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Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015. UM RIO SEM MARGENS? O NEGATIVO E O NADA NA LINGUAGEM Carolina P. Fedatto Pós-doutorado /UFF/UFMG-Capes Supervisão: Profª. Drª. Bethania Mariani Em trabalhos anteriores venho pensando sobre o papel da negação e sobre a diferença entre vácuo, vazio e nada (Fedatto, 2013, 2014). Avançar nessa distinção seria uma forma de elaborar um dos estatutos da negação, a saber: seu caráter de nada, ao lado de seus sentidos de oposição, de inversão e de ausência falta ou vazio. Neste texto, proponho uma reflexão sobre a questão do negativo na linguagem que toca a instância do significante e os contornos do signo e sobre o horizonte do nada em relação ao sentido que resvala no materialismo e no real do acaso. Para isso, alguns recortes do conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, serão trabalhados como metáfora para pensarmos as bordas e o abismo do sentido. Lançaremos mão também de jogos significantes sugeridos por textos poéticos de Caetano Veloso, João de Barros, Haroldo de Campos e Wisława Szymborska. Buscaremos assim explorar os limites conceituais entre vácuo, vazio e nada visando à discussão do nada em relação ao real, ao não-sentido e ao silêncio, tal como propostos por Eni Orlandi (1992 e 1998). O objetivo dessas considerações teóricas é colocar em questão os sentidos do não na linguagem, no sujeito e na história, suas possibilidades de resistência, sua potência divisora e sua carga de diferença. Comecemos, pois, pelo vazio. O dicionário de símbolos aproxima vácuo e vazio, definindo-os como a possibilidade de se “libertar do turbilhão de imagens, desejos e emoções”, de “escapar da roda das existências efêmeras” (Chevalier e Gheerbrant, 1993, p. 932, grifos nossos). Em termos físicos, no vácuo há ausência de matéria, mas ainda assim há alguma coisa: energia. O vácuo e o vazio são fenômenos do mundo físico (no espaço sideral e no interior do átomo há mais vácuo do que matéria, por exemplo), mas podem ser produzidos artificialmente, como um efeito, um resultado ou um processo. Isso a Física atesta, já que há sempre vácuo de alguma coisa. E esse esvaziamento é maior do que a própria matéria. 1 Já o nada, podemos pensá-lo não como processo, mas como condição. O nada não se produz, não se simula, não se explica. O nada é. Real. 1 Deixo meu agradecimento a Pedro Schio, doutor em Física pela UFSCar e pela Universidade Pierre e Marie Curie Paris VI, pelas conversas sobre o tema.

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Anais do III Seminário Interno de Pesquisas

do Laboratório Arquivos do Sujeito

Anais do III Seminário Interno de Pesquisas do Laboratório Arquivos do Sujeito, UFF, Niterói, 3, p. 27-35, 2015.

UM RIO SEM MARGENS? O NEGATIVO E O NADA NA LINGUAGEM

Carolina P. Fedatto

Pós-doutorado /UFF/UFMG-Capes

Supervisão: Profª. Drª. Bethania Mariani

Em trabalhos anteriores venho pensando sobre o papel da negação e sobre a diferença

entre vácuo, vazio e nada (Fedatto, 2013, 2014). Avançar nessa distinção seria uma forma de

elaborar um dos estatutos da negação, a saber: seu caráter de nada, ao lado de seus sentidos

de oposição, de inversão e de ausência – falta ou vazio. Neste texto, proponho uma reflexão

sobre a questão do negativo na linguagem – que toca a instância do significante e os

contornos do signo – e sobre o horizonte do nada em relação ao sentido – que resvala no

materialismo e no real do acaso. Para isso, alguns recortes do conto “A terceira margem do

rio”, de João Guimarães Rosa, serão trabalhados como metáfora para pensarmos as bordas e o

abismo do sentido. Lançaremos mão também de jogos significantes sugeridos por textos

poéticos de Caetano Veloso, João de Barros, Haroldo de Campos e Wisława Szymborska.

Buscaremos assim explorar os limites conceituais entre vácuo, vazio e nada visando à

discussão do nada em relação ao real, ao não-sentido e ao silêncio, tal como propostos por Eni

Orlandi (1992 e 1998). O objetivo dessas considerações teóricas é colocar em questão os

sentidos do não na linguagem, no sujeito e na história, suas possibilidades de resistência, sua

potência divisora e sua carga de diferença.

Comecemos, pois, pelo vazio. O dicionário de símbolos aproxima vácuo e vazio,

definindo-os como a possibilidade de se “libertar do turbilhão de imagens, desejos e

emoções”, de “escapar da roda das existências efêmeras” (Chevalier e Gheerbrant, 1993, p.

932, grifos nossos). Em termos físicos, no vácuo há ausência de matéria, mas ainda assim há

alguma coisa: energia. O vácuo e o vazio são fenômenos do mundo físico (no espaço sideral e

no interior do átomo há mais vácuo do que matéria, por exemplo), mas podem ser produzidos

artificialmente, como um efeito, um resultado ou um processo. Isso a Física atesta, já que há

sempre vácuo de alguma coisa. E esse esvaziamento é maior do que a própria matéria.1 Já o

nada, podemos pensá-lo não como processo, mas como condição. O nada não se produz, não

se simula, não se explica. O nada é. Real.

1

Deixo meu agradecimento a Pedro Schio, doutor em Física pela UFSCar e pela

Universidade Pierre e Marie Curie – Paris VI, pelas conversas sobre o tema.

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O Barco!

Meu coração não aguenta

Tanta tormenta, alegria

Meu coração não contenta

O dia, o marco, meu coração

O porto, não!...

Navegar é preciso

Viver não é preciso...

O Barco!

Noite no teu, tão bonito

Sorriso solto perdido

Horizonte, madrugada

O riso, o arco da madrugada

O porto, nada!...

Navegar é preciso

Viver não é preciso...

O Barco!

O automóvel brilhante

O trilho solto, o barulho

Do meu dente em tua veia

O sangue, o charco, barulho lento

O porto, silêncio!...

Navegar é preciso

Viver não é preciso...

(Caetano Veloso Os argonautas, 1969)

Aqueles que se aventuram pelas vias da reflexão sobre a linguagem nem imaginam os

perigos que correm. Tal como argonautas enviados a uma expedição ousada e sem fim,

ficamos muitas vezes à deriva, sem comando, sem barco e sem norte, levados apenas pela

desconfiança de que navegar é preciso. Junto com tantos outros, estou – estamos – nessa nau

de Arcos em busca do mítico velocino de ouro, talismã perdido, roubado, inencontrável. Mas

fazer pesquisa é isso mesmo: não há descanso, nunca se encontra o que se busca. Topamos é

com o acaso que muitas vezes se impõe. Nos meus estudos sobre a negação dei de cara com

um imprevisto exigente, desses que desviam a atenção da gente para palavras

desacostumadas. Nada foi essa palavra. Pelo não, veio o nada. Não, nada, silêncio, como na

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canção expedicionária de Caetano.2 Canção que pode ser um indício de que essas três

instâncias se relacionam. Também os versos “As três palavras mais estranhas”, da poeta

polonesa Wisława Szymborska, apontam certo paralelo significante entre o nada e o silêncio:

[...]Quando pronuncio a palavra Silêncio,

suprimo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,

crio algo que não cabe em nenhum não ser. [...]

A prática linguageira dessas palavras as coloca em suspenso. Dizer “silêncio” revoga o

que ele poderia ser. Dizer “nada” evoca algo que ultrapassa o não ser, evoca um abismo, buraco sem

fundo constitutivo de qualquer (não) ser. Eni Orlandi propõe o silêncio como fundante: o real do

discurso é o silêncio (1992, p. 31). A autora o toma também como condição, como movência que é

recortada, estancada pela palavra. Com isso, produz uma distinção entre: 1) o silêncio fundador –

que existe nas palavras significando o não-dito, abrindo espaço na cadeia significante – e 2) a política

do silêncio; esta se subdivide em silêncio constitutivo – ao dizer de determinada forma

necessariamente deixamos de dizer de outra – e silêncio local – a censura, o que é proibido dizer em

determinada conjuntura. Ao compreender que o silêncio é fundador, Orlandi nos mostra que,

enquanto sujeitos de linguagem, estamos sujeitos a um funcionamento ausente, e por isso, passível

de sempre significar diferentemente, com ou sem palavras. Quero argumentar que o nada teria algo

em comum com esse caráter fundador do silêncio. Eis algumas pistas para um primeiro desvio pelo

conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, cujos caminhos de não retomo a seguir.

As margens

O pai era cumpridor, ordeiro, positivo, mais quieto e desajuizado, mas não mais triste

que os outros. A mãe era firme, pragmática e mandava no cotidiano da casa. Belo dia, o pai

encomenda uma canoa. A mãe ficou desgostosa, mas o homem “nada não dizia”; disse

mesmo adeus, sem falar. O menino, ainda que temeroso da desaprovação da mãe,

acompanhou o pai até a beira do rio; só não foi junto, desamarrado como a canoa, porque o

homem fez gesto pra ele voltar. Esse pai, que não foi a parte alguma, nunca volta, mas está

sempre à vista lá no meio do rio, ilhado em seu abandono, sua doideira, promessa ou

quarentena. Os parentes apostavam na falta de mantimento para que o desajuizado apeasse do

bote e voltasse pra casa. Mas o filho era seu cúmplice e punha no vazio de um barranco a

2

Agradeço a Ana Cláudia Fernandes Ferreira que generosamente me despertou para

esta canção no debate que se seguiu à conferência “Formas de dizer não e outros conflitos”

que proferi na Univás, em outubro de 2014.

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rapadura, a broa e a banana que a mãe displicente deixava de sobra pelas gamelas. Vieram tio,

mestre, padre, soldado, jornalista para ocupar as funções paternas na família ou convencer o

homem a desistir da tristonha teima. “Tudo o que não valeu de nada”. Tiveram que se

acostumar, chuva e sol, meses, anos e o pai lá sozinho no brejo, sem falar nem ser falado.

Salvo por trapaça do menino que, elogiado por um feito, se regozijava em repetir que foi o pai

quem lhe ensinara. No devagar depressa dos tempos, muita coisa mudou, só pai e filho

ficaram de resto, com as mesmas bagagens da vida. O pai cada dia mais velho, o filho

culpado do que nem sabe, querendo que as coisas fossem outras... A saída que encontrou?

Trocar de lugar com o velho, que concordou. Pela primeira vez, o chamado do filho ressoa no

pai, mas chega a um destino inesperado, insuportável. “Eu não podia”, diz o garoto.

Apavorado, ele fugiu, adoeceu, falhou, faliu. O pai se foi mundo afora, ninguém mais soube.

Depois de desertar do compromisso com o pai, o filho se pergunta sobre sua condição

humana. “Sou o que não foi, o que vai ficar calado.”, sentencia de si. Espera agora que a vida

se abrevie e que o depositem numa “canoinha de nada, nessa água que não para, de longas

beiras (...)” (Rosa, 1962/1988).

Ao topar com o imperativo da negação, o filho se vê numa terceira margem, num

espaço indefinido. A terceira margem é aquela que não encaminha o rio, aquela que o leva a

uma abertura que beira o infinito, o indistinto. Aquela que o confunde com a terra, que forma

lama, um nada de mundo, pura indistinção, como na bela tradução que faz Haroldo de

Campos do Gênesis, essa cena mítica de origem do mundo cristão. Antes de Deus, antes que

Deus fizesse a distinção entre as coisas, as nomeasse: “E a terra era lodo torvo/ E a treva sobre

o rosto do abismo”.3 A assonância lodo torvo e a imagem de um abismo com rosto – que pode

olhar e ser olhado, mas ainda não se olha por estar encoberto – são recursos poéticos que

remetem ao nada, ao indistinto que pode dar origem a um mundo.

O abismo, segundo o dicionário de símbolos, designa aquilo que é sem fundo, seja nas

profundezas ou nas alturas indefinidas. Todos os estados ainda sem forma da existência: do

caos das origens às trevas dos últimos dias. Da indeterminação da infância à indiferenciação

da morte, da decomposição à integração suprema. O inconsciente (Chevalier e Gheerbrant,

1993, p. 5). O não-sentido (Pêcheux, 1982; Orlandi, 1998). Abismo, indistinção, morte: outros

nomes do nada.

3

Meu agradecimento à psicanalista Janaína Rocha de Paula pelo estalo poético que

essa tradução me provocou.

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O nada

Estudando a negação dei de encontro com o nada. E também esbarrei no modo como

Manoel de Barros faz o nada aparecer:

O que não sei fazer desmancho em frases.

Eu fiz o nada aparecer.

(Represente que o homem é um poço escuro.

Aqui de cima não se vê nada.

Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver

o nada.)

Perder o nada é um empobrecimento.

(Manoel de Barros, Livro sobre nada, p. 343)

A estruturação da língua expõe, de alguma forma, o nada que a sustenta. Desmanchar

o que não se sabe em frases é se deixar levar pelas relações in absencia, pelo eixo das

associações, pela metáfora, pelo jogo fortuito das assonâncias e dos sentidos, pela analogia,

pelo palavra-puxa-palavra que tanto diz sobre o inconsciente e a ideologia. A linguagem em

funcionamento mostra um nada que toca o poço escuro do sujeito, esse poço cujo fundo

(falso) dá a ver o nada.

A ideia do negativo tem também uma longa trajetória na filosofia, trajetória que

merece ser estudada, pois é uma ideia fundadora! N’O ser e o nada, Sartre aborda o problema

do nada investigando as origens da negação. Na linguística sabemos de seu caráter

fundamental: diz Saussure que o signo linguístico é negativo, justamente porque não tem

sentido em si, mas na relação com os outros elementos do sistema. E o significante é o puro

não-sentido, a pura diferença, o cúmulo do negativo. O significante também tem a ver com o

nada.

Pensar sobre a negação me levou ao silêncio e ao nada, porque dizer não tem a ver

com ausência, com abandono. Em seu fazer poético sobre o nada, Manoel de Barros também

tropeça no abandono. No pretexto do Livro sobre nada, o poeta retoma a intenção de Flaubert,

expressa numa carta, em escrever um livro sobre nada. O nada de Flaubert procurava negar as

exigências românticas de centralidade do eu e da razão em busca de uma literatura apenas

literária, em que só o estilo, não o assunto, importasse (Coelho, 1994). Já o nada de Manoel é,

como ele diz, “o nada mesmo”:

É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de

amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo etc.

etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer

coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e

por fora (Barros, 2010, p. 327).

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Mais do que olhar para o encantamento das palavras de Manoel, queremos atentar para a

teoria de linguagem que delas exala. Para o autor, o nada tem a ver com desutilidade, é o avesso da

pragmática, é contrassenso, antítese entre mundo real e fantasia, contradição entre o que é e o que

não pode ser, antirreferencialismo no exercício da palavra. Em sua metagênese linguística, Manoel

trabalha arduamente para fazer o que é desnecessário, tenta enxergar as coisas sem feitio, deseja

estar em estado de palavra, propõe a desutilidade poética, exalta o desacontecimento. Esse é o nada

para o poeta. Uma antipragmática.

O acaso

“O materialista, ao contrário, é um homem que pega o trem andando sem

saber de onde ele vem nem para onde ele vai.”

(L. Althusser, O futuro dura muito tempo)

Esta concepção vai na direção do que Althusser denominou materialismo do encontro, em

um artigo escrito em 1982 e inédito até 1994. O materialismo do encontro expõe justamente a

importância do desvio na produção de encontros imprevistos:

Epicuro nos explica que, antes da formação do mundo, uma infinidade de

átomos caíam, paralelamente, no vazio. Eles caem sempre. O que implica

que antes do mundo não havia nada e, ao mesmo tempo, que todos os

elementos do mundo existiam desde toda a eternidade antes da existência

de algum mundo. O que implica também que, antes da formação do

mundo, não existia nenhum sentido, nem causa, nem fim, nem razão, nem

desrazão. A não-anterioridade do sentido é uma das teses fundamentais de

Epicuro [...] (Althusser, 2005, p. 10).

Para a tradição filosófica ocidental, o logos – essa razão fundada na objetividade da

linguagem – é responsável pela antecedência do sentido sobre a realidade. Segundo o materialismo

de Althusser, antes da realidade não há sentido, há um pendor, uma inclinação ou uma declinação.

Para definir isso que há antes do mundo, Lucrécio, leitor da filosofia epicurista, introduz o conceito

de clinamen4 como sendo justamente esse desvio infinitesimal na trajetória dos átomos que caem

4

“Quando os corpos são levados em linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo seu próprio

peso, afastam-se um pouco da sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão somente o necessário para

que se possa dizer que se mudou o movimento” (Lucrécio apud Althusser, 2005).

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em linha reta, alterando minimamente o paralelismo entre eles e provocando um encontro com o

átomo vizinho. Considerar que na origem há o nada, ou um desvio que é nada, seria a grande audácia

de Epicuro. O tema das origens, no entanto, é caro à filosofia materialista:

Dizer que no início era o nada ou a desordem é se instalar aquém de

qualquer montagem e de qualquer ordenação, é renunciar a pensar a

origem como Razão ou Fim para pensá-la como nada. À velha pergunta:

“Qual é a origem do mundo?”, esta filosofia materialista responde: “o

nada” – “coisa alguma” –, “eu começo por nada” – “não há começo, porque

não existiu nunca nada, antes de qualquer coisa que seja”; portanto, “não

há um começo obrigatório para a filosofia” – “a filosofia não começa por

um começo que seja sua origem”; ao contrário, ela “pega o trem andando”

(Althusser, 2005, p. 25).

Mas, segundo Althusser, é preciso ultrapassar a contingência do encontro:

para que o desvio dê lugar a um encontro do qual nasça um mundo, é

necessário que ele dure, que não seja um “breve encontro”, mas um

encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de

qualquer necessidade, de qualquer sentido e de qualquer razão. Porém, o

encontro pode também não durar e, então, não há mundo (Althusser, 2005,

p. 10).

E o sentido pode tanto se dar como falhar, como em todo ritual (Pêcheux, 1978, p.

301). O que quer dizer que, no pensamento materialismo, há uma brecha para considerarmos

o nada como fundador. Os elementos já estão aí e além, prontos para chover, mas eles só

existem a partir do momento que “a unidade de um mundo os tenha reunido no encontro que

constituirá sua existência” (Althusser, 2005, p. 14). E mesmo depois de acontecer, nada

garante a duração do encontro, pois o fato consumado não é a certeza de sua perenidade.

Althusser diz que a história é a revogação permanente do fato consumado por um outro fato

indecifrável a se consumar “sem que se saiba antecipadamente nem onde, nem como o

acontecimento de sua revogação se produzirá” (Althusser, 2005, p. 14). O fato é que é sempre

possível que essa mexida aconteça. Que o sentido advenha do não-sentido, nas palavras de

Pêcheux (1982). Por aí também, podemos dizer que o nada tem algo a ver com o acaso do

encontro e com “o duro desejo de durar” (Paul Éluard?), desejo que se impõe mesmo ao que

não dura.

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O ser

Sobre a relação entre o nada e a subjetividade, Manoel de Barros também oferece

pistas interessantes. Em muitos versos, o poeta expõe o flerte do nada com a solidão e o

abandono. Não podemos deixar de pensar que há uma relação do sujeito, e do desejo, com o

nada. Vejamos a epígrafe que Manoel coloca na segunda parte do Livro sobre nada, intitulada

“Desejar ser”:

“O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor

o que não é, tem ser” (Padre Antônio Vieira, Paixões humanas apud

Barros, 2010, p. 337).

Conhecemos a maestria de Manoel com as palavras, o modo bonito que ele tem de

mobilizar o sujeito que advém delas, a relação intrincada que sua poesia expõe do sujeito com

as palavras, seus deslizes. Manoel borra as margens que formam o rio, que distinguem a água

da terra. Explorando a metáfora do rio, que vem do conto de Guimarães Rosa evocado acima,

podemos dizer que as águas seriam a língua (fluida, como diz Eni Orlandi) e a terra, o sujeito

(em sua ilusão de ser firme, solo fértil, chão, alicerce, base): o Ser da tradição filosófica

existencialista, idealista e fenomenológica.

E o que nos diz Sartre, no auge do existencialismo, sobre o ser e o nada? Não pude

deixar de mergulhar nessa leitura nova, desafiadora e bela! A segunda parte d’O ser e o nada

se ocupa justamente do “problema do nada”. E o primeiro capítulo trata da “origem da

negação”. Para Sartre, o Ser está no centro de tudo, tudo gravita em torno do Ser. O

descentramento do sujeito, legado do estruturalismo que influenciou a AD e a psicanálise

lacaniana, nos afasta dessa posição. Mas o pensamento de Sartre traz ideias fundamentais para

refletirmos sobre a negação e o nada. Não vou explorar o fio condutor de sua argumentação

aqui. Queria apenas pontuar que essa leitura tem me permitido compreender o estatuto

imaginário e ideológico do Ser e sua relação com o não-ser, o papel da interrogação e da

negação na construção do Ser, do existente, do sentido. Tem me permitido tentar diferenciar

não-ser e nada, noções que em muitos momentos do texto de Sartre ficam confundidas.

Se, como bem entende o filósofo, o não-ser depende do ser, isto é, o ser é anterior ao

não-ser; o mesmo não podemos dizer do nada, porque, do ponto de vista materialista,

entendemos que o nada seria o outro nome do real. O nada se impõe a qualquer possibilidade

de ser. O nada é condição. Tenho pensado no nada como fundo falso que se abre ao acaso,

poço sem fundo, rio sem margens, abismo, indizível, aquilo que não tem sentido nem nunca

terá. Esse resto, esse som de nada de onde irrompe a língua, como diz Saussure nos

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manuscritos de Harvard. “A borda que a língua não borda” (Abrahão e Sousa, 2014), essa

aposta no devir. Isso em que não nos cabe tocar.

Referências

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