, 2. Edio, Lisboa, AAFDL, 1991, pp. 187. 15 De acordo com o artigo 207. CC so fungveis as coisas que se determinam pelo seu gnero, qualidade e

    quantidade quando constituam objecto de relaes jurdicas. Com efeito, a fungibilidade das coisas

    determina-se pelo facto de estas serem passveis de substituio por outras coisas do mesmo gnero,

    qualidade e quantidade. 16 MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, Volume III Contratos em Especial, 8. Edio,

    Coimbra, Almedina, 2013, pp. 345-346. Os contratos tpicos e nominados correspondem s espcies

    negociais mais importantes no comrcio jurdico. So contratos tpicos e nominados a compra e venda, a

    doao, a sociedade, a locao, o mandato, o depsito, entre outros. Porm, a agitao da vida econmica e

  • 17

    O mtuo civil distingue-se, igualmente, pelo seu carcter real quoad constitutionem, o qual

    tem sido objecto de grande divergncia doutrinria. A doutrina maioritria entende que o

    mtuo um contrato real quoad constitutionem, porque se trata de um contrato cuja

    constituio depende da entrega da coisa objecto do contrato, pelo que sem a traditio o

    mesmo no fica constitudo17. No basta, assim, o mero encontro de vontades. Contudo, a

    entrega da coisa no tem de ser material, existindo, igualmente, entrega nas situaes em

    que se disponibiliza juridicamente ao muturio determinadas quantias. O artigo 1142. do

    Cdigo Civil parece afirmar o carcter real quoad constitutionem do mtuo, uma vez que

    coloca a entrega das coisas fora da fase de execuo do contrato e a insere na sua fase

    formativa. Por outro lado, a redaco do referido artigo aproxima-se das formulaes dos

    outros contratos reais quoad constitutionem (artigos 1121., 1129. e 1185. do Cdigo

    Civil), afastando-se do modelo dos contratos consensuais (artigos 1022. e 1031. do

    mesmo diploma legislativo). Esta a posio seguida por PIRES DE LIMA, ANTUNES

    VARELA18, MENEZES LEITO19, CUNHA GONALVES20, JOS MARIA PIRES21 e

    ANDREIA MARQUES MARTINS22. A entrega da coisa um elemento constitutivo do

    contrato de mtuo, pelo que sem esta o contrato no ser vlido e no produzir efeitos. A

    contrario sensu, JOO DE CASTRO MENDES considera que a formao do contrato de

    social, criadora de novas necessidades, leva, a todos os instantes, os interessados a procurarem novas

    solues contratuais fora dos esquemas formais da lei, surgindo, desta forma, os contratos atpicos e

    inominados. So aqueles que as partes, ao abrigo do princpio da liberdade contratual, criam fora dos

    modelos traados e regulados na lei. 17 Tambm no mbito do Direito Romano, o mtuo era qualificado como um contrato real quoad

    constitutionem.

    No Code Civil Francs de 1804, o contrato de mtuo, bem como o contrato de comodato constituam

    modalidades do contrato de emprstimo tendo, assim, natureza real quoad constitutionem. De igual forma, o

    artigo 1813 do Codice Civile Italiano adoptou a natureza real quoad constitutionem. Por ocasio da

    elaborao do Brgerliches Gesetzbuch (BGB), a natureza real quoad constitutionem do contrato de mtuo

    foi questionada, tendo o projecto do redactor principal qualificado expressamente o mtuo como um contrato

    consensual (605). No entanto, no foi esta a soluo consagrada na verso definitiva do BGB, onde foi

    expressamente estipulada a natureza real quoad constitutionem do contrato ( 607). Em 2001, com a Reforma

    do Direito das Obrigaes Alemo, passou a adoptar-se a tese da consensualidade do mtuo (novo 488

    BGB), MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit., pp. 347. 18 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, Comentrio ao Artigo 1142., Volume

    2, 4. Edio Revista e Actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 761-762. 19 MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit., pp. 349-351. 20 CUNHA GONALVES, Lus, Tratado de Direito Civil, Volume VIII, Coimbra, Coimbra Editora, 1934,

    pp. 265. 21 JOS MARIA PIRES, Direito Bancrio, As Operaes Bancrias, Volume II, Lisboa, Editora Rei dos

    Livros, 1995, pp. 201-202. 22 A entrega da coisa no traduz um mero acto de execuo do contrato mas constitui um elemento

    integrante do mesmo, o que significa que sem a entrega da coisa, o contrato no fica concludo, podendo

    existir quanto muito, uma promessa de mtuo, MARTINS, Andreia Marques, Do Crdito Habitao,

    ob. cit., pp. 745.

  • 18

    mtuo no est dependente da entrega da coisa, mas to-s do encontro de vontades das

    partes contratantes, dado que o contrato de mtuo no um contrato real, constituindo, ao

    invs, um contrato consensual (artigo 408., n. 1 do CC)23. A cesso da coisa mutuada

    considerada um acto de execuo do prprio contrato de mtuo e no um elemento

    integrante do negcio. VAZ SERRA afirma ser possvel celebrar contratos consensuais de

    mtuo ao abrigo do princpio da liberdade contratual (artigo 219. CC), pelo que estes

    consubstanciam contratos inominados ou atpicos24. Nas palavras deste autor, no existe lei

    ou princpio de ordem pblica que obstem realizao de contratos consensuais de mtuo.

    Entendemos que o contrato de mtuo, na sua configurao actual, um contrato real

    quanto sua constituio, na medida em que a simples declarao de vontades das partes

    no basta para que o contrato se forme e para que o muturio cumpra a sua obrigao. Esta

    parece ser a posio que est em maior conformidade com a letra da lei, dado que o artigo

    1144. CC estabelece que o muturio se torna proprietrio da coisa mutuada com a entrega

    pelo mutuante, pelo que tem subjacente a ideia de que por mero acordo das partes no se

    transmitir a propriedade da coisa. No havendo entrega da coisa objecto do contrato este

    ser nulo. Contudo, podemos convert-lo no intuito de ter um efeito jurdico equivalente,

    designadamente, atravs do contrato-promessa de mtuo (pactum de mutuo dando ou de

    mutuo dando et accipiendo), sendo este tipo contratual aquele em que os contraentes ou

    um deles se obrigam a celebrar um contrato de mtuo. Para estarmos perante um contrato

    de mtuo ser necessrio que as partes, cumprindo o contrato-promessa, celebrem um novo

    contrato (o contrato de mtuo prometido)25.

    O mtuo ainda um contrato real quoad effectum, uma vez que a celebrao do mesmo

    implica a produo de efeitos reais. Com a celebrao do contrato de mtuo a propriedade

    do dinheiro ou da coisa fungvel transfere-se do mutuante para o muturio (artigo 1144.

    23 O referido autor entende que a expresso empresta, constante do artigo 1142. do CC, deve ser

    entendida como pr disposio de, entregando ou permitindo que o muturio tome, ou vinculando-se a

    entregar, CASTRO MENDES, Joo, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 1985, pp.

    309-310. O BGB, com a reforma de 2000, passou a considerar o mtuo um contrato consensual. Em sentido

    diverso, o Cdigo Civil Italiano, Francs e Espanhol. 24 Vide, neste sentido, ADRIANO VAZ SERRA, Notas Acerca do Contrato de Mtuo, in Revista de

    Legislao e Jurisprudncia n. 93, Coimbra, Coimbra Editora, 1960-1961, pp. 99. 25 Idem, pp. 66.

  • 19

    CC)26. Com o efeito translativo do mtuo, o mutuante perde o direito real de propriedade

    (ius in re), passando a ser titular de um direito de crdito (de restituio) sobre o muturio

    (ius ad rem). O mutuante deixa de ter um direito absoluto, tornando-se titular de um direito

    relativo.

    A doutrina predominante entende que o mtuo constitui um contrato unilateral. Diz-se

    unilateral o contrato que gera obrigaes para apenas uma das partes, e bilateral, ou

    tambm designado por contrato sinalagmtico, o contrato sobre o qual recaem obrigaes

    para ambas as partes, sendo que estas obrigaes esto numa relao de

    correspectividade27. Existe, porm, alguma divergncia doutrinria em torno desta questo.

    PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA28, MENEZES LEITO29, JOS MARIA

    PIRES30 e CUNHA GONALVES31 entendem que se o mtuo se apresenta como um

    contrato real quoad constitutionem naturalmente um contrato unilateral, uma vez que a

    prestao do mutuante no objecto de uma obrigao, mas antes um pressuposto

    necessrio constituio do contrato. No entendimento destes AA, o mtuo apenas gera,

    para o muturio, a obrigao de restituir o capital ou a coisa fungvel, a que acresceria, no

    mtuo oneroso, a obrigao de pagamento dos juros. O contrato de mtuo somente emana

    obrigaes para o muturio, no existindo, por isso, uma relao de reciprocidade entre as

    partes. Posio contrria defendida por CARRESI32 que se pronuncia no sentido do

    carcter bilateral do contrato de mtuo, na medida em que, como o qualifica como um

    contrato consensual, sustenta a existncia de uma obrigao do mutuante de proporcionar

    ao muturio o gozo das coisas entregues, que surge em correspectividade com a obrigao

    26 MENEZES LEITO defende que um caso especial no mbito dos contratos reais quoad effectum, uma

    vez que nestes se dispensa a entrega da coisa, enquanto no mtuo a entrega condio da prpria existncia

    do contrato, MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit. pp. 394. 27 Alguns AA conduzem os contratos unilaterais aos contratos gratuitos e os contratos bilaterais aos contratos

    onerosos, afirmando uma coincidncia entre estas categorias classificatrias. Todavia, esta coincidncia

    poder ser afastada, pois tem-se admitindo a existncia de contratos unilaterais onerosos (como o caso do

    mtuo retribudo) e de contratos bilaterais gratuitos (doao modal). 28 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, Comentrio ao Artigo 1142., ob. cit.,

    pp. 763. 29 MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit., pp. 354. 30 JOS MARIA PIRES, Direito Bancrio, ob. cit., pp. 202. 31 CUNHA GONALVES, Lus, Tratado de Direito Civil, ob. cit., pp. 265. 32 CARRESI, Franco, Il Comodato, Il Mutuo, Torino, Torinese, 1954, pp. 117 e 138 e ss, apud, MENEZES

    LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit., pp. 353.

  • 20

    do muturio pagar os juros33. Posio particular defendida por JOO RENDINHA34,

    autor que, embora preconize igualmente o carcter bilateral do contrato de mtuo,

    considera que o sinalagma se encontra entre o pagamento dos juros pelo muturio e a

    renncia temporria ao aproveitamento do bem mutuado pelo mutuante, constituindo esta

    ltima a contraprestao deste.

    O mtuo civil pode ainda ser gratuito ou oneroso. gratuito quando as partes

    convencionam, expressa ou tacitamente, o no pagamento de juros como retribuio;

    oneroso quando implique atribuies patrimoniais para ambas as partes, isto , a cedncia

    do capital ou da coisa fungvel por parte do mutuante e o pagamento de juros por parte do

    muturio. O mtuo oneroso aquele que implica esforos econmicos para ambas as

    partes. Assim sendo, nos termos do artigo 1145., n. 1 do CC35, caso as partes contratuais

    convencionem o pagamento de juros, como retribuio do mtuo, estaremos perante um

    contrato oneroso36. Em caso de dvida sobre a inteno dos contraentes o mtuo presume-

    se oneroso37-38, existindo, desta forma, uma presuno de onerosidade. Esta presuno

    verifica-se mesmo que o mtuo no verse sobre dinheiro, pelo que, tambm neste caso, o

    contrato ser oneroso. No mtuo oneroso, para alm da obrigao de restituio de coisa

    fungvel ou da quantia emprestada, o muturio tem a obrigao de pagar juros (artigo

    1145., n. 2 CC)39.

    33 No direito alemo, a alterao operada no direito das obrigaes determinou a expressa qualificao do

    contrato de mtuo oneroso como contrato sinalagmtico, na medida em que a obrigao do mutuante de

    colocar disposio do muturio uma determinada quantia em dinheiro ou uma coisa fungvel surge em

    correspectividade com a obrigao de pagamento de juros (novo 488 BGB), Idem, pp. 393. 34 JOO RENDINHA, Contrato de Mtuo, ob. cit., pp. 192-193. 35 O referido artigo teve como fonte o disposto no artigo 1815 do Cdigo Civil Italiano. 36 Soluo diversa vigorava no mbito do Cdigo de Seabra em que o mtuo constitua um contrato

    essencialmente gratuito (artigos 1523. e ss do Cdigo Civil de 1867), uma vez que a estipulao de qualquer

    remunerao o convertia num contrato de usura. O mtuo consistia na cedncia a ttulo gratuito de uma coisa

    para que o muturio dela se servisse, ficando este obrigado a restituir coisa equivalente. 37 A referida presuno legal pode ser ilidida pelas partes mediante prova em contrrio, uma vez que se trata

    de uma presuno ilidvel, nos termos do artigo 350., n. 2 CC. MENEZES CORDEIRO considera que a

    presuno de onerosidade no mbito das relaes civis no se justifica. Entende o referido autor que na vida

    em sociedade, as pessoas, no quadro da famlia ou entre amigos, emprestam, com frequncia, dinheiro entre

    si, sem intuito lucrativo. No se entende o porqu da presuno de onerosidade, que contraria o sentir

    social. O legislador inspirou-se, segundo parece, no artigo 1815. do Cdigo Italiano: simplesmente, o

    Cdigo Italiano operou a unificao entre o direito civil e o direito comercial; trata-se duma orientao que

    no foi seguida, entre ns e que parece, hoje, afastada. A presuno de onerosidade faz sentido nas relaes

    comerciais () no nas relaes civis, MENEZES CORDEIRO, Antnio, Manual de Direito Bancrio,

    4. Edio, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 625. 38 Esta a soluo seguida no ordenamento jurdico italiano (artigo 1815/1 do Cdigo Civil Italiano). 39 Os juros, legalmente considerados frutos civis nos termos do artigo 212., n. 2 CC, so considerados o

    produto ou rendimento de uma obrigao de capital, vencvel pelo simples decurso do tempo, e que varia em

  • 21

    No que concerne aos prazos, impe-se a distino entre o mtuo gratuito e o mtuo

    oneroso. Se estiver em causa um mtuo gratuito, o prazo considera-se estipulado a favor do

    muturio (artigo 779. CC). Estando em causa um mtuo oneroso, o prazo presume-se

    estipulado a favor de ambas as partes (artigo 1147. CC). Estas presunes so iuris

    tantum, pelo que podem ser ilididas mediante prova em contrrio (artigo 350., n. 2 CC).

    Enquanto no forem ilididas, nem o mutuante poder exigir a restituio antecipada, visto

    que o prazo se presume tambm estabelecido a favor do muturio, nem este ltimo poder

    antecipar o pagamento, a no ser que satisfaa os juros por inteiro, uma vez que o prazo

    tambm se presume fixado a favor do mutuante40. Com efeito, o artigo 1147. CC permite

    que o muturio cumpra antecipadamente o contrato de mtuo, desde que reembolse o

    mutuante dos juros por inteiro41. Por outro lado, o mutuante poder exigir o cumprimento

    antecipado da obrigao do muturio somente quando este se encontre numa situao de

    insolvncia ou deixe de realizar uma prestao, em caso de fraccionamento da obrigao

    (artigo 780. CC).

    Relativamente forma, o contrato de mtuo pode ser consensual ou solene, consoante o

    seu valor. Rege o artigo 1143. CC que os contratos superiores a 25.000 s sero vlidos

    se forem celebrados por escritura pblica ou por documento particular autenticado42 e os

    de valor superior a 2.500 , mas inferior a 25.000 , se constarem de documento assinado

    pelo muturio43-44. Abaixo de 2.500 existe liberdade de forma, podendo as partes

    escolher o modo de celebrao do contrato. A partir da redaco do referido artigo

    funo do valor do capital, da taxa ou cifra de remunerao e do tempo de privao. Trata-se de uma

    definio doutrinal, uma vez que nem o Cdigo Civil, nem a legislao avulsa avanam uma definio. Os

    juros distinguem-se quanto fonte e quanto finalidade. Tendo em conta o critrio da fonte podemos

    distinguir os juros convencionados pelas partes (juros convencionados, voluntrios ou negociais) e os juros

    que decorrem de normas legais supletivas (juros legais). J o critrio da finalidade distingue os juros

    remuneratrios (aqueles que visam remunerar o capital disponibilizado) dos juros moratrios (visam

    indemnizar os danos causados pelo atraso no cumprimento da obrigao). 40 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, Comentrio ao artigo 1147., ob. cit.,

    pp. 772. 41 A contrario sensu, no mtuo bancrio o cumprimento antecipado do capital diminui os encargos

    remuneratrios devidos pelo muturio. 42 A escritura pblica , no entanto, dispensada caso seja adoptado o procedimento especial de transmisso,

    onerao e registo de imveis, constante do Decreto-Lei n. 125/2013, de 30 de Maio. 43 Na vigncia do Cdigo de Seabra exigia-se documento assinado pelo muturio para prova do mtuo de

    valor superior a quatro mil escudos e escritura pblica quando estivesse em causa um mtuo que excedesse

    os oito mil escudos. 44 Os valores referidos no artigo 1143. CC foram alterados com o Decreto-Lei n. 116/2008, de 4 de Julho.

    Antes desta alterao os valores eram 20 000 e 2 000 .

  • 22

    podemos concluir que o mtuo um contrato primordialmente no formal (respeitando-se,

    assim, a regra geral do artigo 219. CC), dado que s acima de certos valores estar sujeito

    a forma especial.

    No sendo respeitada a forma do contrato de mtuo, nos casos em que este esteja

    obrigatoriamente sujeito a forma, a consequncia a nulidade do contrato (artigo 220.

    CC). De acordo com o regime geral da nulidade, estipulado no artigo 289., n. 1 do

    mesmo diploma legislativo, ter de ser restitudo tudo o que tenha sido prestado.

    2.2. O Mtuo Comercial

    Paralelamente ao mtuo civil existem outras modalidades especiais de mtuo de que so

    exemplos o mtuo mercantil e o mtuo bancrio. Ser do mtuo mercantil, ou tambm

    designado de emprstimo mercantil, que trataremos, de seguida, sucintamente.

    De acordo com a teoria do acessrio consagrada no artigo 394. do Cdigo Comercial

    (doravante, Cd. Com.), o mtuo comercial quando a coisa cedida seja destinada a

    qualquer acto mercantil45. A qualificao do mtuo como comercial pode resultar de um

    elemento objectivo - o destino comercial da coisa cedida ou de um elemento subjectivo

    a qualidade de comerciante de uma das partes. O artigo 394. do Cd. Com. atenta ao

    elemento objectivo.

    A natureza comercial do mtuo destaca-se, essencialmente, em dois aspectos, pelo que

    podemos concluir que o emprstimo mercantil tem poucas especificidades em relao ao

    mtuo civil.

    Em primeiro, o contrato sempre oneroso (artigo 395. do Cd. Com.), sendo que a

    retribuio corresponder, na falta de conveno em contrrio, taxa legal de juro

    calculada sobre o valor da coisa cedida. Independentemente da expresso de vontade das

    partes o mtuo comercial sempre oneroso. Assim, o regime comercial no diferente do

    regime consagrado actualmente no artigo 1145., n. 1, in fine da Lei Civil, uma vez que o

    mtuo presume-se oneroso em caso de dvida. H, no entanto, uma taxa especial para os

    juros comerciais que consta do artigo 102., 3 e 4 do Cd. Com.. A referida taxa no

    45 primeira vista, estaramos perante uma prefigurao do mtuo de escopo. Contudo, o referido preceito

    comercial no exige que as partes estipulem um determinado destino para a coisa mutuada. O destino

    mercantil ser, assim, um mero facto jurdico na disponibilidade do muturio, MENEZES CORDEIRO,

    Antnio, Manual de Direito Bancrio, ob. cit., pp. 627.

  • 23

    pode ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu sua mais

    recente operao principal de refinanciamento efectuada antes do 1. dia de Janeiro ou de

    Julho, consoante se esteja, respectivamente, no 1. ou no 2. semestre do ano civil,

    acrescido de sete pontos percentuais46.

    Em segundo, quando celebrado entre comerciantes, o mtuo comercial admite, seja qual

    for o seu valor, todo o gnero de prova (artigo 396. Cd. Com.). Esta liberdade de prova

    deve ser entendida como liberdade de forma, inexistente no mtuo civil de valor igual ou

    superior a 2.500 . Esta ligeireza de forma compreende-se atendendo s necessidades da

    prtica comercial.

    de concluir que, em virtude da escassa regulao legal do mtuo comercial,

    imprescindvel o recurso subsidirio s normas do Cdigo Civil, de acordo com o artigo 3.

    do Cd. Com..

    2.3. O Mtuo Bancrio

    2.3.1. Noo

    O mtuo bancrio de entre todas as mencionadas modalidades de mtuo aquela que

    particular importncia assume para o tema que nos propomos analisar.

    O mtuo bancrio - tambm denominado por bank loan, darlehensvertrag, prt bancaire,

    prestamo bancrio - consiste num contrato mediante o qual uma das partes, um Banco,

    tambm designado de mutuante, empresta, por um perodo de tempo determinado, dinheiro

    outra parte, seu cliente, habitualmente designado de muturio, constituindo-se este ltimo

    no dever de o restituir47. Para alm de restituir o dinheiro emprestado, o muturio incorre,

    igualmente, no dever de pagar os juros. O mtuo bancrio utilizado pelas Instituies

    Bancrias para conceder crdito48, tendo, assim, uma funo econmica de satisfao de

    46 Entendemos que a norma do artigo 395. deve ser interpretada no sentido de estabelecer uma mera

    presuno porque, mesmo entre comerciante, as partes podem, ao abrigo do princpio da autonomia privada,

    decidir celebrar contratos de mtuo gratuitos. 47 JOS ENGRCIA ANTUNES, Os Contratos Bancrios, in Estudos em Homenagem ao Professor

    Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 96, define o mtuo bancrio como o

    contrato pelo qual o Banco entrega ou se obriga a entregar uma determina quantia em dinheiro ao cliente,

    ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo gnero e qualidade, acrescido dos respectivos juros. 48 Pelo que o mtuo constitui uma das operaes bancrias previstas no artigo 362. do Cd. Com. que dispe

    que so comerciais todas as operaes de Bancos tendentes a realizar lucros sobre numerrios, fundos

  • 24

    uma necessidade imediata de capital por partes dos seus clientes. Por conseguinte, o mtuo

    bancrio um contrato de mtuo semelhana do mtuo civil e do mtuo comercial.

    O mtuo bancrio est sujeito a regras especficas constantes do Decreto-Lei n. 344/78, de

    17 de Novembro49. Este tipo contratual, ao constar da lista de operaes de Banco,

    referidas no artigo 362. do Cd. Com., classificado como um acto de natureza comercial,

    devendo ser regido pelos artigos 394. a 396. do Cd. Com., por fora do disposto no

    artigo 363. do mesmo diploma. Porm, as disposies comerciais revelam-se insuficientes

    para a compreenso das principais especificidades desta operao de crdito, da a

    necessidade de se recorrer simultaneamente ao Cdigo Civil50.

    2.3.2. As Particularidades de Regime

    O mtuo bancrio est sujeito a um regime jurdico prprio. No obstante estas

    particularidades de regime, o mtuo bancrio tem sempre um cunho civilista. De seguida,

    passamos a enumerar as especificidades do mtuo bancrio.

    No que aos sujeitos diz respeito, o mtuo bancrio demarca-se do mtuo civil por ter como

    mutuante uma Instituio de Crdito ou uma Sociedade Financeira51, dado que est vedado

    pblicos ou ttulos negociveis, e em especial as de cmbio, os arbtrios, os emprstimos, os descontos, as

    cobranas, as aberturas de crdito, a emisso e circulao de notas ou os ttulos fiducirios pagveis vista

    e ao portador. As operaes bancrias esto previstas no Ttulo IX, do Livro II do Cd. Com.. 49 Alterado pelo Decreto-Lei n. 83/86, de 6 de Maio, pelo Decreto-Lei n. 204/87, de 16 de Maio, pelo Decreto-Lei n. 429/87, de 25 de Outubro e pelo Decreto-Lei n. 58/2013, de 8 de Maio. 50 No Acrdo do Tribunal da Relao do Porto de 24 de Novembro de 2009, Processo n. 117/07.0TBSJP-

    A.P1, Relator: Rodrigues Pires, afirmou-se que o mtuo bancrio () mantm as caractersticas do mtuo

    na sua expresso civilstica. () Distingue-se de quaisquer outros no apenas por ser celebrado por um

    banqueiro, como mutuante, agindo no exerccio da sua profisso, mas tambm no que concerne forma, s

    taxas de juros e aos prazos, disponvel em www.dgsi.pt. 51 A superviso destas entidades est a cargo do Banco de Portugal (BdP) e a sua actividade regulada pelo

    Regime Geral das Instituies de Crdito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.

    298/92, de 31 de Dezembro, com todas as alteraes que lhe so atinentes. O Decreto-Lei n. 157/2014, de 24

    de Outubro, operou ltima alterao ao RGICSF. O Banco de Portugal definido na CRP, artigo 105.,

    como o Banco Central Nacional que colabora na definio e na execuo das polticas monetria e financeira

    e emite moeda nos termos da lei.

    O artigo 2. do RGICSF, alterado pelo Decreto-Lei n. 63-A/2013, de 10 de Maio, acolheu na ntegra a

    definio de IC consagrada na Directiva n. 77/780/CEE, de 12 de Dezembro de 1977, ao consagrar que so

    Instituies de Crdito as empresas cuja actividade consiste em receber do pblico depsitos ou outros

    fundos reembolsveis, a fim de os aplicarem por conta prpria, mediante a concesso de crdito. Todavia,

    o mencionado Decreto-Lei no se limitou a uma definio genrica procedendo, antes, a uma discriminao

    especfica das IC, no seu artigo 3.. So IC os Bancos, as Caixas Econmicas, a Caixa Central de Crdito

    Agrcola Mtuo e as Caixas de Crdito Agrcola Mtuo (denominado sistema integrado do crdito agrcola

    mtuo), as Instituies Financeiras de Crdito, as Instituies de Crdito Hipotecrio, as Sociedades de

    http://www.dgsi.pt/

  • 25

    a quaisquer outras empresas ou entidades a celebrao de contratos de mtuo bancrio. O

    mtuo bancrio distingue-se das outras espcies de mtuo por ser celebrado por uma

    Instituio Bancria, como mutuante, agindo no exerccio da sua profisso. Assim, neste

    tipo contratual surge necessariamente uma IC ou uma sociedade financeira52-53. A

    contraparte o muturio designada por cliente. Os clientes podem ser pessoas

    singulares ou colectivas e, dentro destas ltimas, associaes, sociedades ou instituies de

    natureza pblica ou privada.

    O mtuo bancrio tem, naturalmente, por objecto dinheiro. Apesar de os mtuos bancrios

    mais comuns corresponderem queles que tm por objecto dinheiro, a verdade que

    tambm esta espcie de mtuo no se reduz a esse objecto, uma vez que pode, igualmente,

    recair sobre outras coisas, desde que fungveis. Como supra mencionado, nos termos do

    artigo 207. CC, so coisas fungveis aquelas que se determinam pelo seu gnero,

    qualidade e quantidade, quando constituam objecto de relaes jurdicas. A fungibilidade

    das coisas determina-se pelo facto de estas serem passveis de substituio por outras do

    mesmo gnero, qualidade e quantidade.

    Investimento, as Sociedades de Locao Financeira (leasing), as Sociedades de Cesso Financeira

    (factoring), as Sociedades Financeiras para Aquisies a Crdito, as Sociedades de Garantia Mtua e outras

    empresas que, correspondendo definio do artigo anterior [leia-se, artigo 2.], como tal sejam qualificadas

    pela lei.

    As Sociedades Financeiras so, nos termos dos artigos 5. do RGICSF, empresas que no sendo IC,

    desenvolvam como actividade principal a emisso e a gesto de meios de pagamento, tais como cheques em

    suporte de papel, cheques de viagem em suporte de papel e cartas de crdito, a transaco, por conta prpria

    ou da clientela, de instrumentos do mercado monetrio e cambial, instrumentos financeiros a prazo e opes

    e operaes sobre divisas, taxas de juro, mercadorias e valores mobilirios; a participao em emisses e

    colocaes de valores mobilirios e a prestao de servios correlativos; a actuao em mercados

    interbancrios; a consultoria, a guarda, a administrao e a gesto de carteiras de valores mobilirios; a

    gesto e a consultoria em gesto de outros patrimnios. So Sociedades Financeiras as Sociedades

    Financeiras de Corretagem (dealers) e Sociedades Correctoras (brokers), as Sociedades Mediadoras dos

    Mercados Monetrios ou de Cmbios, as Sociedades Gestoras de Fundos de Investimento, as Sociedades

    Gestoras de Patrimnios, as Sociedades de Desenvolvimento Regional, as Agncias de Cmbios, as

    Sociedades Gestoras de Fundos de Titularizao de Crditos, outras empresas que sejam como tal

    qualificadas pela Lei e a FINANGESTE Empresa Financeira de Gesto e Desenvolvimento, S.A. (artigo

    6.). Podemos, assim, concluir que as Instituies Bancrias, quer na modalidade de IC, quer na modalidade

    de Sociedades Financeiras esto sujeitas, no que respeita sua constituio, ao princpio da tipicidade. Neste

    sentido, vide, CALVO DA SILVA, Joo, Direito Bancrio, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 179 e ss e

    SARAIVA MATIAS, Armindo, Direito Bancrio, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 25 e ss. 52 Enumerao resultante do Decreto-Lei n. 252/2003, de 17 de Outubro, que alterou a epgrafe X-A do

    Regime Geral das Instituies de Crdito e Sociedades Financeiras (RGICSF). 53 Neste trabalho utilizaremos o termo Banco para designar globalmente as IC e as Sociedades Financeiras

    enquanto entidades legalmente habilitadas a praticar, em termos profissionais, actos bancrios.

  • 26

    No que concerne forma, o mtuo bancrio possui uma especificidade em relao ao

    mtuo civil e ao mtuo comercial. O artigo nico do Decreto-Lei n. 32 765, de 29 de

    Abril de 1943, impe que os contratos de mtuo ou de usura, seja qual for o seu valor,

    quando feitos por estabelecimentos bancrios autorizados, podem provar-se por escrito

    particular, mesmo que a outra parte no seja comerciante54.

    No que concerne aos prazos, o artigo 4., n. 1 e 2 do Decreto-Lei n. 58/2013, de 8 de

    Maio, procede qualificao das operaes de concesso de crdito, por Instituies de

    Crdito ou parabancrias, em crditos de curto, de mdio e de longo prazo, sendo que o

    vencimento da obrigao do muturio ter de estar obrigatoriamente determinado (artigo

    5., n. 5 do Decreto-Lei n. 58/2013)55-56. De acordo com o n. 1 do artigo 5., os prazos

    devem ser contados a partir da data em que os fundos so colocados disposio do

    beneficirio e terminam na data da liquidao final e integral da operao. Deste modo, a

    obrigao assumida pelo muturio constitui sempre uma obrigao a termo ou a prazo, na

    medida em que as partes estabelecem um limite, que, uma vez ultrapassado, opera ao

    vencimento imediato da obrigao. Nos termos do artigo 4., n. 2 do referido Decreto-Lei,

    os crditos so considerados de curto prazo quando o prazo de vencimento no exceder um

    ano, de mdio prazo quando o prazo for superior a um ano mas inferior a cinco anos, e de

    longo prazo quando o prazo de vencimento exceder os cinco anos57.

    Para alm da obrigao de restituio de outro tanto do mesmo gnero do que foi recebido

    (restituio do tantundem eiusdem generis), o muturio incorre ainda na obrigao de

    pagar os juros, obrigao esta que est no cerne da figura do mtuo bancrio58, sendo esta

    54 Vide, no mesmo sentido, o Acrdo do Supremo Tribunal de Justia de 30 de Outubro de 1979, in Revista

    de Legislao e Jurisprudncia, ano 113, Coimbra, Coimbra Editora, 1980, pp. 122. 55 SIMES PATRCIO, Jos, Direito do Crdito: Introduo, Lex Edies Jurdicas, Lisboa, 1994, pp.

    64, com as alteraes decorrentes da aprovao do Decreto-Lei n. 58/2013, de 8 de Maio. 56 O artigo 5., n. 5 tem carcter imperativo e pretende dar segurana no s ao muturio, pois este sabe de

    antemo o termo da sua prestao, mas tambm ao mutuante que fica a saber que, em caso de incumprimento

    da obrigao, esta vence-se automaticamente no termo do prazo estipulado pelas partes. Esta obrigatoriedade

    de estabelecimento do vencimento da obrigao do muturio permite-nos, mais uma vez, distinguir o mtuo

    civil do mtuo bancrio, pois o Cdigo Civil, no artigo 1148., prev a possibilidade de no se fixar um prazo

    quer no mtuo gratuito, quer no mtuo oneroso. 57 Antes das alteraes operadas pelo Decreto-Lei n. 429/79, de 25 de Outubro, o crdito a mdio prazo no

    podia ter um prazo de vencimento superior a sete anos e o crdito a longo prazo tinha um prazo de

    vencimento superior a sete anos. 58 O Cdigo Civil consagrou o pagamento de juros como uma espcie de obrigao nos artigos 559. a 561.,

    uma vez que os juros no tm apenas a ver com o mtuo oneroso, antes se ligando a numerosas outras

    situaes.

  • 27

    matria a que nos permite distinguir, in concretu, o mtuo civil do mtuo bancrio. O juro

    a remunerao que deve ser paga, pelo beneficirio do crdito, ao credor pelo servio que

    este lhe presta, quando lhe permite o uso de uma soma de dinheiro durante determinado

    perodo de tempo59.

    A obrigao de pagar juros tem carcter acessrio da obrigao principal de restituio do

    capital. A prestao de juros no tem de ser necessariamente pecuniria mas, em regra,

    assume esta forma. Os juros so susceptveis de diversas classificaes como vimos supra.

    Assim, temos os juros voluntrios e os juros legais, consoante resultem da vontade das

    partes ou da lei; os juros remuneratrios e os juros moratrios, conforme visem a

    retribuio do capital mutuado ou o ressarcimento dos danos causados pela mora na

    restituio60 e, por fim, os juros compensatrios e os juros compulsrios, quando

    pretendam, respectivamente, repor a degradao do capital devido ou incitar o devedor ao

    pagamento61.

    Actualmente, as taxas de juros cobradas pelos Bancos esto praticamente liberalizadas nos

    termos do n. 2 do Aviso n. 3/93, de 20 de Maio, do Banco de Portugal62-63. A taxa de juro

    livremente negociada entre a IC e o cliente uma das componentes do preo a pagar pela

    obteno do emprstimo. o cliente que tem de suportar os encargos e as despesas

    decorrentes do mtuo e, como tal, deve ser ele a comparar as vrias propostas com base na

    Taxa Anual Efectiva (TAE) em que se traduz o custo do crdito. A TAE reflecte, numa

    base anual, todos os custos associados ao emprstimo. Esta taxa engloba, para alm dos

    juros remuneratrios, os encargos obrigatrios, designadamente as comisses de

    emprstimo, o seguro de vida e o seguro multirriscos. Todavia, os impostos, bem como os

    emolumentos notariais e registais no esto includos na TAE.

    59 Definio avanada por JOS MARIA PIRES, Direito Bancrio, ob. cit., pp. 191. 60 Relativamente s consequncias da mora do devedor, o artigo 7. do Decreto-Lei n. 344/78 estabelecia que

    as IC e Instituies Parabancrias podero cobrar, nessa hiptese, uma sobretaxa de 2%, a acrescer, em

    alternativa, taxa de juro que seria aplicada operao de crdito, se esta tivesse sido renovada, ou taxa de

    juro mxima permitida para as operaes de crdito activas de prazo igual quele por que durar a mora (n.

    1). Como aps a liberalizao das taxas de juro, a taxa de referncia passou a ser a taxa bsica, a alnea b)

    deixou de ter aplicao, pelo que a sobretaxa de 2%, em caso de mora, passou a acrescer mencionada taxa

    bsica. As partes podiam ainda estipular uma clusula penal moratria, mas esta no podia exceder o

    correspondente a quatro pontos percentuais acima das taxas de juros compensatrios referidas no n. 1 (taxa

    bsica), considerando-se reduzida a esse limite mximo sempre que o excedesse, sem prejuzo da

    responsabilidade criminal respectiva (n. 2). 61 Classificao adoptada por MENEZES CORDEIRO, Antnio, Manual de Direito Bancrio, ob. cit.,

    pp. 633. 62 Publicado no Dirio da Repblica, II Srie, n. 117, de 20 de Maio de 1993. 63 O referido Aviso estabelece que so livremente estabelecidas pelas IC e Sociedades Financeiras, as taxas

    de juro das suas operaes, salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal.

  • 28

    Ainda no tocante aos juros, o artigo 8., n. 1 do Decreto-Lei n. 58/2013 prev que as IC

    podem cobrar uma sobretaxa de 3% a acrescer aos juros remuneratrios a ttulo de juros

    moratrios, em consequncia da mora do devedor no cumprimento das prestaes64.

    Outra especificidade do mtuo bancrio o anatocismo. O anatocismo a prtica que

    consiste em fazer vencer juros sobre juros65. Trata-se de uma forma de multiplicar a taxa

    efectiva de certa operao. O artigo 560., n. 1 CC66 s permite o anatocismo por uma de

    duas vias: ou por conveno entre as partes posterior ao vencimento, ou mediante

    notificao judicial feita ao devedor para capitalizar os juros vencidos ou proceder ao

    pagamento, sob pena de capitalizao. No n. 2 do referido preceito, a capitalizao de

    juros admitida pelo perodo mnimo de um ano. O n. 3 considera inaplicveis as

    restries dos nmeros anteriores se forem contrrias s regras ou aos usos particulares do

    comrcio. Ao abrigo deste nmero 3, o anatocismo tende a ser admitido em funo dos

    usos bancrios, desde que alegados e provados em concreto, ou seja, necessrio provar

    que vigoram, no comrcio bancrio, regras ou usos particulares contrrios s restries do

    Cdigo Civil67. O artigo 7., n. 4 do Decreto-Lei n. 58/2013, de 8 de Maio, dispe que

    nos contratos em que tenha sido estipulada carncia de pagamento de juros, no pode

    haver capitalizao de juros remuneratrios correspondentes a um perodo inferior a trs

    meses, o que a contrario sensu quer dizer que a capitalizao possvel a partir de um

    perodo igual ou superior a trs meses. Conjugando o artigo 7., n. 4 com o artigo 560.,

    n. 3 CC, os juros bancrios vencidos das operaes activas correspondentes a um perodo

    mnimo de trs meses podem ser capitalizados mediante acordo com o cliente posterior ao

    vencimento ou a partir da notificao judicial feita ao mesmo cliente para capitalizar esses

    juros ou proceder ao seu pagamento, sob pena de capitalizao.

    64 Como referimos supra, durante a vigncia do Decreto-Lei n. 344/78, de 17 de Novembro, a sobretaxa a

    aplicar em caso de mora no podia exceder os 2%. 65 Vide LEITE DE CAMPOS para quem o anatocismo consiste na capitalizao dos juros de um capital, j

    vencidos e no entregues, com o fim de os fazer produzir novos juros, LEITE DE CAMPOS, Diogo,

    Anatocismo Regras e Usos Particulares do Comrcio, in ROA, Ano 48, 1988, pp. 38. 66 O Cdigo Civil Portugus seguiu, nesta matria, o artigo 1283 do Cdigo Italiano de 1942. 67 Acrdo do Tribunal da Relao de vora de 9 de Julho de 1996, in Colectnea de Jurisprudncia XXI,

    Tomo 4, 1996, pp. 278-280, Acrdo do Tribunal da Relao de Lisboa de 31 de Outubro de 1996, in

    Colectnea de Jurisprudncia XXI, Tomo 4, 1996, pp. 147-149, Acrdo do Tribunal da Relao de Lisboa

    de 7 de Julho de 1993, in Colectnea de Jurisprudncia XVIII, Tomo 3, 1993, pp. 151-152 e Acrdo do

    Tribunal da Relao do Porto de 16 de Maro de 1998, in Colectnea de Jurisprudncia, XXIII, Tomo 2,

    1998, pp. 206. No sector cooperativo, em virtude dos seus fins no lucrativos, o anatocismo vedado pela

    jurisprudncia.

  • 29

    3. O Crdito Habitao

    O crdito habitao constitui o contrato de crdito para a aquisio, a construo e a

    realizao de obras em habitao prpria permanente, secundria ou para arrendamento,

    bem como para aquisio de terrenos destinada construo de habitao prpria.

    3.1. A Regulamentao Legal do Crdito Habitao em Portugal, em

    Particular, os Regimes no Crdito Habitao

    O direito habitao assume no nosso ordenamento jurdico uma relevncia fulcral em

    virtude da Declarao Universal dos Direitos do Homem68, que contempla o direito

    habitao no mbito do direito a um nvel de vida suficiente (artigo 25., n. 1), e do Pacto

    Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais69 (artigo 11., n. 1).

    Contudo, a Constituio da Repblica Portuguesa70 o diploma legislativo que maior

    relevncia confere habitao ao consagr-la como um direito fundamental no seu artigo

    65.. Este artigo est inserido no ttulo dos direitos econmicos, sociais e culturais

    correspondendo a um direito social. Sendo o direito habitao um direito fundamental

    dos cidados implica para a sua efectivao incumbncias especficas do Estado. O direito

    habitao prpria tem implcita a obrigao de o legislador adoptar regimes que facilitem

    o acesso aquisio de habitao prpria por parte dos cidados. Os sucessivos governos

    portugueses foram, na vigncia dos seus mandatos, desenvolvendo uma poltica

    habitacional direccionada ao apoio aquisio, construo e realizao de habitao

    prpria. Foi no mbito desta poltica habitacional que se promoveram os regimes de crdito

    habitao. O acesso habitao prpria desde sempre constituiu um investimento muito

    elevado. Tendo conscincia deste entrave, os nossos dirigentes polticos criaram linhas de

    crdito especficas no crdito habitao. O Decreto-Lei n. 328-B/86, de 30 de Setembro,

    com todas as alteraes que lhe so atinentes, instituiu os regimes de crdito.

    68 A Declarao Universal dos Direitos do Homem faz parte da Constituio formal portuguesa (artigo 16.,

    n. 2 CRP). 69 O mencionado Pacto vinculativo para Portugal desde 1978. 70 Outros ordenamentos jurdicos conferem, semelhana da Constituio da Repblica Portuguesa, especial

    ateno habitao. In concretu, a Constituio Sua (artigo 34.), a Constituio Espanhola (artigo 47.), a

    Constituio Santomense (artigo 48.), a Constituio Colombiana (artigo 51.), a Constituio Cabo-

    Verdiana (artigo 69.) e a Constituio Russa (artigo 40.).

  • 30

    Paralelamente ao regime geral foram criados regimes especiais que incluam o regime

    poupana-emigrante, o regime de crdito para deficientes e o regime das contas poupana-

    habitao. O sistema geral assentava em trs sub-regimes diferenciados: o regime geral do

    crdito (artigo 5. da Lei n. 59/2012), o regime do crdito bonificado (artigo 8. da Lei n.

    59/2012) e o regime do crdito jovem bonificado (artigo 14. da Lei n. 59/2012). O regime

    geral do crdito abrangia a concesso de crdito destinada aquisio, construo ou

    realizao de obras de conservao ordinria, extraordinria ou de beneficiao de

    habitao prpria permanente71, secundria ou para arrendamento. S recorriam a este

    crdito os agregados familiares que no cumprissem os requisitos de acesso aos regimes

    bonificados, pelo que podemos concluir que o recurso ao regime geral era residual.

    No que concerne aos regimes bonificados saliente-se a diferena entre o regime bonificado

    (artigos 8. a 13. da Lei n. 59/2012) e o regime jovem bonificado (artigo 14. a 17. do

    mesmo diploma). O regime bonificado era um regime comparticipado pelo Estado, tendo

    como condio de acesso o nvel de rendimentos anuais, no qual os muturios

    beneficiavam de uma taxa mais reduzida. J o regime jovem bonificado era dirigido a

    jovens com idades at aos trinta anos ou a casais em que a soma das idades era inferior ou

    igual a sessenta anos. Nestes regimes, o Estado suportava a diferena entre a taxa praticada

    pelo Banco e a taxa suportada pelo devedor.

    Os regimes de crdito bonificado tinham um mbito mais restrito, visto que se limitavam a

    apoiar a aquisio, a construo ou a realizao de obras de conservao ordinria,

    extraordinria ou de beneficiao de habitao prpria permanente, ficando excludo o

    financiamento para aquisio, construo ou realizao de obras em habitao secundria

    ou para arrendamento. O Decreto-Lei n. 349/98, de 11 de Novembro, introduziu a

    possibilidade de recurso ao crdito bonificado para a realizao de obras nas partes comuns

    dos edifcios em propriedade horizontal, por parte dos proprietrios de fraces autnomas

    utilizadas como sua habitao prpria permanente (artigo 9.). Esta possibilidade ainda

    hoje se mantm luz da Lei n. 59/2012.

    A aprovao do mencionado Decreto-Lei constituiu um marco na poltica habitacional.

    Inicialmente, apenas estavam autorizadas a conceder crdito bonificado habitao a

    71 O artigo 4., al. e) da Lei n. 59/2012, de 9 de Novembro, define habitao prpria permanente como

    aquela onde o muturio ou este e o seu agregado familiar mantm, estabilizado, o seu centro de vida familiar.

  • 31

    Caixa Geral de Depsitos, o Montepio Geral e o Crdito Predial Portugus72. S no final

    da dcada de 80 e incios dos anos 90 que se deu a liberalizao do crdito habitao.

    Em 1986, o sector foi aberto banca comercial, dado que passou a poder conceder-se

    emprstimos no mbito do regime geral do crdito73, mas a concesso de crdito

    bonificado manteve-se como prerrogativa privada daquelas trs Instituies. A partir de

    1991 todos os Bancos foram autorizados a actuar nos vrios regimes de crdito74.

    As restries ao Oramento de Estado levaram o Governo, a 30 de Setembro de 2002, a

    acabar com os regimes bonificados. O artigo 1. do Decreto-Lei n. 305/2003, de 9 de

    Dezembro, revogou os regimes de crdito bonificado e do crdito jovem bonificado

    relativamente contratao de novas operaes de crdito, destinadas a aquisio, a

    construo e a realizao de obras de conservao ordinria, extraordinria e de

    beneficiao de habitao prpria permanente, contudo, manteve em vigor todas as

    operaes de crdito contratadas antes da revogao do respectivo regime.

    3.2. As Especificidades do Regime de Crdito Habitao

    O contrato de crdito habitao, enquanto contrato de mtuo bancrio, perfilha do

    mesmo regime. Contudo, apresenta vrias particularidades.

    3.2.1. Mtuo a Particulares

    No que concerne qualidade das partes contratuais, o contrato de crdito habitao ope

    as IC, enquanto entidades credoras (mutuantes), aos particulares, enquanto devedores

    (muturios). O crdito aos particulares destina-se a satisfazer necessidades da vida privada,

    in casu, a compra de habitao prpria.

    De acordo com o artigo 2., n. 1 RGICSF designam-se como IC as empresas cuja

    actividade consiste em receber do pblico depsitos ou outros fundos reembolsveis, a fim

    72 Estas Instituies eram designadas por Instituies especiais de crdito. As restantes Instituies Bancrias

    apenas podiam conceder crdito habitao no mbito do regime especial de crdito a emigrantes. 73 Apenas podia conceder emprstimos no mbito do regime do crdito bonificado e no regime do crdito

    jovem bonificado mediante autorizao prvia do Ministrio das Finanas. 74 Despacho n. 214/92, de 20 de Abril.

  • 32

    de os aplicarem por conta prpria mediante a concesso do crdito. No artigo 3. do

    RGICSF encontram-se enumeradas todas as IC.

    3.2.2. Mtuo Formal

    Neste ponto, salienta-se a alterao introduzida pelo Decreto-Lei n. 255/93, de 15 de

    Julho. No que concerne ao mbito objectivo deste diploma legislativo, este aplica-se ao

    contrato de compra e venda de imvel destinada habitao, com mtuo,

    independentemente da constituio de hipoteca, sempre que o mutuante seja uma IC

    autorizada a conceder crdito habitao (artigo 1.). Tais contratos podem ser celebrados

    por documento particular com reconhecimento das assinaturas (artigo 2., n. 1), ficando,

    contudo, sujeitos a registo (artigo 3.). Assim, exigida forma escrita para os contratos de

    mtuo, independentemente do seu valor, quando celebrados por estabelecimentos

    bancrios autorizados. O contrato de mtuo bancrio pode ser titulado por simples escrito

    particular independentemente do seu valor. No entanto, certas modalidades de mtuo

    bancrio impem a celebrao de escritura pblica ou documento particular autenticado75

    quando sejam garantidos por consignao de rendimentos ou hipoteca imobiliria

    voluntria. o caso da compra e venda com mtuo referente a prdio urbano ou fraco

    autnoma destinado habitao (crdito habitao). De igual forma, no crdito ao

    consumo o contrato tem de ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes.

    O Decreto-Lei n. 225/93 afasta o artigo 1144. CC relativo forma do mtuo civil e o

    artigo 396. do Cd. Com. relativo forma do mtuo comercial. Contudo, a inobservncia

    da forma do mtuo bancrio origina a nulidade do contrato, aplicando-se o regime geral do

    Cdigo Civil quanto a esta matria (artigo 220. do CC). A nulidade pode ser invocada a

    todo o tempo e por qualquer interessado (artigo 286. CC).

    3.2.3. Mtuo de Escopo

    Normalmente, o crdito habitao assume a forma de mtuo de escopo, dado que os

    emprstimos bancrios so normalmente realizados para um fim especfico: a aquisio, a

    construo ou a realizao de obras de conservao de habitao prpria permanente,

    secundria ou para arrendamento ou compra de terreno para o mesmo fim. No mtuo de

    75 Trata-se de documentos particulares assinados pelas partes perante o notrio nos termos prescritos nas leis

    notariais (artigo 363., n. 3 CC).

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    escopo (tambm designado por mtuo de destinao, finalizado ou afectado), o muturio

    fica adstrito a dar um determinado destino importncia recebida, anteriormente acordado

    com o mutuante. Os clientes, ao recorrem ao crdito, tm de apresentar um escopo

    admissvel e o dinheiro tem de ser efectivamente empregue no escopo apresentado. Trata-

    se de uma modalidade atpica do mtuo, uma vez que, na sua configurao tpica, o

    mutuante ficaria apenas com o direito restituio do capital e dos juros, e o muturio

    poderia usufruir de total liberdade para dispor do dinheiro.

    A doutrina distingue trs tipos de mtuo de escopo, consoante o emprstimo tome em

    considerao interesses pblicos ou interesses privados76: o mtuo de escopo legal, o

    mtuo de escopo legal facilitado e o mtuo de escopo voluntrio.

    O mtuo de escopo legal corresponde a financiamentos legalmente estabelecidos para fins

    especficos, em que o mutuante a Instituio Financeira e o muturio uma entidade que

    preenche os requisitos legalmente estabelecidos, ficando este ltimo adstrito a utilizar os

    financiamentos para os fins legalmente previstos, atravs de uma clusula de destinao77.

    O mtuo de escopo legal facilitado corresponde aos casos em que h a concesso de

    emprstimos em virtude da interveno do Estado ou de outra entidade pblica, atribuindo

    certas subvenes para facilitar a concesso de crdito, ou concedendo ele mesmo,

    directamente, o referido crdito, a taxas de juro mais baixas do que as de mercado. Em

    contrapartida, o particular fica obrigado a aplicar esse financiamento a um fim

    determinado, tornando-se esse fim objecto de incentivo pblico78.

    No mtuo de escopo voluntrio no h imposio legal de aplicao das quantias mutuadas

    a um fim convencionado, mas limites especficos utilizao dos financiamentos,

    resultantes da estipulao das partes.

    Em caso de incumprimento do escopo estipulado a IC poder resolver o contrato (artigo

    432. e ss CC), originando o vencimento imediato da obrigao de restituio79.

    O mtuo de escopo contrape-se ao mtuo livre (ou tambm designado por no finalizado

    ou no afectado) em que o mutuante no impe ao muturio uma finalidade a dar ao capital

    76 MENEZES LEITO, Lus, Direito das Obrigaes, ob. cit., pp. 424. 77 Exemplos do mtuo de escopo legal so os emprstimos bancrios que normalmente s so concedidos

    perante uma finalidade especfica comunicada aos Bancos. 78 o caso dos emprstimos aquisio de habitao que, at ao Decreto-Lei n. 305/2003, de 9 de

    Dezembro, eram objecto de bonificao de juros, sendo actualmente objecto de subveno pelo Estado

    atravs da possibilidade de deduo colecta em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas

    Singulares de parte do capital amortizado (artigo 85., n. 1, al. a) do Cdigo do Imposto sobre o Rendimento

    das Pessoas Singulares). 79 Contudo, a faculdade de resoluo por desrespeito do escopo deve estar contratualmente consignada.

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    mutuado, estando esta somente dependente da discricionariedade do muturio. So

    exemplos de mtuos livres o crdito pessoal e o crdito tesouraria. J o mtuo para

    aquisio de um imvel para habitao (crdito habitao), regulamentado pelo Decreto-

    Lei n. 349/98, de 11 de Novembro80, o crdito ao consumo81, o crdito ao sector das

    pescas82, bem como o crdito automvel constituem exemplos de mtuos de escopo.

    3.2.4. Mtuo a Longo Prazo

    O financiamento bancrio habitao insere-se na concesso de crdito a longo prazo, de

    acordo com o preceituado no artigo 4., n. 1 e 2 do Decreto-Lei n. 58/2013, de 8 de Maio,

    na medida em que, em regra, o seu prazo de vencimento superior a cinco anos. Para

    efeito da classificao das operaes de crdito, o prazo deve contar-se a partir da data em

    que os fundos so colocados disposio do respectivo beneficirio (artigo 5., n. 1) e

    termina na data da liquidao final e integral das operaes em causa. Prev-se,

    actualmente, que o prazo de vencimento do crdito habitao seja livremente fixado pelas

    partes e alterado ao longo da vigncia do contrato.

    3.2.5. Mtuo Oneroso

    O crdito habitao um contrato de mtuo bancrio oneroso porquanto implicar o

    pagamento de juros pelo muturio devedor, sendo que estes podem assumir a forma de

    juros remuneratrios ou de juros moratrios.

    80 O referido Decreto-Lei foi alterado pelo Decreto-Lei n. 137-B/99, de 22 de Abril, pelo Decreto-Lei n. 1-

    A/2000, de 22 de Janeiro, pelo Decreto-Lei n. 320/2000, de 15 de Dezembro (que procede sua

    republicao), pelo Decreto-Lei n. 231/2002, de 2 de Novembro, pelo Decreto-Lei n. 305/2003, de 9 de

    Dezembro, pela Lei n. 60-A/2005, de 30 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n. 107/2007, de 10 de Abril, pelo

    Decreto-Lei n. 222/2009, de 11 de Setembro, e pela Lei n. 59/2012, de 9 de Novembro. 81 O crdito ao consumo regulado pelo Decreto-Lei n. 133/2009, de 2 de Junho, que transps para a ordem

    jurdica interna a Directiva n. 2008/48/CE, de 23 de Abril, relativa a contratos de crdito aos consumidores,

    revogando o Decreto-Lei n. 359/91, de 21 de Setembro, que, no entanto, se mantm em vigor para os

    contratos celebrados antes de 1 de Julho de 2009. O seu mbito de aplicao bastante vasto incluindo o

    crdito de montantes compreendidos entre 200 e 75 000 , concedido a pessoas singulares, que actuem fora

    do mbito da sua actividade comercial ou profissional. E