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Florianópolis – 2014

Organizadoras

Ângela KretschmannEvanisa Helena Maio de Brum

FAZENDO A COISA CERTADIÁLOGOS ENTRE JURISTAS E PSICÓLOGOS

A PARTIR DE MICHAEL SANDEL

Rio Grande do Sul – 2014

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Este exemplar foi produzido com o apoio da Faculdade Inedi, Cesuca, que detém os direitos autorais da obra, sendo decisão do titular distribuir, gratuitamente ou não, exemplares da

obra, até esgotar a edição.Venda Proibida.

© Copyright 2014 Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Faculdade Inedi - CESUCA

Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha - RS.Rua. Silvério Manoel da Silva, 160 - Bairro Colinas

Fone: (51) 3396.1000 | www.cesuca.edu.br

Editora CONCEITO EDITORIAL

RevisoresAna MarsonCelso Augusto Nunes da ConceiçãoValdnei Martins Ferreira

Conselho EditorialAline da Silva PiasonAna Raquel KarkowDébora Silva de OliveiraEvanisa Helena Maio de BrumLauren ToniettoMárcia Elisabete Wilke FrancoMaúcha Sifuentes

Álvaro Filipe Oxley da Rocha - PUCRSAndré Karam Trindade - IMEDAntônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard - CESUCACelso Augusto Nunes da Conceição - CESUCADaniel Achutti - UNILASALLEElaine Harzheim Macedo - PUCRSGuilherme de Oliveira Feldens - CESUCAIelbo Marcus Lôbo de Souza - UFSEIngo Wolfgang Sarlet - PUCRSJaqueline Mielke Silva - IMEDKelly Lissandra Bruch - CESUCAPaulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira - UNISINOS

PresidenteSalézio Costa

EditoresAngela KretschmannEvanisa Helena Maio

de Brum

Assistente EditorialLourdes Fernandes Silva

Capa e DiagramaçãoPaulo H. Benczik

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898

F287

Fazendo a coisa certa – Diálogos entre juristas e psicólogos a partir de Michael Sandel - Organizadoras: Ângela Kretschmann; Evanisa Helena Maio de Brum - Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.164p.

ISBN 978-85-7874-388-8

1. Direito 2. Psicologia 3. Diálogo 4. Ética 5. Michael SandelI. Kretschmann, Ângela II. Brum, Evanisa Helena Maio de (organizadoras)

CDU – 340

Conceito EditorialRua Hipólito Gregório Pereira, 700 – 3º Andar

Canasvieiras – Florianópolis/SC – CEP: 88054-210Editorial: Fone (48) 3205-1300 – [email protected]

Comercial: Fone (48) 3240-1300 – [email protected]

www.conceitojur.com.br

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SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................... 7

1

FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA ........................ 15

Ângela Kretschmann Celso Augusto Nunes da Conceição

2

FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS DE JUSTIÇA DE SANDEL SOB O OLHAR DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA, COGNITIVA E COGNITIVO-COMPORTAMENTAL .................................................................... 43

Ana Raquel Menezes Karkow Maria Verônica Schmitz Wingen

Lauren Tonietto

3

FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS ..................................... 59

Camile Eltz de Lima Emerson de Lima Pinto

4

O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA ................... 75

Evanisa Helena Maio de Brum Fernanda Vaz Hartmann

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5

A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA ............................................... 85Guilherme de Oliveira Feldens

Ney Wiedemann Neto

6

SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL ...........................................101

Lauren Tonietto Andréia Mello de Almeida Schneider

Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes

7

SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA ERICH FROMM ..............113

Paula de Jesus Martins

8

QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO ..........123Maúcha Sifuentes

9

O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA .......................................................135Renato Selayaram

10

DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA .............................................................149

Aline da Silva Piason Débora Silva de Oliveira

Márcia Elisabete Wilk Franco

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PREFÁCIO

A reflexão sobre a coisa certa a fazer constitui uma reflexão moral e, como tal, fadada a um esvaziamento de sentido se praticada isola-damente. A reflexão moral é uma reflexão coletiva, daí a ideia de uma reflexão conjunta entre juristas e psicólogos, um diálogo aberto sobre a pessoa e o comportamento. A análise do indivíduo e do seu comporta-mento ocupa lugar especial na Psicologia, tanto quanto no Direito, por isso a ideia de um diálogo entre juristas e psicólogos a partir das situa-ções-problemas, reais, trazidas por Michael Sandel em seu livro Justiça – o que é fazer a coisa certa.

O resultado foi, como não poderia deixar de ser, uma experiência única de interação, diálogo e, muitas vezes, de espanto. Perceber como uma área distinta – e com a qual se necessita dialogar e compartilhar decisões – é uma experiência única, em especial nessa situação, levada a efeito a partir do desejo comum de partilhar algumas angústias teóricas e práticas, em que professores do Direito e professores da Psicologia pleitearam, de coração aberto, um espaço privilegiado e legítimo para debater o que todos desejam saber: o que é a coisa certa a fazer. O re-sultado pode ser parcialmente vislumbrado neste livro que agora vem a público, como uma pequena amostra do que foi discutido em conjunto. A partir das apresentações de cada grupo, questões para o debate foram postas pelo público e enfrentadas em conjunto. Sem dúvida, uma expe-riência que merece vir a público.

Na prática, Direito e Psicologia prestam auxílio mútuo buscando a solução de conflitos e paz social. No Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), o curso de Psicologia já possui seu núcleo jurídico, através do qual presta assessoria ao Judiciário acompanhando casos delicados envolvendo dilemas familiares. No mesmo sentido, a Psicologia necessita do Direito para orientações legais em casos de peri-

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go e de dano iminente. No mesmo sentido, o Serviço de Assistência Ju-rídica Gratuita (Sajug) do curso de Direito da Faculdade Inedi - CESU-CA precisa da Psicologia em casos envolvendo Direito de Família, em especial no caso de vulneráveis, menores e desassistidos. A colaboração e interlocução entre os cursos de Psicologia e de Direito não é apenas desejável, é necessária, e, nesse processo contínuo de aproximação, o Seminário realizado na Mostra Científica do Cesuca 2013 mostrou-se extremamente frutífero, permitindo, em especial, que vários professores das duas áreas se conhecessem mais, trocassem experiências, iniciassem um diálogo produtivo, que aqui agora é apresentado.

No presente livro, o primeiro capítulo traz como objeto principal a importância da linguagem para a Psicologia e para o Direito. Os auto-res, Ângela Kretschmann e Celso Augusto Nunes da Conceição, buscam identificar, nas relações entre pessoas, sociedade e o Direito, qual é o papel real da linguagem na busca de acordos de vontade que – a princí-pio – tem como objetivo chegar à coisa certa. Nesse caminho, o artigo procura mostrar o poder da linguagem nas relações humanas, o quanto se deve ao bom uso da linguagem a vitória em várias disputas, em deba-tes e em acordos, e o quanto podemos ser vítimas do seu mau uso, mas, acima de tudo, e antes de tudo, destacar que a linguagem no contexto de um diálogo envolvendo terapia (na Psicologia), ou interrogatório (no Direito), não é um objeto que se manipula simplesmente; é, antes, “a única coisa certa” que pode ser verdadeiramente compreendida.

No segundo capítulo, a reflexão segue com as autoras Ana Raquel Menezes Karkow, Maria verônica Schmitz Wingen e Lauren Tonietto, sob o título “Fazendo a coisa certa: as ideias de Justiça de Sandel sob o olhar das Psicologias Evolucionista, Cognitiva e Cognitivo-Compor-tamental”, apresentando relações entre as diversas abordagens com o Direito, para melhor compreender os mecanismos envolvidos no com-portamento moral.

As autoras partem do caso real trazido por Michael Sandel acerca do aumento do preço dos bens de consumo após a passagem de um furacão. Quem tinha qualquer coisa para vender ou serviço para prestar e cobrava muito mais depois da passagem do furacão foi tachado de ganancioso. As autoras apresentam uma análise do conceito de justiça e moral a partir de abordagens distintas da Psicologia.

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A Psicologia evolucionista dirá que normas jurídicas e morais existem, dado que o ser humano é compreendido a partir do paradigma das espécies culturais, capazes de relações sociais. A Psicologia Cogniti-va concebe que é antes através do pensamento que a qualidade da ação moral pode ser aferida, enquanto a Psicologia Cognitivo-Comporta-mental passa a focar sua análise não apenas no indivíduo, mas também no comportamento em si, que pode trazer compreensão sobre a própria essência do ser humano, em especial se observado o modo como o pró-prio indivíduo compreende determinado comportamento ou ação, ou, em outras palavras, como o indivíduo se percebe e percebe determinada situação. De outro lado, também é possível destacar as distorções cogni-tivas, que levam um indivíduo a concluir de modo equivocado acerca de determinado fato e, assim, pode enganar-se na decisão sobre uma ação a ser tomada. É interessante apontar como as autoras alinhavam o raciocí-nio fazendo brotar a complementariedade entre as distintas abordagens.

O terceiro capítulo do livro, de autoria de Camile Eltz de Lima e Emerson de Lima Pinto, principia com uma advertência: “Não defende-mos o Direito como a principal ou a mais importante das Ciências exis-tentes (superamos, aqui, o narcisismo). Pelo contrário, o Direito nada mais é que ciência jurídica e social aplicada e, por isso, imprescindível dialogar com outros ramos do saber”. Destacam a complexidade da so-ciedade contemporânea, enfatizando que “não há mais lugar para o ab-soluto, para o previsível, para a certeza e a segurança”. O resultado de in-segurança, em que vive um indivíduo que pertence a uma nova espécie de barbárie, são riscos imensos, que levam à concepção de “sociedade do risco”. Nesse cenário de risco, o Estado perde seu poder como agen-te da segurança: cenário de criminalidade globalizada, e então a busca no Direito Penal pela segurança perdida, com privilégio da tutela dos interesses do Estado, e não do indivíduo, e primazia da razão de Estado diante da razão jurídica, com uma lógica invertida, quando os autores chamam a atenção para um Direito de exceção, nada garantista, com o resgate de práticas inquisitivas e perversas. Tudo oposto para uma época de democracia que ainda tenta se globalizar e para a qual o indivíduo é que é valorizado.

O princípio da humanidade impede que o poder estatal aplique sanções que ofendam a dignidade humana, concluindo que a tortura não pode ser aceita, em nenhuma hipótese. Os autores não justificam a

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defesa contra a tortura apenas em argumentos jurídicos, mas também epistemológicos, demonstrando que a verdade não pode ser extraída da dor, o critério da verdade não está na tortura, lembrando, ainda, o dua-lismo entre corpo e espírito que a tortura refaz – a fala do sujeito que é torturado deixa de ser parte dele mesmo; é, antes, parte da verdade que o torturador impõe.

No quarto capítulo, sob o título “O utilitarismo e a felicidade na visão da Psicologia”, as autoras Evanisa Helena Maio de Brum e Fer-nanda Vaz Hartmann partem da questão sobre a possibilidade de se traduzir valores morais em termos monetários, discutindo o que são a moralidade e a felicidade, demonstrando a contínua fragilização dos valores morais, ao mesmo tempo em que a busca da felicidade parece suplantar qualquer outro valor, apontando, nessa linha, para a fragiliza-ção das instituições sociais e fragilização do próprio julgamento moral, e para a importância que a educação ganha nesse cenário, como a saída para a superação desse paradoxo.

No quinto capítulo, escrito por Guilherme de Oliveira Feldens e Ney Wiedemann Neto, sob o título “A justiça, a solidariedade e a vida boa”, são examinadas as obrigações de solidariedade entre membros do mesmo grupo. Os autores apresentam a concepção liberal de John Ra-wls, como deveres naturais ou obrigações consentidas, voluntárias: os primeiros, universais; os segundos, particulares. Ela exige que os direi-tos das pessoas sejam preservados, mas o cidadão tem o dever de não cometer injustiças, mas nenhuma obrigação especial com os compatrio-tas. O artigo analisa um terceiro tipo de obrigação moral que Sandel apresenta, com crítica ao individualismo e à neutralidade do Estado, uma neutralidade que só serve para esconder os valores de determinada sociedade, em especial, a ocidental. Surge, assim, a defesa das ideias de comunidade como fundamentais para o próprio indivíduo.

Para chegar a essa conclusão, os autores partem da própria crí-tica à concepção de pessoa dos teóricos liberais, em especial de Rawls, entendendo que a pessoa real é inserida em um contexto comunitário, sempre, sob pena de desfiguração da própria identidade, afinal, a iden-tidade pessoal tem relação com a identidade social. Daí sobrevêm as obrigações de solidariedade, que envolvem responsabilidades morais com os outros indivíduos com os quais a mesma história é comparti-lhada – em uma concepção narrativa da ação moral, à qual filia-se Mi-

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chael Sandel. Os autores destacam, ainda, que, nessa linha, justiça não se resume a uma distribuição equitativa de coisas, envolvendo também concepções de honra e virtude, orgulho e reconhecimento, ou seja, en-volve também reflexão sobre a vida boa, dentro de um contexto de uma comunidade. Passo seguinte, os autores identificam, no ordenamento jurídico nacional, situações já positivadas de solidariedade como obri-gação moral, e logo a seguir, apresentam também os casos já enfrenta-dos pela jurisprudência.

O sexto capítulo vêm sob o título “Somos donos de nós mesmos? Reflexões da Psicologia a partir das ideias filosóficas de Sandel”, de Lau-ren Tonietto, Andréia Mello de Almeida Schneider e Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes. As autoras partem da análise da reflexão mo-ral, que é uma busca coletiva, segundo Michael Sandel. Destacam que, mais do que responder às inúmeras questões postas por Sandel, a partir do olhar da Psicologia, buscam estabelecer uma discussão com as ideias filosóficas apresentadas. Lembram que o desenvolvimento moral pres-supõe aprendizado de regras sociais ou de convivência; lembram que, a partir de Freud, o conjunto de proibições internalizadas pelo sujeito é chamado de superego, e, quando as leis são internalizadas, o sujeito é capaz de perceber o que é certo e errado.

Com os estudos de Piaget, vem a teoria sobre o desenvolvimento moral, ao logo do qual desenvolve também “sentimentos morais” (como o senso de justiça). Em seu último estágio, o indivíduo é capaz, inclusi-ve, de realizar críticas às normas impostas. Piaget não indicou estágios de desenvolvimento; ao contrário, apontou que as pesquisas eram insu-ficientes para tal conclusão. Estudos mais recentes com outros autores mostram, segundo indicam as autoras, que o indivíduo pode desenvol-ver e avaliar questões sociais e emitir julgamentos morais de maneira bem mais precoce do que os dados indicados por Piaget. As autoras indicam que o sujeito está em uma caminhada permanente, rumo à au-tonomia moral.

As autoras chegam a Foucault, lembrando a necessidade da criação de formas de controle, o que poderia se dar por causa da falta de um desenvolvimento moral pleno e satisfatório. Indicam a linha tê-nue existente entre uma intervenção estatal para vigiar e punir e uma que exista para organizar, ordenar e, assim, conduzir a sociedade e o indivíduo à liberdade. Sugerem, assim, que se amplie a discussão sobre

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a autonomia moral e a liberdade de escolha, sabendo-se que muitos indivíduos nem sequer chegam à autonomia moral, permanecendo no estágio de uma moral heterônoma, e deixam uma questão final: como garantir a liberdade de escolha e de ação para aqueles que não atingem a autonomia moral?

A seguir, no sétimo capítulo, a professora Paula de Jesus Martins destaca a diferença entre as escolhas éticas do indivíduo e do Estado, e bem assim, a tradicional e hoje já desgastada divisão entre as esferas do “público” e do “privado”. A autora apresenta um contraponto à provoca-ção de Michael Sandel, a partir do texto do psicanalista Erich Fromm, considerando a teoria da autoridade racional e do primado da ética hu-manista. A autora, com uma percepção muito aguçada, analisa a estreita relação entre o Direito e a Psicologia a partir de ações humanas que obedecem a lei, voluntariamente, e ações que não obedecem, também voluntariamente, pois não consideram a manifestação estatal legítima, e não se sentem criminosos por determinados atos, ainda que previstos em lei como crime. A autora traz uma relevante contribuição para este diálogo, a partir do questionamento sobre o quê, efetivamente, motiva nossas escohas, se a ética, ou o direito.

No oitavo capítulo, Maúcha Sifuentes enfrenta o dilema moral do preconceito e da inclusão, no capítulo sob título “Quem merece o quê? Discussões em tempos de inclusão”. Pelo texto da autora, é possível des-tacar que já não há mais espaço para a dúvida acerca das vantagens da inclusão. Os resultados de estudos científicos, em especial após as con-clusões no sentido de que o desenvolvimento é um processo cultural, mostram que o ambiente de inclusão, na escola, em especial, é funda-mental para o destino do indivíduo. Daí a importância da universaliza-ção do acesso à escola e a abolição de processos de seletividade. Ao final, a autora indica uma necessária mudança de paradigma, principalmente em torno da educação especial, para dar a melhor resposta à pergunta: quem merece o quê?

No novo capítulo é aborado o bem comum, como direito funda-mental do homem, com o professor Renato Selayaram. O autor toma como ponto de partida o capítulo 10 de Michael Sandel, e passa a tra-balhar a sociabilidade e a atração que o poder exerce nas pessoas, lem-brando, com o grande senador e orador romano Cícero, que é o poder político que requer maior cuidado de todos, justamente porque mo-

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nopoliza o uso da força na sociedade. O autor aborda teorias sobre o nascimento do estado, e a busca pelo bem comum, assim como, o en-contro da felicidade individual, dentro do contexto de um bem comum, partindo de Platão, Aristóteles e principalmente Maquiavel, até alcançar a época contemporânea, que inverte bastante o foco, que antes era na comunidade, e passa para o indivíduo. A partir da abordagem conjun-ta com o livro de Sandel, o autor retoma a preocupação com o bem comum, a partir dos direitos fundamentais do homem, ressaltando o quanto o conceito de bem comum “sofre hoje um descaso sistemático, padecendo de um ostracismo”, e traz uma rica abordagem das variadas formas pelas quais o discurso ético e político atual apresentam o con-ceito de bem comum, ora de feição mais individualista, ora mais comu-nitarista ou coletivista, para ao final destacar o sentido de justiça social, e sua relação com indivíduo e com o bem comum, tópico principal do capítulo 10 do livro de Michael Sandel, que aborda principalmente a questão da desigualdade. Daí a fundamental contribuição do professor Renato Selayaram, ao tratar da justiça social dentro desse contexto, e ao deixar claras as funções do Estado na busca de uma justiça social, diante de uma Constituição Cidadã, como a brasileira.

E ao final, no décimo capítulo, as autoras Aline da Silva Piason, Débora Silva de Oliveira e Márcia Elisabete Wilk Franco enfrentam o tema sob o título “Dilemas de lealdade: um olhar da Psicologia Social e da abordagem familiar sistêmica”. Destacam que muitos dos dilemas morais ficam muitas vezes sem uma solução, “pois o ser humano tem uma necessidade de objetividade”, quer dizer, busca uma solução racio-nal para os problemas morais. As autoras enfrentam o dilema do indivi-dualismo moral e da identidade coletiva, refletem sobre a interferência dos laços afetivos nas escolhas dos indivíduos e, ainda, apresentam uma oportuna comparação sobre os casos a partir da perspectiva do indivi-dualismo moral e da abordagem sistêmica e da Psicologia Social.

Acreditamos que este diálogo que iniciou tendo como base o livro de Sandel possa se tornar uma prática frequente entre os profissionais de nossa instituição de ensino. A vivência dessa experiência, que agora é compartilhada, já nos revela o quanto esse diálogo é possível, apesar de se constituir em uma difícil tarefa, pois, ainda que a Psicologia e o Direito trabalhem com o mesmo objeto, “o comportamento humano”, fazem-no com instrumentos e linguagem técnica distintas.

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Para que esse encontro de conhecimento se transforme cada vez mais em “diálogo”, são necessárias ações conjuntas, integradas e inter--relacionadas entre as áreas, bem como a tradução constante dos distin-tos saberes e a abertura a novos conhecimentos.

Ângela KretschmannEvanisa Helena Maio de Brum

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FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO

DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA

Ângela Kretschmann1 - Celso Augusto Nunes da Conceição2

Sumário: Introdução - 1. Consenso sobre a coisa certa a fazer - 2. Fazer a coisa certa ou fazer certo a coisa? Um equívoco linguístico de Sandel? - 3. A retórica e a argumentação: o mau uso da linguagem - 4. A retórica e a argumentação: o “ser-aí” da língua(gem) - 5. Conclusão: a dialética da boa retórica e seus benefícios psicojurídicos - Referências bibliográficas

1 Professora e coordenadora do curso de Direito do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS). Pós-doutora pelo Institut for Information, Telecommunication and Media Law (ITM), Münster, Alemanha.2 Professor das disciplinas de Português Jurídico e Direito e Linguagem no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre e doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

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ÂNGELA KRETSCHMANN - CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

INTRODUÇÃO

Um capítulo para contribuir com discussões psicojurídico-lin-guísticas teve início na ideia interdisciplinar de fazer um debate entre o curso de Psicologia e Direito do Complexo de Ensino Superior de Ca-choeirinha/RS (Cesuca), a partir de um objeto que fosse comum a essas duas áreas, o livro de Michael Sandel, Justiça – o que é fazer a coisa certa, e a área da Linguística, como entrou nessa discussão?

Efetivamente, o debate foi centrado nessas duas áreas, mas como a Linguística está presente no curso de Direito, com as disciplinas de Português Jurídico e Direito e Linguagem, o professor que as ministra encontrou na leitura dessa obra um aparente paradoxo em relação à re-ferência a Locke, feita por Sandel (2013, p. 136 e 265), que afirma ser o Direito natural. Coincidentemente, ou não, essa segunda disciplina, Direito e Linguagem, busca, na história da semântica, a disputa das po-sições sobre o naturalismo e convencionalismo, e Locke se posiciona convencionalista em relação a ela, a linguagem.

Diante disso, o professor da área da Linguística postulou a sua inclusão no debate, especificamente no que se referia a “fazer a coisa certa”, chamada do livro de Sandel. E, para reforçar a sua inclusão, argu-mentou que a linguagem é quase tudo, está em quase tudo e representa, com certeza, tudo. Ela é tudo o que existe, mas é a forma especialmente humana de conhecer tudo o que existe.

O diálogo principia, então, com a professora do curso de Direito argumentando que o Direito é linguagem, e o professor de Linguística contrapondo que a linguagem é uma abstração e que está na base de todas as ciências que necessitam se comunicar. Sendo uma abstração, como operar intelectualmente um objeto de reflexão? A Psicologia é chamada à baila para constituir uma área tripartite para investida nas complicadas relações de direito do cidadão, a fim de se agregar à dis-cussão do que se apresenta nos estudos de Sandel, especificamente no seu livro Justiça – o que é fazer a coisa certa e sobretudo, como fazer a coisa certa sem considerar efetivamente a importância da linguagem, uma vez que ela é a própria essência da comunicação humana, da qual tanto o psicólogo quanto o jurista dependem para realizar seus ofícios.

Além disso, historicamente, o consentimento pela linguagem, ou pelo seu silêncio, representou alguma forma de opressão da liberdade de

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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA

agir, da liberdade de falar e até mesmo da liberdade de desejar algo com autonomia e independência. Prova de que o uso da linguagem chega a manipular nossos desejos.3

1. Consenso sobre a coisa certa a fazer

Um dos primeiros passos no estudo do Direito enfrenta o ques-tionamento sobre o modo como surgem as relações entre o ser humano, a sociedade e o Direito. Abordam-se muitos autores, alguns afirmando a existência natural da sociabilidade, outros afirmando que há um con-trato social, que é assinado entre os “súditos” ou cidadãos, e o Estado. O capítulo 6 do livro de Sandel4 inicia justamente falando sobre a imaginá-ria existência de um contrato social.

As tradições culturais são muito distintas nesse sentido. Para os chineses, por exemplo, a relação entre Direito (como Lei) e o ser hu-mano não é nada natural, pois natural é a relação que não necessita da força da Lei para estabelecimento da ordem.5 Enquanto isso, a Lei é vista de modo muito natural entre os ocidentais, que a entendem, não raras vezes, como resultado natural da própria sociabilidade. Onde está a ex-pressão de justiça? Na ordem chinesa, que abomina a Lei, ou na ordem que a vê como um resultado natural do contrato social? Onde existem sinais de consenso? Os chineses tinham orgulho de uma época em que o “consenso” elaborado por meio de leis não era necessário, pois a edu-cação bastava. Um consenso viciado pela ordem posta, não por uma lei, mas por um poder familiar.6 A questão fundamental é como alcançar o consenso – um consenso real, baseado em um diálogo de vontades

3 A respeito, reportagem interessante sob título “Math Will Rock Your World”, de BAKER e LEAK, publicada no Bloomberg Business Week, em 22 de janeiro de 2006, disponível em: <http://www.businessweek.com/stories/2006-01-22/math-will-rock-your-world>, acesso em: 14 de abril de 2014, e que teria, inclusive, dado origem ao livro de BAKER, Stephen. Numerati: conheça os Numerati, eles já conhecem você. São Paulo: Arx, 2009.4 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.5 A respeito em: ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 96-97. SEN, Amartya. Human Rights and Asian Values. New York: Carnegie Council Publications, 1997. p. 17-18.6 QIANG, Chen. Chinese practice in Public International Law: 2003 (I). Chinese Journal of International Law, Spring 2004, v. 3, i1, p. 331. CHUN, Lin. Cómo situar a China. Traducion de Isabel Vericat. In: El mundo actual: situación y alternativas. Mexico: Siglo Veintiuno, 1996. p. 320.

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livres e autônomas. Daí a importância da linguagem: seja na dialética de um consenso, seja na postulação de uma verdade.

Como nos mostra Franz Mootz (2011, p. 31), os retóricos anti-gos, aqui ele se refere aos gregos, “entendiam bem que o ‘senso comum’ cultural, que serve como pano de fundo para toda compreensão, ali-menta-se não de verdades asseguradas metodologicamente, mas sim do ‘provável’, conforme articulado no conhecimento contingente e histo-ricamente definido” – daí virá a importância da phronesis aristotélica, em especial esclarecida por Gadamer (1996), como capacidade de con-versar com o outro e elaborar juízos morais práticos com base em uma tradição comum (MOOTZ, 2011, p. 32).

Quando se fala de convencionalismo ou consensualismo no Di-reito, lembra-se do contratualismo, e quando se fala do Direito Natural, lembra-se da própria natureza humana como propensa à sociabilidade. E foi exatamente em relação a esse convencionalismo em oposição ao naturalismo que suscitou na Linguística a sua participação no debate psi-cojurídico, especificamente quando Sandel faz alusão à posição de Locke, que afirma ser o Direito natural. O leitor pode estar se perguntando o porquê da expressão “psicojurídico” se o que suscitou a sua intromissão foi somente quanto ao Direito. Respondendo previamente ao possível questionamento do leitor, a Linguística também encontrou motivo para sua inserção na Psicologia, uma vez que, como já apontado, tanto o ju-rista quanto o psicólogo dependem da linguagem, pois ambas as áreas de ofício têm na comunicabilidade uma dependência na sua ação.

Sandel relembra a posição original de vários autores clássicos: Locke falava de um consentimento tácito, que consentimos implici-tamente em obedecer à lei, “até mesmo ao trafegar por uma estrada, está sujeito a ela” (SANDEL, 2013, p. 177). Seria um modo de ratificar a Constituição, o que o autor sugere sendo uma forma muito branda de consentimento. Enquanto isso, para Kant, o consentimento era hipoté-tico: uma lei é justa quando tem a aquiescência da população como um todo, o que também é difícil compreender. Por esse caminho, chega-se a uma afirmação de John Rawls: a maneira pela qual entendemos a jus-tiça é perguntando a nós mesmos com quais princípios concordaríamos em uma situação inicial de equidade – segundo ele, teríamos que nos reunir e formular um contrato social, e definir juntos quais os princí-pios que escolheríamos – o que, efetivamente, não é suposto na socie-

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dade chinesa antiga, tal como já destacado, uma vez que determinado comportamento já é pressuposto inquestionável e que induz respeito à ordem posta pelos mais velhos. Ela não é colocada para discussão, o que certamente, entre seus membros, seria algo até risível.

Parece, assim, que a linguagem só é importante para uma socie-dade que busca o consenso através do diálogo, mas não é verdade. Tam-bém o tirano precisa saber comunicar bem suas ordens se quiser vê-las obedecidas. Como destaca Reboul (2000, p. 17), o tirano não faz o que quer, apenas o que lhe agrada, pois fazer o que se quer implica saber do que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valor real. Também aqui é fundamental destacar que “o real das coisas” depende do sujeito autô-nomo para quem a linguagem é condição de possibilidade. Esse “valor real”, como objeto do conhecimento, não pode ser pensado separado do modo como nos aparece, ou aparece para o tirano. Há um sentido que “é” antes do conhecimento, e a questão da condição de possibilidade de estar-no-mundo ocorre através da linguagem – mas se o tirano não é capaz dela... Ora, o caso do tirano é o mesmo de um juiz solipsis-ta e autoritário, que julga conforme sua consciência, e não conforme a Constituição.

E a busca da coisa certa a fazer seria a busca pela verdade ou pelo consenso? Uma exclui a outra ou a busca não se refere nem à verdade nem ao consenso? O que a coisa certa tem a ver com a verdade e o que tem a ver com o consenso? Certamente o uso da linguagem em uma so-ciedade que busca um consenso deve ser mais apurado do que em uma sociedade que só precisa compreender certos comandos de obediência. Poderíamos ingressar aqui no campo da própria recepção de informa-ção, distinta da compreensão, o que não vem ao caso, mas vale ressaltar, uma vez que a compreensão situa-se na base de qualquer possibilidade de reflexão crítica, o que é fundamental para a construção de um diálo-go e de um diálogo que pode visar a um consenso... ou à decisão sobre a coisa certa a fazer, que não coincide, necessariamente, com o consenso.

Michael Sandel demonstra que, se várias pessoas sentam para elaborar as bases sobre as quais irão conviver, seria muito difícil chegar a um consenso na questão dos princípios (SANDEL, 2013, p. 178), afi-nal, algumas pessoas são ricas, outras não; algumas são negras, outras brancas; algumas têm alguma necessidade especial, outras não; algumas têm uma imensa capacidade de uso da linguagem, outras não. Isso quer

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dizer que o resultado do consenso poderá ser simplesmente o resultado de uma barganha ou do poder de convencimento de alguém ou de um grupo sobre os demais. E, por isso, segundo Rawls, o contrato social ela-borado nesses termos de “consenso” – que se mostra viciado – é injusto.

Se desenharmos vários círculos no quadro para nossos alunos e colocarmos em cada círculo um deles, sem que cada um saiba que perso-nagem efetivamente irá representar, estarão todos sob o “véu da ignorân-cia”, que Rawls sugere para que se possa sentar em uma mesa e discutir sobre as regras de um contrato social. Assim, não sabemos nossa classe social, não sabemos nossas necessidades especiais, não sabemos nossa etnia, não sabemos nossa religião, nossas crenças, não sabemos nada, então cada um terá de se preocupar com tudo. Ninguém sabe ali quem é um importante jogador de futebol que ganha milhões ao ano, nem quem nasceu sem as duas pernas e necessita de auxílio especial. Rawls chama isso de “posição original de equidade” para a formulação de um contrato hipotético. Em princípio, só assim saberíamos decidir com “isenção” de interesses exclusivistas, individualistas e muito particulares.

E se efetivamente fosse possível essa posição original de equidade, é também possível imaginar quais princípios básicos emergiriam primei-ramente do “consenso”, resultado da “posição original de equidade” posta pelo “véu da ignorância”. Sandel lembra que essa posição envolve as liber-dades básicas para todos, e esse “tecido”, sobre a equidade social e econô-mica. A pergunta dos críticos de Rawls é: realmente as pessoas escolhe-riam esses dois princípios? (SANDEL, 2013, p. 178). Afinal, uma coisa é estar “sob o véu da ignorância” acerca da posição original na sociedade, e ainda outra coisa é o “véu da ignorância” relativamente à linguagem, que é também um “outro” que postula por si próprio sua inclusão.

Retornando à questão concernente à dicotomia convencionalis-mo e naturalismo, em relação ao motivo por que a Linguística esteve presente ao debate, Sandel provoca, talvez inadvertidamente, uma apa-rente contradição às afirmações de Locke. Por quê? Porque Locke par-ticipou do famoso debate da Tábula Rasa7 no século XVII, em que dis-cutia com Leibniz sobre a origem da linguagem: é inata ou adquirida? Locke a defendia como adquirida, retomando as ideias aristotélicas de que “não existe nada no espírito humano que antes não tenha passado

7 PINKER, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. Tradução de Laura Teixeira Motta. 2ª. Reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 23.

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pelos sentidos”, e Leibniz retomava a ideia plantonista de que tudo está no cérebro. Na verdade, esse debate retoma uma das obras precursoras no que se refere às discussões sobre a origem da linguagem: “Crátilo”. Trata-se aqui de um dos Diálogos de Platão.8 Locke fez “a coisa certa” com essa afirmação?

Em “Crátilo”, a ideia naturalista aparece quando apresenta o en-tendimento de que as coisas são o que são independentemente do nome que têm: “– Ora, Sócrates, como poderia alguém dizer o que ele diz e dizer algo que não é? Não é a falsidade dizer aquilo que não é?”.9 E de-pois de um longo diálogo, Crátilo responde afirmativamente à pergunta de Sócrates, no sentido de que as coisas que são parece que podem ser apreendidas sem recurso aos nomes:

Que outra maneira poderias esperar conhecê-las? Que outra maneira restaria exceto a mais legítima e natural, a saber, apreendê-las na conexão que possuem entre si – na hipótese de serem afins – e por meio delas mesmas? De fato, aquilo que não é elas e delas difere não as denotaria, mas denotaria algo que não é elas e que difere delas.10

Sócrates aceita seu raciocínio, mas também concorda com o con-vencionalismo de Hermógenes, criando, a partir daí, a figura do legislador para dar nomes às coisas. Sócrates está fazendo a coisa certa concordando com os dois? Podem duas ideias bem opostas estarem de acordo para quem é considerado o mestre dos mestres da filosofia? Sócrates, através de seu método maiêutico de tratar do conhecimento, fazia seus interlocu-tores entrarem em contradição com o entendiam saber, mas também os inquiria para descobrirem o que não sabiam que sabiam. Sócrates já de-

8 Platão teria escrito nove diálogos insuspeitos (“Fedro”, “Protágoras”, “O Banquete”, “Górgias”, “A República”, “Timeu”, “Teeteto”, “Fédon” e “As Leis”); outros diálogos, considerados suspeitos, são: “Sofista”, “Parmênides”, “Crátilo”, “Filebo”, “Críton”, “Crítias”, “Eutífron”, “Político”, “Cármides”, “Laques”, “Lísis”, “Eutidemo”, “Mênon”, “Hípias Menor”, “Ion” e “Menexeno” (alguns helenistas duvidam da autenticidade, e por isso chegam a ser classificados às vezes como “quase suspeitos”, ou mesmo “pouco suspeitos”. Já os diálogos “Alcibíades”, “Hípias Maior” e “Clitofon” aumentam o grau de suspeição, e ainda outros 13 são classificados como apócrifos (a autenticidade está fora de cogitação, como, por exemplo, “Hiparco”, “Teages”, “Minos”, “Da Justiça”, “Da Virtude”, “Demódoco”, “Sísifo”). Ver em: PLATÃO. Platão: Diálogos: VII. Tradução e comentários de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. p. 11.9 PLATÃO. Platão: Diálogos: VI. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010. p. 118. (Crátilo: 429 d)10 PLATÃO. Platão: Diálogos: VI., cit. p. 134. (Crátilo: 438 e)

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senvolvia aí o seu raciocínio baseado da intencionalidade. Na verdade, ele também não tinha certeza das certezas de cada um. Ouvia as afirmações e fazia as perguntas pertinentes para também aprender com eles.

Essas foram as primeiras especulações sobre a origem da lin-guagem, mas hoje sabemos que os dois tinham razão e que Sócrates, concordando com eles, também tinha razão. Mas como é possível duas ideias opostas em relação à linguagem terem seus raciocínios bem fun-damentados mesmo sem terem conhecimento linguístico?

Na verdade, os dois estavam falando de coisas diferentes: Crá-tilo referia-se à linguagem, que é abstrata e natural, e Hermógenes à língua, que é convencional, sendo um código estabelecido pelos indiví-duos com o propósito de se comunicar. Sócrates fez a coisa certa porque entendeu os dois argumentos e não ficou, enquanto viveu, tentando se posicionar por um ou por outro. Como esclarece Gadamer, são posi-ções extremas e que não precisam excluir-se mutuamente, trazendo um exemplo esclarecedor: as crianças e os enamorados “tienen ‘su’ lengua, a través de la cual se entienden en un mundo que sólo es proprio de ellos: pero aun esto no se hace por imposición arbitraria sino por cristaliza-ción de un hábito linguístico”. Enfim, não se pode reduzir a linguagem a um instrumento, e talvez Platão só quisesse mesmo mostrar, com esse diálogo, diz ainda Gadamer, que, a partir da linguagem, não se pode al-cançar nenhuma verdade objetiva: e a superação do “cerco” das palavras através da dialética quer dizer que o acesso à verdade não é a palavra, mas que só se pode conhecer a verdade de cada coisa a partir do conhe-cimento delas.11

Para compreender o texto de Sandel e ainda dialogar com a Psi-cologia, devemos deixar o texto falar e os psicólogos falarem. Aí sim poderemos dizer algo sobre o que Sandel propõe sobre “a coisa certa” a fazer. A pretensão de Sandel é fazer com que todos os que estudam o assunto busquem na filosofia da linguagem os alicerces para poderem discutir e argumentar de forma coerente as questões sociais de justiça e de direito do cidadão – até devido a sua vinculação comunitarista. Mas sendo comunitarista ou não, considerando o “ser-aí” da linguagem, o que importa é deixar que ela mesma apresente-se, para se ter chance de compreender o seu sentido e, assim, compreender o caso a decidir.

11 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: fundamentos de una hermenéutica filosófica. Tradução de Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. V. I. 6. ed. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 488-489.

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Não se pode estudar a área jurídica prescindindo dos conheci-mentos de linguagem, que, desde os primórdios dos tempos, tem nessa comunicação humana a necessidade de entendimento das partes que exercem esse processo. Oferecer ao aluno do curso de Direito os fun-damentos da linguagem como alicerce aos seus estudos é tão necessá-rio quanto tornar-se competente no conhecimento das leis, doutrinas e jurisprudência, para o jurista, ou das razões do comportamento, e das emoções e motivações, para o psicólogo. Mas ainda não está aí a cen-tralidade da linguagem: tanto para o Direito quanto para Psicologia, a linguagem é e sempre será a essência da comunicação humana, e, como essência, um ser também a ser compreendido. Daí que deve ser vista também como o ser que também “está-aí”, tanto quanto o paciente e o interrogado, tanto quanto o hermeneuta. O paradigma da linguagem colocou-a como condição de possibilidade e lançou por terra o esque-ma sujeito-objeto.12 Baseado nisso, a Linguística sente-se à vontade para entrar de vez na relação “psicojurídica”.

As relações que buscamos dependem da linguagem. E quando na relação entre o Direito, a pessoa e a sociedade algo não dá certo, mui-tas vezes culpa-se alguém do mau uso da linguagem, e às vezes culpa-se inadvertidamente até a linguagem, como se a linguagem fosse em si mesma capaz de perverter-se. Na realidade, e daí a importância de um diálogo entre o Direito e a Psicologia, em geral, é o próprio ser humano que muda, altera ou “perverte” seus desejos e ações e acaba fazendo um uso também perverso da linguagem. Afinal, quando Morin (2005, p. 36) pondera que “Uma língua vive de maneira surpreendente, esclarece que as palavras nascem, deslocam-se, tornam-se nobres, decaem, são per-vertidas, perecem, perduram”, explica que, afinal, a “linguagem é uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na linguagem” – e se a linguagem pôs engrenagem na cultura, fato é que a escrita é o que trará a possibilidade de registro “para além da memória individual e de crescimento indefinido dos conhecimentos”.13

12 STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 285.13 Destaca o autor: “a linguagem, portanto, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano, do cultural, do social” (MORIN, Edgar. O Método 5 – a humanidade da humanidade: a identidade humana. Tradução de Juremir Machado da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 37).

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Importante destacar a diferença entre o que é pensado e o que é escrito. Em termos de linguagem pensada e manifestada somente na oralidade, não há um comprometimento jurídico na mesma proporção do que fica registrado por escrito. Estudos sobre a consequência da escri-ta em uma perspectiva sócio-histórica foram desenvolvidos por Goody (1977, p. IX). No prefácio de seu livro,14 ele afirma que desejou “elaborar o tema do contraste entre sociedades com escrita e sociedades ágrafas para tentar levar adiante um pouco a análise dos efeitos da escrita sobre os modos de pensamento (ou processos cognitivos)”, além de buscar a análise de tais efeitos da escrita sobre as instituições da sociedades.

Esse autor é mencionado por Gnerre (1991) por se tratar de um clássico que dá suporte ao seu trabalho, especificamente sobre as contri-buições de psicólogos e de antropólogos no campo da escrita. Mencio-na, inclusive, a pesquisa que Luria15 (1976) fez em uma aldeia situada na extinta União Soviética em 1931-32, que teve como propósito estudar as consequências da introdução da escrita e da educação formal em socie-dades camponesas e verificar as mudanças cognitivas entre os campo-neses. Uma de suas observações mais relevantes foi a restrição imposta a pequenos grupos ao acesso à escrita, caracterizando que o “poder” sabe o poder que tem a linguagem.

Destacam-se, entre as situações experimentais desse teste, as ca-tegorizações abstratas e os silogismos. A primeira depende da Psicolo-gia, e a segunda, da Lógica, sendo que esta estuda os processos argu-mentativos no uso da linguagem e que pode “perverter” a lógica dos raciocínios válidos, mas que, aparentemente, convencem o interlocu-tor. Essa perversão não é recente. Ela já é estudada filosoficamente em “O sofista”, outro diálogo platônico, em que se critica o sofista por ser produtor de simulacros da verdade, ou seja, é a habilidade de produzir discursos verdadeiros com base no método dialético. Na verdade, Platão demonstrou a possibilidade da existência de falsidade em um discurso como um processo de raciocínio natural.

Os aspectos mentalistas da linguagem estão em Platão, e a estru-tura dos argumentos, em Aristóteles, que é considerado o “pai da lógica”

14 GOODY, Jaques. The Domestication of the Savage Mind. In: GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.15 LÚRIA, A. R. Cognitive Development: Its Cultural and Social Foundations. In: GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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por ter formalizado o pensamento através de suas regras – regras essas oriundas de um raciocínio semântico em sua base, denunciando, de cer-ta forma, as artimanhas sofistas no uso dessas regras.

Quais as razões pelas quais desejamos, com sinceridade, entrar em acordo com os demais, desejamos nos comunicar, nos entender e viver nesse mundo que nos é comum? Muito provavelmente, alcançar os mais variados objetivos. Também essa necessidade é natural? Para isso, o foco na linguagem, pela linguagem, é de extrema importância, ainda que por muito tempo se imaginasse que a sociabilidade, sendo parte da natureza humana, fosse muito natural, conforme Aristóteles, apesar de ele mesmo entender que a linguagem não era natural, que antes passava pelos sentidos. Depois, contratualistas irão destacar que nos relaciona-mos, para o bem ou para o mal, a partir de um contrato, pois não temos simplesmente uma natureza propensa ao relacionamento social. E para um contrato, ainda que fictício, na expressão de Rousseau ou Hobbes, por exemplo, é necessário que o que é expresso seja compreendido. Mas o que é que realmente está ao alcance de nossa compreensão?

Gadamer advertiu que a teoria “convencionalista” da linguagem reduz a correção das palavras a um ato de imposição de nomes que é comparado ao batismo das coisas com um nome. O diálogo a partir de Sócrates mostrará que também os componentes do logos – as palavras – são verdadeiras ou falsas, ou seja, mesmo o “batizar” como uma parte do “falar” implica o desvelamento do ser que se produz no falar. Ou seja, tanto no convencionalismo quanto no naturalismo, há necessidade de perceber o “ser” que se abre em seu significado, e é, portanto, no logos que se situa a possibilidade de a linguagem comunicar o que é verda-deiro, pois “El ser que puede ser comprendido es lenguaje” (Gadamer, 1996, p. 495 e 567).

Além disso, plausível lembrar aqui a distinção entre a verdade, que é uma possibilidade da linguagem, e o consenso de que já trata-mos, considerando o que é consensual. Em princípio, não é verdadeiro, necessariamente, pois o consenso apenas expressa uma possibilidade. Essa questão é fundamental para um caso concreto em que se debruçam psicólogos e juristas, pois, de um caso concreto envolvendo Direito de Família, por exemplo, pode-se a partir de um diálogo e chegar a um consenso, através da mediação, ou pode ser necessário o juiz decidir. No caso de decisão, já não pode ser buscado o consenso, mas a aletheia, a

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verdade do caso e a verdade da norma, sem esquecer que aplicar é com-preender, aplicar a norma pressupõe a compreensão. E sendo a norma produto da interpretação do texto e sendo toda aplicação interpretação, a compreensão é que define a aplicação. Pois a aplicação já é uma res-posta, e antes da resposta existe uma pergunta: a chave da coisa certa a fazer, nesse caso, está na própria pergunta, pois, se não há pergunta, não há resposta. E nesse caso, o que o texto fala sobre a norma? Essa será a coisa certa a fazer, considerada a necessária jurisdição constitucional.

2. Fazer a coisa certa ou fazer certo a coisa? Um equívoco linguístico de Sandel?

A questão da linguagem principia na própria compreensão dos motivos pelos quais se deseja fazer a coisa certa, não apenas a partir da reflexão sobre a coisa certa a ser feita – que é um passo além. Sobre isso, mais uma indagação linguística foi suscitada: fazer a coisa certa ou fa-zer certo a coisa? Sandel utilizou a expressão de forma adequada em seu livro Justiça? Uma ilação semântica foi possível cotejando com a dico-tomia naturalismo e convencionalismo: a primeira expressão é natural, por razões óbvias, e a segunda é convencional porque, para fazer certo a coisa, é necessário estabelecer certas regras, ou seja, convencionar de que forma deverá ser feita a coisa.

Isso foi um exercício semântico das questões opostas, evidencian-do, através de suas provocações, a importância de se utilizar a linguagem em situações e eventos que envolvam comunicação, seja falada ou escrita.

A coisa certa a fazer impõe, de fato, um convite à abertura do ser que se pretende conhecer. “A coisa certa” comunica-se através do seu “estar-aí” dentro da historicidade que envolve o próprio ser que busca a resposta. Há uma comunicação entre sujeito e objeto que reflete na própria compreensão e desejo de agir em direção à coisa a fazer. Na Psi-cologia, não são poucos os casos em que as pessoas precisam justamente descobrir por que desejam fazer algo, pois, muitas vezes, estão infeli-zes porque nem sequer conseguem discernir acerca do que é desejado. Alguns não conseguem discernir sobre o que desejam, e outros conse-guem, mas não conseguem expressá-lo. Há outros que dissimulam acer-ca de sua intencionalidade. Como imaginar a possibilidade de consenso ou acordo de vontades em uma sociedade tão frágil, plural e dividida?

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Afinal, estamos diante de um ser humano, não de um “super-herói”, um ser também frágil em sua natureza. E por isso mesmo não é possível permitir que esse ser humano, que, às vezes, é um psicólogo, ou um juiz, decida por sua própria consciência acerca do certo a ser feito, uma vez que tanto o juiz quanto o psicólogo aplicam e compreendem (pois aplicação pressupõe a compreensão, e não o contrário, pois a pergunta precede a resposta). Deixam o caso falar por si e aplicam permitindo que o texto da norma fale por si. Se fosse possível julgar conforme a consciência, estaríamos diante de dois profissionais absolutamente au-toritários e sem condição alguma de exercício da profissão.

O que nos interessa desvelar, portanto, é a clareza em torno do significado da linguagem para a construção das relações e até que ponto efetivamente é possível dizer que um diálogo é realmente possível, en-tre pessoas muito distintas, com visões de mundo distintas, tradições distintas, concepções sobre o que é fazer a coisa certa de forma distinta. Afinal, existiria apenas uma coisa certa a fazer, e ela poderia ser expres-sa, explicada, esclarecida, pela linguagem? Ou devem existir várias coi-sas certas que podem ser feitas, cabendo à linguagem apenas servir de instrumento para aquele que pretende justificar uma ou outra ação que pretende tomar? Para todas as perguntas realizadas existem respostas que desvelam os perigos da redução da linguagem a um simples objeto, os desvios significativos, que, em geral, têm como origem a perspicácia do interlocutor, que, com uma linguagem, convence ou confunde o seu ouvinte, tornando razoável ou mesmo “a coisa certa” a fazer o que é, a princípio, não digno do ser humano.

Por isso pergunta-se primeiro: por que fazer a coisa certa se nem mesmo sabemos desejá-la? Para desejá-la, devemos saber pôr as per-guntas corretamente. Por isso insiste-se que a linguagem situa-se muito antes da reflexão sobre o que é certo fazer; ela já é significativa para o su-jeito porque ele recebe informações, trabalha tais informações de modo mais ou menos consciente e passa a desejar e a lutar por determinado interesse. E pode mais tarde, também transitando – sempre – através de linguagem, dizer que foi enganado por ela – ou enganou-se por não es-tar preparado suficientemente para isso, que é a linguagem! Mas o que é a linguagem, e como podemos escapar das armadilhas que nós mesmos criamos a partir dela?

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Enfim, quer-se fazer a coisa certa por causa de um desejo pessoal, que muitas vezes tem relação com o desejo da comunidade em que a pes-soa se insere – mas nem sempre. A coisa certa a fazer é, sem sombra de dúvida, nem sempre uma motivação genérica e determinada, como um desejo universal. É, antes, a preocupação de parte de alguns integrantes da comunidade que pensam mais profundamente nas questões da vida e no significado de sua inserção naquela comunidade porque valorizam o grupo, valorizam a comunidade, a família, e não querem decepcioná-los, e por isso almejam desvendar o mistério da coisa certa a fazer.

De todo modo, não é possível negar que há grande tendência em acusar a linguagem pelo desvio de alguns integrantes para que nem se-quer tenham desejo de almejar a coisa certa. A linguagem estaria des-viando os jovens. Mas será ela a culpada de tudo? Ou ela não é culpada de nada, somente quem a utiliza? E para complicar mais um pouco, de que linguagem estamos falando? Será que esse desvio em que os jovens se encontram e ao qual outros estão a caminho não seria motivado por uma “corrupção” de sua própria língua pelo fato de a tecnologia facilitar a criação de outros códigos linguísticos? Códigos esses que reduzem palavras a simples abreviaturas e que são as referências escritas para se ler algo? Como vão sair de uma leitura abreviada para a palavra com-pleta? Na verdade, estão se excluindo do processo cognitivo da palavra e de sua significação. Com isso, podemos arriscar uma inferência: esses jovens irão ficar enclausurados no seu restrito código das redes sociais e precisarão mais adiante fazer curso de uma outra língua: a portuguesa, em se tratando do Brasil e dos países afins. E isso não se restringe ao nosso mundo linguístico: é um processo mundial que atinge a todas as pessoas que não se dão conta de quão importante é conhecer o código de sua língua. E como entender tudo isso de maneira formal? É estu-dando filosofia, principalmente a da linguagem, que o entendimento do certo e do errado começa a ficar mais claro.

Deve-se buscar compreender, desde logo, a importância da pró-pria abertura que a pergunta suscita naquele que se envolve com ela, pois, dentro de uma perspectiva de hermenêutica filosófica, a última coisa que se deseja é ficar com a última palavra – é necessário enfrentar a pergunta “o que é fazer a coisa certa?” sem ficar com a última palavra, o que é possível lidando (ou “dialogar”) dialeticamente.

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3. A retórica e argumentação: o mau uso da linguagem

A retórica é uma herança greco-latina e tem relação com a apli-cação de técnicas de persuasão. Na atualidade, existem muitos sentidos para a retórica e fala-se até da retórica do sentido, mas aqui o que inte-ressa ainda é a retórica como persuasão na arte de falar, discursar, de es-crever. De todo modo, já na Grécia era fundamental (àquele com status de cidadão) a liberdade para expressar-se. Sem essa liberdade, o cidadão jamais conseguiria desenvolver suas habilidades para a comunicação e linguagem.

Mas quando a retórica transforma-se em mero objeto de poder do jogo político, acaba se reduzindo a um instrumento para vencer uma argumentação, sem nenhum comprometimento com a ética – e aí, a coisa certa a fazer. Sem dúvida, grande parte da imagem depreciativa da retórica foi alcançada através de alguns sofistas, que se valiam da arte do discurso para promoção e apoio político. A própria palavra “retóri-ca”, até a atualidade, traduz-se para o leigo como algo falso, como uma mentira, uma enrolação linguística. E por causa disso a retórica teria permanecido muitos séculos alienada do debate filosófico. Na realidade, a retórica seria uma parte da dialética: esta que se realiza em perguntas e respostas, lembrando que “todo saber passa pela pergunta”, “perguntar quer dizer abrir” e a “abertura do perguntado consiste em que a resposta não está fixada” (Gadamer, 1996, p. 440).

Apenas no século XX, após as certezas do iluminismo iniciarem sua queda, alguns filósofos debruçaram-se sobre a retórica e reconhe-ceram-lhe um novo valor. Nietzsche (1999, p. 27-28), por exemplo, in-dicou que a linguagem é uma função basicamente retórica, fundada na opinião, e não na ciência e, bem assim, que a própria atividade filosófica é inseparável do estudo da linguagem. Em seu livro Da retórica, faz con-siderações a respeito do conceito da retórica no mundo contemporâneo:

[...] a retórica surge num povo que vive ainda em imagens míticas e que ainda não conhece a necessidade incondicionada da confiança na história; prefere ser persuadido a ser ensinado e por outro lado a falta de recursos em que se encontra o homem na eloquência judiciária tem de levar à arte liberal. Enfim é uma arte essencialmente republicana: tem de se estar habituado a suportar as opiniões e os pontos de vista mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradição; deve-se escutar de tão bom grado como quando nós próprios falamos, e deve-

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se como ouvinte apreciar mais ou menos o desempenho da arte. A formação do homem antigo culminava habitualmente na retórica: é a mais elevada atividade intelectual do homem politicamente formado – um pensamento que nos é bem estranho!

Mais adiante, ele faz a relação da retórica à linguagem chamando de retóricos tanto um autor, um livro ou um estilo toda vez que se nota neles uma aplicação constante de artifícios do discurso – e isso sempre com uma nuance pejorativa. Leva-nos a pensar que não é natural, dan-do-nos a impressão de algo forçado. Garante, no entanto, que esse uso é da maior importância para quem assim o julga saber o que é, para si, natural. E ainda afirma que a retórica é uma arte consciente que foi se aperfeiçoando a partir dos artifícios já presentes na linguagem e que não existe naturalidade não retórica na linguagem à qual alguém pudesse apelar, pois a linguagem é o resultado de artes puramente retóricas. E como não poderia deixar passar, retoma Aristóteles quanto ao uso da expressão “força” para designar a própria retórica, que é “a força de des-lindar e de fazer valer, para cada coisa, o que é eficaz e impressiona, essa força é ao mesmo tempo a essência da linguagem”.

Mas como pode a linguagem ser basicamente retórica, se a lógica, sendo uma área específica da Filosofia, tem suas regras que levam de premissas a deduções irrefutáveis? Certamente o terreno para essa dis-cussão é meio movediço. Será que também se resolvem casos como esse pela retórica de quem melhor se expressa?

Pode-se fazer uma aplicação retórica nessas regras, que foram “abstraídas” da relação natural que o indivíduo tem com o seu pensa-mento. Antes é necessário deixar claro que se trata de um silogismo, que é um argumento com base no raciocínio dedutivo estruturado for-malmente a partir de duas premissas, uma maior e a outra menor, as quais derivam uma conclusão. Dito de outra forma, ele se constitui de uma regra composta de três proposições, em que as duas primeiras são premissas, e a terceira é a conclusão gerada pela sua relação.

E como gerar a “perversão” desse silogismo, provocando o mau uso da linguagem? É muito simples: “desviar” as relações de afirmação e negação entre as premissas. Esse “desvio” das regras da Lógica16 aristo-télica gera o que se chama de falácia. E foram os sofistas os que geraram

16 A respeito em: CERQUEIRA E OLIVA. Introdução à Lógica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

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raciocínios que pareciam lógicos, mas que as pessoas assumiam como argumentos válidos. Para exemplificar, foi Aristóteles17 o filósofo que conseguiu descrever a forma de como se elaboravam esses argumentos e identificou a forma como esses sofistas enganavam as pessoas. É real-mente um tipo de “retórica” com um poder de persuasão imperceptível aos interlocutores.

Descrevendo melhor esses pseudoargumentos, os sofistas inver-tiam a afirmação dos elementos quando a regra era a do Modus Ponens: em vez de afirmar o termo antecedente da premissa maior, faziam-no com o predicado, dando a entender que a regra estava sendo bem utili-zada. Com a negação, o procedimento de negar o termo antecedente em vez do consequente gerava também um argumento inválido, mas que parecia bem convincente. Importante destacar o problema que a Lógica causou naquela época: por um lado, os peripatéticos a consideravam como instrumento da Filosofia; por outro, os estoicos afirmavam que ela era uma parte da Filosofia. E por aí as discussões em relação ao uso da linguagem continuavam: utilizar-se das regras para argumentar era “naturalmente” exercido pelos sofistas, que as defendiam como proces-so natural de persuasão, mas que não eram bem aceitas por pessoas que conheciam a Lógica.

Aristóteles formalizou o silogismo baseado nos discursos dos sofistas que usavam a retórica e formas de persuasão com argumentos introduzidos pelo conetivo “porque”, e não o “logo”, sendo o primeiro utilizado com maior frequência. Como foi possível depreender a maior ocorrência de um em detrimento do outro? Quando argumentamos algo, dizemos A porque B, e não A logo B. Apesar de esses conetivos estabelecerem relação de causalidade entre uma ideia e outra, a causa muda de posição dependente da conjunção,18 ou seja, com o “porque”, B é a causa; com o “logo”, a causa é A.

A genialidade de Aristóteles foi “abstrair” a noção causal do cére-bro humano19 e conseguir originar as generalizações a partir dos argu-

17 ARISTÓTELES. Órganon: Tópicos. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.18 Diferentemente do conetivo, que estabelece função sintática, a conjunção é morfológica, mas está sendo utilizada aqui com o propósito de não repetir o termo.19 Essa noção é uma entre várias – condicionalidade, temporalidade, adição etc. – que foram afirmadas pelo seu mestre Platão, de que a linguagem estava no cérebro, gerando, a partir daí, o que se conhece hoje como teoria inatista.

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mentos introduzidos pelo conetivo porque, isto é, quando afirmamos algo e o argumentamos, temos um pressuposto geral. Por exemplo, em “João é inteligente porque estuda” (A porque B), a generalização é “To-dos os que estudam são inteligentes”. Por quê? A causa é ser inteligente ou estudar? O conetivo porque introduz um causa ou uma consequên-cia? Precisamos entender bem que esse porque introduz uma causa, motivo ou razão, ou seja, é a ideia antecedente que implicou a outra. Bem, agora ficou fácil: o porque20 introduziu a causa, que é “estuda” e é essa mesma que na generalização será o termo antecedente: “Quem estuda é inteligente”, sendo possível, a partir daí, gerar o silogismo para garantir que não é falácia:

Quem estuda é inteligente. (Pma)João estuda. (Pme)Logo, João é inteligente. (Conclusão)

E se fosse “João estuda porque é inteligente”? Pelo raciocínio si-logista, a generalização seria (e é!) “Todos os que são inteligentes estu-dam”; pelo sofisma ou falácia, a proposição é “Todos os que estudam são inteligentes”. Estamos diante de dois raciocínios possíveis e que de-pendem da intenção de quem os utiliza.

Certo é, entretanto, que lógica e retórica sempre fizeram parte do discurso no ofício de juristas e de psicólogos e, nesse sentido, a in-capacidade de compreensão da lógica e a incapacidade de argumenta-ção é a própria razão da falta de consenso. Quantas vezes as partes em um processo podem entrar em acordo? Apenas não se conseguem fazer compreender. E o quanto é fundamental hoje, na teoria contratual, que a manifestação de vontade não tenha sido viciada por uma falha na pró-pria intenção de contratar. Os perigos da linguagem e o uso da retórica desde épocas imemoriais vêm sendo apontados. Lembre-se da inesque-cível defesa do bem comum e do Estado, realizada por Cícero (Quinta oração contra Catilinária, V, 11) contra Catilina:

Não vos admireis, astuto simulador, pedir que lhe se dê a possibilidade de responder-me. Confia na sua eloquência mediante a qual arrastou

20 Esse conetivo sem acento porque não se trata de substantivo, e sim a própria conjunção.

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para a ruína tantos cidadãos; adquiriu tão vasto séquito de celerados, e sabe alterar a cor (tornando) verdadeiro o falso e falso o verdadeiro.21

Tomando como exemplo a situação trágica trazida por Cícero, é possível indicar que o inimigo do Estado e do bem comum, indicado no texto citado, possuía grande poder oratório, vasta argumentação e uma eloquência fascinante que arrastava simpatizantes. Diante de um conflito argumentativo, é útil desembaraçar o significado e funções da lógica e da retórica. Enquanto a retórica pode ficar centrada no objetivo de persuadir, sem comprometimento com a verdade (dentro do con-ceito sofista, ao contrário do que irá defender Aristóteles), como algo apenas negativo, a lógica serve justamente como instrumento de análise das condições de validade do argumento posto. Já a dialética pressupõe que os interlocutores colocam-se diante de condições previamente dis-postas para o estabelecimento do próprio diálogo – afinal, quem deseja persuadir não pode ser negligente com regras da arte da argumentação, mas recorrerá a diversos instrumentos como os argumentos vinculados à causa e ao efeito, à própria analogia e às metáforas. Apenas não se podem confundir teorias da argumentação com a hermenêutica, e prin-cipalmente com a hermenêutica filosófica.

Nesse caso, Perelman (1996, p. 73 e 96) é quem restabelece a re-tórica no século XX, apresentando a proposta dos argumentos quase lógicos que se assemelham a raciocínios formais e à falta de precisão do argumento quase lógico. Pode parecer uma falta de lógica, como lem-bra Perelman, “mas a acusação só é pertinente relativamente àquele que pretende proceder por via demonstrativa”, uma vez que o orador desen-volve razões de outra natureza para sua tese. Ele traz argumentos mais ou menos fortes. E quando o raciocínio matemático atingiu seu ápice, os argumentos quase lógicos padeceram e foram acusados de fracos, mas recuperaram seu prestígio no decorrer do século XX, ainda que, para convencer, precisassem do complemento dos argumentos baseados na estrutura do real (que, em geral, apelam para ligações de sucessão, como relações de causa e efeito, por exemplo, alegar as consequências boas que de uma lei podem advir; e de coexistência, da pessoa e seus atos).

21 CÍCERO apud CARLETI, Amilcare. Cícero: As Catilinárias. Os grandes oradores da antiguidade. São Paulo: Eud, 1987. p. 220.

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Parmênides teria inaugurado a competição entre filósofos (ado-radores da lógica) e dos mestres da retórica. Górgias irá mostrar o Ser que não é, que “se existisse seria incognoscível, e que, se o conhecêsse-mos, esse conhecimento seria incomunicável: donde a importância da retórica, da técnica psicológica, que age sobre a vontade do auditor para obter sua adesão” (Perelman, 1993, p. 165). De todo modo, é indubitável que, tanto no Direito quanto na Psicologia, as controvérsias possuem caráter que não se prolongam de modo indefinido, ao contrário, e assim como na argumentação filosófica, na argumentação jurídica e psicoló-gica, sem querer equiparar as duas áreas, as aplicações ocorrem em do-mínios particulares, daí a importância da nova retórica:

Identificando esta com a teoria geral do discurso persuasivo, que visa ganhar a adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja ele qual for, afirmamos que todo o discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a influenciar uma ou várias pessoas, a orientar os seus pensamentos, a excitar ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio da retórica. Esta engloba, como caso particular, a dialética, técnica da controvérsia (Perelman, 1993, p. 172).

Enfim, a retórica tem como fim prático a persuasão, enquanto a dialética tem como fim a crítica e, finalmente, a lógica tem como propó-sito o julgamento da coerência das propostas argumentativas. A lógica preocupa-se, como não poderia deixar de ser, com a estrutura do discur-so e assim, de fato, ignora o processo argumentativo, visto sua vincula-ção com a forma, ainda que não se desconheça que existem abordagens lógicas da própria argumentação. Essas abordagens têm relação com o próprio significado de argumentação, pois sua eficácia teria relação com a retórica, uma argumentação sólida teria relação com a lógica e uma argumentação sincera e crítica teria relação com a dialética.22

E é por isso que não podemos pensar sobre a coisa certa sem o uso e o conhecimento consciente da linguagem – e tampouco sobre o

22 ALVES, Marco Antônio Sousa. Lógica x Retórica x Dialética: diferentes abordagens da argumentação. In: I ENCONTRO DE PESQUISA UFMG, Belo Horizonte, 2003. Comunicações apresentadas no I e II Encontro de Pesquisa em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: Programa de Educação Tutorial (PET) Filosofia da UFMG, 2005. Disponível em: <http://ufmg.academia.edu/MarcoAntonioSousaAlves/Papers/894367/Logica_x_Retorica_x_Dialetica_diferentes_abordagens_da_argumentacao>. Acesso em: 24/5/2014.

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certo a fazer. Precisamos, a partir disso, abordar a boa retórica ou o bom uso da linguagem, mas uma linguagem que ultrapassa os limites de um simples instrumento crítico para o próprio conhecimento. E é mais um motivo para se tratar da retórica em sua forma (intencional, ou não) e no seu conteúdo, abordando também o que o emissor quer efetivamente comunicar – se o faz de modo implícito ou explícito, por exemplo. Isso apenas se a linguagem deixar de ser um objeto, submetido assujeitado pelo sujeito que pensa que a pode instrumentalizar.

Como identificar na comunicação a intencionalidade sabendo que a complexidade linguística passa necessariamente pela Filosofia?

4. A retórica e a argumentação: o “ser-aí” da língua(gem)

Citado anteriormente por Sandel quanto ao consentimento da população em se tratando da justeza das leis, Kant entende essa anuên-cia como hipotética. Mas como compreender esse processo? Como esse grande nome da Filosofia ocidental foi novamente mencionado por San-del em uma de suas aulas, especificamente quanto à intencionalidade, para Kant, a ação é moralmente valiosa se tem a ver com o motivo, com a qualidade da vontade e, principalmente, com a intenção. Não deixa dúvidas ao afirmar que o valor moral depende do motivo pelo qual ela, a intenção, é feita, mas ressalta que qualquer ação para ser moralmente boa tem de passar pelo único tipo de intenção: a intenção do dever.

Esta seção é marcada pelo poder argumentativo da linguagem, seja ela retórica, silogista ou, até mesmo, a nova retórica. Mas como garantir o seu uso e a sua veracidade baseada na intencionalidade? A intenção é particular de cada indivíduo e de caráter cognitivo. Como saber se ela foi manifestada e como saber a sua forma de manifesta-ção? Necessariamente, o contexto não pode ser descartado para estudos dessa natureza. Já vimos que a Lógica clássica é puramente formal, e as discussões sobre argumentação dependem de pontos de vista distintos, provocando, assim, certa circularidade em função da subjetividade de cada filósofo ou linguista. Existe disciplina que trata da intencionali-dade? Se existe, deve ser da Psicologia, por ser a mente o seu objeto de estudo. Existe sim, mas a área que estuda esse tipo de objetivo situa-se dentro da Linguística: a pragmática.23

23 O primeiro filósofo a formalizar o cálculo conversacional foi Paul Grice (1975).

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Filósofos da linguagem buscam na Linguística o suporte semân-tico para melhor estudar a pragmática. Paul Grice (1975) introduziu um cálculo conversacional de natureza cognitiva para dar conta da inten-cionalidade do ato de fala. Como fez isso? Demonstrou-o mediante a criação de máximas específicas que ocorrem no ato enunciativo. Exem-plificando de forma simples o que é de alta complexidade, a fim de que se tenha noção de como esse diálogo acontece: um falante A pede x que-rendo y a B. Este entende o que está implicado e responde y. Levinson (2007, p. 19) apresenta esse cálculo na sua forma original:

F quis dizer (significado-nn) z ao enunciar E se e apenas se:(i) F pretendia que E causasse algum efeito z no receptor O(ii) F pretendia que (i) fosse conseguida simplesmente pelo fato de O reconhecer esta intenção (i).

Importante destacar que a implicação no silogismo é lógico-de-dutiva, sendo irrefutável a sua conclusão. Na pragmática, essa implica-ção foi batizada com o nome de implicatura, para designar uma impli-cação conversacional, mas que pode ser cancelada se o contexto não permitir tal inferência. É claro que isso é uma noção do que realmente é esse estudo.

Os estudos linguístico-pragmáticos não pararam por aí. Sperber e Wilson (1986) estabelecem como ponto de partida o modelo inferencial de Grice (1975) e desenvolvem uma teoria da comunicação para estu-dos dirigidos à compreensão de enunciados, ou seja, estudam os atos de fala produzidos em situações contextuais específicas, chamada de Teoria da Relevância, considerada com alto grau de complexidade. Isso se deve em função de fazerem convergir o que segue:

(a) uma tradição respeitável em filosofia de linguagem da qual derivam várias propostas teóricas em pragmática linguística, as quais, por sua vez, formam uma intrincada rede de relações com estudos sintático-semânticos e(b) uma série de estudos recentes em psicologia cognitiva, com ênfase em aspectos fundamentais do processamento de informações, como atenção, representação do conhecimento, memória, processos inferenciais, para citar alguns.

Diante dessa exposição linguística, fica clara a intrínseca relação de dependência que as áreas em geral têm com a Filosofia da linguagem.

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Na verdade, o objeto “linguagem”, por se tratar de uma abstração, e abs-trações são ideias que estão na mente humana, estudadas também pela Psicologia, está inserido em todas as áreas do conhecimento humano. A linguagem não é o objeto mais importante a tratar nas ciências; ela, de alguma forma, é a essência de todas elas e, além disso, um “ente” que é necessário “deixar que fale de si”. Movimentos sociais sempre foram mo-tivados por ideais. São as ideias as provocadoras de mudanças em todos os níveis da civilização humana. E considerando a virada linguística, a linguagem deixa inclusive de ser objeto, passa a único “ser” passível de ser compreendido – incluindo seus pré-juízos.

5. Conclusão: a dialética da boa retórica e seus benefícios psicojurídicos

Ao contrário de Platão, Aristóteles arriscou afirmar que o Direito trata de questões contingentes, e não necessárias, como na Matemática. O Direito trabalha com juízos de razoabilidade, e não com juízos de certeza, portanto, o Direito necessita de juízos de valor, ao contrário das ciências exatas – que há muito deixaram também de ser tão exatas, basta citar a teoria da relatividade e mais recentemente a teoria das cordas. Especificamente em sua obra Arte Retórica e Arte Poética, Aristóteles (s./d.) aborda assuntos do gênero deliberativo sobre o que é necessário e contingente, conforme excerto do item I do capítulo IV das matérias que são objetos das deliberações:

[...] Quando ao que acontece ou acontecerá necessariamente, ou que necessariamente não pode acontecer nem ter acontecido, não há nisso matéria de deliberação. 3. Além disso, também não se delibera sobre tudo o que é contingente. Com efeito, na linha do que é contingente existem coisas que derivam da natureza ou são efeito do acaso. [...] 4. [...]não é esse o objeto da Retórica, mas sim o de uma disciplina mais penetrante e mais concorde com a verdade; enfim já concedemos atualmente à Retórica maior número de assuntos de estudo do que os que lhe pertencem propriamente. [...].24

24 Cf. Platão, Alcebíades, 107-108, e, primeiramente, Sócrates, em Xenofonte, Mem., III, 6. 7, que, nesta via, se antecipou a Platão e Aristóteles.

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No Direito, os reflexos do Iluminismo trouxeram um compro-misso nada velado com a segurança jurídica, a tal ponto que o cienti-ficismo moderno vai representar no Direito a eliminação de qualquer juízo de verossimilhança, ou seja, somente o que é certo – só da certeza absoluta (como se ela existisse) poderia decorrer um juízo ou uma sen-tença do juiz. Com isso, a própria retórica forense acabou sendo elimi-nada do mundo jurídico, como explica Ovídio Araújo Baptista da Silva (2009, p. 7-8), sob o argumento de que a função do juiz se restringe a revelar o que disse o legislador, à aplicação pura da Lei como se fosse simples deduzir e aplicá-la a um caso concreto. Segundo o autor, Pla-tão estaria aqui retornando e substituiria o pensamento de Aristóteles, que havia dominado na Idade Média. Isso vai resultar na atualidade na crença – na qual ainda muitos sonhos repousam (e como Dworkin che-gou a sonhar) – de que é possível encontrar a resposta correta para os problemas práticos.

O que dizer então da Psicologia? Ainda que uma série de pesqui-sas envolvendo as reações do ser humano a diversas ações que possam auxiliar no tratamento de doenças, de temores, de crises, fato é que cada ser humano é único, e o resultado de pesquisas pode levar a uma pre-visibilidade, jamais a uma certeza. Mais certo ainda é que é necessário diálogo e, muito obviamente, um bom uso da linguagem para que o sujeito, que precisa de ajuda para superar suas dificuldades psíquicas, possa libertar-se de seus medos e adquirir coragem para determinadas mudanças em sua vida.

Não é possível negar, portanto, que tanto o jurista quanto o psi-cólogo, que tratam das dores do ser humano, necessitam dialogar en-tre si e se fazerem compreender perante aquele que é, muitas vezes, hipossuficiente e necessitado de cuidados especiais. Há necessidade de compreender seu próprio nível de compreensão linguística para que ele próprio possa compreender aqueles que buscam auxiliá-lo: “Cuando te-nemos al otro presente como verdadera individualidad, como ocurre en la conversación terapéutica o en el interrogatorio de un acusado, no puede hablarse realmente de una situación de posible acuerdo” (Gada-mer, 1996, p. 463) – pois a conversação como processo por meio do qual se busca chegar a um acordo refere-se não à opinião das pessoas envolvidas, simplesmente, mas acerca do próprio opinar e entender, ou seja, não interpretamos para compreender, mas compreendemos para

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interpretar. Dizendo de outra forma, a compreensão é o que se entende da leitura unívoca, ao passo que a interpretação pressupõe dois entendi-mentos, necessitando para garantir o mínimo de duas “leituras” a argu-mentação de cada uma delas.

Finalizando o exercício discursivo para garantir que Sandel fez a coisa certa, em especial pela enorme abertura que possibilitou através da pergunta “O que é a coisa certa?”, torna-se necessário destacar o seu princípio básico a fim de diminuir as discrepâncias opinativas que os indivíduos têm no dia a dia: fazer com que a sociedade em geral se inte-resse pela Filosofia. Pode parecer utópico, mas se cada cidadão conhe-ce os meandros argumentativos em todos os seus níveis de raciocínio, juntamente com as leis naturais do comportamento humano, o mundo certamente tomaria o rumo de uma saudável convergência civilizatória. Afinal, estaríamos finalmente um pouco mais seguros de que, em um diálogo, as partes estão efetivamente entabulando uma comunicação compreensível.

Se desejarmos que a democracia paute a vida em sociedade, de que adianta a democracia se os sujeitos não conseguem estabelecer um diálogo em função da sua fragilidade linguístico-filosófica? A filosofia da linguagem ou a invasão promovida pela Filosofia na linguagem mos-tra que não é possível subordinar a linguagem, submetê-la ou prendê-la nos domínios do sujeito; ela não é passível de submissão. Para fazer a coisa certa, é sumamente necessário, portanto, entabular um diálogo em que a linguagem é parte integrante, como ser que também se revela, no tempo e no espaço, diante dos que com ela se comunicam. O ser que se compreende e compreende o ser da linguagem abre-se também para uma nova pergunta, que, no contexto da hermenêutica filosófica, sem-pre precede qualquer resposta.

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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA

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ÂNGELA KRETSCHMANN - CELSO AUGUSTO NUNES DA CONCEIçãO

PLATÃO. Diálogos VII (suspeitos e apócrifos): Alcibíades, Clitofon, Segundo Alcibíades, Hiparco, Amantes rivais, Teages, Minos, Definições, Da justiça, Da virtude, Demódoco, Sísifo, Halcion, Erixias, Axíoco. Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011.

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FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS DE JUSTIÇA DE SANDEL SOB O OLHAR

DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA, COGNITIVA E COGNITIVO-

COMPORTAMENTAL

Ana Raquel Menezes Karkow1 - Maria Verônica Schmitz Wingen2

- Lauren Tonietto3

Sumário: Introdução - 1. O olhar da Psicologia Evolucionista - 2. O olhar da Psicologia Cognitiva - 3. O olhar da Psicologia

1 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre e Doutora em Neurociências pela UFRGS. Atualmente, é Professora do curso de Psicologia do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência na área de Pesquisa e Ensino em Neurociências. E-mail: [email protected] Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Supervisora da Clínica de Saúde Mental no Núcleo de Orientação Acadêmico do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha (Cesuca – Faculdade Inedi), Experiência na área Psicoterápica de Orientação Cognitivo-Comportamental. E-mail: [email protected] Graduada em Psicologia (1999) e em Administração (habilitação em Comércio Exterior) pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Psicologia. Atualmente é Professora e responsável pela área de Seleção, Acompanhamento e Capacitação de Pessoas do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência nas

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ANA RAqUEL MENEZES KARKOW - MARIA VERôNICA SCHMITZ WINGEN - LAUREN TONIETTO

Cognitivo-Comportamental - 4. Ampliando a discussão e integrando as abordagens - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

Este artigo relata o resultado das reflexões que surgiram a partir da proposta de integração entre os cursos de Psicologia e Direito do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), da Facul-dade Inedi, na cidade de Cachoeirinha/RS. As questões abordadas por Michael J. Sandel (2012) são compreendidas aqui a partir de três dife-rentes abordagens da Psicologia: Evolucionista, Cognitiva e Cognitivo-Comportamental.

O ponto de partida foram os conceitos centrais abordados por Michel J. Sandel no seu livro Justiça – O que é fazer a coisa certa (2012). O livro aborda questões sobre moral e justiça e inicia com o relato de diversos casos em que a temática gira em torno de que tipo de justiça adotar. O autor descreve que a justiça analisada é restrita às concepções de liberdade, bem-estar e virtude, cada uma analisada sob os pontos de vista de filósofo clássico e moderno. O objetivo principal do livro é a construção de uma reflexão moral acerca da justiça tendo como ideia central a sustentação da crítica por meio da ação e razão da coletividade.

Um dos temas que foram ampliados durante nossa discussão in-terdisciplinar é iniciado por Sandel (2012) quando ele relata uma reação da população diante dos preços abusivos praticados durante a passagem do furacão Charley, que devastou a Flórida (EUA) em 2004. Logo após sua passagem, houve preços extorsivos em sacos de gelo, diárias de ho-téis, consertos de telhados... Na época – e mesmo hoje, quem passar a ter contato com essa história – o pensamento de muitos ia ao encontro de depreciar essa conduta, criticando ferozmente o mercado que coage pessoas fragilizadas em um momento de catástrofe. Tal sentimento é bastante instintivo. Compadecemo-nos do sofrimento alheio, embora seja facilmente explicado o aumento desses produtos sob os pressupos-tos da lei da oferta e da procura.

áreas de Relações Internacionais, Psicologia Organizacional, Educacional, Escolar e Clínica, com ênfase em Psicologia Sociocognitiva, Habilidades Comunicativas e Desenvolvimento. E-mail: [email protected].

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A reação de rechaço frente aos preços abusivos foi nomeada e discutida como um ultraje. Conforme Sandel (2012), o ultraje é um tipo de raiva que é despertado quando se acredita que as pessoas estão conseguindo algo que não merecem. Esse tipo de raiva é causado pela injustiça e tem como origem moral o argumento da virtude. A ganân-cia é então considerada um defeito moral, pois implica a indiferença ao sofrimento alheio.

O ser humano fundamenta toda a ordem jurídica, política e mo-ral e a orienta no sentido do reconhecimento, do respeito de normas e das regras que os indivíduos reconhecem mutuamente. A temática do comportamento moral é altamente relevante e, assim, é possível estabe-lecer algumas relações entre as disciplinas de Direito e Psicologia. Os mecanismos do comportamento moral são complexos e multifatoriais e sua compreensão é tema de diversas disciplinas, entre elas o Direito e a Psicologia. A seguir, o conceito de justiça e moral são discutidos a partir de três diferentes abordagens da Psicologia: a Psicologia Evolucionista, a Psicologia Cognitiva e a Psicologia Cognitivo-Comportamental.

1. O olhar da Psicologia Evolucionista

A Psicologia Evolucionista oferece elementos fundamentais para a discussão acerca da justiça e da moralidade. O questionamento sobre a origem, o sentido e a finalidade da justiça e da moral conduz à busca dos fundamentos neurobiológicos da conduta humana. As normas jurídicas e morais existem somente porque o homem é compreendido a partir do paradigma das espécies culturais que estabelecem relações sociais.

Charles Darwin, através de pesquisa exaustiva, foi capaz de pro-por uma teoria para a origem da humanidade, que fundaria a Biologia Evolutiva. Evans e Zarate (1999) descrevem a ideia da ancestralidade comum: há cerca de 100 milhões de anos, microrganismos e plantas co-meçaram a ocupar a superfície da Terra, abrindo caminho para alguns invertebrados e anfíbios; a partir dos anfíbios, surgiram répteis, aves e mamíferos; entre os mamíferos, os primeiros primatas surgiram em torno de 55 milhões de anos atrás. A partir desses ancestrais primatas, surgiram os grupos recentes de prossímios, macacos, grandes macacos e a nossa espécie. O primeiro humano moderno de que se tem registro data de 150 mil anos, encontrado na África. Incluindo os seres huma-

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nos nas explicações de sua teoria, Darwin abriu caminhos para novas possibilidades.

Posteriormente, na história do estudo do comportamento huma-no, psicólogos tentavam entender a origem de nossos comportamentos. Na segunda metade do século XX, dois grupos distintos de cientistas concorriam para defender suas abordagens. Os etólogos liderados por K. Z. Lorenz, N. Tinbergen e K. R. von Frisch defendiam as observações naturalísticas do comportamento, a análise comparativa pela observa-ção de um número variado de espécies e a compreensão do instinto e do componente inato do comportamento.

Já os psicólogos comportamentalistas liderados por J. B. Watson e B. F. Skinner, que tentavam descrever os processos psicológicos básicos, com foco na aprendizagem e a descrição dos mecanismos, enfatizavam os comportamentos expressos. L. Cosmides e J. Tooby destacaram a ne-gligência aos mecanismos psicológicos por parte da sociobiologia e da ecologia comportamental humana (LALAND; BROWN, 2002).

Neste momento da história surgem, então, os psicólogos evolu-cionistas, que propuseram uma mudança de foco no nível de explicação do comportamento humano. Passaram a utilizar como nível de expli-cação não mais o comportamento, mas as adaptações que permitem sua expressão, ou seja, os complexos mecanismos psicológicos evolu-tivos (COSMIDES; TOOBY; BARKOW, 1992, baseado em WILLIAMS, 1966). A publicação de The adapted mind (BARKOW; COSMIDES; TOOBY, 1992) foi o marco do surgimento dessa escola e teve influência de grandes teóricos do estudo do comportamento, como D. Symons, E. O. Wilson, E. J. M. Bowlby, I. DeVore, R. L. Trivers e W. D. Hamilton (LALAND; BROWN, 2002).

A Psicologia Evolucionista compreende a mente como um con-junto de mecanismos para processamento de informações, que tem como substrato o tecido nervoso (COSMIDES; TOOBY; BARKOW, 1992) e, portanto, passível de sofrer pressões seletivas como qualquer outro órgão. Esse conjunto de mecanismos é o responsável por nossas atividades mentais conscientes ou não, pela regulação do nosso corpo e pela expressão dos nossos comportamentos (TOOBY; COSMIDES, 2005), funções que refletem sua origem filogenética. Nesse sentido, a Psicologia Evolucionista vincula os mecanismos psicológicos evoluídos, adaptações subjacentes ao comportamento desenhados pela seleção

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natural. Tais mecanismos foram selecionados por resolver problemas adaptativos enfrentados por nossos ancestrais que, em última instância, têm influência sobre o sucesso reprodutivo individual.

Desse modo, a Psicologia Evolucionista apresenta a hipótese de que possuímos programas em nosso cérebro para promover a relação entre a informação do ambiente interno e externo (físico ou social) e o comportamento, o que, provavelmente, favoreceu a seleção de me-canismos psicológicos específicos para resolução de problemas adap-tativos igualmente específicos (BARKOW; COSMIDES; TOOBY, 1992; TOOBY; COSMIDES, 2005; YAMAMOTO, 2009).

Para a compreensão do comportamento moral através da Psico-logia Evolucionista, deve ser discutido o conceito de cultura para esta abordagem (LALAND; BROWN, 2002). Conforme a Psicologia Evolu-cionista, essa definição de cultura é adequada a um tratamento popula-cional. Como a cultura é essencialmente informação particularizada na forma de variantes culturais, é possível rastrear a mudança na propor-ção de cada variante no conjunto de variantes culturais existentes em dada população em certo instante de tempo. É importante explicitar o conceito de cultura pressuposto por Richerson e Boyd, que afirmam que a cultura é informação capaz de afetar o comportamento dos indivíduos e que eles adquirem de outros membros de sua espécie a partir do ensi-no, da imitação e de outras formas de transmissão social (RICHERSON; BOYD, 2005).

Segundo Sober e Wilson (1998), as normas sociais são adapta-ções culturais que são modeladas pelas consequências no ambiente an-cestral que poderiam levar à evolução de processos mentais dotados dos instintos sociais necessários para a vida em comunidades orientadas por prescrições morais, jurídicas e religiosas. Tais marcadores simbólicos possibilitam a interação seletiva com os membros da mesma comunida-de, bem como respeitar normas sociais. Essa rede simbólica de variantes culturais está na origem dos sistemas normativos humanos, como o Di-reito, a religião e a moral.

Os instintos sociais tribais seriam os seguintes: altruísmo e em-patia; tendência a praticar punição moralista e a buscar recompensas; tendência à igualdade; e instintos que favorecem a identificação com marcadores simbólicos. Esses instintos sociais seriam o núcleo daquilo que foi denominado de mente normativa: uma mente capaz de racioci-

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nar a partir de normas sociais e de aplicá-las a situações concretas, como as que examinamos. A aplicação de uma norma social não é um pro-cesso consciente; muitas vezes, sabemos qual é a decisão correta, mas não como justificá-la; e uma explicação possível para isso, compatível com tudo o que se discutiu até aqui, sugere que essa decisão é, muitas vezes, instintiva. Nossa mente opera a partir de uma gramática moral universal, que estrutura nossa experiência moral e a forma pela qual formulamos juízos normativos.

Compreender os fundamentos psicológicos do comportamento moral é uma tarefa que depende de uma abordagem que perpassa a bio-logia evolucionista e que parte da premissa de que, para entender a es-trutura da cognição humana, é necessário entender também o passado evolutivo dos seres humanos. Franciscuss de Waal (2006) desenvolveu diversos experimentos para compreender os pilares da moralidade en-tre os primatas. Entre os mais interessantes dos últimos estudos, encon-tra-se a evidência empírica de que não se refere já aos “grandes símios” (bonobos, chimpanzés, gorilas) senão a primatas evolutivamente mais modestos como os monos capuchinos. Em um dos experimentos, os su-jeitos respondiam sistematicamente mostrando sentimentos de ultraje quando eram recompensados de maneira injusta (pois o outro sujeito recebia uvas realizando a mesma tarefa), com pepinos em lugar das mais valoradas uvas. Ou seja, manifestações de ultraje surgem (os sujeitos ex-perimentais jogavam as rodelas de pepino para fora da gaiola) quando o experimentador não respeitava as regras naturais de reciprocidade, o que induz a pressupor características elementares de justiça nessa socie-dade de primatas (BROSNAN; DE WAAL, 2003). A justiça, a moral, o Direito são as estratégias evolutivas da humanidade; a natureza humana foi formada por um processo evolutivo em que se selecionaram essas estratégias em benefício de determinados traços favoráveis a um tipo novo e avançado de vida social: a cultura.

2. O olhar da Psicologia Cognitiva

Quando se discute sobre o que é fazer o certo, como Michel J. Sandel nos instiga, é inevitável relembrar os conceitos do desenvolvi-mento da moralidade, amplamente estudados por Piaget e Kohlberg.

Em 1932, Jean Piaget publicou seu livro O juízo moral na criança (1992), que descreve suas pesquisas acerca do surgimento de concei-

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tos como a moralidade e, através de uma série de experimentos, anali-sa como esse raciocínio moral se transforma e se desenvolve ao longo da infância e da adolescência. Por meio do chamado Método Clínico (DELVAL, 2002), Piaget investigava em crianças de diferentes idades a resolução de dilemas morais, a representação do mundo, a causalidade, entre outros temas.

Através dessa aplicação de dilemas morais simples, Piaget inves-tigava as concepções que crianças de diferentes idades possuíam sobre as regras de jogos, mentira, roubo, justiça, entre outras. Piaget utiliza-va algumas estratégias para as suas investigações; uma delas consistia em pedir para que crianças brincassem com ele, ensinando-as como se comportar diante das regras de alguns jogos, como o pique e o jogo de bolinhas de gude. Piaget fingia não conhecer as regras que regula-mentam as brincadeiras infantis a fim de poder questionar as crianças à medida que o jogo era desenvolvido (SAMPAIO, 2007).

Piaget identificou que, de maneira geral, as crianças se comporta-vam de quatro maneiras distintas, que ele organizou sob forma de está-gios. No primeiro estágio (de 0 a 2 anos), chamado de “Estágio Motor”, as crianças não faziam uso da regra; simplesmente havia manipulação motora, sem atividades sociais. No segundo estágio (2 a 5 anos), cha-mado de “Egocêntrico”, as crianças recebiam as regras do exterior e as imitavam, sem interesse em encontrar um parceiro a fim de comparti-lhar a atividade; jogavam individualmente, mesmo estando em grupo. No terceiro estágio (7 a 8 anos), conhecido como “Cooperativo”, surge a interação social, bem como a necessidade de ganhar, aparecendo en-tão a sistematização de regras, ainda que existam variações. Por fim, no quarto e último estágio (11 a 12 anos), “Codificação das Regras”, ficam definidas as regras do jogo e todos os participantes a seguem minuncio-samente (QUEIROZ; RONCHI; TOKUMARO, 2009).

Quanto à moral, em uma perspectiva generalista, Piaget concluiu que crianças muito novas se comportam de maneira heterônoma diante de questões morais, e acreditava que o respeito unilateral pelas regras estabelecidas por figuras de autoridade é a essência da moralidade. Nes-se sentido, crianças por volta dos cinco anos ainda não são capazes de refletir, de maneira autônoma, sobre questões morais, de questionar as convenções socialmente estabelecidas e de construir uma consciência moral independente dos adultos, até que fatores de ordem cognitiva,

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afetiva e social interajam adequadamente. Entre esses fatores, por exem-plo, estariam a diminuição do egocentrismo infantil, a descentração cognitiva e o estabelecimento de relações sociais, nas quais predomi-nam a cooperação e o respeito mútuo. A partir da interação desses e de outros fatores, a criança passa a se reconhecer como igual diante das outras pessoas, a conceber que as noções morais dependem do estabe-lecimento de acordos sociais que buscam privilegiar o grupo como um todo e a ter uma consciência moral verdadeiramente autônoma, surgin-do o senso de justiça (SAMPAIO, 2007).

Partindo dos referenciais teóricos de Jean Piaget, Lawrence Kohl-berg, a partir de 1958, elaborou um modelo para o desenvolvimento da moralidade humana. Em suas investigações, realizadas com sujeitos de diferentes idades e de diferentes culturas, ele constatou a existência de alguns padrões de raciocínio moral que independiam da língua e da cultura, o que o levou a postular um caráter universal para o desenvolvi-mento do juízo moral, baseado em estágios de desenvolvimento rígidos e hierárquicos. O princípio básico dessa universalidade, de acordo com Kohlberg, seria a justiça, e assenta-se em uma perspectiva deontológica, de uma moral do dever (ARAÚJO, 2000; BIAGGIO, 2006).

Para Kohlberg, assim como para Piaget, o desenvolvimento da moralidade está ligado, sobretudo, ao desenvolvimento cognitivo e afe-tivo e às interações sociais estabelecidas ao longo da vida (SAMPAIO, 2007). Dessa forma, ao longo do desenvolvimento, pressupõem-se transformações básicas nas estruturas cognitivas, conduzindo a formas superiores de equilíbrio, resultantes de processos de interação entre o organismo e o meio (BATAGLIA; MORAES; LEPRE, 2010).

Na época, foram considerados alguns eixos da teoria de Kohlberg: a universalidade moral (em oposição ao relativismo cultural e ético); o prescritivismo como uso de juízos morais (perspectiva deontológica); o cognitivismo como o elemento de raciocínio do juízo moral (em opo-sição ao emotivismo); o construtivismo; e a ideia de que o pressuposto metaético da justiça é primordial e de que os problemas morais como dilemas são fundamentalmente problemas de justiça (KOHLBERG, 1992 apud ARAÚJO, 2010)

Analisando-se especificamente a cognição moral, podemos ave-riguar que, quando investigada na sua relação com a ação moral apare-cem (a) as atitudes morais, expressas por crenças ou inclinações afetivas;

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(b) a informação moral ou reconhecimento das normas morais; e (c) o julgamento ou raciocínio moral, baseado nas justificações e conclusões em que são suportadas as decisões morais. (BLASI, 1980 apud CARITA; TOMÉ, 2010). Dessa maneira, é a cognição moral, e não tanto a ação, que permite distinguir condutas e aferir a sua qualidade moral. É sobre-tudo pelo pensamento que a qualidade moral da ação pode ser aferida (CARITA; TOMÉ, 2010).

Dessa maneira, podemos pensar que, na problemática proposta por Sandel sobre o que é fazer o certo, conceitos como o da cognição moral – desde sua aquisição e desenvolvimento, suas ações e compor-tamentos – podem ser adjuvantes e norteadores de um entendimento aprofundado sobre a essência do indivíduo e sua relação com a justiça.

3. O olhar da Psicologia Cognitivo-Comportamental

A Psicologia Cognitivo-Comportamental descreve inúmeros princípios para a compreensão do comportamento moral e as ideias so-bre justiça. Desde o surgimento do Behaviorismo ou Comportamenta-lismo, com J. B. Watson, em 1913 (Psychology as the Behaviorist views it), passou-se a pensar não apenas nos indivíduos, mas sim nos com-portamentos destes, sendo adotadas técnicas de experimentação com processos interativos, diretamente observáveis, entre um indivíduo e seu ambiente (NETO, 2002).

A partir da década de 1970, o modelo de processamento de infor-mação e aprendizagem vicária, proposto por Albert Bandura, começou a ganhar terreno e adeptos (KNAPP; BECK, 2008). Bandura (1986 apud VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 1995) entendia que uma parte significativa daquilo que o sujeito aprende resulta da imitação, mode-lagem ou aprendizagem observacional, mas, mais do que isso, graças a esse modo de processamento da informação, permite-se que condutas e eventos ambientais sejam transformados em uma representação simbó-lica, que servirá como guia nas próximas ações.

Já em 1956, Aaron Beck iniciou a escola Cognitiva após trabalhar sobre a depressão com Sigmund Freud. Beck (1956 apud BAHLS; NA-VOLAR, 2004) definiu cognição como a “função que envolve deduções sobre nossas experiências e sobre a ocorrência e o controle de eventos futuros”, além de evidenciar o caráter biopsicossocial de sua teoria.

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Desde então, um número crescente de teóricos e terapeutas co-meçou a se identificar como “cognitivo-comportamentais” em termos de orientação; alguns dos proponentes iniciais mais importantes de uma perspectiva cognitiva e cognitivo-comportamental foram Aaron Beck, Albert Ellis, Alciney Lorenço Cautela, Donald Meichenbaum e James Mahoney (KNAPP; BECK, 2008).

Já no século I, Epitectus afirmava que “O que perturba o ser hu-mano não são os fatos, mas a interpretação que ele faz dos fatos”. A base do modelo cognitivo compartilha a premissa de que existe uma inter--relação entre a cognição, a emoção e o comportamento presentes nos indivíduos (KNAPP, 2004). A Teoria Cognitivo-Comportamental, no entanto, é um termo amplo que inclui tanto princípios da Teoria Cog-nitiva padrão quanto combinações ateóricas de estratégias cognitivas e comportamentais (KNAPP; BECK, 2008).

Nessa abordagem da Psicologia, a ênfase recai na base cognitiva do ser humano, ou seja, busca-se compreender de que maneira surge o modo de pensar nos indivíduos e explica o porquê desses compor-tamentos. No livro Justice, de Michel J. Sandel (2012), são citados inú-meros exemplos que levam a refletir sobre “O que é fazer a coisa certa”. Nenhuma área da Psicologia estará capacitada para dar uma resposta definitiva sobre o tema, mas com as teorias cognitivas podemos, a partir do estudo daquele indivíduo, entender de onde e por que surgem seus pensamentos, explicar suas emoções e prever seus comportamentos.

Segundo Beck (1976 apud KNAPP, 2004), eventos quaisquer ativam pensamentos, os quais geram, como consequência, emoções e comportamentos. Eventos comuns podem gerar diferentes formas de sentir e agir em diferentes pessoas. No entanto, não é o evento em si que gera as emoções e os comportamentos, mas sim o que nós pensamos sobre o evento. Nossas emoções e comportamentos estão influenciados pelo que pensamos; nós sentimos o que pensamos (BURNS, 1989 apud KNAPP, 2004).

De acordo com a Teoria Cognitiva, os indivíduos atribuem sig-nificado a acontecimentos, pessoas, sentimentos e demais aspectos de sua vida; com base nisso, comportam-se de determinada maneira e constroem diferentes hipóteses sobre o futuro. As pessoas reagem de formas variadas a uma situação específica, podendo chegar a conclusões também variadas (BECK, 1963). Em alguns momentos, a resposta habi-

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tual pode ser uma característica geral dentro daquela cultura; em outros momentos, podem ser idiossincráticas, derivadas de experiências pecu-liares àquele indivíduo (BECK, 1963).

Outra premissa do modelo cognitivo é a de que estamos sujeitos a distorções cognitivas, ou seja, distorções no nosso pensamento – o que é muito prevalente em alguns transtornos. Essas distorções são caracteri-zadas como vieses sistemáticos na forma como indivíduos interpretam suas experiências. Se a situação é avaliada erroneamente, essas distor-ções podem amplificar o impacto das percepções falhas. As distorções cognitivas podem levar o indivíduo a conclusões equivocadas mesmo quando sua percepção da situação está acurada (KNAPP, 2004).

Da mesma maneira, segundo o modelo cognitivo, todos possuem crenças nucleares – ideias e conceitos enraizados sobre si mesmos, as pessoas e o mundo. Tais crenças se constituem ao longo da vida e vão moldando a percepção e a interpretação dos eventos, levando a pensar de maneira consoante com suas crenças (KNAPP, 2004).

Portanto, quando Michel J. Sandel (2012) instiga a refletir sobre “O que é fazer a coisa certa”, podemos dizer que cada sujeito formará seu ponto de vista com base em seu processamento cognitivo, na forma em que alicerçou seus pensamentos automáticos e crenças. Considerar correto ou não aumentar os preços de produtos diante de uma catástrofe dependerá das crenças formadas, dos conceitos estabelecidos, se estes sofrem distorções ou não. Alguém pode se sentir desamparado, outro, rejeitado, um terceiro, sem valor (BECK, 1976 apud KNAPP, 2004). Cada sujeito fará o certo com base na sua singularidade e estabelecendo seu senso de justiça conforme a sua interpretação dos eventos.

4. Ampliando a discussão e integrando as abordagens

O propósito do presente capítulo foi apresentar algumas relações entre as diferentes abordagens da Psicologia – Evolucionista, Cognitiva e Cognitivo-comportamental – e do Direito, no sentido de compreen-der os mecanismos envolvidos no comportamento moral.

Consideramos que a mente humana evoluiu como produto de dois sistemas evolutivos; um deles com base em herança genética e o outro, em herança cultural. Ao reconstruir a trajetória humana, deve-se considerar os processos de coevolução entre genes e cultura, sendo pos-

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sível discutir sob uma perspectiva naturalista temas que, normalmente, são tratados sem levar em consideração o conhecimento científico rele-vante produzido em diferentes áreas do saber.

Os estudos sobre desenvolvimento moral dentro da abordagem da Psicologia Cognitiva apontam que o sujeito desenvolve sua moralidade ao longo do ciclo vital, aprimorando sua noção de justiça ao longo do processo de desenvolvimento. Na visão da Psicologia Cognitiva, a mora-lidade é o resultado da interação de fatores maturacionais (inatos) e de-senvolvimentistas (adquiridos na interação do sujeito com seu ambiente).

Dentro do paradigma da Psicologia Cognitivo-Comportamental, o comportamento moral é determinado pela maneira como se dá o pro-cessamento cognitivo – crenças, valores, conceitos, além da interpreta-ção de eventos – que formam nosso pensamento acerca da justiça.

Os olhares das três abordagens psicológicas descritas neste ca-pítulo enfocam diferentes aspectos do desenvolvimento humano no que se refere ao desenvolvimento do pensamento e do comportamento moral. Assim, as abordagens se complementam ao destacar diferentes aspectos envolvidos na temática da justiça: os aspectos evolutivos e ins-tintivos do comportamento, a maturação e o desenvolvimento cognitivo e social necessários para alcançar a cooperação e a autonomia moral, e a função do pensamento na determinação do comportamento humano.

A interdisciplinaridade na compreensão do comportamento hu-mano possibilita um avanço no diálogo entre as ciências e a Filosofia, tornando possível investigar, com maior profundidade, fenômenos como a moral. Evidentemente, o assunto tratado não se esgota neste texto. Pensar os fenômenos sociais, jurídicos e morais estabelecendo o entrelaçamento de perspectivas e das ciências como o Direito e a Psico-logia é o caminho para avançar nas reflexões e produções teóricas sobre este tema.

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FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS1

Camile Eltz de Lima2 - Emerson de Lima Pinto3

Sumário: Introdução - 1. Felicidade versus democracia versus direitos e garantias individuais - 2. Provocações ao utilitarismo sob a ótica do direito - 2.1 Sociedade contemporânea e os novos riscos: fim das certezas e seguranças prometidas - 2.2 Novos riscos e seus reflexos no direito penal e processo penal. - Considerações Finais - Referências Bibliográficas

1 O presente artigo é resultado do evento Diálogos entre Direito e Psicologia, ocorrido no Cesuca, no dia 12/11/2013.2 Advogada. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Professora no curso de Graduação em Direito no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca).3 Advogado. Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Direito Público pela Unisinos. Especialista em Ciências Penais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no curso de Graduação em Direito na Unisinos e no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Pesquisador do Cesuca.

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CAMILE ELTZ DE LIMA - EMERSON DE LIMA PINTO

INTRODUÇÃO

O artigo em questão é fruto de diálogo realizado entre os cursos de Graduação em Direito e em Psicologia, ambos oferecidos no Com-plexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), tendo como ponto de partida o livro (best-seller) de Michael Sandel4 intitulado Justi-ça – O que é fazer a coisa certa, mais especificamente o capítulo 2, assim nominado: “O princípio da máxima felicidade/utilitarismo”.

Antes de tudo, importa destacar que leitura da obra do filósofo americano Michael Sandel mostrou-se bastante interessante e desafia-dora. O livro, muito provocativo, leva o leitor a constantes indagações,5 até mesmo de posturas adotadas e de correntes ideológicas seguidas.

A ideia principal consiste em trazer algumas das inquietações que o capítulo proposto nos proporcionou. Nesse ponto, proveitosa a realização de diálogo com a Psicologia, justamente para nos auxiliar na reflexão e, até mesmo, na (re)afirmação das nossas convicções/valores.

Já adiantamos ao leitor que não defendemos o Direito como a principal ou a mais importante das ciências existentes (superamos, aqui, o narcisismo). Pelo contrário, o Direito nada mais é que ciência jurídica e social aplicada e, por isso, imprescindível dialogar com outros ramos do saber.

Sobre a temática, é preciso Salo de Carvalho:

A pretensão e a soberba gerada pela crença romântica de que o direito penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impede o angustiante e doloroso, porém, altamente saudável, processo de reconhecimento dos limites. Tenho, pois, que a nós penalistas falta uma dose de humildade e modéstia, para, ao adotar uma ética transdisciplinar, estabelecer uma séria conversação com as demais áreas do saber, procurando, neste diálogo, apre(e)nder, e não simplesmente impor uma verdade absoluta com intuito de subjugar conhecimentos diversos.6

4 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.5 “Sandel não oferece respostas prontas. Ao estilo socrático, propõe mais perguntas do que soluções, sustentando que é preciso refletir coletivamente para encontrar saídas. Uma das certezas é que a busca pelo que é justo, acompanha a humanidade desde sempre, sendo um dos temas clássicos da filosofia” (DUARTE, Letícia. Dilemas éticos. Zero Hora, Porto Alegre/RS, Caderno PrOA, 25/5/2014, p. 6.6 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)

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Daí por que (justificada e acertada) a escolha do viés transdisci-plinar, já que voltado à abertura e ao diálogo e, sobretudo, porque não pretende, segundo ensina Cristina Rauter,7 construir uma teoria mais e mais abrangente, que possa enfim dar conta de mais fenômenos, mas um campo teórico não estável, que se transforma, se alarga e se encolhe, cuja vantagem dessa instabilidade é a possibilidade de experimentação constante e que impede a generalização de procedimentos singulares.

No ponto, cumpre colacionar a Carta da Transdisciplinaridade, adotada no primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em 1994, em seu art. 3º: “A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa”.

Portanto, é sob a ótica transdisciplinar que abordaremos a temática.

1. Felicidade versus democracia versus direitos e garantias individuais

O capítulo proposto8 tem como tema principal o utilitarismo. Não por outro motivo aborda os ideais dos pensadores Jeremy Bentham (1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873).

Sob esta ótica, argumenta-se que “a coisa certa a fazer é aquela que maximizará a utilidade”, definida por Bentham como “qualquer coi-sa que produza prazer ou felicidade e evite a dor ou o sofrimento”. Assim sendo, cabe aos legisladores maximizar a felicidade da comunidade ge-ral. E, na tensão entre prazer e dor, deve prevalecer o primeiro. Portanto, sempre a decisão deverá proporcionar mais felicidade que sofrimento. Deve-se, pois, promover o bem-estar geral.9

Todavia, uma das críticas que o autor do livro faz, apontando para a vulnerabilidade do pensamento utilitarista, é que este não respei-ta os direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações, ignora-se o indivíduo – o que pode ser cruel.

funções do controle penal na sociedade contemporânea). In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 207.7 RAUTER, Cristina Mair Barros. Clínica do Esquecimento: Construção de uma superfície. Tese de doutoramento apresentada à PUC/SP, 1998. p. 6.8 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa, p. 42-74.9 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa, p. 48.

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Assim sendo, dentre as objeções que propõe Sandel ao utilita-rismo e, nesse sentido atualizando o discurso, dentro desta ótica dos direitos individuais, está a tortura. Apresenta um caso (emblemático) sobre a justificativa (ou não) da tortura em interrogatórios de suspei-tos de terrorismo. Considera uma situação em que uma bomba-relógio está por explodir e que você está no comando de um escritório local da CIA (Central Intelligence Agency). Você prende um terrorista suspei-to e acredita que ele tenha informações sobre um dispositivo nuclear preparado para explodir em Manhattan dentro de algumas horas. Você tem razões para acreditar que ele próprio tenha montado a bomba. Ele se recusa a admitir que é terrorista ou a informar onde a bomba está colocada. Nessas condições, indaga-se: Seria certo torturá-lo para que diga onde está a bomba e como desativá-la?

Pois bem. O argumento a favor da tortura começa com um cálcu-lo utilitarista. A tortura (inegavelmente) inflige dor, reduzindo a felici-dade; contudo, tem-se que milhares de inocentes morrerão se a bomba explodir. Logo, o pensamento utilitarista irá argumentar que a tortura é justificável se evitar a morte e sofrimento em grande escala. Avalia-se tão somente o cálculo utilitarista em si.

Ocorre que a tortura, como sustenta o autor,10 viola os direitos humanos, desrespeitando a dignidade dos indivíduos. Afinal, somos seres merecedores de respeito. Portanto, é errado tratá-los como instru-mentos da felicidade coletiva. As pessoas não podem ser usadas como instrumentos para obtenção do bem estar alheio. Desta forma, não po-demos levar em consideração números, abandonando escrúpulos sobre dignidade e direitos humanos, até porque moralidade não deve traba-lhar com o binômio “custos e benefícios”.

Logo, é errado violar os direitos de alguém, ainda que tal violação viesse em prol da felicidade de uma população.

Prossegue o filósofo referindo que não se pode basear direitos em cálculos sobre o que produzirá maior felicidade. Assevera que só porque algo proporciona prazer a muitas pessoas, não significa que esteja acer-tado. O simples fato de a maioria, por maior que seja, concordar com determinada lei, não faz com que ela seja (necessariamente) correta.

10 Avançando um pouco a leitura do livro-base (p. 135 e ss.), encontramos, no capítulo 5, algumas críticas importantes sobre o utilitarismo.

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2. Provocações ao utilitarismo sob a ótica do direito

Enfim, a partir da leitura do capítulo proposto e analisando-o sob a ótica do Direito, alguns questionamentos vêm à tona: é possível, na atualidade, adotar uma postura utilitarista, abrindo-se mão dos di-reitos e garantias individuais em prol de uma “segurança e bem-estar” geral? Será que podemos dizer que o Direito, enquanto conjunto de leis positivadas e vigentes em um determinado lugar e um determina-do tempo, produz “felicidade”? Que felicidade é esta? Para quem ou a serviço de quem?

2.1. Sociedade contemporânea e os novos riscos: fim das certezas e seguranças prometidas

Antes de mais nada, é preciso quebrar alguns mitos/paradigmas.Vivemos em um período (único) muito distinto em relação a

qualquer outro momento já experimentado pela Humanidade. Não existe, portanto, continuidade (no sentido de linha do tempo, cujo avanço – temporal – represente sempre evolução). Aliás, cumpre referir que custou muito caro a defesa (diga-se de passagem, indefensável) das teorias evolucionistas, que propunham um único destino (feliz) à Hu-manidade:

Para alguns darwinistas, como Tylor e Spencer, a sociedade evoluía em fases sucessivas, ou seja, a história das sociedades também estava sujeita a leis da natureza, tendo tendência de seguir linhas de desenvolvimento semelhantes, independente da localização espaço-temporal, indo necessariamente da selvajaria à barbárie e finalmente à civilização.11

A sociedade contemporânea é marcada pela complexidade. Ace-leração, tempo, velocidade são significados que sofreram profundas transformações e agora passam a representar os traços característicos deste período marcado pelo constante dinamismo, “porque a vida, por definição, é movimento, inscrito no tempo de maneira irreversível, sem possibilidade de voltar atrás. O que já foi não voltará a acontecer, e qual-

11 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 152.

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quer decisão, qualquer ação, modifica o curso da história de cada um ou de todos”.12

Sobre esse indeterminismo, explica François Ost:

O nosso futuro, desta vez, seria verdadeiramente contingente, verdadeiramente indeterminado. O amanhã seria de tal forma novo que a nossa bagagem de experiência, desta vez, já não teria qualquer utilidade e mesmo os nossos projectos e promessas (o impulso prometeico) perderiam toda a pertinência.13

Assim, não há mais lugar para o absoluto, para o previsível, para a certeza e segurança. A regra é o caos, a incerteza. Se, em outros tempos, o homem alcançava as metas que havia projetado, agora, além de ter presente a impossibilidade da certeza, sabe que, muito provavelmente, alcançará resultados bem distintos dos que havia planejado/idealizado.

Caracterizada, então, a falência de todo o discurso, para não fa-lar mito, que, por diversos séculos, acompanhou a Humanidade: ou seja, o próprio projeto da Modernidade, que proporcionaria, por força do império exclusivo da razão, o bem-estar, progresso e felicidade na Terra. Pensava-se equivocadamente que a racionalidade resolveria to-dos os problemas e que bastaria o controle, a ordem, para alcançar-se o progresso.

No entanto, não precisou muito tempo para constatar que todo esse otimismo deu lugar ao pessimismo. A Humanidade, em vez de en-trar em um estado verdadeiramente humano, passou a se afundar em uma nova espécie de barbárie (intitulada por Michel Löwy de “barbárie civilizada”). Basta perceber tudo o que a racionalidade instrumental foi capaz de fazer: ao progresso linear e seguro, causa e efeito de um eviden-te bem-estar social, tem-se um regresso.

Vive-se, assim, em uma profunda crise epistemológica, na qual a técnica supera o humano, tudo por conta de uma ciência sem limi-tes: um instrumento de puro poder. Ruth Gauer acertadamente coloca assim a questão: “Existem limites para a ciência? O que nos espera não

12 RAUX, Jean-François. Prefácio: Elogio da Filosofia para construir um mundo melhor”. In: MORIN, Edgar; PRIGOGINE, Ilya (Orgs.). A Sociedade em Busca de Valores. Para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Piaget, 1996. p.13.13 OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999. p. 324.

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pode sequer ser imaginado, muito menos os métodos que serão empre-gados para atingi-lo”.14

Dentro desse quadro, é preciso destacar também que os riscos, que sempre ameaçaram as sociedades humanas, tornam-se os grandes responsáveis pelo aumento (cada vez em um grau maior de intensidade) da insegurança que se faz presente no mundo de hoje.

Os riscos contemporâneos são qualitativa e quantitativamente di-ferentes daqueles que se faziam presentes nas sociedades pré-industrial e industrial. São incalculáveis, imprevisíveis e “potencialmente globais no âmbito do seu alcance”.15 Regem a vida de tal maneira que a socieda-de contemporânea passa a ser denominada de sociedade de risco.

Sobre a legitimidade e os valores, Sérgio Cadermatori16 esclare-ce que o culto à legalidade simplesmente formal representou um efeito perverso que afetou a própria ideia de legitimidade que passou a ser compreendida como uma simples questão de efetividade, e não de jus-tiça como elemento fundante de todo o fenômeno jurídico. As normas componentes do sistema não devem ser apenas formalmente corretas, mas também devem conformar-se com valores tidos como necessários para a existência de uma sociedade livre. Tornou-se necessário supe-rar essa visão dogmática-legalista, e eis algumas críticas que lhe foram corretamente produzidas: a) quanto à noção jurídica, a legitimidade constrói-se em uma época de sociedade globalizada pluralista e frag-mentária; b) a legitimidade possuía uma certa noção supralegal ligada ao Direito natural; c) a noção axiológica reforça a noção de valores que foi suplantada em período positivista; d) a supremacia da legalidade de-ve-se ao fim do poder pessoal e ao advento da democracia; e) redução da legitimidade a mero elemento interno da categoria legalidade dentro de uma instrumental perspectiva moral (ideologias da legitimidade: 1) ideologia da legitimidade racional, 2) ideologia da legitimidade históri-ca e 3) ideologia da legitimidade existencial).

Assim, não há, então, como negar o próprio mal-estar que rege a civilização: “A busca da felicidade, promessa da modernidade, não con-

14 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p. 195.15 GOLDBLATT, David. Teoria social e ambiente. Tradução de Ana Maria André. Lisboa: Piaget, 1996. p. 232.16 CADERMATORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: Uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 99; 101.

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seguiu apagar o sentimento profundo sempre presente do eterno sofri-mento”.17 Freud foi categórico, nesse sentido, ao afirmar que a felicidade (plena) é impossível de ser alcançada; tem-se que (apenas) se contentar com espasmos de felicidade.

Ocorre que, diante desse cenário de risco (total), fim das certezas e insegurança, aliado a outros problemas advindos das transformações tecnológicas (principalmente daquelas que dizem respeito às esferas da telecomunicação e da cibernética, cujo expoente, seguramente, é a in-ternet), científicas, econômicas e sociais, especialmente após o encerra-mento da Segunda Guerra Mundial, o Estado perde seu poder enquanto agente capaz de trazer segurança e garantir proteção aos seus indivíduos – sintoma este de fracasso do Welfarismo (penal) enquanto modelo de Estado cujo traço essencial de suas políticas poderia ser traduzido na promoção de bem-estar aos seus cidadãos, ou seja: uma verdadeira pro-messa de felicidade social.18

Surgiu, com essa nova tendência, na Europa, um processo de mi-gração, gerando para os indivíduos que migram para outros Estados--partes certa (des)nacionalização; também paralelas com os fluxos mi-gratórios estão as diversas dificuldades enfrentadas pelas nações, como na área da segurança pública, aumentando com isso a criminalidade globalizada,19 pois há uma grande circulação de pessoas, facilitada pela evolução dos meios de transporte, não havendo, assim, grandes dificul-dades em cruzar fronteiras. Já com o deslocamento das empresas para os países mais atrativos, percebem-se, nesse caso, os sérios danos cau-sados em relação ao meio ambiente, ocasionando grandes poluições. E, não podendo deixar de mencionar, há outro grande fator negativo que se forma a partir da globalização econômica, isto é, o grave problema das (des)igualdades sociais, que se aprofunda cada vez mais nas marcas da pobreza absoluta e da exclusão social. Em suma, o pensamento único

17 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p. 180.18 Sobre o Estado social, refere François Ost: “Preocupado com a realização efectiva das promessas de liberdade e de igualdade para todos, o Estado social pretende dominar os principais riscos, impondo segurança generalizada” (O tempo do Direito, p. 336).19 FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Madrid: Editorial Trotta, 2004. p. 86-87.

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na era globalizada20 é o da liberdade da informação, sendo esta demo-cratizada.21

2.2. Novos riscos e seus reflexos no direito penal e processo penal

Encontra, portanto, no Direito Penal, espaço para desempenhar tal tarefa. Nesse aspecto, salienta Aury Lopes Jr.: “como consequência desse cenário de risco total, buscamos no direito penal a segurança per-dida. Queremos segurança em relação a algo que sempre existiu e exis-tirá: violência e insegurança”.22 Desta forma, acrescenta o autor:

o sistema penal é utilizado como sedante, através do simbólico da pan-penalização, do utilitarismo processual e do endurecimento geral do sistema. [...] Os programas urgentes, contudo, permitem resultados rápidos, visíveis e mediaticamente rentáveis, mas com certeza não se institui nada durável numa sociedade a partir, unicamente, da ameaça da repressão.23

Ao (pretender) garantir a proteção dos principais (quando não de todos) bens e interesses da Humanidade, acaba “projetando no imagi-nário coletivo a existência de segurança social garantida pela severidade

20 HABERMAS, Jürgen. O Estado-Nação frente aos desafios da globalização. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 1995. p. 98. Globalização significa transgressão, remoção de fronteiras e, portanto, representa uma ameaça para aquele Estado-nação que vigia quase neuroticamente suas fronteiras. Anthony Giddens definiu globalização como a intensificação das relações mundiais que ligam localidades distantes, de tal maneira que os acontecimentos locais são moldados pôr eventos que são a muitos quilômetros de distância e vice-versa. A comunicação global ocorre tanto por meio de linguagens naturais (na maioria das vezes através de meios eletrônicos) como por códigos especiais (são os casos, sobretudo, do dinheiro e do direito).21 IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1997. p. 21. A realidade política global compreende a formação e atuação das corporações transnacionais da mídia, que organizam e agilizam não somente os meios de comunicação e informação, como também a eleição, seleção e interpretação dos fatos, sejam sociais, econômicos, políticos ou culturais. Isso não significa, obrigatoriamente, uma aceitação pacífica por parte da população, mas é claro que os meios de comunicação, informação e análise organizados na mídia e na indústria cultural agem com muita força e preponderância no modo pelo qual se formam e conformam as mentes e os corações da grande maioria pelo mundo afora.22 LOPES JR., Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal. In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 147.23 LOPES JR., Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal, p. 168.

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da lei”.24 É dentro desse quadro que se desenvolve uma cultura de emer-gência, que é definida por Fauzi Hassan Choukr como sendo:

aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade. [...] Tal declinação da cultura normal não se dá pela inserção tópica das regras fora da extratificação codificada pois, se assim fosse, toda lei extravagante deveria ser rigorosamente considerada como emergencial ou de exceção. A caracterização da presença do subsistema se dá com a mitigação, direta e indireta, de garantias fundamentais estabelecidas no pacto da civilidade, esta devendo ser entendida não apenas o texto interno constitucional mas, igualmente, os textos supranacionais que versem sobre esta matéria, vez que fornecerão a base daquilo que vai se denominar sistema, regulando sua legitimidade operacional ao nível normativo e interpretativo.25

A consequência que isso acarreta para o processo “é o emprego de mecanismos cada vez mais tendentes à supremacia estatal”.26 Destaca-se, já em um primeiro momento, que é a primazia da razão de Estado27 sobre a razão jurídica como critério informador do Direito e do processo penal, em um contexto em que o Estado é um fim, não fundado senão sobre si mesmo. Tutelam-se, pois, os interesses do Estado, e não mais os do indiví-duo. Inverte-se, desta forma, a lógica que deveria imperar: império do Es-tado de Direito no qual o Estado é um meio justificado pelo fim de tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos. Adverte Luigi Ferrajoli:

el principio de la razón de estado es incompatible con la jurisdicción penal dentro del marco del moderno estado de derecho, de forma tal

24 OLIVEIRA, Lenôra Azevedo de. A proteção do Bem Jurídico Ambiental e os Limites do Direito Penal Contemporâneo. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Leituras Constitucionais do Sistema Penal Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 76.25 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 5-6.26 Nesse aspecto ressalta Aury Lopes Jr.: “a sociedade, acostumada com a velocidade da virtualidade, não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição” ((Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal, p. 165).27 “La razón de estado esta guiada por principio por la lógica partidista y conflitctual del amigo/enemigo [...], admite procedimientos inquisitivos dirigidos a identificar al enemigo con indagaciones directas sobre las personas mas allá de las acciones cometidas” (FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón: Teoría del garantismo penal. 4. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayon Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocio Cantanero Bandrés. Madrid: Trotta, 2000. p. 815).

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que cuando interviene – como en el derecho penal de la emergencia – para condicionar las formas de la justicia o, peor, para orientar un concreto proceso penal, entonces ya no existe jurisdicción sino otra cosa: arbitrio policial, represión política, regresión neoabsolutista del estado a formas premodernas.28

Evidenciado que esse Direito de exceção, nada garantista, pau-ta-se em uma política criminal apenas preocupada com a eficiência do sistema, com o êxito funcional, enfim, com ter respostas, imediatas de preferência. Ou seja, é uma política criminal de resultados.29 Ocorre que: “não há ‘cultura’ emergencial que justifique a adoção de medidas que violem a CR ou a estrutura democrática de processo.30

Sustenta Luigi Ferrajoli:

La cultura de la emergencia y la práctica de la excepción, incluso antes de las transformaciones legislativas, son responsables de una involución de nuestro ordenamiento punitivo que se ha expresado en la reedición, con ropas modernizadas, de viejos esquemas substancialistas propios de la tradición penal premoderna, además de en la recepción en la actividad judicial de técnicas inquisitivas y de métodos de intervención que son típicos de la actividad de policía.31

Ao lado de um Direto Penal de exceção, temos também um Di-reito Processual de emergência, caracterizado, basicamente, pela miti-gação de garantias fundamentais. Sobretudo com a luta contra o crime organizado, o Estado passa a adotar medidas, enaltecendo seu poder tal que as garantias constitucionais, como constata Alberto Zacharias Toron, soam como retórica inútil:

28 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. 4. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayon Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocio Cantanero Bandrés. Madrid: Trota, 2000. p. 812.29 Sobre o tema, adverte Luiz Flávio Gomes: “O que importa é o ‘bom funcionamento’ do sistema penal (não importa o custo), para ‘aniquilar’ o inimigo, pouco valendo a tradição clássica iluminista e ‘garantista’ que procura tutelar o cidadão contra as abusivas invasões do poder punitivo estatal” (GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 47).30 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal, p. 49.31 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 807.

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Assim, a prisão provisória facilitada ao máximo, com um escasso controle judicial, ou mesmo a ampliação de seu prazo, isto para não falar nas escutas telefônicas, na quebra dos mais diferentes tipos de sigilo, nos flagrantes controlados e na infiltração de agentes, trarão consigo uma espécie de estado “democrático-policial” que só teve paralelo nos períodos mais duros do regime militar. O paradoxo, no entanto, está em que tudo agora é feito sob o manto legitimador da democracia.32

Nesse cenário, impossível discordar que, diante de um verdadeiro processo penal de resultados, “o processo penal se transformou numa máquina incontrolável sem as garantias tradicionais em favor do pro-cessado”.33 Retorna-se à prática inquisitiva, em que há uma visível am-pliação de poderes, sobretudo da polícia: agora conta-se com os agentes infiltrados, indiscriminada utilização das escutas telefônicas, nas quais os “princípios fundamentais ou não valem mais ou valem apenas limi-tadamente”.34

Por isso, salutar a manifestação de Luiz Flávio Gomes:

[...] se não pretendemos transformar o Estado Constitucional de Direito em um Estado policialesco (do terror), o primordial – em qualquer país – é não abrir mão dos direitos e garantias fundamentais, bloqueando-se toda possibilidade de um direito e de uma jurisdição de exceção. Impõe-se sempre procurar examinar se as medidas (legais ou prestes a se tornarem) encontram respaldo ou se conflitam com o ordenamento jurídico em vigor. Uma coisa é o político-criminalmente ‘desejado’, outra bem diferente é o jurídico-constitucionalmente possível.35

Impressiona, portanto, o modo como se resgatam certas práti-cas inquisitivas, que ganham roupagens cada vez mais incrementadas e perversas, aniquilando, desta forma, o próprio sistema acusatório, degradando, pois, o processo penal que visava atingir uma finalidade garantista.

32 TORON, Alberto Zacharias. Prefácio do livro Crime Organizado, de Luiz Flávio Gomes, p . 8.33 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal, p. 42.34 HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, a. 2, n. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar., 1995, p. 60.35 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e político-criminal, p. 44.

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O Estado luta com toda a força e severidade (para não falar ir-racionalidade) não contra os culpados, como deveria ser em um Esta-do em que predomina a razão de Direito, mas contra os inimigos, pois “cualquiera que atenta contra la seguridad o la supervivencia del estado no es un delincuente sino un enemigo y contra él no valen las reglas del derecho sino las de la fuerza”.36

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a vida em sociedade pressupõe o Direito, podemos, de alguma forma, afirmar que haverá “felicidade” na medida que se reconheça o homem enquanto homem e que o indivíduo esteja em primeiro plano – a democracia pressupõe modelo político em que o indivíduo é valori-zado, assumindo papel de destaque.

O reconhecimento do valor do homem enquanto homem implica o surgimento de um núcleo de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer. E, assim, toda lei que viole a dignidade da pessoa humana deve ser reputada como inconstitucional.

Todos os habitantes estão submetidos, mediata ou imediatamente, à unidade fundamental de decisão e devem contribuir para a unidade de ação central. Desse modo, o Estado precisa de uma Constituição norma-tiva, entendida como a ordenação consciente da realidade social segundo um plano, ideia consagrada pelas revoluções liberais e que precisa ser (re)legitimado na sociedade contemporânea a partir de novos paradigmas, conforme foi abordado sucintamente na sociedade civil, poder consti-tuinte e direitos humanos como fio condutor de uma nova compreensão de sociedade garantista e de um Estado garantista e dirigente.

Por isso, a importância do princípio da humanidade, que, con-forme sustenta Cezar Bitencourt, impede que o poder punitivo estatal aplique sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que le-sionem a constituição físico-psíquica dos condenados.37

E aqui fazendo-se um link com o capítulo do texto, tem-se que a tortura não pode, sob hipótese alguma, ser aceita e praticada.

36 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 829.37 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. v. 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

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Muito se tentou legitimar a absurda relação entre tortura e verda-de. Deixando de lado a discussão de que a “verdade” (absoluta/real) não existe, é um contrassenso pensar, assim como o torturador o concebia, que a verdade pode ser extorquida de alguém pela pressão da dor. Existe verdadeira incompatibilidade entre dor e verdade, pois “a dor não pode tomar o cadinho da verdade, como se o critério dessa verdade residisse nos músculos ou nas fibras do infeliz”.38

Ademais, outra questão interessante de se colocar é a de que não está separando o corpo e sujeito – separação esta que está entranhada na cultura ocidental. Refere Maria Rita Kehl que não temos um vocabu-lário que expresse a unidade fundamental: um homem é seu corpo. Di-zemos “meu corpo” como se o eu que fala se representasse de um outro lugar, fora do corpo sem o qual ele não existe: seria bem mais apropria-do, refere a autora, que disséssemos “eu/corpo”. No entanto, argumenta que a tortura refaz o dualismo corpo/mente ou corpo/espírito, porque a condição do corpo entregue ao arbítrio e à crueldade do outro separa o corpo e sujeito. Sob tortura, o corpo fica tão assujeitado que é como se a alma ficasse separada dele. A fala que representa o sujeito deixa de lhe pertencer, uma vez que o torturador pretende arrancar de sua vítima a palavra que ele quer ouvir, e não a que o outro teria a dizer.39

É necessário, portanto, estabelecer critérios de racionalidade e ci-vilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de con-trole social maniqueísta que coloca a defesa social acima dos direitos e garantias individuais.

Como diz Luigi Ferrajoli, Estado e Direito não são fins, mas meios para a realização da dignidade do homem. É que o Estado que mata, que tortura, que humilha o cidadão não só perde qualquer legiti-midade como contradiz a sua própria razão de ser, que é servir de tutela dos direitos fundamentais do homem, colocando-se no mesmo nível dos delinquentes.40

38 KEHL, Maria Rita. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia (Orgs.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos Editora, 2004. p. 13.39 KEHL, Maria Rita. “Três perguntas sobre o corpo torturado”, p. 10-11.40 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 396.

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O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA

Evanisa Helena Maio de Brum1 - Fernanda Vaz Hartmann2

Sumário: Introdução - 1. A felicidade e a Psicologia - 2. O desenvolvimento do julgamento moral - Considerações Finais - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

A partir da leitura do capítulo sobre utilitarismo do livro Justiça – O que é fazer a coisa certa, de Sandel (2013), propomo-nos a pensar so-bre estas questões considerando os argumentos de Mill e Bentham, que apresentam sua reflexão a partir do seguinte questionamento: É possível traduzir valores morais em termos monetários? É possível mensurar e comparar todos os valores e bens em uma única escala de medidas? Para Jeremy Bentham, o utilitarismo tem como mais elevado objetivo moral maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor (SANDEL, 2013). Entretanto, para Sandel (2013), Bentham não atribuiu

1 Doutora em Psicologia pela UFRGS, Coordenadora do Curso de Psicologia do Cesuca e Diretora da Área de Ciências Biológicas e da Saúde da mesma Instituição.2 Mestre em Psicologia pela UFRGS e Professora do Curso de Psicologia do Cesuca.

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o devido valor à dignidade humana e aos direitos individuais e reduziu equivocadamente tudo que tem importância moral a uma única escala de prazer e dor.

Tendo como base este pensamento, Jonh Stuart Mill tentou sal-var o utilitarismo, reformulando-o como uma doutrina mais humana e menos calculista. Para ele, o utilitarismo está baseado nos interesses permanentes do homem como um ser em evolução, tendo como ques-tão central o respeito à liberdade individual que levará à máxima feli-cidade humana. Destaca que as pessoas devem ser livres para fazerem o que quiserem, contanto que não façam mal aos outros. Por fim, tanto Bentham quanto Mill seguem com a ideia de que o objetivo final do utilitarismo é a felicidade.

Para refletir sobre o exposto acima, o presente artigo apresenta uma discussão utilizando dois enfoques teóricos: a moralidade e a feli-cidade. Em relação à moralidade, cada vez mais se fala em uma crise de valores morais que surge em diferentes cenários, entre eles a família, a escola, a igreja, a política e a justiça. Esses cenários deveriam representar a estruturação da sociedade, no que tange à moralidade (PONCIANO, 1999). Concomitante a isso, a busca pela felicidade tem se apresentado como premente na sociedade atual, parecendo superar qualquer outro valor e, por vezes, chegando a suplantar a moralidade. Nesse ponto de reflexão, é possível perceber que os conceitos de moralidade e felicidade se cruzam. Desta forma, começaremos por aprofundar o conceito de felicidade, após o de moralidade e, por fim, apresentaremos uma discus-são buscando aproximar os dois conceitos.

1. A Felicidade e a Psicologia

A felicidade tem sido objeto de estudo da Filosofia há séculos e assim como era discutida por Bentham e Mill (SANDEL, 2013), o era também por Aristóteles, Schopenhauer e Platão (SPONVILLE, 2012). Já para a Psicologia, a história é bastante diferente, pois a felicidade estava entre os objetivos da Psicologia até a Segunda Guerra Mundial, os quais eram: 1) curar as doenças mentais; 2) tornar a vida das pessoas mais produtiva e feliz; e 3) identificar e criar talentos. Após a Segunda Guer-ra Mundial, os dois últimos objetivos foram esquecidos e a Psicologia passou a focar somente o primeiro. Isso aconteceu porque o impacto da guerra foi enorme para a Psicologia – assim como o foi para muitas

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4 • O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISãO DA PSICOLOGIA

outras áreas do conhecimento; precisávamos lidar com inúmeros so-breviventes que retornaram da guerra com transtornos mentais e, além disso, nessa época, houve o incentivo financeiro, profissional e social do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos aos psicólo-gos e pesquisadores que se debruçassem sobre o tema dos transtornos mentais (SELIGMAN, 2002). Esse movimento fortaleceu a Psicologia Clínica, bem como a acuidade diagnóstica e o tratamento das doenças mentais. Entretanto, por outro lado, enfraqueceu o estudo dos aspectos virtuosos dos seres humanos.

O estudo dos aspectos virtuosos dos seres humanos, especifica-mente o estudo da felicidade foi retomado por Seligman (2011), funda-dor do movimento científico intitulado Psicologia Positiva.

A Psicologia Positiva tem como objetivo buscar o florescimento através do desenvolvimento do bem-estar e enfatizar os aspectos positi-vos do desenvolvimento humano. Tem como base para sua formulação duas correntes teóricas: a Psicologia Humanista, que também enfatiza os aspectos positivos do desenvolvimento humano, e a Psicologia Cog-nitiva e Comportamental, que procura mudar o pensamento e o com-portamento das pessoas (PALUDO; KOLLER, 2007).

Dentro da concepção da Psicologia Positiva, Seligman (2011) uti-lizou o termo técnico bem-estar para referir-se à felicidade, o qual se or-ganiza como um constructo de cinco elementos: Emoção Positiva, En-gajamento, Sentido, Relacionamentos Positivos e Realização. A Emoção Positiva refere-se à satisfação com a vida, que pode envolver variados sentimentos, tais como felicidade, alegria, amor, paz, prazer, entusias-mo. O Engajamento ocorre diante da sensação de que o tempo parou, quando a pessoa fica completamente absorvida pela tarefa. Nesse mo-mento, o pensamento e o sentimento estão ausentes e só é possível dizer: “Aquilo foi divertido!” ou “Aquilo foi maravilhoso!” em retrospectiva. O Sentido está relacionado a pertencer e servir a algo que seja maior. São aquelas coisas que dão sentido à vida, tais como formar uma família, lutar por uma causa, fazer um trabalho voluntário, fazer o trabalho ser diferenciado. É uma sensação subjetiva, quem a sente não pode estar enganado sobre a sua sensação, sobre seu próprio prazer. Desta forma, o que a pessoa sente é que define a questão. relacionamentos Posi-tivos referem-se a ter relações positivas com as pessoas, pois poucas coisas positivas são solitárias. E, por fim, a realização, que se refere aos

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momentos nos quais a pessoa se sente realizada. A realização deve ser buscada por ela própria, mesmo quando não produz emoção positiva, sentido ou relacionamentos positivos. Desta forma, persegue-se a reali-zação por ela mesma.

Além do constructo do bem-estar, acima descrito, Seligman (2011) destaca a importância de que cada um conheça suas forças pessoais e que encontre formas novas e mais frequentes de utilizá-las. Esse conhe-cimento pode ser adquirido através do teste VIA (SELIGMAN, 1990b). As forças pessoais são apresentadas pelo autor em seis eixos: 1) Sabedo-ria e Conhecimento; 2) Coragem; 3) Humanidade e Amor; 4) Justiça; 5) Temperança; e 6) Transcendência. Descobrir quais são as forças pessoais pode auxiliar, por exemplo, a escolha de atividades correspondentes a essas forças e, por seguinte, ao realizar essas atividades, a pessoa terá um maior engajamento e, por fim, sentirá um maior bem-estar.

Outro aspecto importante que a Psicologia Positiva apresenta é que a quantidade de coisas boas pesa mais para a felicidade do que a qualidade dessas coisas (DIENER e LUCAS, 2000). Para aumentar a quantidade de coisas boas, Seligman (2009) propõe a atividade denomi-nada de três bênçãos. Para fazê-la, a pessoa deve, todas as noites, reser-var cinco minutos antes de dormir e fazer uma lista do que foi bom no seu dia (fato). Ele sugere que sejam coisas simples, como encontrar ami-gos, comer o prato favorito, por exemplo. Depois a pessoa deve escrever por que isso foi bom (sentimento) e por que aconteceu (causa). A ideia da atividade é a valorização das pequenas coisas boas, que, por vezes, passam despercebidas no dia a dia, bem como ressaltar que são coisas simples que geram sentimentos positivos e que muitas delas podem ser novamente produzidas diante da análise de suas causas. Desta forma, a felicidade, aqui denominada de bem-estar, pode ser alcançada através do conhecimento das forças pessoais, bem como através de exercícios específicos que promovam cada um dos cinco elementos que compõem o constructo do bem-estar.

2. O desenvolvimento do julgamento moral

Até aqui nos debruçamos em compreender o conceito de felici-dade para a Psicologia a partir dos pressupostos de Seligman, fundador da Psicologia Positiva; cabe-nos agora buscar o autor da Psicologia que se dedicou a compreender a moralidade.

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Elegemos Kohlberg (1969; 1971; 1972) um autor que dedicou seus estudos ao entendimento do desenvolvimento do julgamento mo-ral nos indivíduos. Kohlberg foi um pesquisador norte-americano que se interessou pelo estudo do desenvolvimento moral considerando a aplicabilidade do enfoque cognitivo, redefinindo os estágios de julga-mento moral propostos por Piaget (1973). Ele realizou suas pesquisas sobre julgamento moral, apresentando aos sujeitos uma sequência de histórias ou dilemas morais hipotéticos destinados a colocar o indiví-duo diante de um conflito entre a conformidade habitual a regras ou à autoridade em oposição a uma resposta utilitária ou de bem maior. Os dilemas apresentam conflitos entre padrões simultaneamente aceitos por grande parte da comunidade.

A partir do estudo dos dilemas, Kohlberg (1969) percebeu que o desenvolvimento do julgamento moral ocorre em diferentes culturas exatamente da mesma forma, ou seja, o desenvolvimento moral não implicaria o “conhecimento” das regras da cultura dos valores. O que importa é que o julgamento muda em sua forma cognitiva no padrão do raciocínio apresentado. Desta forma, o desenvolvimento moral ocorre a partir de estágios que evoluem conforme as mudanças na forma cog-nitiva do raciocínio ao longo do desenvolvimento, o que independe do conteúdo do problema moral analisado.

Kohlberg (1969) dividiu o desenvolvimento do julgamento moral em três níveis: pré-convencional, convencional e pós-convencional. No nível pré-convencional, o valor moral localiza-se nos acontecimentos externos, a orientação é para a obediência e o castigo; há uma deferên-cia egocêntrica, sem questionamento, direcionada para o poder daquele que se considera superior, ou direcionada a uma tendência para evitar aborrecimentos. A orientação é ingenuamente egoísta, ou seja, a ação tida como correta é a que satisfaz instrumentalmente às próprias ne-cessidades. Já no nível convencional, o valor moral localiza-se no de-sempenho correto de papéis, na manutenção da ordem convencional e em atender às expectativas dos outros. Neste nível, a orientação do bom menino e da boa menina é o que orienta as escolhas. Há, portanto, uma orientação para obtenção de aprovação e para agradar aos outros, o que gera uma conformidade com imagens estereotipadas ou papéis naturais e julgamento em função de intenções, bem como uma orien-tação de manutenção da autoridade e ordem social com um fim em si

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mesmo. Por fim, o terceiro nível, o pós-convencional, em que o valor moral localiza-se na conformidade para consigo mesmo, com padrões, direitos e deveres que são ou podem ser compartilhados. Nesta etapa, o comportamento é regido pela orientação contratual legalista. O dever é definido em termos de contrato ou de evitar a violação dos direitos dos outros e da vontade e bem-estar da maioria. O indivíduo passa a se orientar através da consciência ou de princípios sociais prescritos, mas para princípios de escolha que envolvem apelo à universalidade lógica e a consistência.

A teoria de Kohlberg até hoje é bastante reconhecida como refe-rência na estruturação de postulados que sustentam o desenvolvimento do juízo moral; entretanto, recebeu, e ainda recebe, muitas críticas. Uma delas (SASTRE et al., 1994 apud ARAÚJO, 2000) diz respeito ao fato de o autor não ter considerado, no estudo da moralidade humana, a re-presentação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, as quais são inerentes aos conflitos morais enfrentados no cotidiano.

Na tentativa de dar respostas às críticas lançadas à teoria de Kohlberg, dois de seus colaboradores ampliaram seus estudos: Selman e Gilligan. Selman direcionou seus estudos em um paradigma cogniti-vo-evolutivo-estrutural, propondo um modelo teórico em que o desen-volvimento moral está relacionado com o desenvolvimento social e cen-trado na capacidade do sujeito em adotar papéis sociais, incorporando a afetividade e a representação de valores sociais dos sujeitos. Gilligan também buscou integrar em seu modelo teórico a representação de va-lores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, centrando-se, entre-tanto, em análises de gênero (ARAÚJO, 2000).

Outros estudiosos seguiram esse propósito, investigando o papel das emoções e dos sentimentos nos raciocínios morais dos seres huma-nos. De maneira geral, a preocupação desses investigadores centrou-se no estudo da atribuição de emoções e sentimentos a personagens que in-fringiam normas sociais e/ou morais (NUNNER-WINKLER; SODIAN, 1988; ARSENIO; KRAMER, 1992; LOURENÇO, 2000; ARAÚJO, 1999; DE LA TAILLE, 2000). Todos esses trabalhos partem da concepção de que a compreensão da moralidade pressupõe a confluência de aspectos cognitivos e afetivos na explicação do funcionamento psíquico humano.

Dentro dessa concepção, Araújo (2000) investigou a influência que diferentes estados emocionais podem exercer no raciocínio dos su-

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jeitos ao se defrontarem com conflitos morais. Para tanto, 90 professo-res, de escolas públicas e privadas, foram investigados. Foi apresentado um mesmo conflito aos sujeitos: “Uma professora flagra um aluno fu-mando maconha na escola”. Esse mesmo conflito foi apresentado em duas situações distintas: 1) para um grupo, não foi dado nenhuma in-formação sobre o contexto em que os fatos se deram nem características específicas da protagonista e dos demais envolvidos no conflito; e 2) para o outro grupo, foram dadas várias informações sobre o contexto em que o conflito ocorreu, as características dos personagens envolvi-dos, detalhes de suas vidas, da comunidade a que pertenciam, das rela-ções existentes entre elas, bem como dos sentimentos e emoções pre-sentes na situação. Posteriormente, foi perguntado aos dois grupos de professores “O que deveria fazer a professora, protagonista da história?”. Antes de responder à questão, os professores foram divididos em três grupos e expostos a diferentes emoções. O primeiro grupo experienciou emoções positivas, como satisfação, felicidade e alegria; o segundo gru-po, que chamaremos de grupo neutro, não foi induzido a experienciar nenhuma emoção específica; e, por fim, o terceiro grupo experienciou emoções negativas, como insatisfação, frustração, desagrado e tristeza.

Os resultados revelaram tanto no grupo que recebeu mais infor-mações quanto no que não recebeu que, enquanto a grande maioria dos sujeitos que experienciou estados emocionais positivos (90%) resolveu o conflito apresentado, no grupo negativo esse percentual caiu para 50%. Os sujeitos supostamente alegres e/ou satisfeitos não compreen-deram que a professora deveria encarar o conflito vivido somente como um dever moral que tinha de ser resolvido, mas também como uma necessidade própria que ajudaria o aluno e a levaria ao bem-estar. Esse dado deixa claro que o estado emocional, de fato, influenciou a forma por meio da qual os sujeitos organizaram seu raciocínio.

Os sujeitos sob um estado emocional positivo situam a conduta da protagonista em um universo no qual não há contradições entre seus desejos e seus deveres, enquanto para os sujeitos em estado emocional negativo esses dois universos, de desejos e deveres, são vistos de forma dicotômica, ou seja, tendem a não manter a coerência entre deveres e desejos (ARAÚJO, 2000).

Desta forma, o estudo de Araújo (2000) revelou que o estado emocional pode se constituir em força motivacional ética, que possibili-

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ta uma integração entre os desejos e os deveres inerentes às normativas sociais. O pensar e o sentir passam a ser vistos como ações indissociá-veis, em que a afetividade influencia de maneira significativa a forma pela qual os seres humanos resolvem os conflitos de natureza moral; assim como a organização dos pensamentos influencia os sentimentos, o sentir também configura a forma de pensar.

Essa compreensão retoma a perspectiva filosófica aristotélica que postula que a moralidade está na busca virtuosa da felicidade, do bem. Ao assumir a posição da correlação entre felicidade e moralidade, acre-dita-se que vivenciar emoções positivas implicaria uma maior possibili-dade de as pessoas abstraírem elementos, atribuírem significados e esta-belecerem relações e/ou implicações semelhantes (ARAÚJO, 2000). Em um mundo cada vez mais conturbado, conseguir manter princípios coe-rentes na forma de raciocinar em face de dilemas de natureza moral pode ser uma arma poderosa para a adaptação e o bem estar dos indivíduos, bem como para constituir cidadãos conscientes de seu papel na socieda-de e, consequentemente, a construção de uma sociedade mais evoluída.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessa reflexão, voltamos ao início do nosso texto, onde apontamos a fragilização das instituições sociais e, consequentemente, estaríamos expostos a uma fragilização do julgamento moral. Acredita-se que as instituições de educação podem cumprir um papel significa-tivo nessa transformação, criando espaços de convivência e atividades que integram as dimensões da emoção e do pensamento moral. As ins-tituições de educação, através de seus educadores, devem se comprome-ter com a formação de jovens que, ao mesmo tempo, conheçam os con-teúdos da ciência contemporânea, mas também reflitam sobre os limites éticos da aplicação dessa ciência; pessoas conscientes de seu papel para a construção de uma sociedade mais justa e solidária; que saibam lidar com seus próprios sentimentos e afetos; e que saibam lutar (virtuosa-mente) pela felicidade própria e das outras pessoas.

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A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA

Guilherme de Oliveira Feldens1 - Ney Wiedemann Neto2

Sumário: Introdução - 1. Comunitarismo e moral narrativa - 2. Estado neutro e deveres de solidariedade - 3. Justiça e vida boa - 4. A solidariedade como obrigação moral - 5. A obrigação de solidariedade no ordenamento jurídico pátrio - 6. O dever de cuidado na jurisprudência - Conclusão - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

Na concepção liberal, caracterizada nos dias atuais pelo pensa-mento de John Rawls, as obrigações surgem de duas maneiras: como deveres naturais que temos em relação aos seres humanos como tais e/ou como obrigações voluntárias nas quais incorremos por meio do con-

1 Doutorado em Filosofia (Unisinos), Mestrado em Direito (Unisinos), Professor Direito de Família e Sucessões, e de Iniciação à Prática, de Direito da Faculdade Inedi, Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Advogado.2 Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Mestre em Poder Judiciário pela Fundação Getulio Vargas (FGV Direito-Rio). Professor do curso de Direito da Faculdade Inedi, Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca).

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sentimento. Os deveres naturais são universais. As obrigações voluntá-rias são particulares. Dessa forma, a justiça liberal exige que respeitemos os direitos das pessoas (como estabelecidos na estrutura neutra), e não que promovamos seu bem (isso dependerá dos acordos que tivermos feito e com quem os fizemos).

Nesse cenário, o cidadão comum não tem nenhuma obrigação especial para com seus compatriotas além do dever universal e natural de não cometer injustiças. Tal ideia não considera as responsabilidades especiais que temos para com nossos compatriotas. Não considera os deveres de lealdade e de responsabilidade cuja força moral consiste, em parte, no fato de que viver de acordo com eles é parte inseparável de nos concebermos como os indivíduos únicos que somos (membros de uma nação, família ou povo, como parte de sua história).

Nesse contexto, o presente artigo visa analisar juridicamente a existência do terceiro tipo de obrigação moral apresentado por Mi-chael Sandel através do estudo de normas e decisões judiciais. Assim, direcionando o estudo em torno de sua crítica ao individualismo e à atomização da sociedade moderna, será dado ênfase a uma defesa de recuperação das ideias de comunidade como algo essencial na formação da identidade dos cidadãos.

1. Comunitarismo e moral narrativa

Michael Sandel é um dos principais autores da corrente filosó-fica denominada de comunitarismo. Ao lado de nomes como Alasdair MacIntyre, Charles Taylor e Michael Walzer, Sandel, com raízes no aris-totelismo, apresenta uma forte desconfiança com as propostas de uma moral abstrata, defendendo uma ética das virtudes e uma concepção política que leve em conta as tradições. Segundo ele, princípios de justi-ça somente poderiam ser tematizados a partir de sociedades reais, e não de uma concepção abstrata de pessoa, consequência dos modelos uni-versais, pois toda identidade, seja cultural, étnica ou social, é determina-da por fins não escolhidos por indivíduos desinteressados, mas sim por indivíduos inseridos em um determinado contexto social.3

3 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 118.

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As críticas de Sandel se concentram, justamente, na recusa da concepção de pessoa adotada pelos teóricos liberais, mais especifica-mente, Rawls, afirmando que ela não é condizente com a noção de pes-soa real, inserida em um contexto político, cultural e ligada a alguma comunidade.4 Segundo Sandel, as exigências impostas pela concepção universal de pessoa são significativas, pois forçam a exclusão de qual-quer outra relação que não seja voluntarista entre um eu e seus fins, qualquer fim cuja adoção ou busca possa comprometer ou transformar o eu e qualquer possibilidade de que o bem da comunidade possa con-sistir em uma dimensão constitutiva desse tipo. Para ele, um leque de concepções do bem não poderá florescer em uma sociedade verdadei-ramente liberal, porque os fundamentos metafísicos individualistas e o caráter não social de seus princípios de justiça geram a incapacidade de reconhecer as variedades da experiência humana moral em torno das quais as concepções do bem humano mostram seu verdadeiro valor.5

A concepção kantiana de pessoa moral dá origem a um “Eu” desfi-gurado, típico da cultura liberal.6 Segundo Sandel, em posição contrária ao individualismo subjetivista liberal, cada um deveria estabelecer uma ordenação coletiva, e não individual, junto à comunidade, tentando evi-tar a desfiguração de sua própria identidade. Tal realidade é ainda mais agravada dentro da racionalidade própria dessa cultura, fundamentada em uma falsa neutralidade que serve apenas como um padrão de julga-mento de qualquer tradição. Nessa mesma linha, MacIntyre denuncia a total incapacidade do pensamento liberal de absorver visões diferentes que possuem outra concepção de pessoa moral, já que o tipo de consen-so proposto é apenas um acordo que visa proteger a própria sociedade liberal democrática.

Outra crítica diz respeito justamente ao individualismo reinante nas teorias liberais, que faz com que pensadores como Rawls entendam mal a relação entre indivíduos e sociedade.7 No pensamento liberal, não se compreende que as concepções de bem e os valores morais derivam

4 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. p. 14.5 Ibid., p. 172.6 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 372.7 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista en John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 136.

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da própria sociedade na qual os cidadãos estão inseridos, não sendo possível desvincular a identidade pessoal da identidade social (daí a expressão moral narrativa). A sociedade é vista apenas como um ins-trumento para atingir benefícios individuais, sendo constituída por in-divíduos com interesses formados independentemente do meio no qual estão inseridos.8 Há uma pretensão irreal de uniformizar e excluir as diferenças, sem levar em conta que a formação dos conceitos de justiça e liberdade passa, necessariamente, pela relação com os outros.

Além de todas essas oposições, Sandel põe em foco a pretensão de universalismo das modernas teorias da justiça. Segundo o autor, cada pessoa deve ser vista inserida em suas origens, tradições e em outros valores do grupo a que pertence, não devendo tais diferenças ser ex-terminadas por um procedimento de uniformização.9 Cada grupo deve ter direito de escolher suas próprias metas e seus próprios valores. Ma-cIntyre, por exemplo, defende uma política de inclusão que proteja as diferenças pela legislação, para que não haja a depreciação de determi-nadas culturas e um predomínio absoluto de uma cultura dominante.10

Dessa forma, a identidade social requer um reconhecimento contínuo e igualitário, capaz de, ao mesmo tempo, assegurar a proteção contra o arbítrio e a manutenção das diferenças. Assim, um princípio da igualdade universal exigiria o reconhecimento das diferenças. Por outro lado, a ética liberal não leva em conta essas exigências, pois con-figura-se, antes, em uma ética do direito do que do bem, formulando princípios básicos relativos apenas a como a sociedade deve agir diante das diferentes exigências individuais.11

2. Estado neutro e deveres de solidariedade

Sandel ainda conecta uma última crítica voltada contra a ideia de um Estado neutro quanto a valores morais, responsável pela cons-trução de uma sociedade cega às diferenças, impeditiva da construção

8 MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Rawls and Communitarianism. In: FREEMAN, Samuel (Org.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2001, p. 460-485. p. 467.9 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 367.10 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 145.11 TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 203.

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de identidades que, sob essa suposta neutralidade cultural, expressaria justamente a tradição cultural ocidental.12 Segundo o autor, não é pos-sível o Estado manter-se em neutralidade, pois, ao legislar, ele não pode evitar emitir juízos morais sobre determinados assuntos.13 Assim, essa pretensa neutralidade serve mais para esconder o domínio de uma cul-tura determinante, já que, levando-se em conta o exposto por Taylor, a prioridade do justo sobre o bem pressupõe o comprometimento com a valorização, tipicamente liberal, da autonomia.14

Como exemplo de crítica ao Estado neutro, Sandel cita o debate de 1858 entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas em relação à escravidão. Douglas, com base na neutralidade de Estado, propôs que se deixasse cada Estado-membro decidir a questão. Lincoln, contrariamente, susten-tou a não adoção de tal postura frente a um mal moral indiscutível, pois a neutralidade do Estado favoreceria os interesses escravagistas.15

A prioridade total às obrigações voluntárias e naturais não faz referência a uma moral substantiva.16 Não leva em conta a existência de um terceiro tipo de obrigação: as obrigações de solidariedade. Elas são particulares, e não universais. Envolvem responsabilidades morais que devemos ter não apenas com os seres racionais, mas com aqueles com quem compartilhamos uma determinada história. Não dependem de ato de consentimento. Seu valor moral fundamenta-se no reconheci-mento do fato de que minha história de vida está implicada na história dos demais indivíduos.

Pode-se citar como obrigação moral de solidariedade a obrigação especial que os membros da família têm entre si. Os pais têm respon-sabilidades especiais com relação aos filhos. E também os filhos têm

12 Para Taylor (1998, p. 81), “existe uma forma de política de igual respeito, guardada religiosamente num liberalismo de direitos, que é hostil à diferença, porque (a) insiste na aplicação, sem qualquer exceção, uniforme das regras que definem esses direitos, e porque (b) desconfia dos objetivos coletivos. É evidente que isto não significa que este modelo procure abolir as diferenças culturais. Afirmá-lo seria uma acusação absurda. Mas digo que é hostil à diferença, porque não pode ajustar-se àquilo a que os membros das sociedades distintas aspiram realmente: a sobrevivência”.13 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 98.14 TAYLOR, op. cit., p 77.15 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. p. 99.16 CITTADINO, op. cit., 1999, p. 90.

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responsabilidades especiais com relação aos pais. Além disso, posso ter para com meus companheiros algumas responsabilidades especiais re-lativas às comunidades às quais pertenço. Orgulho e vergonha são senti-mentos morais que pressupõem uma identidade comum. A capacidade de sentir orgulho e vergonha pelos atos de membros de nossa família e de nossos concidadãos tem a ver com a responsabilidade coletiva. Am-bos requerem que nos vejamos como pessoas inseridas em um grupo – presas a vínculos morais que não escolhemos e implicadas nas narra-tivas que moldam nossa identidade como agentes morais.

O fato de pertencer a um determinado grupo nos torna, de certa forma, responsáveis. Não podemos ter orgulho de nosso país e de seu passado se não estivermos dispostos a assumir a responsabilidade de trazer sua história até os dias atuais, liberando-nos da dívida moral que possa vir com ela.

As obrigações de solidariedade podem competir com os deve-res naturais para com qualquer ser humano. Podemos ter obrigações de solidariedade ou sociedade por razões que não têm relação com uma escolha – razões ligadas às histórias por meio das quais interpretamos nossa vida e ligadas aos grupos aos quais pertencemos. Está em questão como concebemos a liberdade humana. E também a nossa concepção de justiça. Michael Sandel filia-se à concepção narrativa da ação moral, a de que o indivíduo se define como tal a partir da história na qual se vê inserido.

3. Justiça e vida boa

Vivemos em um período de transformação e de transição acerca do papel do Estado, seus limites e suas obrigações. Vale a pena a reflexão que nos traz Michael Sandel em seu best-seller Justiça – o que é fazer a coisa certa.17 Nos capítulos 9 e 10, o autor aborda essa intrincada ques-tão, que nos remete a questionar a noção atual de justiça, o que a seguir analisaremos.

Com a eleição de Ronald Regan, em 1980, os conservadores cris-tãos tornaram-se uma voz proeminente na política republicana dos Es-tados Unidos da América. Defendiam a oração nas escolas, demonstra-

17 SANDEL. Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 259-330.

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ções religiosas em praças públicas, restrições legais à pornografia, ao aborto e à homossexualidade.

Os liberais, em oposição, argumentaram que juízos morais e religiosos não têm lugar na política. Em 1993, o filósofo John Rawls publicou o livro Liberalismo político, no qual sustentou que as pessoas têm afetos, devoções e lealdades, convicções religiosas, filosóficas e mo-rais, apegos e lealdades. Apesar disso, argumentou que esses valores não podem ser a base de nossas identidades como cidadãos. Para Rawls, o governo não pode endossar uma concepção particular do bem. Os ci-dadãos não podem introduzir suas convicções morais e religiosas no debate público sobre justiça e direitos. Se o fizerem e seus argumentos prevalecerem, estarão impondo uma lei fundamentada em uma deter-minada doutrina moral ou religiosa.

Foi Barak Obama que propôs que os progressistas adotassem um raciocínio público mais abrangente e mais aberto à fé. A tentativa de dis-sociar os argumentos de justiça e direitos dos argumentos da vida boa é equivocada porque nem sempre é possível decidir questões sobre justiça e direitos sem resolver importantes questões morais e, mesmo quando isso é possível, pode não ser desejável. É um erro insistir na ideia de que convicções morais e religiosas não desempenham nenhuma função na política ou na lei. “Nossa lei é, por definição, uma codificação da mo-ralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã” (OBAMA, 2006).

Segundo Michael J. Sandel, a justiça é invariavelmente crítica e indissociável de concepções divergentes de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça não é apenas a forma certa de distribuir as coi-sas. Ela também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas. Uma so-ciedade justa requer um raciocínio conjunto sobre a vida boa. O desafio é imaginar uma política que leve a sério as questões morais e espirituais, mas que as aplique a interesses econômicos e cívicos, e não apenas a sexo ou aborto.

Uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade. Precisa incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, ou seja, uma dedicação ao bem comum. Precisa encontrar meios de se afastar das noções da boa vida puramente egoístas e cultivar a virtude cívica.

Ainda que não seja possível ao governo permanecer neutro nas divergências morais e religiosas, é possível conduzir a política com base

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no respeito mútuo. Respeitar as convicções morais e religiosas dos ou-tros não significa ignorá-las. Suprimir as divergências pode provocar retrocessos e ressentimentos.

Um comprometimento público maior com nossas divergências morais proporcionaria uma base para o respeito mútuo mais forte, e não mais fraca. Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal mais inspirador do que uma política de esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa.

4. A solidariedade como obrigação moral

Isso nos remete de volta à reflexão de Sandel a respeito da soli-dariedade como obrigação moral. Na concepção liberal, as obrigações surgem de duas maneiras: como deveres naturais que temos em rela-ção aos seres humanos como tais e como obrigações voluntárias nas quais incorremos por meio do consentimento. Os deveres naturais são universais. As obrigações voluntárias são particulares. A justiça liberal exige que respeitemos os direitos das pessoas (como estabelecidos na estrutura neutra), e não que promovamos seu bem (isso dependerá dos acordos que tivermos feito e com quem os fizemos).

Para Rawls, segundo a concepção liberal de obrigação, o cidadão comum não tem nenhuma obrigação especial para com seus compatrio-tas além do dever universal e natural de não cometer injustiças. Isso não considera as responsabilidades especiais que temos para com nossos compatriotas. Não considera os deveres de lealdade e de responsabili-dade cuja força moral consiste, em parte, no fato de que viver de acordo com eles é parte inseparável de nos concebermos como os indivíduos únicos que somos (membros de uma nação, família ou povo, como par-te de sua história).

Essas identidades não são contingências que devemos deixar de lado quando deliberamos sobre moral e justiça. Elas são parte de quem somos e, portanto, parte de nossas responsabilidades morais. Existe uma terceira categoria de obrigações. São as obrigações de solidariedade ou sociedade, que não podem ser explicadas em termos contratuais. Elas são particulares, e não universais. Envolvem responsabilidades morais que devemos ter não apenas com os seres racionais, mas com aqueles com quem compartilhamos uma determinada história. Não dependem

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de ato de consentimento. Seu valor moral fundamenta-se no reconheci-mento do fato de que minha história de vida está implicada na história dos demais indivíduos.

Resumindo, Sandel divide a responsabilidade moral em três cate-gorias: a) deveres naturais-universais, não requerem consentimento; b) obrigações voluntárias-particulares, requerem consentimento; c) obri-gações de solidariedade-particulares, não requerem consentimento.

Podemos citar como obrigação moral de solidariedade a obriga-ção especial que os membros da família têm entre si. Os pais têm res-ponsabilidades especiais com relação aos filhos. E também os filhos, têm responsabilidades especiais com relação aos pais.

Além disso, podemos ter para com nossos companheiros algu-mas responsabilidades especiais relativas às comunidades às quais per-tencemos. Orgulho e vergonha são sentimentos morais que pressupõem uma identidade comum. A capacidade de sentir orgulho e vergonha pe-los atos de membros de nossa família e de nossos concidadãos tem a ver com a responsabilidade coletiva. Ambos requerem que nos vejamos como pessoas inseridas em um grupo – presas a vínculos morais que não escolhemos e implicadas nas narrativas que moldam nossa identi-dade como agentes morais.

5. A obrigação de solidariedade no ordenamento jurídico pátrio

A seguir, listamos alguns artigos de lei em que podemos demons-trar que, no Brasil, essa questão da solidariedade como obrigação moral já está, inclusive, positivada. No Direito Material, destacamos as seguin-tes normas insculpidas no Código Civil, que consagram essa obrigação de solidariedade entre os parentes.

Os pais têm obrigação, perante a sociedade, de reparar os prejuí-zos que tenham sido causados por seus filhos, enquanto forem menores de 18 anos de idade.18

Além disso, os pais têm o dever de criar e educar os filhos, en-quanto forem menores, assumindo a sua guarda e mantendo-os na sua

18 “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia.”

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companhia, exigindo deles obediência, respeito e a prestação de servi-ços de colaboração adequados à sua idade e condição.19

Na hipótese de não cumprimento desses deveres, ou de abuso do poder familiar, os pais responderão processo judicial, de iniciativa de algum parente ou do Ministério Público, podendo o poder familiar ser suspenso ou revogado, colocando-se o menor em família substituta, de forma temporária ou definitiva, por adoção nesse segundo caso.20-21

Por outro lado, os deveres de solidariedade entre os parentes se estendem também no sentido do provimento de necessidades de natu-reza alimentar ou de educação.22 Há uma regra, porém, de que a obri-gação deve recair preferencialmente sobre os parentes mais próximos,23 priorizando-se os ascendentes aos descendentes.24

E essa obrigação de solidariedade no Brasil é tão intensa que não cessa com a morte daquele que tem o dever de prestar alimentos, esten-dendo-se aos seus herdeiros, na proporção das forças da herança.25

Também merece registro que, mesmo com a extinção do casa-mento, o ex-cônjuge poderá ser chamado a prestar alimentos, tanto por

19 “Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:I - dirigir-lhes a criação e educação;II - tê-los em sua companhia e guarda; [...]VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.”20 “Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.”21 “Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:I - castigar imoderadamente o filho;II - deixar o filho em abandono;III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”22 “Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.”23 “Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.”24 “Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.”25 “Art. 1.700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma do art. 1.694.”

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ocasião da separação,26 como no futuro, por necessidade supervenien-te.27 Apenas há uma modulação, nesse último caso, que cuida do caso de o ex-cônjuge ter sido ou não culpado pela separação, fato que tem relevância na quantificação dos alimentos a serem arbitrados.

Além disso, ninguém desconhece a obrigação alimentar que os pais têm com relação aos filhos, especialmente quando ainda são me-nores, havendo a extinção do casamento,28 ou mesmo a obrigação do genitor para o filho havido em relação extraconjugal.29 Inclusive, o fato de o filho completar 18 anos de idade, atingindo a maioridade civil, não é causa de extinção de obrigação alimentar, que somente cessará por decisão judicial que avaliará as condições particulares do caso e a capa-cidade do jovem adulto de prover o seu sustento.

Prosseguindo, também no Direito Instrumental podemos citar algumas normas, extraídas do Código de Processo Civil, as quais defi-nem algumas restrições importantes, em consideração a essa obrigação de solidariedade entre parentes.

De regra, os parentes não podem depor como testemunhas no processo judicial, sendo ouvidos em casos excepcionais, mas sem o compromisso de dizerem a verdade, senão como meros informantes, cujas informações serão levadas em conta com restrições.30

26 “Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos os critérios estabelecidos no art. 1.694.”27 “Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial.Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.”28 “Art. 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos.”29 “Art. 1.705. Para obter alimentos, o filho havido fora do casamento pode acionar o genitor, sendo facultado ao juiz determinar, a pedido de qualquer das partes, que a ação se processe em segredo de justiça.”30 “Art. 405. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas ou suspeitas. [...]§ 2o São impedidos: [...]I - o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consangüinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público, ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito; [...]

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Por último, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mes-mo em nosso ordenamento jurídico. Daí, a testemunha poderá recu-sar-se a depor sobre fatos que possam lhe causar prejuízo ou de seus parentes, sem que isso lhe acarrete qualquer sanção.31

6. O dever de cuidado na jurisprudência

A partir da jurisprudência, veremos outros casos de obrigação moral, nas relações de família, como a paternidade “socioafetiva”, que se estabelece em adoções irregulares, relações entre padrasto e enteados etc.

Podemos citar o paradigmático julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua 3ª Turma, no Recurso Especial n. 1.159.242-SP, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, em 24/4/2012, em decisão assim ementada:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero

§ 4o Sendo estritamente necessário, o juiz ouvirá testemunhas impedidas ou suspeitas; mas os seus depoimentos serão prestados independentemente de compromisso (art. 415) e o juiz lhes atribuirá o valor que possam merecer.”31 “Art. 406. A testemunha não é obrigada a depor de fatos: [...]I - que lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau.”

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cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.7. Recurso especial parcialmente provido.(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012)

Como se vê das orientações interpretativas que se extraem da própria ementa do julgado, reporta-se à obrigação de cuidado que os pais devem ter com os filhos, na forma do já citado artigo 1.634 do Código Civil.

A omissão do dever de cuidado é ato ilícito, causando o abando-no material ou afetivo danos inclusive de ordem psicológica aos filhos, passíveis de compensação pela via da indenização por dano moral.

Do brilhante voto da eminente relatora, alguns trechos podemos a seguir destacar, que conduzem o raciocínio ao encontro dos argumentos sustentados com Sandel, no sentido da solidariedade como um dever.

A perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os pre-juízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos.

Perquirir, com vagar, não sobre o dever de assistência psicológica dos pais em relação à prole – obrigação inescapável –, mas sobre a via-bilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, àqueles que descum-prem essa incumbência, é a outra faceta dessa moeda e a questão central que se examina neste recurso.

Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a crescente percepção do cuidado como valor jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da responsabilidade civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à for-mação da personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar

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de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro adulto.

O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da Filosofia, da Psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprova-ção de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazi-das à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.

Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, não pode o julgador se olvidar que deve existir um núcleo mínimo de cuidados parentais com o menor que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.

CONCLUSÃO

O fato de pertencer a um determinado grupo nos torna, de certa forma, responsáveis. Não podemos ter orgulho de nosso país e de seu passado se não estivermos dispostos a assumir a responsabilidade de trazer sua história até os dias atuais, liberando-nos da dívida moral que possa vir com ela.

Afirmamos, com Sandel, que as obrigações de solidariedade po-dem competir com os deveres naturais para com qualquer ser humano. Podemos ter obrigações de solidariedade ou sociedade por razões que não têm relação com uma escolha – razões ligadas às histórias por meio das quais interpretamos nossa vida e ligadas aos grupos aos quais per-tencemos. Está em questão como concebemos a liberdade humana. E também a nossa concepção de justiça. Sandel filia-se à concepção nar-rativa da ação moral, a de que o indivíduo se define como tal a partir da história na qual se vê inserido.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.

MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Rawls and Communitarianism. In: FREEMAN, Samuel (Org.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2001.

QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996.

SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.

__________. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.

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SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL

Lauren Tonietto1 - Andréia Mello de Almeida Schneider2

- Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes3

Sumário: Introdução - 1. A teoria libertária: um viés psicológico é possível? - 2. Desenvolvimento moral na sociedade contemporânea - Referências Bibliográficas

1 Doutorado em Psicologia e Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Psicologia e em Administração – Habilitação em Comércio Exterior – pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente, é Professora e responsável pela área de Seleção, Acompanhamento e Capacitação de pessoas do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência nas áreas de Relações Internacionais, Psicologia Organizacional, Educacional, Escolar e Clínica, com ênfase em Psicologia Sociocognitiva, Habilidades Comunicativas e Desenvolvimento.2 Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduação em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e em Administração de Empresas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente cursando especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), também exerce atividade em consultório particular e como professora do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Tem experiência na área de Psicologia com ênfase em Psicoterapia/Psicanálise e Avaliação Psicológica/Técnicas Projetivas.3 Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Residência Integrada em Saúde pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS).

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LAUREN TONIETTO - ANDRÉIA MELLO DE ALMEIDA SCHNEIDER - FERNANDA CESA FERREIRA DA SILVA MORAES

INTRODUÇÃO

O livro intitulado Justiça, escrito por Sandel (2012), professor de Filosofia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, convida o leitor a refletir sobre dilemas morais. Ele acredita que, desta forma, o leitor exposto ao conflito moral por meio da leitura questionadora possa repensar a sua atitude, recuando e avançando em opiniões e princípios. Diversas de suas aulas estão disponíveis na internet e apresentam o mes-mo tom questionador do livro aqui comentado.

A ideia de produzir este artigo sobre as questões levantadas por Sandel ao longo de sua obra surge a partir do evento “Diálogos entre o Direito e a Psicologia”, realizado no Centro de Ensino Superior de Ca-choeirinha/RS (Cesuca), no mês de novembro de 2013. Esse evento teve como objetivo analisar o livro de Sandel sob os diferentes olhares, do Direito e da Psicologia. O capítulo do livro de Sandel aqui discutido é o de número 3, cujo título é “Somos donos de nós mesmos: a ideologia libertária”.

Segundo o próprio Sandel (2012), a reflexão moral não é uma busca individual, e sim coletiva. Ela requer um interlocutor, que pode ser um amigo, um vizinho, um compatriota. Inclusive o interlocutor pode ser imaginário, como quando discutimos com a nossa consciência. No entanto, não se pode, segundo ele, descobrir o significado da justiça ou a melhor maneira de viver apenas por meio da introspecção. Seguin-do este preceito, a iniciativa de estabelecer um diálogo entre professores do Direito e da Psicologia acerca dos dilemas morais que afligem a so-ciedade atual se mostrou altamente produtiva.

Neste terceiro capítulo, o autor levanta diferentes questionamen-tos: as pessoas devem ser livres para utilizarem seu próprio corpo e seus bens e riquezas? Quais os limites da intervenção do Estado na liberdade individual? A intervenção excessiva do Estado configuraria uma restri-ção da liberdade e dos direitos fundamentais?

Mais do que responder a tantas questões, buscamos aqui esta-belecer uma discussão sobre as ideias filosóficas de Sandel, a partir do

Graduação em Psicologia pela PUCRS. Atualmente, Doutoranda em Psicologia pela PUCRS. Também atua como psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) de Gravataí/RS e como professora do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência na área de Psicologia com ênfase em Saúde Mental.

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6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL

olhar da Psicologia, após uma interlocução com o Direito, no evento anteriormente mencionado neste texto. Para tanto, será apresentado o que propôs o autor em seu livro Justiça (SANDEL, 2012) sob o olhar da Psicologia.

Sandel (2012) inicia partindo de uma publicação da revista For-bes, a respeito da listagem dos americanos mais ricos. Ali se constata que apenas 1% dos americanos possui mais de um terço da riqueza do país inteiro, sendo que a soma dessa riqueza é ainda maior do que a ri-queza de 90% da população menos favorecida em conjunto. Esses dados evidenciam a discrepante desigualdade econômica vivenciada no país e levantam indagações acerca dos critérios de justiça social. Há os que pensam que a desigualdade é injusta e que os ricos tem o dever de ajudar os pobres. Entretanto, há os que acreditam que não há injustiça quando a desigualdade resulta das escolhas feitas, de forma livre e sem fraude, em uma economia de mercado. Todavia, o que caracteriza a liberdade de escolha? Não seriam nossas escolhas frutos da nossa natureza e das circunstâncias que a vida nos impõe? Será que somos realmente livres para escolher? E o quanto autônomos nós somos?

A “teoria libertária” abordada no texto de Sandel (2012) trata do respeito à liberdade de escolha. Segundo o autor, essa teoria se chama “li-bertária” porque o direito individual fundamental é o direito à liberdade.

Segundo essa teoria, o indivíduo não deve estar submetido a qualquer uso que a sociedade assim determine, justamente porque é li-vre. Isso seria viver como se bem entende, desde que não afete os direi-tos de outras pessoas. A teoria libertária é caracterizada, em síntese, pela total liberdade de escolha, nenhum paternalismo, nenhuma legislação sobre a moral e nenhuma distribuição de renda ou riqueza. Portanto, segundo a teoria libertária, seriam aceitáveis e ideais as escolhas indivi-duais referentes a como dispor do próprio corpo, como o uso de cinto de segurança e capacete, o uso de contraceptivos, a prostituição, o aborto, a venda de órgãos, o suicídio e até mesmo o canibalismo consensual. O indivíduo também deveria ter a liberdade de decidir como dispor de seus bens, sem qualquer intervenção estatal. Os empresários deveriam estabelecer salários livremente, de acordo com as leis da livre oferta e procura, sem que o Estado determinasse pisos e tetos salariais.

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LAUREN TONIETTO - ANDRÉIA MELLO DE ALMEIDA SCHNEIDER - FERNANDA CESA FERREIRA DA SILVA MORAES

1. A teoria libertária: um viés psicológico é possível?

A discussão que se impõe a partir da teoria libertária é que a de-cisão de um indivíduo afeta, mesmo que indiretamente, a vida de ou-tros, causando eventuais prejuízos. Então, se refletirmos sobre o fato de que cada indivíduo está inserido em uma cultura, fica mais evidente perceber que decisões individuais não atingem apenas o indivíduo, mas pessoas com as quais ele se relaciona e também a cultura local. A cultura carrega consigo as regras de uma sociedade, e isso é o que organiza as pessoas que nela convivem. O aprendizado e a internalização de regras sociais, que viabilizam a convivência entre as pessoas, integram o pro-cesso de desenvolvimento humano, que será discutido a seguir.

No âmbito do desenvolvimento humano, o desenvolvimento mo-ral é uma das áreas estudada pela Psicologia do Desenvolvimento. O desenvolvimento moral tem estreita relação com o desenvolvimento de outras áreas, como a afetiva (emocional), a cognitiva e a social – ou socio-cognitiva, como mais recentemente tem sido estudada (TOMASELLO, 2003; 2009), já que as áreas social e cognitiva estão muito relacionadas.

O desenvolvimento moral pressupõe o aprendizado de regras so-ciais ou de convivência, de leis morais e legais necessárias para as rela-ções humanas e para a vida em sociedade. Ao longo do desenvolvimen-to, e a partir de suas experiências, o sujeito vai aprendendo o que deve ou não fazer, o que pode ou não fazer, o que é certo e o que é errado, e o que é, enfim, a sua personalidade. Contudo, é necessário lembrar que as regras sociais e as leis vigentes em uma sociedade podem variar de acordo com a cultura local. Assim, comportamentos e pensamentos aceitos em uma determinada sociedade podem ser rejeitados em outros contextos.

Na abordagem comportamental, desenvolvida por Skinner, o aprendizado das regras sociais ocorre por meio do reforço positivo ou recompensa aos comportamentos considerados adequados, e da pu-nição aos comportamentos que não são socialmente aceitos. Então, os comportamentos punidos tendem a ser extintos, de acordo com essa teoria comportamental.

Já na teoria psicanalítica, considerando a perspectiva do desen-volvimento afetivo proposta por Freud ao longo de sua obra, a internali-zação das leis morais tem seu ápice quando ocorre o complexo de Édipo

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e sua resolução. Uma das maiores leis que a criança deve internalizar refere-se à proibição de concretizar o amor romântico com um dos ge-nitores, o que configuraria o incesto. O conjunto de proibições interna-lizadas pelo sujeito é chamado, em Psicanálise, de superego. A instância psíquica chamada de superego é constituída das leis, normas ou proibi-ções internalizadas. Quando as leis são internalizadas, o sujeito é capaz de saber por si próprio o que é certo e errado, o que pode ou não pode fazer e o que deve e não deve fazer, sem necessitar que alguém lhe diga o que fazer. Na Psicanálise, portanto, o superego é uma das instâncias psíquicas necessárias para a constituição do aparelho psíquico, sendo que a lei é organizadora do psiquismo.

Piaget (1932/1994), um dos maiores estudiosos do desenvolvi-mento cognitivo e social, desenvolveu uma teoria sobre o desenvolvi-mento moral, que, posteriormente, foi aprofundada por outros autores, como Kohlberg (BIAGGIO, 2006). Piaget identificou que o desenvol-vimento moral ocorre em paralelo ao desenvolvimento cognitivo e em etapas sucessivas de complexidade crescente.

O primeiro estágio do desenvolvimento moral, chamado de ano-mia, de acordo com Piaget (1932/1994), caracteriza-se pela ausência de normas ou regras sociais. Esse estágio seria típico das crianças muito pequenas, com dois anos de idade, no máximo. Nesta etapa, a criança está aprendendo normas e regras de convivência. O segundo estágio se-ria a heteronomia, caracterizada pela obediência a regras morais trans-mitidas pelos outros (pais, professores, outros adultos ou crianças mais velhas). Nesta etapa, a criança respeita regras, mas sem ter uma crítica construída sobre elas. O terceiro estágio, chamado autonomia autorno-mia moral, identificado por Piaget (1932/1994) a partir dos sete ou oito anos de idade, configura um momento do desenvolvimento a partir do qual a criança já é capaz de ser crítica frente às normas impostas, ques-tionando-as e construindo suas próprias regras.

Ao longo do desenvolvimento moral, observa-se também o de-senvolvimento do que Piaget (1932/1994) denominou “sentimentos morais”, que compreende o senso de justiça, a gratidão e a reparação. Nesse contexto, o sujeito aprende também a justiça distributiva. Confor-me Sampaio, Camino e Roazzi (2009), justiça distributiva designa “um constructo relacionado à maneira como as pessoas avaliam as distribui-ções de bens positivos (renda, liberdade, cargos políticos) ou negativos

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(punições, sanções, penalidades) na sociedade” (p. 632). Para os auto-res, ao fazer julgamentos distributivos, os indivíduos avaliam em que medida a distribuição favoreceu ou prejudicou os envolvidos, seguindo parâmetros que determinam qual método é mais ou menos justo para ser aplicado no contexto da distribuição em questão.

Piaget (1932/1994) observou a existência de três períodos evoluti-vos na noção de justiça distributiva: no primeiro, dos cinco aos sete anos de idade, o comportamento infantil refletia os efeitos da coação adulta, havendo uma predominância da noção de retribuição baseada no res-peito unilateral e na obediência, e as crianças defendiam que a distribui-ção mais justa era aquela que estivesse de acordo com as determinações estabelecidas por figuras de autoridade. Na segunda etapa, entre oito e 12 anos de idade, de acordo com Piaget, haveria uma predileção pelo igualitarismo absoluto e as crianças tenderiam a defender que a justiça consiste em distribuir todos os tipos de bens, benefícios ou punições em partes exatamente iguais, buscando garantir que ninguém fosse prejudi-cado e que todos saíssem satisfeitos com a divisão. E, partir dos 12 anos de idade, na terceira etapa, haveria uma tendência das crianças a utilizar o princípio da equidade, no qual as condições e características indivi-duais das pessoas envolvidas na distribuição seriam consideradas muito importantes na hora de tomar decisões. Nesse caso, a equidade não bus-caria privilegiar uns em detrimento de outros, mas objetivaria tornar a igualdade mais efetiva, através da análise e ponderação cuidadosa das questões pessoais relevantes (PIAGET, 1932/1994, p. 238).

No que diz respeito especificamente à questão da equidade, Pia-get (1954/2001) julga que esta só se torna possível a partir do desen-volvimento da reversibilidade lógica e do sentimento de reciprocidade: a primeira permite que o indivíduo seja capaz de ponderar/avaliar di-ferentes perspectivas e de fazer reverter mentalmente qualquer tipo de ação, enquanto a reciprocidade impõe o desejo de que haja tratamento igualitário e respeito mútuo entre as pessoas.

Apesar de ter observado a ocorrência de mudanças significati-vas nos julgamentos morais das crianças ao longo da infância, Piaget (1932/1994) considerou que seus dados eram insuficientes para ele po-der falar em estágios de desenvolvimento bem delimitados. Nesse senti-do, a predominância de um princípio distributivo em determinada faixa etária poderia não significar, necessariamente, que a preferência por tal

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princípio deveria ser sempre esperada naquele nível de desenvolvimen-to. O próprio Piaget não investigou se os resultados obtidos em suas investigações com crianças genebresas, sujeitos de seus estudos, eram replicáveis em outras amostras.

Tomando como base os trabalhos de Piaget (1932/1994), William Damon (1980) investigou, sistematicamente, como os julgamentos dis-tributivos transformam-se da infância até a adolescência. Além de cons-tatar uma sequência evolutiva nas noções infantis sobre a justiça, esse autor observou que crianças bem novas (por volta dos três anos de ida-de) já eram capazes de avaliar questões sociais e de emitir julgamentos morais utilizando critérios que estavam além do respeito unilateral, pró-prio da fase de heteronomia moral. Com base nesses resultados, Damon (1980) afirmou ser necessário considerar a existência, entre as crianças pequenas, de uma sofisticação moral maior do que a que foi proposta por Piaget (1932/1994).

Estudos mais recentes (TOMASELLO, 2003; 2009) confirmam o proposto por Piaget (1932/1994) a respeito do desenvolvimento socio-cognitivo, mas mostram que os bebês e as crianças desenvolvem certos aspectos relacionados com o desenvolvimento moral mais precocemen-te do que propunha Piaget. Bebês de cerca de nove meses já conseguem compartilhar um foco de atenção de um adulto com o qual interage e reconhecer sentimentos dos outros. Antes dos dois anos de vida, os bebês também já compartilham a ação realizada por outros adultos (atenção e ação compartilhadas) e demonstram conhecimento e soli-dariedade frente aos sentimentos dos seus interlocutores. E, em torno de quatro anos de vida, as crianças já conseguem colocar-se no lugar do seu interlocutor, formulando uma teoria sobre como o outro pensa e sente, chamada “teoria da mente”, que seria a habilidade da criança em reconhecer e atribuir sentimentos, valores e crenças em outras pessoas. Com tais habilidades comunicativas, a criança torna-se mais autônoma para tomar suas decisões sobre o que deve ou pode fazer, considerando a perspectiva do outro, além da sua própria. O respeito à perspectiva do outro é fundamental para que se possa realizar um julgamento mais eficaz sobre o que se deve ou pode fazer.

Em suma, as três teorias psicológicas aqui apresentadas enfocam a importância do conhecimento e aplicação das regras sociais para a vida em sociedade. Ao longo do desenvolvimento humano, o sujeito

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se torna autônomo em suas decisões, quando tiver internalizado essas regras sociais e seus determinantes culturais. No entanto, não se pode esquecer que qualquer decisão tomada afeta, em algum grau, a vida de outro. Por isso, pode-se concluir que a autonomia moral é mais uma meta do que uma realidade, já que não é possível ser totalmente autôno-mo sem ferir os direitos alheios. Assim como o psicanalista Winnicott (1983) apontou, ao longo de sua obra, que o desenvolvimento afetivo parte da dependência absoluta a uma dependência relativa, e rumo à independência, talvez possamos pensar que, no âmbito do desenvolvi-mento moral, o sujeito também ruma à autonomia moral, a qual nunca será totalmente atingida.

2. Desenvolvimento moral na sociedade contemporânea

Considerando as regras sociais e culturais e o desenvolvimen-to moral, entende-se, neste momento, que a teoria libertária rejeita o paternalismo e defende a redistribuição de renda de forma facultativa. Conforme afirma Cavalcanti (2011), o Brasil seria um Estado forma-do por uma sociedade livre. Isso, segundo ele, significa afirmar que o Estado deve ser compreendido como meio para uma sociedade livre, pressupondo um Estado que de fato seja neutro, isento e isonômico. Dessa forma, a sua atuação não pode se basear em determinadas pre-tensões de verdade em matéria religiosa (o que não cabe aprofundar nesse momento), mas sim, deve se valer de critérios de justiça política, de razões públicas generalizáveis para todos os cidadãos, e não de visões específicas para determinados grupos. O autor ressalta que a laicidade estatal não é um projeto de valores, e sim um instrumento para criar um espaço de liberdade e de pluralismo, que não pretende ditar como os cidadãos devem se portar para ter uma vida feliz, mas sim criar uma sociedade de paz e de liberdade.

Essa discussão nos remete a Foucault (1979, 2009) em suas obras Vigiar e Punir e Microfísica do Poder, quando aborda as diversas formas, das mais expressas às mais sutis, que uma sociedade e seus governan-tes possuem para controlar os indivíduos, suas ações e seus pensamen-tos. Considerando as ideias levantadas por Sandel (2012), o governo necessita criar formas de controle para vigiar e punir aqueles que não cumprem as regras sociais, o que pode ser consequência da falta de um

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desenvolvimento moral pleno e satisfatório em algumas sociedades. Até que ponto um governo intervém para organizar a sociedade ou inter-vém para vigiar e punir? É justo exercer um controle que restringe a liberdade individual? Parece-nos, neste momento, que há uma linha muito tênue entre os dois tipos de intervenções, e discuti-las, certamen-te, mereceria um outro capítulo.

Sandel (2012) afirma que, mesmo sendo donos de nosso próprio corpo, não somos livres para fazer o que quisermos, pois isso pode ferir a liberdade do outro. Existem, portanto, outras questões morais. Essas questões envolvem a noção e a necessidade do sujeito de pertencimento a uma sociedade que possui leis e regras que devem ser cumpridas. Esse processo inicia ainda na infância, com a formação de um superego, até chegar ao desenvolvimento moral pleno.

Para estudos e trabalhos futuros, sugere-se ampliar a discussão sobre a autonomia moral e a liberdade de escolha. Conforme proble-matizou Piaget (1932/1994), o que leva alguns sujeitos a ter uma ação incompatível com seus pensamentos? Ou seja, por que alguns sujeitos chegam à construção de um pensamento moral, mas não agem mo-ralmente? E, por outro lado, sabe-se que muitos sujeitos não chegam à autonomia moral, permanecendo no estágio da heteronomia moral. Assim, como garantir a liberdade de escolha e de ação para sujeitos que não atingem a autonomia moral? E como garantir os direitos desses sujeitos e de seus interlocutores? Esses questionamentos ainda intri-gam e nos conduzem a outros dilemas morais que ainda precisam ser explorados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIAGGIO, Angela. Lawrence Kohlberg: ética e educação moral. São Paulo: Moderna, 2006.

CAVALCANTI, Nicolau da Rocha. Estado laico e sociedade livre. O Estado de São Paulo. São Paulo, 29 jun. 2011.

DAMON, W. Patterns of change in children’s social reasoning: A two-year longitudinal study. Child Development, n. 51, p. 1010-1017, 1980.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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__________. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

FREUD, Sigmund. Obras completas. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 1985.

PIAGET, Jean. Inteligencia y Afectividad. Buenos Aires: Aidre, 2001.

__________. O juízo moral na criança. 2. ed. São Paulo: Summus, 1994.

SAMPAIO, Leonardo Rodrigues; CAMINO, Cleonice P. Santos; ROAZZI, Antonio. Justiça distributiva: uma revisão da literatura psicossocial e desenvolvimentista. Psicologia em estudo, Maringá, v. 14, n. 4, dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722009000400003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 7/1/2014.

SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

TOMASELLO, Michael. Constructing a language: A usage-based theory of language acquisition. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

TOMASELLO, Michael. Why we cooperate? Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2009.

WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.

Glossário de termos da Psicologia

Aparelho psíquico: Modelo criado por Freud para designar que a mente é organizada e funciona de acordo com os aspectos econômi-co (quantidade de energia), topográfico (inconsciente, pré-consciente e consciente; ou Id, ego e superego) e dinâmico.

Cognição: Conjunto de habilidades mentais, necessárias aos se-res humanos, para que possam adquirir conhecimento.

Complexo de Édipo: Fase do desenvolvimento infantil ineren-te a todos os seres humanos, reconhecido e defendido pela Psicanálise, que ocorre em torno dos quatro ou cinco anos de idade, de acordo com

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a teoria freudiana. É um período marcado pela apresentação das leis sociais e culturais em que a criança deve perceber que não existe amor incondicional.

internalização: Processo inconsciente em que a pessoa adota as ideias, normas ou valores de uma sociedade ou cultura como suas.

introspecção: Na Psicologia, é entendido como um método em que o sujeito pode se auto-observar. Foi inicialmente proposto pela Es-cola Estruturalista, baseada na observação e na análise sistemática de uma consciência individual, tendo em vista uma finalidade especulativa.

instância psíquica: Termo usado por Freud para designar as es-truturas da mente (Id, ego e superego)

Personalidade: Modo de pensar, agir e sentir de um indivíduo. Formada pelas vivências acumuladas ao longo da vida e pelo conheci-mento formal adquirido.

Superego: Herdeiro do complexo de Édipo, surge quando a criança internaliza as leis sociais e culturais.

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SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE

O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA ERICH FROMM

Paula de Jesus Martins1

Sumário: Introdução - 1. O homem como indivíduo e o homem ator social: a medida da outorga de parte de sua liberdade - 2. A motivação ética de nossas escolhas, ou qual a principal motivação de nossas escolhas? A ética ou o Direito? - 3. Conclusão: a primeira escolha é a quem outorgamos o poder de nos comandar - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

O capítulo terceiro do livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa O que é Justiça discute em que medida somos donos de nós mesmos, sugerindo uma visão crítica sobre as normas legais que visam à determi-

1 Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica do Serviço de Assistência Jurídica Gratuita (Sajug). Professora da Disciplina de Direito Civil. Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista (MBA) em Direito Tributário pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogada.

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PAULA DE JESUS MARTINS

nação de regras de conduta, muitas vezes de conteúdo estritamente pri-vado.2 O questionamento surge em decorrência da observação de que uma série de normas e de textos legais é dirigida a atividades ou escolhas de cunho estritamente pessoal. O autor provoca se é válido o Estado assumir a condição de “dono”, determinando o que é certo ou errado a ser feito. É quase uma confirmação da ética em Spinoza ao afirmar que o homem não é capaz de fazer as suas escolhas,3 e sobre tal realidade o leitor é confrontado a concordar, ou não, com a condição de subordina-do absoluto do Direito Estatal.

O tema não é novidade no estudo, principalmente, da Filosofia e do Direito. Abordagens sobre o fundamento ético das escolhas pro-movidas pelo indivíduo e pelo Estado, e a legitimidade e representação entre esses atores sociais, levantam a discussão sobre a competência ins-tituidora desse poder. Tal tema foi trabalhado por Fromm e o presente artigo propõe apresentar suas justificativas para responder às perguntas de Sandel. Propõe-se fazer um contraponto, respondendo à provocação, do texto do psicanalista a partir da teoria da autoridade racional e do primado da ética humanista.4

1. O homem como indivíduo e o homem ator social: a medida da outorga de parte de sua liberdade

A primeira questão que se apresenta para discussão é a clássica dicotomia entre os limites do público e do privado: em que medida o Estado pode ou deve interferir nas escolhas pessoais de seus subordina-dos. Ou seja, conforme o modelo político, elencam-se temas que devem ser objeto de maior ou menor intervenção do Estado e, por isso, regra-dos de forma impositiva, somente cabendo ao indivíduo cumprir com a norma.

Em uma divisão clássica do Direito, a área chamada de Direito Público é aquela dirigida a toda a coletividade; seu regramento reflete um interesse geral e que pode ser relacionado à ordem interna ou ex-terna, no que se refere ao Estado no qual surge. Consequentemente, o

2 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.3 SPINOZA, Benedictus de. Ética. São Paulo: Autentica, 2007.4 FROMM, Erich. Análise do Homem. São Paulo: Zahar Editores, 1984.

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caráter cogente dessas normas é a regra geral. Ao contrário, no Direito Privado, eis que dirigido às relações interpessoais, a liberdade de esco-lhas deveria ser respeitada ao máximo, pautada validamente nos princí-pios de Direito, mas com amplo respeito à vontade do agente.

O próprio Estado a que a obra se refere, o Estado moderno, não foi a única forma de sociedade a que o homem esteve vinculado. Bedin ressalta que “[...] é importante observar que este processo de centraliza-ção e concentração política que deu origem ao Estado moderno esteve também sempre referido a um grupo humano específico [...]”.5

Sandel trabalha apresentando como referência a teoria libertária, a ideia de um Estado mínimo. Enfatiza que essa teoria foi mais difun-dida na década de 1980 e que serviu de fundamento para outras teorias que primavam pelos direitos individuais, pela ampla liberdade do ho-mem, na sua autodeterminação. E que o cerne moral dessa teoria liber-tária é que o homem deve “ser dono de si mesmo”.

Trabalhando sempre com exemplos e questionamentos práticos, a obra passa a discutir até que ponto somos mesmo donos de nós, de-monstrando o número expressivo de decisões que afetam somente o in-divíduo e que são transferidas para o Estado. E tal questionamento sur-ge ainda mais ruidoso, pois se dá no âmago de um Estado que se funda sob o paradigma da proteção às liberdades individuais. Para o sistema normativo estadunidense, é extremamente “cara” a edição de qualquer norma que visa restringir liberdades individuais em prol do Estado.

E, para isso, observa-se que Sandel utiliza a premissa de que a atuação estatal, uma vez definida, é legítima; que as diretivas estatais de-vem ser cumpridas pelo simples fato de emanarem daquele que possui o poder de coerção sobre o indivíduo. Não há um aprofundamento maior nas várias situações em que, a despeito da existência da norma, não há aceitação pelo subordinado, restando a imaginação de uma eficácia ple-na dessa norma, uma vez que imposta.

Isso deve ser refletido com mais profundidade, pois essa eficá-cia só acontece quando se verifica a legitimação da norma. Conforme adiante trata Fromm, a autoridade somente se estabelece ou pela eficá-cia da coerção – no estabelecimento de uma autoridade irracional – ou

5 BEDIN, Gilmar Antonio. A Idade Média e o Nascimento do Estado Moderno. Ijuí: Ed. Ijuí, 2008. p. 85.

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na competência da autoridade de onde emana a norma – autoridade racional.6 Deve-se questionar se essa norma, e como tal um dever ser absoluto e coercitivo, tem o condão de modificar ou induzir a determi-nada conduta.

Höffe indaga: “liberdade de dominação ou dominação justa?”.7 E conclui:

A legitimação funcional põe valor em compreender o Estado social não como estado de bem-estar. Pois a expressão de bem-estar se situa muito próxima do bem-estar e da felicidade. A opinião de que o Estado moderno poderia e deveria ajudar os homens a alcançar a felicidade é, porém, uma expectativa, talvez até uma promessa, de cujo cumprimento o Estado não é capaz, nem autorizado. A legitimação funcional do Estado começa, por isso, como uma desmistificação; ela aponta para o fato de que ocasionalmente se insinua, no projeto político da modernidade, um elemento que é, ao mesmo tempo, irreal e ilegítimo.8

Ou seja, as escolhas feitas pelo Estado não visam e não alcançarão o melhor benefício ao indivíduo subordinado, porque não é esse seu papel. No entanto, uma norma editada e percebida dessa forma tem o condão de obrigar? É o que se questiona.

E tratar o tema enfrentando a relação de atualidade, por quê? Por-que os homens não são estáticos e imutáveis, quer no tempo, quer no espaço. Porque o homem é fruto da soma de suas condições natas, de suas experiências e do meio no qual está inserido. E para fazer esse diá-logo, a proposta deste artigo foi a de utilizar a obra de Erich Fromm, a qual se tornou um best-seller na década de 1980, à semelhança do ocor-rido com a obra de Sandel. Este, um jurista, e aquele, um psicanalista. E ambos trabalhando a justificativa das escolhas feitas pelo homem e para o homem.

Todos os dias, e por um número imenso de vezes, o ser humano toma decisões sobre suas condutas, das mais corriqueiras às mais im-portantes. Como obrigação, o estudo do Direito já as separa como vín-culos obrigacionais decorrentes da lei ou do contrato, assinala Venosa.9

6 FROM, Erich. Análise do Homem, p. 21.7 HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 194.8 HÖFFE, Otfried, cit.. p. 425.9 VENOSA, Sílvio de Savo. Direto Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria geral dos Contratos.

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Assim, ou o homem está obrigado a uma regra de conduta (fazer ou não fazer) por força da lei e é irrelevante ele estar de acordo com esta, ou não. Ou, por sua manifestação da vontade, está vinculado a uma obri-gação por sua mera liberalidade, por ter-se obrigado voluntariamente.

Sobre as obrigações voluntárias, é próprio de seu livre arbítrio decidir a conveniência de se obrigar ou não. Somente está obrigado a pagar a prestação do carro aquele que decidiu comprá-lo. Mas parar ao sinal vermelho é obrigação de todos, independentemente de prévia e formal manifestação de adesão. Dessa forma, parte-se para fazer a dis-tinção entre temas que merecem ou que necessitam ser objeto de regras estatais, e os que não necessitam – algo que o Direito já classifica como cogentes ou voluntárias, mas sob o enfoque da natureza de Direito Pú-blico ou de Direito Privado dessas normas.

Então, pergunta-se: por que seguimos algumas dessas regras emi-tidas pelo Estado e outras não? Por que algumas são recepcionadas pelo indivíduo como merecedoras de acatamento? Um número grande de condutas pode ser listado como condutas usuais, ainda que contrárias à lei do Estado, como downloads de programa de computador, músicas; adquirir produtos no estrangeiro superior à cota legal; ultrapassar sinal vermelho na madrugada etc. E em que medida esses infratores se per-cebem como tal? Como criminosos? Talvez não se percebam, pois não conferem legitimidade àquele Estado, àquela norma. E sem esse sen-timento de pertencimento, de submissão ao poder estatal, a norma se mostra ineficaz, ainda que válida e exigível.

Portanto, deve-se questionar, primeiro, a legitimidade daquele que emana a norma, se deve ser recepcionado e não ser uma norma autoritária, sem sentido. E, nesse ponto, Fromm trata de forma simples e profunda a distinção entre as normas autoritárias, que se justificam somente no poder da coerção, e as normas democráticas, em que o su-bordinado compreende a função da norma. Ao ultrapassar o valor de cota para importação de bens, e disfarçá-la na bagagem a fim de en-ganar o agente fiscal da fronteira, o contribuinte não compreende que está cometendo um crime de sonegação e evasão fiscal, sujeito à prisão. Que está prejudicando os cofres públicos nas ações sociais a que esse numerário se destina: promoção da educação, saúde, segurança. Pelo

São Paulo: Atlas, 2013. p. 5 e 380.

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simples fato de que não acredita ser o Estado capaz de realizar esses atos. Não encontra legitimidade no Estado para lhe tomar valores que não acredita terem destinação devida. Ao contrário de se perceber como um tutelado e protegido, vê o Estado como um usurpador. E isso, para exemplificar apenas esse ato contrário à lei.

2. A motivação ética de nossas escolhas, ou qual a principal motivação de nossas escolhas? A ética ou o Direito?

Retornando à questão da motivação das escolhas realizadas pelo homem, passa-se a enfrentar aquelas condutas que não foram objeto de opção, mas de imposição. E esta pode se dar por diferentes fundamentos de autoridade.

Norteando a percepção sobre o fato de se fazer escolhas, Fromm trata da ética, passando a diferenciar a autoridade racional da irracional. E o faz questionando o afastamento que a psicanálise fez da ética. Cri-tica o fato de considerar a ética como inata, como única e perene pelo simples fato de se pertencer à raça humana:

Se não abandonarmos, como faz o relativismos ético, a procura de normas de conduta objetivamente válidas, quais os critérios que poderemos achar para elas? A espécie de critérios dependerá do tipo de sistema ético cujas normas estudaremos, Por força, os critérios da ética autoritária serão fundamentalmente diferentes dos da ética humanista.10

Fromm se detém na análise da ética das escolhas, e, neste pon-to, enfrenta o mesmo tema que Sandel, mas por ótica distinta. Sandel questiona se a escolha da conduta deveria ter sido dada por aquele que possui a autoridade de fazê-lo, de forma que acaba por questionar sua legitimidade, ainda que por via indireta. Fromm vai trabalhar essa le-gitimidade da autoridade classificando-a como racional ou irracional. E isso será fundamentalmente importante quando se passa a verificar a aceitação da norma pelo subordinado a que se destina.

Ao traçar definições sobre os tipos de autoridade, o psicanalista classifica como irracional a norma que se ampara no medo e no poder,

10 FROM, Op. Cit., p. 62.

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aquela que não admite críticas. O subordinado cumpre o ditame pelo simples fato de se ver amedrontado pela possibilidade de punição, “um sistema assim não se baseia na razão e no conhecimento, mas no temor à autoridade [...]”.11 Esta ética autoritária nega a capacidade do homem de saber o que é bom ou mau.

Bobbio destaca a mesma relação chamando a atenção para o fato de que a prática é de se analisar a questão sob o ponto de vista do Estado “[...] aquele que está no alto e que se torna deste modo o sujeito ativo da relação, sendo o outro tratado como sujeito passivo”12 e o assemelha à relação pai e filho. Fromm afirma que tal situação é bem distinta, pois a relação de patriarcado pressupõe a autoridade, mas não ocorre o mes-mo com os governantes.

Já ao conceituar a autoridade racional, afirma que esta tem ori-gem na competência. Sua autoridade é baseada em motivos racionais. Não só admite como propicia meios de ser constantemente submetida à aceitação. É próprio do sistema democrático de Direito. Transportando o conceito ao sistema político, seria como o processo de pleitos, em que, sistematicamente, são convocados os eleitores para decidir aqueles que lhes representarão na edição dessas normas às quais se tornarão subor-dinados. Ou seja, a autoridade emanada da norma é percebida como escolha feita pelo eleitor ao outorgar o mandato ao seu eleito.

Aplicando-se essa premissa das leis estatais para o mundo jurídi-co, seria como se uma lei não fosse compreendia pelo indivíduo, caben-do-lhe apenas cumprir, sem questionar. Ocorre que, exatamente quan-do uma lei é publicada, passa a ser exigível de todos a ela submetidas; porém, seu cumprimento se dá no plano do medo pela punição.

Bobbio vai utilizar da expressão “desobediência civil” como uma das possibilidades do subordinado não cumprir às leis, com o intuito de modificá-las. Afirma que o dever fundamental de toda pessoa submeti-da a um ordenamento jurídico é respeitá-lo, e que esse dever chama-se obrigação política, mas, se for legítimo:

A observação da obrigação política por parte da grande maioria dos sujeitos, ou sejea a obediência geral e constante às leis, é ao mesmo tempo a condição e a prova da legitimidade do ordenamento, “se por

11 FROM, Op. Cit., p. 22.12 BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009a. p. 63.

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poder legítimo” se compreende, weberianamente, aquele poder cujos comandos são, enquanto comandos, isto é, independente de seu conteúdo.13

Para se compreender o que se entende por desobediência civil, diferenciando da desobediência em geral, aquela é consubstanciada no caso da lei ilegítima (emanada de quem não tem o poder), a lei inválida (inconstitucional) e a lei injusta. E aqui retorna-se ao questionamento inicial de Sandel: e o que é justo?

3. Conclusão: a primeira escolha é a quem outorgamos o poder de nos comandar

O grande valor da obra de Fromm ao responder sobre o conteúdo de escolhas, como às propostas por Sandel, é reaproximar a questão da ética e da liberdade, a qual é necessária à felicidade, mas que normas, mesmo que éticas, podem não favorecer a sociedade como um todo. E se o padrão normativo não se encontrar como representativo daquele a que se destina, restará infrutífero, a menos que seja tirânico.

Perguntar-se se deixamos de ser donos de nós mesmos, porque a norma dita, de forma coercitiva, o que se deve fazer, não fará eco ao indivíduo que percebe essa norma como emanada de sua vontade ou de sua delegação de autoridade, àquela racional e competente. Assim, a sociedade fará a introjeção da norma; não mais uma norma exterior, su-perior, alheia aos seus anseios; e sim algo que lhe faz sentido, que possui uma justificativa, ainda que não lhe traga benefício individual e direto.

O homem, como ser social, abdica de parte de sua liberdade in-dividual em função do coletivo e é próprio da contratualidade, a partir do estado natural. Mas vai lhe arrancar, tomar-lhe de volta, pela forma da desobediência, da autotutela de seus direitos, caso não se perceba representado pelo Estado que lhe obriga. Essa é a questão que deve ser enfrentada pelos governantes atuais.

13 BOBBIO, Norberto. O Terceiro Ausente. São Paulo: Manole, 2009. São Paulo: Manole, 2009b. p. 112.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEDIN, Gilmar Antonio. A Idade Média e o Nascimento do Estado Moderno. Ijuí: Ed. Ijuí, 2008.

BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009a.

__________. O Terceiro Ausente. São Paulo: Manole, 2009b

DOWER, Nelson Godoy Bassil. Instituições de Direito Público e Privado. São Paulo: Saraiva, 2008.

FROMM, Erich. Análise do Homem. São Paulo: Zahar Editores, 1984.

HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2001.

SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. São Paulo: Autêntica, 2007.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2013.

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Sumário: Introdução - 1. O caso de Callie: uma janela para olhar a inclusão escolar - 2. Inclusão escolar: algumas contribuições de teorias psicológicas - 3. O caso de Callie e o tema da meritocracia - Considerações Finais - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

Diversos são os dilemas morais enfrentados, cotidianamente, no bojo das relações sociais. Michael Sandel, notório filósofo de temas como ética, moralidade e justiça, discute, na obra Justiça – O que é fazer a coisa certa? (SANDEL, 2013), situações reais controversas e confli-tantes que trazem à tona reflexões interessantes sobre diversas questões contemporâneas. No presente artigo, busca-se analisar, sob a perspec-tiva da Psicologia, um caso extraído do texto “Quem merece o quê?”, que compõe a obra supramencionada. Para tanto, serão apresentadas,

1 Docente do Curso de Psicologia Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicóloga na área de Transtornos de Desenvolvimento e Inclusão Escolar.

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sucintamente, algumas contribuições de teorias psicológicas acerca da inclusão escolar, tema que emerge a partir do caso analisado. Além dis-so, a questão da meritocracia, inerente ao debate acerca do movimento inclusivo, também será tratada.

O referido caso que ilustra a discussão desse excerto relata um acontecimento ocorrido no Texas (EUA) com Callie Smartt, aluna do primeiro ano do Ensino Médio. Callie era popular na escola e parti-cipava da torcida organizada da Andrews High School. A adolescente tinha paralisia cerebral, e, por isso, era cadeirante, o que não diminuía o entusiasmo que inspirava nos jogadores e fãs de futebol americano, com sua presença sempre animada à beira do campo nos jogos do time de juniores da escola. No final da temporada, no entanto, Callie foi expulsa da torcida organizada.

A expulsão se deveu à pressão que outras meninas da torcida e seus pais exerceram sobre a diretoria da escola, que informou à Cal-lie que se ela quisesse participar no ano seguinte teria de treinar como todas as demais e se submeter à rigorosa rotina de exercícios físicos, incluindo splits e acrobacias. O pai da capitã da torcida comandou o movimento contra a permanência de Callie, alegando preocupação com a segurança desta. Por outro lado, a mãe de Callie manifestou sua indig-nação, afirmando que tudo era fruto da inveja dos aplausos que a filha sempre recebia.

O caso traz à tona o questionamento sobre o que é necessário para ser da torcida organizada. A controvérsia é acerca do que é essen-cial nessa organização. São as acrobacias e alta performance necessárias em seu desempenho? Tomando de empréstimo a ilustração do caso, o paralelo que cabe aqui é o de questionar-se: qual a essência da educa-ção? Qual seu propósito?

1. O caso de Callie: uma janela para olhar a inclusão escolar

O caso acima relatado pode servir como convite para pensar, de forma mais ampla, a questão da inclusão escolar. A situação-problema que se forjou era a de que, para seguir participando da torcida orga-nizada, Callie teria que treinar como todas as demais e se submeter à rigorosa rotina de exercícios físicos, incluindo acrobacias e movimentos

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ginásticos. Os contrários à permanência de Callie advogavam que, para ser uma boa líder de torcida, a pessoa deve ser capaz de apresentar uma alta performance acrobática. De outra forma, os favoráveis à Callie de-fendiam que a mesma cumpria bem o objetivo a que se propunha, que é o de promover o espírito escolar e animar os fãs.

Os que lutaram pelo afastamento em questão, defendendo a ne-cessidade dos movimentos atléticos e saltos grandiosos, expuseram que é dessa forma que as meninas costumam levantar a torcida. Essa pers-pectiva representa a resistência à mudança de paradigma, o que também pode ser conduzido na análise da situação análoga, qual seja da inclusão escolar. Há uma dificuldade em subverter o paradigma atual presente no contexto educacional, que é de mais preocupação com a forma que a educação é oferecida do que com sua intencionalidade. Intencionalida-de esta que deveria privilegiar a promoção do desenvolvimento integral do sujeito. A lógica de valorizar as acrobacias e splits mais do que o espírito de animação da torcida é a mesma lógica presente na escolari-zação, que é a conteudista. Valoriza-se mais a reprodução de fórmulas e informações do que o desenvolvimento do sujeito, sua autonomia e os processos mentais envolvidos na aprendizagem.

Esse ponto, possivelmente, seja um dos de mais difícil compreen-são pela população em geral ao analisar a questão da inclusão escolar. Muitos ponderam que é falso considerar que os alunos com deficiência são capazes de acompanhar o desempenho escolar esperado. Contudo, não é sob essa premissa que se baseia o movimento inclusivo. Não há a expectativa generalizada de que as pessoas com deficiência apresentarão o mesmo desempenho e no mesmo tempo de seus colegas. Isso porque, mesmo entre as pessoas com deficiência, há diversidade em aquisições, habilidades e competências – tal como qualquer aluno. As pessoas com deficiência, como qualquer ser humano em processo de aprendizagem, não se resumem apenas a sua inteligência, muito menos a sua deficiên-cia. A premissa aqui é a de buscar desenvolver as potencialidades de cada indivíduo.

2. Inclusão escolar: algumas contribuições de teorias psicológicas

A polêmica sobre a expulsão de Callie relaciona-se ao paradoxo excluir-incluir, movimento contínuo no cotidiano social. No que se re-

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fere ao campo da educação, o Brasil assume, há cerca de duas décadas, e na última de forma mais intensa, políticas públicas no sentido da inclu-são escolar de pessoas com deficiência (BRASIL, 2008).

A incerteza acerca dos benefícios da inclusão para os alunos com deficiência, gradativamente, vai sendo superada pelos resultados dos estudos científicos. Nesse sentido, já se conhece o efeito positivo e es-timulante do meio escolar regular no desenvolvimento de pessoas com deficiências (MANTOAN, 1988; LI, 2002; SANINI, 2011; SERRA, 2004; SIFUENTES, 2011; YANG et al., 2003). Esses resultados podem ser ava-lizados por diferentes perspectivas psicológicas, especialmente na área das teorias da aprendizagem e da Psicologia do Desenvolvimento. Ao longo dos anos, as teorias do desenvolvimento social (etológica, piage-tiana, da aprendizagem social, sistemas dinâmicos, sociointeracionistas, sócio-histórica, dentre outras), apesar da diversidade na abordagem teórica e metodológica, são unânimes em reiterar que a interação social é a condição de construção do indivíduo e base para o desenvolvimento humano (HÖHER-CAMARGO; BOSA, 2009).

Vygotsky (1995), eminente teórico da aprendizagem, defende que não se pode estabelecer limites a priori para as pessoas que possuem algum tipo de deficiência. O autor afirma que “o que decide o destino da pessoa, em última instância, não é o defeito em si mesmo, mas suas consequências sociais, sua realização psico-social [sic]” (p. 19). Para ele, o desenvolvimento é um processo cultural, em que o funcionamento do sujeito tem sua origem e se transforma nas relações sociais (VYGOST-SKY, 1995). O desenvolvimento, por sua vez, é um processo intrinse-camente relacionado à aprendizagem, e atua por meio de um processo dialético (VAN DER VEER; VALSINER, 1996).

Note-se que as situações de interação social assumem papel de-cisivo, pois são concebidas como um espaço simbólico gerador de co-nhecimento, de apropriação de significados e de construção de subje-tividades; por conseguinte, atuam como promotoras de aprendizagens que impulsionam o desenvolvimento (COLAÇO et al., 2007). Portanto, o “destino” da criança com deficiência dependerá das suas relações com outros sujeitos, do seu engajamento em diferentes esferas de atividade da cultura e da qualidade das suas experiências. O sujeito, ao inserir-se na vida coletiva, encontra as bases para a constituição das suas funções internas, fazendo-se indivíduo (PINTO; GÓES, 2006).

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O contato da criança com deficiência com pares em casa, na comunidade e na escola torna-se importante para a promoção de um contexto que possibilite o desenvolvimento de suas competências so-ciais (GURALNICK, 2002). Porém, por possuírem algumas limitações, essas crianças, frequentemente, são consideradas como incapazes de contribuir e de participar das atividades em grupo. Por essa razão, mui-tas vezes, acabam sendo isoladas do contato com parceiros e suas rela-ções acabam por se restringir a adultos (SOUZA; BATISTA, 2008). A diversidade no meio social e, especialmente, no ambiente escolar, é fator determinante do enriquecimento das trocas, dos intercâmbios intelec-tuais, sociais e culturais que possam ocorrer entre os sujeitos que neles interagem.

Além da abordagem vygotskyana, outra perspectiva teórica no campo da Psicologia útil para embasar esse tópico refere-se à Teoria da Aprendizagem Social, de Albert Bandura (1977). Esse aporte teórico faz referência a uma situação de aprendizagem interpessoal, na qual um sujeito (o observador) aprende os comportamentos realizados por outro (modelo). Ao propor a Teoria da Aprendizagem Social, enfatizou que o ser humano pode aprender não apenas por meio da experiência dire-ta (o tipo de aprendizagem explicado pelo condicionamento operante clássico e operante), mas, também, pela observação do que acontece a outros quando agem no ambiente social e físico. O autor enfatiza a importância da observação e da modelagem dos comportamentos, ati-tudes e respostas emocionais dos outros. A modelagem é a mudança no comportamento, pensamento ou emoções, que ocorre por meio da observação de outra pessoa – um modelo.

O aprendizado seria excessivamente trabalhoso, para não mencionar perigoso, se as pessoas dependessem somente dos efeitos de suas próprias ações para informá-las sobre o que fazer. Por sorte, a maior parte do comportamento humano é aprendido pela observação através da modelagem. Pela observação dos outros, uma pessoa forma uma ideia de como novos comportamentos são executados e, em ocasiões posteriores, esta informação codificada serve como um guia para a ação (BANDURA, 1977, p. 22).

Por conseguinte, a relação com modelos mais apropriados, do ponto de vista de alguns comportamentos sociais e cognitivos, é enri-

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quecedora para pessoas com deficiência. Essa relação é oportunizada no espaço escolar.

Além disso, o conceito de autoeficácia, também de Bandura, vem recentemente recebendo destaque no campo da inclusão escolar, mas com outro enfoque, qual seja o do papel do professor. De acordo com Bandura (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2000), a autoeficácia é definida como a crença nas próprias habilidades para apresentar com-portamentos que possibilitem alcançar o resultado almejado. No caso do professor, caracteriza-se pela crença na possibilidade de poder orga-nizar e implementar ações exigidas que permitam alcançar resultados acadêmicos (BZUNECK; GUIMARÃES, 2003).

Dessa forma, a autoeficácia terá uma influência na motivação e no bem-estar pessoal no trabalho dos professores, servindo como um recurso pessoal, uma proteção para o professor contra experiências de trabalho tensas e estressantes. Isso significa que não basta o indivíduo ser capaz de realizar algo, mas que também ele se julgue capaz de utilizar as capacidades e habilidades pessoais diante das mais diversas situações. Se as pessoas não acreditam que têm o poder para produzir resulta-dos, elas não atuarão no sentido de que os mesmos aconteçam (AZZI; POLYDORO, 2008).

No entanto, considerando o panorama atual, as pesquisas têm mostrado a presença de baixas expectativas de eficácia por parte dos pro-fessores, especialmente no contexto da inclusão escolar. Em se tratando da educação especial, esse sentido de autoeficácia pode ser abalado pelo fato de o professor ter que lidar diariamente com obstáculos, fracassos e frustrações e esses, por sua vez, acabam interferindo com a motivação e com a atuação pedagógica (BZUNECK; GUIMARÃES, 2003).

Em geral, o professor acredita que para desenvolver um trabalho eficaz com as crianças com deficiência há necessidade de total domínio de todos os aspectos ligados ao quadro clínico da criança. Como re-sultado, estudos demonstram que o professor sente-se, indevidamente, incapacitado para lidar com a criança, e essa postura acaba afetando a crença de autoeficácia. Como consequência, o trabalho pedagógico pode vir a ser prejudicado (CINTRA; RODRIGUES; CIASCA, 2009; SANINI, 2011). Mesmo o professor possuindo o conhecimento neces-sário para a realização do seu trabalho, a tendência demonstrada nos estudos era a de não confiar em si e, assim, não reconhecer as práticas

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efetivas realizadas, tendendo a atribuí-las ao acaso ou ao próprio de-senvolvimento da criança. Tal percepção dificultava o fortalecimento de sua autoimagem como um bom profissional, capaz de dar conta das demandas relacionadas à inclusão.

Conforme observado, algumas teorias da Psicologia colaboram na compreensão de alguns aspectos relacionados à inclusão. Assim, foram destacados benefícios diretos para o desenvolvimento da criança com deficiência em vivenciar de forma integrada a escolarização, bem como, sucintamente, alguns nuances da atuação do professor nesse contexto. Faz-se necessário que também sejam examinados alguns aspectos psi-cossociais do processo de inclusão, como nos tópicos de mérito e direito.

3. O caso de Callie e o tema da meritocracia

Retomando ao caso de Callie Smart, que ensejou a presente dis-cussão, outra questão que se desvela é a da meritocracia. Sandel (2013), para analisar o acontecimento, aborda o pensamento de Aristóteles so-bre justiça. Para este, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, dando a cada uma o que lhe é devido. Então, surge o questionamento: quais são as justificativas relevantes para o mérito? Isso dependeria, se-gundo Sandel, do que está sendo distribuído. O modelo meritocrático pode ser defendido para abonar a expulsão de Callie.

Jessé Souza apresenta um interessante ponto de vista para ana-lisar o tema da meritocracia. Para ele, no mundo moderno, os privilé-gios continuam a ser transmitidos por herança familiar e de classe. Sua aceitação, contudo, depende de que os mesmos “apareçam” não como atributo de sangue, de herança, de algo fortuito, mas como produto “na-tural” do “talento” especial, como “mérito” do indivíduo privilegiado. Nessa percepção do mundo moderno, crê-se em uma “igualdade de oportunidades”, que encerra as demandas atuais de igualdade e liberda-de. Seguindo esse raciocínio, os privilégios decorrentes dessa realidade não seriam meras “desigualdades fortuitas”, mas “desigualdades justas” porque resultantes do esforço e desempenho diferencial do indivíduo. A justiça reside no fato de que “é do interesse de todos” que existam “recompensas” para indivíduos de alto desempenho em funções im-portantes para a reprodução da sociedade (SOUZA, 2009). A ênfase no modelo meritocrático se baseia na premissa de condições iguais, o que acarreta, de fato, na ampliação das desigualdades.

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Justamente por se considerar que as oportunidades não são iguais a todos indivíduos de uma sociedade é que a escola se reveste dessa im-portância e tem como função social equiparar, ou, ao menos, amenizar as diferenças de oportunidades. No entanto, observa-se que a situação atual do atendimento às necessidades escolares da criança brasileira é responsável por índices impressionantes de repetência e evasão no En-sino Fundamental. Equivocadamente, no imaginário social, como na cultura escolar, a incompetência de certos alunos – os pobres e os de-ficientes – para enfrentar as exigências da escolaridade regular é uma crença que aparece na simplicidade das afirmações do senso comum e até mesmo em certos argumentos e interpretações teóricas sobre o tema (MANTOAN, 1993). Isso significa responsabilizar unicamente o aluno pelo fracasso escolar em vez de se debruçar em um debate mais profun-do sobre a educação e o sistema educacional do país.

O debate acentuado hoje sobre a temática da deficiência já esteve em voga sobre outros grupos sociais, excluídos da escola no passado. A ampliação/universalização do acesso ao ensino obrigatório no país é um fato, com início a partir da década de 1960. A universalização do acesso à escola fundamental permitiu que crianças que, por mecanismos de se-letividade, antes eram percebidas como não atendendo completamente condições pessoais, familiares, culturais e econômicas, passassem a fre-quentar a escola (BUENO, 2001). Por outro lado, há de se registrar que a melhora no acesso à rede escolar não foi proporcional à melhoria da qua-lidade do ensino, tema que merece ser pautado pelas políticas públicas.

Apesar de tal realidade, de a escola talvez não estar “preparada” para os seus alunos, é uníssona a afirmação de que as crianças devem estar em ambiente escolar, uma vez que esse é um direito constitucional (BRA-SIL, 1988). Entretanto, esse direito é de todas as crianças. Dados recentes apontam que o índice de pessoas com deficiência representa 23,9% da população do país (IBGE, 2010), demonstrando a parcela representativa que, muitas vezes, não é percebida como portadora de tal direito.

A escola, como uma instituição social, não é imutável, sendo con-figurada dentro de um contexto sócio-histórico. Diante disso, a institui-ção escola também deve atualizar-se, sendo que as mudanças devem ser pautadas no sentido do tipo de sociedade que se quer viver. E o sentido seria uma sociedade segregadora, que amplia as desigualdades existen-tes, sem promover as potencialidades de cada indivíduo?

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A mudança de paradigmas que esse movimento impõe leva à re-flexão e à revisão de valores, principalmente pessoais. Além disso, ca-racteriza-se por um desafio, porque confronta e questiona o suposto sis-tema escolar homogêneo, com uma diversidade incomum, no momento em que propõe que alunos com diferentes condições de aprendizagem compartilhem o mesmo espaço educacional (BEYER, 2005).

Se a sociedade em que essas crianças com deficiência vivem é a mesma de todas as outras pessoas, por que, no momento da apren-dizagem escolar, elas precisam estar isoladas desse convívio? (BEYER, 2005). Furtá-las do contato com os demais impede que aprendam e de-senvolvam habilidades sociais e cognitivas que são exigidas no próprio convívio em sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente discussão, alicerçada sobre o caso da aluna Callie, ex-pulsa da torcida organizada, prestou-se como pano de fundo para refle-xões acerca da inclusão escolar. Tal discussão traz consigo o debate so-bre a função da escola, que é de formação das novas gerações em termos de acesso à cultura socialmente valorizada, assim como de formação do cidadão e de constituição do sujeito social (BUENO, 2001).

Para a efetivação dessa função, é necessária uma mudança de pa-radigma, no qual a educação especial deixa de ser um espaço segregado para ser uma área de conhecimento transversal a todas as modalida-des de ensino (BRASIL, 2008). Conforme abordado, a questão não é a de que o aluno com deficiência seja igual ao outros – quem é? –, mas que suas potencialidades sejam plenamente estimuladas. O parâmetro de desenvolvimento do aluno é ele mesmo. Essa ideia é bem ilustrada por Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 462), ao expor que “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”. As diferenças devem ser aceitas e respeitadas, mas não utilizadas como subterfúgio para a manutenção e ampliação de desigualdades.

Aludindo ao título do texto, afinal, quem merece o quê? No que tange ao direito da educação, a resposta deveria ser todos. A deficiên-cia não é critério para o descumprimento desse direito constitucional (BRASIL, 1988), reiterado por diversos documentos legais e acordos in-

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ternacionais (BRASIL, 2008; ONU, 2006). De outro modo, consideran-do o princípio da equidade, sob o prisma do Direito, e pela relevância para o desenvolvimento sociocognitivo, sob o prisma da Psicologia, a pessoa com deficiência precisa ainda mais que seja oportunizada a ex-periência escolar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA

Renato Selayaram1

Sumário: Introdução - 1. O bem comum: direito fundamental do homem - 2. Justiça social? - Conclusão - Referências Bibliográficas

INTRODUÇÃO

O presente artigo versa sobre o capítulo 10 do livro Justiça – O que é fazer a coisa certa, da autoria de Michael Sandel, intitulado “A justiça e o bem comum”, e busca a integração entre os cursos de Direito e Psicologia através da realização de obra comum.

O candidato à presidência dos Estados Unidos, John Kennedy, durante a campanha presidencial de 1960, perguntado sobre a influên-cia que teria sua religião nas diretrizes públicas, era católico em um país predominantemente protestante, caso fosse eleito, respondeu que

quaisquer que sejam as questões que se apresentem a mim como presidente – controle de natalidade, divórcio, censura, jogo ou qualquer outro, minha decisão será tomada [...] de acordo com o que minha

1 Professor do curso de Direito do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Pós-graduado pela Academia de Direito Internacional de Haia, Holanda. Especialista em Ciência Política e Mestre em Direito.

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RENATO SELAyARAM

consciência disser que é do interesse da nação, desconsiderando pressões ou determinações religiosas externas.2

Ora, essa é uma preocupação que acompanha o homem há sécu-los, o exercente do poder governa para si, para os seus ou para todos. Marco Túlio Cícero, orador, escritor e político romano, já ensinava que o interesse particular de cada um deve estar subordinado ao interes-se superior do conjunto. Sendo um dos maiores filósofos romanos de todos os tempos, dizia que a causa da agregação entre os homens era menos a sua debilidade do que o instinto de sociabilidade em todos ina-to, que a espécie humana não nasceu para o isolamento, mas com uma disposição que a leva a procurar o apoio comum.3

A questão do poder é, por si só, atraente. De fato, estuda-se sua definição desde que o homem começa a se socializar, porque se mani-festa em relações de força (do latim fortis, sólido, enérgico), em que uma das partes é capaz de controlar, vencer, subjugar, subordinar e se impor às demais. Mas entre todos os poderes, é o político que requer mais atenção, por ter o monopólio da força dentro da sociedade.

Desde os tempos antigos a ideia de poder político esteve vincula-da ao bem comum. Platão projetou o Estado ideal em sua República. Na obra platônica, a estrutura sociopolítica encontrou justificação na mais alta aspiração de realizar a ideia do bem. Mal-entendidos possíveis ou desacordos foram criticados com a proposta apresentada por um mito, o da caverna, com o qual tentou mostrar que nem todos são capazes de compreender as causas inteligíveis mostradas em sua teoria. Em essên-cia, pensava que o Estado surge em resposta à necessidade de superar as limitações individuais do homem, que não é capaz de satisfazer todas as suas necessidades, e tem como objetivo alcançar o bem verdadeiro de modo geral, abstrato e transcendente. Para isso, cada parte deve ajustar-se ao todo, desenhado pelo filósofo para garantir o bem-estar coletivo. Em semelhante tarefa a educação deve ser um baluarte, uma vez que é necessário educar os cidadãos para que possam contemplar a ideia do bem e entender a conveniência de viver em condições idealmente cria-

2 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 305.3 CÍCERO, Marco Túlio. Da república. Tradução de Amador Cisneiros. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2011. p. 30.

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das. O ideal humano se materializa na pessoa do indivíduo, cidadão, liberto de tarefas necessárias para sua sobrevivência e dedicando-se ple-namente à práxis política.

Aristóteles continuou na direção apontada, muito embora sem a pretensão utópica de seu mestre. Concebeu o Estado como o resul-tado de uma necessidade natural, a de viver em sociedade, e viu sua finalidade como sendo o bem comum, que ele definiu como felicidade e identificou com a vida virtuosa que é alcançada com a atividade con-templativa, modelo seguido de Platão.

Como o indivíduo é parte em relação ao todo, acreditou que, sen-do possível o bem comum, seria possível atingir a felicidade e bem-estar individuais. Isso explica a subordinação axiológica do bem individual em relação ao bem comum que é visto em sua obra, em que este últi-mo se torna a característica definidora do bom governo. Os principais meios para alcançar o objetivo são a educação, para os menores, e a aplicação da lei (ou Constituição) para indivíduos adultos, uma vez que estes constituem o princípio unificador da cidade. A justiça propicia o bem comum, e é determinada pela Constituição, que é o que define os padrões para diferenciar o certo do errado. A moralidade do indivíduo está focada na justiça legal. Esses fatores levaram a considerar a filosofia política de Aristóteles como a continuação e complementar a sua ética.4

Maquiavel continuou desenvolvendo a doutrina do bem comum, mas, ao contrário de seus predecessores, com uma tendência à sua des-moralização. Em sua doutrina, a política adquire um status próprio e em desacordo com a natureza humana, na qual predomina o vício, pois não pode renunciar a essa imperfeição moral para poder alcançar seus ob-jetivos. Por essa razão, justifica os meios imorais se com eles é possível defender o bem comum, do que a independência política e a soberania são elementos essenciais. A moral se expressa através do Direito Natu-ral, o qual é imutável e eterno, enquanto aqueles que se ocupam da coisa pública muitas vezes são obrigados a dela abrir mão para poder alcançar os fins do Estado e preservar o bem comum.5

Ainda segundo Maquiavel, em todos esses casos, o “bem comum”, o “interesse comum” ou a “utilidade pública” são qualitativamente dife-

4 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2001. p. 234.5 MACHIAVELLI, Nicoló. O príncipe: com comentários de Napoleão Bonaparte. Tradução de Mônica Baña Alvares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 84.

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rentes e superiores à soma dos bens particulares dos indivíduos que os compõem, razão pela qual estes últimos devam subordinar-se, sendo o Estado o garantidor dessa subordinação. Nesses sistemas teóricos, a funcionalidade se vale do princípio da subordinação da parte ao todo, do particular ao público, do interesse individual ao comum. Assim, um Estado é considerado justo se faz corresponder sua política com uma ordem considerada natural, seguindo certos princípios de inclusão e ex-clusão. Por natureza, dizia o florentino, existem homens livres e escra-vos, nacionais e estrangeiros, senhores e servos, sendo o bem-estar geral dos primeiros o que é chamado para garantir o Estado. Os últimos são excluídos e seu bem-estar fica sujeito à sorte, misericórdia ou caridade daqueles que detém o poder.

A Idade contemporânea se move em outra direção. Agora, a refe-rência não é mais só a comunidade, mas também a individualidade. As teorias jusnaturalistas buscam erigir o Estado como fiador dos interes-ses individuais. Esse é o significado essencial e finalidade fundamental da enunciação da chamada primeira geração de direitos humanos, os direitos civis e políticos: o direito à liberdade, à vida, à saúde, à pro-priedade. Busca-se garantir esses direitos organizando racionalmente a sociedade através de um contrato social, porque se lhes reconhece ao homem por sua natureza, respaldando-os com uma estrutura política democrática, baseada na divisão dos poderes. Em resumo, esses direitos existem desde antes do contrato, daí a necessidade de regulamentar a aplicação da lei positiva e garanti-la com as facilidades oferecidas pelo Estado de Direito. Herbert Spencer afirma que a vida da sociedade “de-pende da manutenção dos direitos individuais”.6

Desde seus primeiros trabalhos, Marx e Engels buscaram revelar a razão para o fracasso de todas as tentativas de resolver a contradição entre os interesses individuais e gerais ou sociais. Segundo os autores, as teorias que os precederam abordaram o estudo da sociedade e do Estado em abstrato, sem perceber a natureza da luta de classes existente. Assim, entenderam que o que foi proclamado como interesse geral não era mais que o interesse comum da classe que dominava econômica e politicamente a sociedade.7

6 SPENCER, Herbert. El hombre contra el estado. Tradução de por Tamara Clemente Cano. Madrid: Unión Editorial, 2012. p. 160.7 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 398.

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Durante os primeiros anos de construção do socialismo, na anti-ga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, foi instaurada uma linha reducionista no que diz respeito ao poder, o qual passou a ser concebido em uma dimensão puramente repressiva e jurídica. Continuou vigen-do a concepção do monopólio da violência, agora apoiado no Direito, definido conforme expressão utilizada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, como sendo a vontade da classe dominante alçada em lei.8

Do ponto de vista marxista, o Estado é visto como um órgão de dominação de classe, o meio de que se vale a classe economicamente dominante para manter um estado de coisas que atenda seus interesses.

Mas, tenhamos presente que

em um mundo cada vez mais complexo e incerto, o Estado permanece um quadro privilegiado de formação de identidades coletivas e um dispositivo fundamental de integração social: cabe a ele recriar sem cessar o liame social sempre em via de romper-se, encarnando os valores comuns ao conjunto dos cidadãos, arbitrando os conflitos de interesses, assumindo a tarefa da gestão dos riscos, gerindo os serviços coletivos.9

Conforme Sandel, se uma sociedade justa requer um forte sen-timento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem co-mum.10

1. O bem comum: direito fundamental do homem

Concebido por autores como Tomás de Aquino, que continuava a tradição aristotélica, como o objetivo da comunidade política, o con-ceito de bem comum sofre hoje um descaso sistemático, padecendo de um ostracismo.

8 A citação diz, textualmente: “Vosso direito não é mais do que a vontade de vossa classe transformada em lei, uma vontade cujo conteúdo é representado pelas condições materiais de existência de vossa classe”. MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2006, pág. 34.9 CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 61.10 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 325.

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A justiça e o bem comum são os dois critérios orientadores da ação moral da pessoa, como Bento XVI disse-nos no número 6 da Encí-clica Caritas in Veritate.11 Primeiro fala da justiça, ao lembrar que onde há sociedade há o Direito -ubi societas, ibi ius, em que cada sociedade elabora o seu próprio sistema de justiça, disse o Papa emérito.

É claro que estamos diante de uma visão religiosa, eis que o Pon-tífice afirma que a caridade está além da justiça, porque enquanto esta se traduz por dar a cada um o que é seu, a caridade significa dar o que é seu a outrem.

Assim, modernamente estão sendo utilizados conceitos equivo-cados como interesse geral ou bem-estar geral, os quais se referem a condições materiais, ignorando questões da vida pessoal e espirituais, aspectos relevantes estabelecidos por Platão e Aristóteles, quando se re-ferem à justiça.

No discurso ético e político atual o bem comum é, constantemen-te, um conceito retórico, definido de diferentes maneiras. Na tradição clássica, a noção de bem comum relaciona o bem das pessoas como parte de uma comunidade, orientada esta para as pessoas que a con-formam. Para Aristóteles, a formação de uma comunidade requer um bem comum, pois a finalidade da cidade é o bem viver. Deve-se supor, portanto, que a comunidade política tem por objeto as boas ações e não apenas a vida em comum. Assim, o bem comum é constituído prin-cipalmente pela virtude, isto é, por aquilo que desenvolve de maneira positiva ao ser humano de acordo com sua natureza.

Tomás de Aquino deu um novo impulso à teoria aristotélica. O bem comum adquire significado no governo, eis que no seu dizer “go-vernar consiste em conduzir aquele que é governado ao seu devido fim. Por esta razão, o fim da comunidade não pode ser diferente do bem humano. Para a teoria tomista o fim do homem está em contemplar o mais alto dos bens: Deus.”12

Com a modernidade, o conceito de bem comum individualizou-se da tradição aristotélico-tomista, aparecendo uma gama de posições,

11 Carta Encíclica Caritas in Veritate, do Sumo Pontífice Bento XVI, sobre o desenvolvimento humano integral. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_benxvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>. Acesso em: 17/6/2014.12 AQUINO, Santo Tomas de. La Monarquia. Trad. por Ángel Chueca. 4a. ed. Madrid: Tecnos, 2007, pág. 69.

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entre o liberalismo de base individualista (o bem da sociedade cedendo lugar ao bem pessoal) e os coletivismos (para quem a sociedade é uma entidade própria, distinta e superior aos cidadãos).

Assim, a história das comunidades políticas – inclusive a que co-nhecemos como Estado – é mais ou menos a história do aumento do número e executivos. A mudança notável foi a que levou do governo in-direto dos senhores feudais ao governo direto exercido por funcionários assalariados em nome do rei.13

Na segunda metade do século XX, a doutrina social da Igreja ca-tólica desenvolveu sua concepção de bem comum. O Concílio Vaticano II afirmou que a pessoa é o sujeito, a raiz, o princípio e o fim de toda a vida social e de todas as instituições sociais.

O bem comum determina para o indivíduo a existência de um dever, que podemos definir como sendo o de participar com suas ações e seus meios em prol da sociedade. Em função deste dever, os homens se tornam responsáveis pela concretude de tais objetivos, e têm, como contrapartida, o direito de participar das vantagens da empresa comum, para a qual coopera não por exigência da justiça positiva, senão da jus-tiça natural.

A consecução dessa finalidade exige a renúncia da liberdade in-dividual de cada um e ao exercício da própria força ou poder particular, que exista uma só pessoa ou grupo de pessoas que detenha o poder e o exerça significa que os demais reduziram suas vontades a uma só von-tade. Isso quer dizer que escolher, através de eleição, a um homem ou assembleia de homens que represente aos demais, estes devem reconhe-cer a si mesmos como autores de qualquer coisa que seja feita ou decisão que seja tomada. Isso é algo mais que consentimento ou concórdia, é uma unidade real de todas as vontades, instituída por pacto de cada homem com os demais.14

O bem comum, portanto, é o conjunto de condições sociais que permitem e favorecem, nos seres humanos, o desenvolvimento integral de todos e de cada um dos membros da comunidade. Dinamiza o de-senvolvimento de uma ordem social justa que harmonize os aspectos

13 VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do estado. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 180.14 PANIAGUA, José Maria Rodriguez. História del pensamiento jurídico. 6. ed. ampl. Madrid: Universidad Complutense, Facultad de Derecho, Ssección de Publicaciones, 1988. p. 114.

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individuais e sociais da vida humana, sendo, assim, responsabilidade de todos.

2. Justiça social?

Uma das ideias mais difundidas, a partir do Renascimento, é a conceituação do ser humano como um ser racional, ou seja, como um ser que pensa em si mesmo, tem consciência de sua existência, que, ao pensar no individual, também pensa no social. Essa concepção de ser humano, histórica e cultural, reflete-se claramente na Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos de 1948. Nela, a existência humana é de-finida pela razão e consciência e, a partir desses atributos, o indivíduo é considerado livre e igual: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, dotados de razão e consciência e devem agir fraternalmente em relação uns aos outros”.15

Em sentido geral, o termo justiça social se refere a situações de desigualdade social, busca definir o equilíbrio entre partes desiguais por meio da criação de proteções em favor dos mais débeis.

O primeiro a usar o termo na sua atual acepção foi o filósofo je-suíta italiano Luigi Taparelli D’Azeglio. Em seu trabalho, o sacerdote Taparelli diz que a justiça social deve tornar, efetivamente, todos os ho-mens iguais em tudo quanto se refere aos direitos da humanidade, como o Criador os fez perfeitamente iguais na sua natureza.16

A vida será considerada o maior bem, a condição necessária para o exercício da liberdade, seguida da segurança (jurídica e pública), in-dispensável para a preservação da vida, tida como a razão de ser da co-munidade política. Quando um Estado é incapaz de garantir a vida e a propriedade de seus cidadãos, perde sua razão de ser.17 Inobstante, a liberdade ocupa um lugar privilegiado, pois é ela que permite concei-tualizar o ser humano como um ser racional e que, com maior clarida-de, remete aos processos históricos que gestam aos direitos humanos.

15 Artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.16 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo: Ibrasa, 1995. p. 84.17 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 108.

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Entretanto, ao reconhecer ao homem a liberdade de consciência, dotado de razão, direitos e igualdade, tornou-o, também, capaz de reco-nhecer diferenças, aquelas existentes entre ele e seu semelhante, levan-do-o a exigir a igualdade de tratamento.

Por trás da diversidade de tipos de justiça (comutativa, distribu-tiva, legal e social) está a unidade de conteúdo: o reconhecimento do outro, precisamente no seu ser. A justiça é a ordem em que o homem pode existir como pessoa, e este fato deve ser efetivamente possível, não só para uma ou outra pessoa, não apenas para os poderosos, os que se sintam felizes, mas para todos os homens pelo simples fato de serem ho-mens. O conteúdo de justiça social pode ser observado na perspectiva dos direitos humanos, do bem comum, do desenvolvimento.

A justiça social é a justiça na medida em que tende a garantir o respeito e a promoção dos direitos humanos para todos, especialmente aos mais desfavorecidos, registrando esses direitos nas estruturas e no funcionamento da sociedade. A justiça social manifesta-se a partir da dignidade da pessoa, dos direitos invioláveis que devem ser respeitados e promovidos de forma dinâmica e progressiva.

A justiça social transcende o interesse individual e se ocupa do interesse geral, o bem comum. Não se encerra dentro das fronteiras nacionais, senão que regula as mútuas relações entre os Estados, obri-gando os países economicamente fortes a assistir aqueles que vivem na pobreza ou miséria. Em tais ações também se engajam as Organizações Internacionais, dentre elas a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).18

Não devemos esquecer que o acesso à justiça deve ser facilita-do pelo Estado ao cidadão, como forma de possibilitar a busca pelo di-reito ferido e do exercício da cidadania. A Constituição Federal prevê, preambularmente, que foi instituída com a finalidade de assegurar “[...] a igualdade e a justiça como valores supremos”,19 e, no art. 3, I, dentre

18 A OIT adotou, em 10 de junho de 2008, a Declaração sobre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa. Texto completo disponível em: <http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_globalizacao_129.pdf>. Acesso em: 16/04/2014.19 Textualmente: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, [...]”.

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os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, construir uma sociedade livre, justa e solidária.

A Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que o desen-volvimento social e a justiça social são indispensáveis para a realização e manutenção da paz e segurança entre as nações e que, por outro lado, o desenvolvimento social e a justiça social não podem ser alcançados sem haver paz e segurança ou se não houver respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais.

Em 26 de novembro de 2007, a ONU proclamou o dia 20 de feve-reiro de cada ano como o Dia Mundial da Justiça Social. A finalidade des-sa celebração é apoiar o trabalho da comunidade internacional na busca pela erradicação da pobreza e promoção do pleno emprego e trabalho digno, igualdade entre os sexos e acesso ao bem-estar social para todos.

CONCLUSÃO

Como modo de conclusão, posso dizer que o livro de Michael Sandel cumpre, desde logo, com um de seus objetivos, inquietar a mente do leitor. Escolhi refletir sobre o último capítulo, a justiça e o bem co-mum, por provocação, isto é, pela axiologia de tais conceitos.

Muito embora não tenha sido possível esgotar as possibilidades de interpretação sobre seus significados, espero que o passeio pelos au-tores referidos não tenha fraudado os leitores, ao menos esta foi a minha experiência.

O estilo de M. Sandel é excelente, o que o converte em um livro ameno apesar de ser extenso. Dá a impressão de não ser uma obra para todo tipo de público, já que se trata de um livro de Filosofia Política, que requer inquietudes prévias, mas é recomendável, especialmente, para os estudantes de Direito ou Ciência Política, ciências sociais em geral, e pode ajudar-nos a revisar e entender os fundamentos de liberdade.

Claro está que devemos reconhecer que vivemos em um sistema agravado pelas condições de vida dos mais desfavorecidos, em que exis-te desemprego, pobreza, em algumas situações quase indigência, desres-peito aos direitos humanos, falta de transparência na administração do Estado e corrupção.

Não é possível falar em prosperidade onde há fome, violência e desesperança por parte dos cidadãos. Tais situações agravam a desigual-

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dade. Àqueles devem ser disponibilizados os instrumentos e mecanis-mos que possibilitem diminuir as diferenças, para que os direitos previs-tos na Constituição Cidadã não sejam considerados direitos de papel.

Não podemos permitir que a sociedade seja fragmentada, que a unidade nacional se fragilize, que se formem grupos em torno de ideais contrários à solidariedade, ao bem comum, à caridade.

O ser humano é o fundamento do bem comum, razão de ser da comunidade política. De tal afirmação deriva a dimensão ética da polí-tica, eis que anima a busca pelo que é verdadeiro, impulsiona a partici-pação solidária. O outro não é um adversário, senão semelhante, com o qual temos mais em comum do que diferenças.

A participação cidadã deve ser real e não teórica, possibilitando a inclusão social e permitindo uma verdadeira justiça social. Isso ocorrerá se houver participação da cidadania nos poderes do Estado, votando e fiscalizando; na cultura política, sendo repassados aos indivíduos os valores da atividade política.

As reflexões anteriores nos direcionam a uma justiça verdadeira, em função do que assinalamos que a finalidade de um bom governo, o bem comum, é menos uma sociedade igualitária e mais uma sociedade justa. A condição para que uma sociedade sobreviva é que a autoridade que a governe não se ocupe apenas em indicar direitos, senão propor-cionar a adequada distribuição de justiça, que atenda a todos e a cada um dos membros da comunidade, constituindo, por essa razão, o fun-damento da legitimidade do exercício do poder político.

Conforme Sandel, existe um importante motivo de preocupação com a desigualdade: um fosso muito grande entre ricos e pobres enfra-quece a solidariedade que a cidadania democrática requer. Eis como:

quando a desigualdade cresce, ricos e pobres levam vidas cada vez mais distintas, surgindo então dois efeitos negativos, um fiscal e outro cívico. Primeiramente, deterioram-se os serviços públicos, porque aqueles que não mais precisam deles não tem tanto interesse em apoiá-los com seus impostos. Em segundo lugar, instituições púbicas como escolas, parques, pátios recreativos e centros comunitários deixam de ser locais onde cidadãos de diferentes classes sociais se encontram. Portanto, a desigualdade corrói a virtude cívica.20

20 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria

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RENATO SELAyARAM

Nomocracia significa o governo das normas. Em um regime pu-ramente nomocrático, a única função do Executivo consistiria em velar pela observação, por parte dos particulares, das normas elaboradas pelo Poder Legislativo.

Se um sistema como esse pudesse existir em seu estado puro, pos-sibilidade que a experiência desmente, não comportaria um governo propriamente dito, mas simplesmente um grupo encarregado da exe-cução das leis, que velaria pela conformidade das condutas individuais com as prescrições legais.21

Como dissemos, essa sociedade não existe. Se fosse materializa-da, a administração seria uma simples executora das instruções expe-didas pelo legislador, e a sua tarefa seria tanto mais fácil quanto mais a lei estivesse internalizada na consciência dos cidadãos. Tal raciocínio permitiria reconhecer a desnecessidade de supervisão/controle por par-te do Estado.

O que queremos dizer é que o Estado não deve ser neutro, ina-tivo, mas, ao contrário, se a ele foi atribuído o exercício do poder, que distribua a justiça, que busque a justiça social, que procure, ao menos, realizar o bem comum.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARTA ENCÍCLICA Caritas in Veritate, do Sumo Pontífice Bento XVI, sobre o desenvolvimento humano integral. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_benxvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>. Acesso em: 17/6/2014.

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Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 328.21 JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 321.

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MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM

FAMILIAR SISTÊMICA

Aline da Silva Piason1 - Débora Silva de Oliveira2

- Márcia Elisabete Wilk Franco3

Sumário Introdução - 1. Individualismo moral e identidade coletiva: como pensar esse dilema? - 2. Família: os laços afetivos interferem em nossas escolhas? - 3. Discussão de casos à luz da abordagem sistêmica e da Psicologia Social - Considerações Finais - Referências Bibliográficas

1 Psicóloga, Especialista Clínica em Psicoterapia Centrada na Pessoa (Delphos). Mestre e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).2 Psicóloga. Especialista em Terapia de Família e de Casal no Instituto da Família de Porto Alegre (Infapa) e em Psicologia Jurídica da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).3 Psicóloga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).

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ALINE DA SILVA PIASON - DÉBORA SILVA DE OLIVEIRA - MÁRCIA ELISABETE WILK FRANCO

INTRODUÇÃO

A complexidade na relação entre indivíduo e sociedade, na re-lação intersubjetiva, no encontro, no olhar, no descobrir o outro como sujeito é, sem dúvida, um momento marcado pela incerteza. Esse en-contro entre o eu e o outro transpõe um viver pessoal e social. Quando nos deparamos com a pergunta “O que devemos uns aos outros?”, ve-mos que não é nada simples de responder. Para Elias (1994), essa rela-ção que fazemos de nós e das outras pessoas é o que nos possibilita nos comunicarmos se não de forma eficaz, mas pelo menos dentro de nossa sociedade. Berger e Luckmann (2005, p. 75) salientam que “O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius”.

A sociedade em constante mutação exige a reflexão da prática profissional e uma adequada visão humanística e crítica, técnico-ju-rídica e prática, capaz de compreender o fenômeno jurídico de for-ma interdisciplinar. Ao longo da história, o Direito tem incorporado a colaboração de outras ciências no exercício da prática profissional e na busca da compreensão dos fenômenos sociais. Dentre as diferentes ciências, as práticas psicológicas no campo da justiça têm se constituído uma área de interlocução produtiva, contribuindo para a produção de subjetividades e um aprimoramento da prática profissional. Assim, sur-ge da necessidade de ampliar e dar continuidade às discussões relativas à interface entre as ciências humanas, na medida em que se propõe a debater temas atuais da Psicologia relacionados ao âmbito do Direito. Nesse sentido, impulsionados pelo diálogo entre o Direito e a Psicolo-gia, o objetivo deste artigo é de discutir, a partir da Psicologia Social e da abordagem familiar sistêmica, os dilemas de lealdade: o que devemos uns aos outros?

No livro Justiça – O que é fazer a coisa certa, o autor Michael J. Sandel apresenta reflexões a respeito de questões polêmicas e contem-porâneas que envolvem uma série de desculpas públicas proclamadas por grandes chefes de Estado a respeito de importantes injustiças his-tóricas. Em realidade, nossas vidas são permeadas por dilemas sobre questões morais. A vida privada, a vida familiar, que, cotidianamente, aparece em consultórios de Psicologia, também é atravessada por dile-mas como esses.

Os grandes dilemas, muitas vezes, ficam sem uma possível solução, pois o ser humano tem uma necessidade de objetividade, ou seja, busca a

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explicação determinada pela razão. Nesse momento, em que precisamos resolver grandes conflitos, podemos correr o risco de buscar explicações ou respostas a partir de uma visão dicotômica de indivíduo e de socie-dade. Elias (1994, p. 80), a partir da perspectiva sociológica, destaca que

O que se pode ver, realmente, são pessoas singulares. As sociedades não são visíveis. Não podem ser percebidas pelos sentidos. [...] No fim, tudo o que se pode afirmar sobre as formações sociais baseia-se em observações de pessoas isoladas e de seus enunciados ou produções.

Dentro dessa mesma perspectiva teórica, Berger e Luckmann (2005) enfatizam que o conhecimento possui uma relação dialética com o social. É produzido por ele e, ao mesmo tempo, contribui na trans-formação social. Assim, também os papéis e as instituições mantêm uma relação em que um não se estrutura sem o outro. As instituições incorporam-se à experiência do indivíduo por meio dos papéis, como dizem os autores: “Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele” (BERGER; LUCKMANN, 2005, p. 103). É na sedimentação dessa relação intersubjetiva que podemos ver que as objetivações das experiências foram e estão sendo transmitidas de uma geração para a outra.

Para esses pensadores, viver, estar em sociedade, significa parti-cipar dialeticamente dessa. Vejamos como eles apresentam essa ideia:

Conforme tivemos a ocasião de dizer, estes aspectos recebem correto reconhecimento se a sociedade for entendida em termos de um processo dialético em curso, composto de três momentos, exteriorização, objetivação e interiorização. No que diz respeito ao fenômeno social, estes momentos não devem ser pensados como ocorrendo em uma sequência temporal. Ao contrário, a sociedade e cada uma de suas partes são simultaneamente caracterizadas por estes três momentos, de tal modo que qualquer análise que considere apenas um ou dois deles é insuficiente. O mesmo é verdade com relação a um membro individual da sociedade, o qual simultaneamente exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza este último como realidade objetiva (BERGER; LUCKMANN, 2005, p. 173).

Para Elias, falar dessa relação indivíduo, pessoa no singular e em sociedade, pluralidade de pessoas, não é nada claro em nossos dias. Para

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ALINE DA SILVA PIASON - DÉBORA SILVA DE OLIVEIRA - MÁRCIA ELISABETE WILK FRANCO

esse autor, a maneira como concebemos e conceituamos indivíduo e so-ciedade nos faz acreditar que “o ser humano singular, rotulado de indi-víduo, e a pluralidade das pessoas, concebida como sociedade, pareçam ser duas entidades ontologicamente diferentes” (ELIAS, 1994, p. 7). Ele discute essa ideia compreendendo que indivíduo e sociedade não de-vem ser vistos como opostos, libertando o pensamento dessas amarras tradicionais. Para ele, o problema da relação entre indivíduo e sociedade é bastante complexo, visto que essa relação não está paralisada, mas em constante mutação. Essas mudanças refletem “até na maneira como as diferentes pessoas que formam essas sociedades entendem a si mesmas: em suma, a autoimagem e a composição social – aquilo a que chamo o habitus – dos indivíduos” (ELIAS, 1994, p. 9).

Para Berger e Luckmann (2005), o ser humano interpreta a rea-lidade da vida cotidiana através da subjetividade, dando um sentido na medida em que vai formando um mundo coerente. Como ser coerente? Como fazer a coisa certa? Quem merece o quê? O que devemos uns aos outros? Como viver com os dilemas de lealdade hoje? Esses são alguns dos temas que Michael J. Sandel tem desenvolvido no seu livro Justiça.

Os autores do pensamento sociológico destacam a importância da linguagem para que possamos compreender os simbolismos e os sig-nificados dessa comunicação no processo de socialização. Para Berger e Luckmann (2005, p. 39), “[...] a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de signifi-cação”. Esses também enfatizam que não podemos de fato existir na vida cotidiana se não estivermos constantemente em interação e comunica-ção com os outros.

Cambi (1999) coloca que, com o alvorecer da modernidade, “todo o universo da educação veio a mudar, nos fins e nos meios, muda o en-sino, e muda a atitude da família em relação à criança, muda a imagem do homem que é formado por esse processo educativo” (p. 241). Temos bem claro que as mudanças continuam sendo muito mais rápidas e as formas de se comunicar foi o que mais mudou. Estamos conectados o tempo todo, e em quase tudo. As redes sociais que se implantaram como uma das mais novas formas de se relacionar possibilitam vários tipos de trocas e nos insere neste contexto. Que contexto é este? O que determi-na nossos interesses? Estamos vivendo em um mundo dominado pelo

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poder econômico. Este suplantou o poder político e a cultura. Como conciliar tudo isso?

Será que o ser humano não pode intervir de forma livre e criativa em sua ação?

Essas posições teóricas do pensamento sociológico consideram o homem mero ser social, entendendo que a personalidade é um produto social. O ambiente é visto como o centro, o condicionante e modelador do ser humano. Para Bleger (1984), o conjunto das relações sociais é o que define o ser humano em sua personalidade. Para ele, o meio am-biente é um ambiente social, do qual provêm os estímulos fundamentais para a organização de suas qualidades psicológicas.

Já na perspectiva de Bronfenbrenner (1994), por exemplo, a concepção de indivíduo é pensada a partir do modelo ecológico. Esse modelo estuda o desenvolvimento humano associado às estabilidades e às mudanças que ocorrem nas características biopsicológicas do indi-víduo durante o seu curso de vida e ao longo de gerações (POLÔNIA; DESSEN; PEREIRA-SILVA, 2005). É através desse interjogo entre os as-pectos biológicos, psicológicos e ambientais que se conhece a maneira como o indivíduo pensa e age. Assim, ainda que o indivíduo faça parte de uma mesma família, tende a ser mais diferente do que parecido, visto que as influências e os acontecimentos em que estão inseridos não são compartilhados e vivenciados da mesma maneira.

Dessa forma, para compreender a complexidade da personalidade de um indivíduo, é preciso não só conhecer a sua interação em diferentes contextos, histórico, social e cultural, mas também requer uma discussão a partir de sua vivencia familiar. Para aprofundarmos o tema escolhido: o que devemos uns aos outros? Dilemas de lealdade, vamos refletir inicialmente sobre alguns conceitos como individualismo moral de John Locke e Immanuel Kant, o que é moral, o que se entende por liberdade. Em seguida, vamos apresentar conceitos que nos permitem entender a estrutura familiar e os sistemas nos quais ela está inserida.

1. Individualismo moral e identidade coletiva: como pensar esse dilema?

A doutrina do individualismo moral, segundo Sandel (2013), ca-racteriza-se por uma declaração sobre o que significa ser livre. Nessa

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concepção, ser livre é submeter-se apenas às obrigações assumidas vo-luntariamente. O que devemos a alguém implica algum ato de consen-timento, ou seja, uma escolha, uma promessa ou um acordo tácito ou explícito que se tenha feito. Assim, a nossa responsabilidade se limitaria àquela que deliberadamente assumimos. Trata-se, à primeira vista, de uma concepção libertadora. Nesse sentido, as únicas obrigações morais a que devemos obedecer são aquelas originadas da livre escolha de cada indivíduo, e não às que se referem a um hábito, a uma tradição ou a uma condição que herdamos.

O conceito de liberdade, no princípio do individualismo moral, deixa pouca margem para a responsabilidade coletiva ou para a repa-ração dos efeitos, que se referem às consequências morais das injusti-ças históricas perpetradas por nossos predecessores. Tais reflexões dão margem aos pensamentos de que não teríamos obrigações originadas de uma identidade coletiva que foram perpetuadas através de gerações. O individualista moral, portanto, não concebe a responsabilidade de repa-rar os pecados de seus predecessores, pois considera que os pecados não foram consentidos por ele e, assim, não possui tais responsabilidades.

Segundo reflexões de Sandel (2013), o tema sobre justiça e as nos-sas responsabilidades é polêmico, e em seu debate refere que a questão envolve mais do que a pergunta abstrata sobre como devemos racioci-nar a respeito da justiça? o que é prioridade quando nos questiona-mos o que é certo? o que é bom? Em última análise, isto se trata de um debate sobre o significado da liberdade humana.

Sobre a liberdade, o autor refere que as principais expressões do individualismo moral são John Locke e Immanuel Kant. Para Locke, “todos somos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de ou-tros sem que tenha dado o seu consentimento” (citado por SANDEL, 2013, p. 265). Um século mais tarde, Kant apresentava sua versão: “Ser livre é ser autônomo, e ser autônomo é ser governado por uma lei que outorgamos a nós mesmos” (citado por SANDEL, 2013 p. 265).

No entanto, a concepção de liberdade não é neutra. Tem questões atraentes em suas explicações, mas também possui seus pontos fracos. Podemos refletir, como apresenta Sandel (2013 p. 272), que:

Se nos considerarmos seres livres e independentes, sem as amarras morais e valores que não escolhemos, não terão para nós as muitas

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obrigações morais e políticas que moralmente aceitamos e até mesmo valorizamos. Incluem-se aí as obrigações de solidariedade e lealdade, de memória histórica e crenças religiosas – reivindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade. A não ser que nos vejamos como pessoas com um legado, sujeitas a ditames morais que não escolhemos, por nós, será difícil entender os aspectos de nossa experiência moral e política.

Assim, nos deparamos com os dilemas: Será que realmente so-mos livres para escolher? Será viável nos valermos do princípio de ideal de “eu” desimpedido e livre para realizar as nossas escolhas?

Segundo MacIntyre (1981, citado por SANDEL, 2013), os seres humanos são seres que contam histórias, portanto, vivemos nossas vi-das como uma jornada narrativa. Nossas histórias, contudo, fazem parte de uma história maior da humanidade. Para responder a pergunta “O que devo fazer?”, devo ter em mente a resposta “De que história ou his-tórias faço parte?”. Isso reflete que a deliberação moral, que interfere em minhas escolhas, resulta da interpretação da história da minha vida, e não do exercício de minha vontade. MacIntyre admite, assim, que a narrativa de nossas decisões morais estaria em conflito com o indivi-dualismo moderno. Na visão narrativa, o “eu” não pode ser dissociado dos papéis e status sociais e históricos, como observamos na seguinte reflexão (MACINTYRE, citado por SANDEL, 2013, p. 274):

Todos abordamos nossas circunstâncias como portadores de uma determinada identidade social. Sou filho ou filha de alguém, primo ou tio de alguém; sou cidadão dessa ou daquela cidade, membro de uma agremiação ou parte de uma categoria profissional; pertenço a esse clã, aquela tribo, a determinada nação. Portanto, o que foi bom para mim deve ser bom para alguém que pertence a essa classe. Como tal, herdei da minha família, da minha cidade, minha tribo, minha nação uma série de deveres, tradições, expectativas e obrigações legítimas. Essas condições constituem o que me foi dado na vida, meu ponto de partida moral. Isto é em parte, o que confere à minha vida sua especificidade moral.

A partir das reflexões advindas da concepção narrativa do indiví-duo de MacIntyre, viver a vida significa representar um papel em uma jornada narrativa que aspira a certa unidade ou coerência (SANDEL, 2013). Quando me vejo diante de vários caminhos a seguir e tenho que

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escolher um deles, devo descobrir qual dará mais sentido à minha vida como um todo e a tudo que é importante para mim.

Realmente, na vida não é fácil ter claro o que é meu de fato, pois os outros influenciaram nos meus desejos, vontades e escolhas. Não po-demos analisar essa relação de direitos das pessoas, ou o que é do indi-víduo e o que é da sociedade, sem olharmos para as relações e práticas de uma época. Somos e estamos inseridos em um contexto histórico e, por isso, dependemos de múltiplas relações e práticas estabelecidas em cada cultura.

Olhar para o conhecimento produzido ao longo da história, bus-cando compreender o mundo, é olhar sempre de novo e como novo, dessa forma aceitando nossos limites epistemológicos. Como nos diz Santos (2001, p. 55): “A ciência moderna produz conhecimento e des-conhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado, faz do cidadão comum um ignorante generalizado”.

As ideias desenvolvidas até agora nos ajudam a fundamentar teo-rizações que nos auxiliam a escapar de algumas das armadilhas dessa di-cotomização entre indivíduo e sociedade. Sem dúvida, o olhar dialético é determinante para que possamos entender essa relação de forma in-teira, ampla e dinâmica. Para alguns, o homem é biologicamente levado a viver e a construir um mundo com os outros. Quando pensamos em outros podemos pensar na família, ou seja, que a família é um sistema que opera dentro de contextos sociais, que serão determinantes nas con-vicções de regras e valores, que passarão a influenciar significativamente os membros pertencentes dessa estrutura.

Tal visão nos remete às questões, já mencionadas, referentes às obrigações de solidariedade ou de vida em sociedade. Nos aspectos fa-miliares, tais referências, geralmente, possuem um peso importante nas decisões da vida cotidiana. É sobre a complexidade desse sistema fami-liar que falaremos agora.

2. Família: os laços afetivos interferem em nossas escolhas?

Do ponto de vista da concepção narrativa do indivíduo de Ma-cIntyre (citado por SANDEL, 2013), os deveres de lealdade e de respon-sabilidade são contingências que devemos levar em consideração quan-

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do deliberamos sobre moral e justiça, pois fazem parte do que somos e, portanto, são parte de nossas responsabilidades morais. Esses aspectos identificatórios possuem como alicerce a força moral, a qual consiste, em certa medida, no fato de concebermos os indivíduos, únicos – como membros de uma família, ou nação, ou povo, como parte de sua histó-ria, como cidadãos de uma república.

Nesse mesmo sentido, a perspectiva boweniana da Terapia Fami-liar Sistêmica vem ao encontro dessa concepção narrativa de indivíduo. Para essa perspectiva teórica, só podemos entender a narrativa da vida de um indivíduo se pudermos ver de que história esse fez parte. A sua história de vida e a sua história de vida familiar revelarão suas concep-ções, reflexões, pensamentos e ações.

Nas sociedades ocidentais, a família oferece a base, a matriz de nossa identidade (MINUCHIN, 1990). É na família que as regras so-ciais são moldadas e adequadas às experiências individuais que cada membro vivencia. Ao mesmo tempo em que a família é considerada o “ninho”, o centro e o refúgio de seus membros, pode também ser con-cebida como sendo a origem de muitos “nós” e “amarras”, desafiando o indivíduo para a superação (PERROT, 1993).

Nesse sentido, para Minuchin (1990), a família proporciona a ex-periência, a matriz de identidade do indivíduo, visto que possui dois elementos essenciais: o sentido de pertencimento e o sentido de se sentir separado dos valores e crenças do sistema familiar. O sentido de perten-cimento aparece como uma acomodação do indivíduo ao grupo fami-liar. A experiência de se sentir pertencente a um grupo com regras, pa-péis e com um padrão de funcionamento o auxilia ao longo da vida em diferentes acontecimentos. Já o sentido de ser separado o permite parti-cipar de diferentes subsistemas familiares em diferentes contextos, bem como através da participação em grupos extrafamiliares. A experiência de separação e de individuação possibilita ao indivíduo a autonomia e a escolha, independentemente das regras de funcionamento familiar. Esses dois elementos essenciais estão entrelaçados, e cada sentido de identidade individual é influenciado por seu sentido de pertencimento e de ser separado a diferentes grupos (MINUCHIN, 1990; MINUCHIN; FISHMAN, 1990).

A família é um sistema aberto em constante transformação, isto é, a todo momento recebe e envia informações para o meio extrafamiliar

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e se adapta às diferentes exigências dos diversos estágios de desenvol-vimento evolutivo, bem como do meio e da cultura da qual faz parte (MINUCHIN, 1990). Assim, a família opera dentro de contextos sociais específicos que, na visão de Minuchin (1990), possuem três componen-tes: o primeiro, o sistema sociocultural aberto em transformação. O se-gundo, o desenvolvimento em diversos estágios, e que requer reestrutu-ração. E, por fim, o terceiro, a adaptação às circunstâncias modificadas, de maneira a manter a continuidade e a intensificar o crescimento psi-cossocial de cada membro.

Nesse sentido, a família funciona a partir de um conjunto visível e invisível de exigências que organiza a forma como seus membros intera-gem. Assim, é um sistema que opera através de padrões transacionais, os quais revelam a estrutura de funcionamento da família (MINUCHIN, 1990, p. 57). A família é compreendida como um sistema que tende a manter a si mesmo e oferece resistência às mudanças no padrão habitual de funcionamento. Qualquer desvio que ultrapasse o limiar de tolerân-cia do sistema faz surgirem mecanismos que reestabelecem o âmbito costumeiro. Isso significa que, em situações de desequilíbrio do sistema, é comum que os membros da família achem que os outros não estão cumprindo com as suas obrigações, produzindo reivindicações de leal-dade familiar e manobras que induzem à culpa (MINUNCHIN, 1990).

3. Discussão de casos à luz da abordagem sistêmica e da Psicologia Social

Sandel (2013) apresenta casos exemplos em seu livro Justiça que po-dem ser relacionados aos temas discutidos até o momento. Como vemos:

Caso 1:O exemplo mais simples é a obrigação especial que os membros da família têm entre si. Suponhamos que duas crianças estejam se afogando, e você só tenha tempo de salvar uma. Uma é seu filho e a outra é filha de um estranho. Seria errado salvar seu filho? Ou seria melhor decidir no cara ou coroa? A maioria das pessoas diria que não seria errado salvar o próprio filho e acharia estranho considerar mais justo decidir jogando a moeda. Por trás dessa reação está a noção de que os pais têm responsabilidades especiais para com seus filhos. Algumas pessoas dizem que essa responsabilidade é fruto do consentimento. Ao

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optar por ter filhos, os pais voluntariamente aceitam a responsabilidade de cuidar deles com atenção especial (SANDEL, 2013, p.278).

Caso 2:Deixando de lado a questão do consentimento, analisemos a responsabilidade dos filhos em relação aos pais. Suponhamos que duas pessoas idosas precisem de cuidados; uma é minha mãe e a outra é a mãe de um estranho. A maior parte das pessoas concordariam que, embora fosse admirável se eu pudesse cuidar de ambas, tenho uma responsabilidade especial em relação à minha mãe. Nesse caso, o argumento do consentimento não justifica meu dever. Eu não escolhi meus pais; nem sequer escolhi ter pais (SANDEL, 2013, p. 278).Podíamos argumentar que a responsabilidade moral de cuidar de minha mãe advém do fato de ela ter cuidado de mim quando eu era jovem. Como ela me criou e cuidou de mim, tenho a obrigação de retribuir-lhe?Mas suponhamos um caso oposto. O que você diria sobre uma pessoa cujos pais foram negligentes ou indiferentes? O grau de qualidade do tratamento dispensado à criança determina o grau de responsabilidade do filho ou da filha de ajudar os pais quando for preciso?Na medida em que os filhos são obrigados a ajudar até mesmo os maus pais, o argumento moral pode transcender a ética liberal de reciprocidade e consentimento.

A partir desses casos, podemos nos perguntar: o que devemos uns aos outros então?

Na perspectiva do individualismo moral, as nossas escolhas estão relacionadas à certa unidade, as quais representam minha aspiração por um caminho que faça sentido à minha vida como um todo e a tudo que é importante para mim (SANDEL, 2013). Assim, a partir dessa perspec-tiva, a responsabilidade do indivíduo está unicamente relacionada ao seu desejo e ao sentido que esse faz a sua vida, e não à ideia de que sua ação deva estar ligada a sua história de vida ou a danos que precisam ser reparados.

Já a partir da perspectiva sistêmica, o comportamento do indiví-duo diante de tal dilema vai estar inteiramente relacionado à sua histó-ria de vida e aos padrões de funcionamento familiar do qual fez parte. Na teoria boweniana, só entendemos a narrativa da vida do indivíduo se ampliarmos o nosso foco e também compreendermos sua história fa-miliar “para onde quer que vamos, a família permanece dentro de nós”.

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Ainda que a família deva ser capaz de se adaptar às circunstâncias sócio- históricas e culturais, para Minuchin, a sua “existência continua-da, como um sistema, depende de uma extensão suficiente de padrões, da acessibilidade de padrões alternativos e da flexibilidade para mobilizá-lo quando necessário” (1990, p. 58). Isso oferece subsídios para analisarmos se uma família está em seu funcionamento saudável ou disfuncional.

Para esse autor, um sistema familiar pode se tornar sobrecarre-gado, sob circunstâncias estressantes, e carecer de recursos necessários para se adaptar e mudar. Nesses casos, algumas famílias podem de-senvolver fronteiras excessivamente rígidas. A comunicação pode se mostrar difícil e as funções protetoras, ficar prejudicadas. Os modos extremos de funcionamento de fronteiras podem se denominar de ema-ranhamento e de desligamento, respectivamente.

Os membros de uma família com o funcionamento emaranhado, por exemplo, podem apresentar um sentimento incrementado de per-tencimento, o que requer máxima renúncia de autonomia. Tal falta de diferenciação entre os membros desencoraja a exploração autônoma e o domínio do enfrentamento dos problemas, tornando sua história, por vezes, aprisionada aos modelos e regras de funcionamento da estrutura familiar. Nesse sentido, podemos compreender que o indivíduo que ten-de a apresentar um funcionamento emocional não diferenciado de sua família de origem tende a achar difícil se separar dos mesmos, inclusive, dizem o que sentem e o que acreditam, fazendo eco do que escutaram em sua história familiar, adquirindo uma pseudoindependência (NI-CHOLS; SCHWARTZ, 1998). Nesses casos, fazer a coisa certa significa fazer, provavelmente, o que minha família faria, significa ouvir a voz internalizada dos membros familiares significativos.

Já, por outro lado, os membros de uma família com o funcio-namento desligado podem apresentar-se autonomamente, são capazes de tomar decisões, pensam e agem de acordo com suas crenças e seus ideais de vida. Não são moldados pelos valores de sua família de ori-gem. São capazes de separar o pensamento do sentimento e tendem a serem mais tolerantes, flexíveis e seguros em seus relacionamentos (NI-CHOLS; SCHWARTZ, 1998). Entretanto, podem também desenvolver um sentido distorcido de sua independência e carecer de sentimento de lealdade e de pertencimento, assim como a capacidade de interdepen-dência (MINUCHIN, 1990).

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Assim, é importante que o profissional que lide com os dilemas de lealdade em sua profissão, especialmente, quando da área da Psicolo-gia, esteja atento às diferenças étnicas das famílias. O importante não é aprender o que caracteriza um grupo ou outro, mas estar aberto às suas diferenças. É reduzir a ansiedade dos indivíduos e auxiliá-los na dife-renciação de seu self independentemente das regras e valores familiares.

Um indivíduo, para melhor lidar com o dilema de lealdade, deve, antes de tudo, estar pronto para vivenciá-lo, sabendo identificar exata-mente seus valores e ideais. Embora faça parte de uma história de vida e de uma história familiar, deve também ter a habilidade necessária de se sentir pertencente àquela família e a sua estrutura de funcionamento, mas, ao mesmo tempo, sentir-se autônomo na sua tomada de decisão a respeito de um dilema.

A partir dos pressupostos de Groisman (2006), da abordagem sis-têmica, um indivíduo, ao estar diante de um dilema de lealdade, deveria, antes de tudo, estar pronto para responsabilizar-se por suas escolhas e reconhecer o que está por trás de seu comportamento. Só assim o per-dão sobre uma decisão de não ter feito a coisa certa seria possível. Para o autor, não se perdoa o ato, pois este é imperdoável, está registrado, marcado, e não pode ser apagado, mas se perdoa a pessoa que o prati-cou, caso se queira manter a convivência com ela. É um ato realizado em relação ao outro, esteja esse interessado ou não na manutenção da convivência.

Moisés Groisman (2006) defende ainda que o ato de pedir perdão é um ato humano de humildade e de arrependimento e, nesse caso, o indivíduo pode expressar o seu sentimento de dívida e “de dever”. Se-ria um investimento afetivo em uma relação que se quer manter. Dessa forma, exige reflexão e compreensão sobre o que levou o indivíduo a cometer tal injustiça. É um ato para poder viver melhor consigo e com o outro. Se esse outro reconhece sua parcela de responsabilidade, é mais fácil pedir perdão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como entender, analisar e descrever a relação fundamental entre o que é fazer a coisa certa, especialmente quando refletimos sobre o que devemos uns aos outros? Como trabalhar os dilemas de lealdade sem

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cair em uma abordagem individualista, psíquica ou biológica, sociocên-trica, ou em uma abordagem sistêmica? Que relações essas questões têm com as convicções morais e religiosas das pessoas? Como compreender a subjetividade do ser humano, que o torna único e irrepetível, ainda que inserido em um processo social, cultural e familiar? Como aceitar que os indivíduos em sociedades pluralistas, como a nossa, têm con-cepções diferentes sobre a melhor maneira de viver? Como podemos perdoar atos com os quais não concordamos?

Como podemos observar, são muitas as incertezas que surgem quando abordamos um tema tão complexo. Definir direitos e deveres dos cidadãos sempre traz controvérsias, principalmente quando sabe-mos que não é possível acreditar na neutralidade das relações.

A convivência social supõe relações de confiança e, portanto, de expectativa em relação aos comportamentos uns dos outros. Essa rela-ção passa pelas contingências sociais, pelas escalas de valores, por mais diversas que sejam. Vimos, no decorrer do texto, que, embora haja uma crença no senso comum de que há uma moral universal, as diversas mo-rais são construídas nos espaços de convivência, permeados por tradi-ções e por pressões do aqui e agora. Portanto, não há como determinar de modo universal essas relações de lealdade ou deslealdade, mas isso não significa que elas não existam. Elas se formam ou se constroem na medida em que as diversas formas de convivência (seja no mundo das relações diretas, seja no das relações mediadas pelas tecnologias) vão ocorrendo.

Precisamos olhar e respeitar as concepções filosóficas, religiosas e culturais que marcam nossas histórias, que, por serem construídas so-cialmente em um processo inacabado, que muda a todo momento, não temos como controlar. É possível conviver sim com as divergências, as diferenças, as escolhas e as decisões de cada um, ou de cada grupo social, desde que saibamos aceitar que, por estarmos inseridos em uma comu-nidade, temos que respeitar regras de convivências, para que tenhamos uma consciência ética e moral e possamos exercer nossa cidadania.

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