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Discussão de aspectos do federalismo fiscal brasileiro e das propostas de reforma tributária no Brasil.
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Federalismo Fiscal e Reforma Tributária no Brasil
Revista Teoria e Sociedade, nº11,1, pp.10,47, janeiro-junho 2003
Eduardo Meira Zauli
Introdução
Assim como em outros sistemas políticos de perfil federal, a questão da repartição
das receitas tributárias entre os entes federativos percorre toda a história da República no
Brasil, sendo que nos últimos anos, desde o início dos anos 90 o tema da reforma
tributária vem ocupando um lugar de destaque na agenda pública nacional. A partir de
uma reconstituição histórica da evolução do federalismo brasileiro, o presente trabalho
procura abordar o tema da reforma de nosso federalismo fiscal tendo em vista a estrutura
das relações intergovernamentais e o comportamento de alguns de nossos atores
políticos-chave no contexto sui generis do quadro institucional que define o federalismo
brasileiro. Considera-se que a institucionalidade federativa vigente no Brasil possibilita
a ocorrência de diferentes veto points no sistema político nacional, inibindo iniciativas
reformistas de nosso sistema tributário que, de outro lado, são demandadas à luz das
diversas distorções presentes em nosso sistema de arrecadação de tributos, e do novo
ambiente econômico em que se insere a sociedade brasileira a partir dos processos em
curso de globalização econômica. Assim, a lentidão, o caráter incremental e as inúmeras
não-decisões que caracterizam a dinâmica da arena decisória da reforma tributária no
2
Brasil decorrem em boa medida de uma estrutura federativa que termina por impor
limites à inovação institucional nesta área de políticas públicas.
O federalismo fiscal brasileiro em perspectiva histórica
Deixando de lado a questão das atribuições dos diversos órgãos da administração
fazendária no âmbito das diferentes circunscrições administrativas durante o período
colonial, pode-se dizer que as problemáticas da descentralização fiscal e do federalismo,
de certo modo, já se configuram no Brasil desde o início do Império1, marco do processo
de construção do Estado nacional no Brasil2. É interessante notar que embora a rigor a
Constituição de 1824 não seja a expressão de um arranjo institucional federativo3, há
nela um lugar de destaque para as províncias como parte integrante do Império; destaque
ampliado pelo Ato Adicional de 1834 mediante a substituição dos antigos conselhos
gerais por assembléias provinciais com maiores prerrogativas legislativas. A questão da
discriminação entre as rendas gerais e provinciais foi tratada pelo Ato Adicional e pela
lei nº99 (1835), assegurando-se às assembléias provinciais o poder de legislar tanto
sobre as despesas municipais e provinciais quanto sobre suas respectivas fontes
tributárias, o que envolvia o direito de cobrança de uma série de tributos. Quanto à
1 João Camilo de Oliveira Torres trata do Império como uma “Federação preventiva”, “...um ato de união em face do golpe que pretendia separar as províncias, e não um ato de união de grupos isolados, em busca de auxílio mútuo”. Toma a Independência “...como um movimento de Federação das províncias em torno do Príncipe D. Pedro...” . (Torres 1961:90)2 A propósito de uma análise comparativa dos processos de state building na Argentina e Brasil ao longo do século XIX, ver Merquior (1992). Para uma análise detalhada da dimensão federativa da estrutura política do Império, veja-se Tôrres (1964).
3
receita tributária, enumeradas as fontes das rendas do governo geral restava às
províncias aventurar-se pelos caminhos da ilegalidade e/ou avançar sobre as possíveis
fontes de arrecadação das municipalidades4. Com relação aos municípios5, a
Constituição do Império lhes assegura o status de subdivisões administrativas das
províncias sem quaisquer referências às suas prerrogativas tributárias.
A Constituição republicana de 1891 incorporou, em boa medida, a estrutura
tributária herdada do final do Império6. Uma inovação importante, porém, diz respeito à
adoção do regime de separação de fontes tributárias, com impostos cuja arrecadação era
de competência exclusiva da União e dos estados. Em relação aos municípios, embora o
texto constitucional assegure-lhes autonomia em tudo o que diz respeito ao seu “peculiar
interesse”7, não lhes garante a prerrogativa de estabelecer tributos, cabendo aos estados a
fixação dos impostos municipais. Tem-se uma União composta por uma federação de
estados, mas não estados compostos por uma federação de municípios. (Carvalho 1936)
As principais mudanças tributárias consubstanciadas na Constituição de 1934
inserem-se no processo de evolução do sistema tributário nacional no sentido da
substituição de impostos incidentes sobre operações de comércio exterior por tributos
3 Em relação a experiência brasileira, aceito a sugestão de se designar o Estado brasileiro como sendo de tipo federal, na medida em que “são federativos os corpos políticos surgidos da associação de entidades autônomas e ‘federais’ os que se dividiram territorialmente por ato emanado da autoridade central” (Torres 1961:51).4 Por ocasião do “Regresso”, período marcado por uma relativa recentralização do poder político, a Lei de Interpretação nº105 (12/5/1840) restringiu os efeitos descentralizantes do Ato Adicional por meio da limitação dos poderes das assembléias provinciais e do presidente da Província.5 A designação município aparece pela primeira vez em nossa história constitucional no Regimento das Cammaras Municipaes do Império ou Lei do 28 de outubro de 1828, lei orgânica dos municípios durante o período imperial.6 A propósito das discussões em que se contrapunham propostas de centralização e descentralização do sistema político imperial e das afinidades históricas entre os ideários republicano e federalista que impregnaram a primeira Constituição da República, ver Carvalho (1998).7 Segundo Leal (1976, p. 81-82), a Constituição de 1891 não definiu o conceito de “peculiar interesse”, remetendo às constituições dos estados e às suas respectivas legislações ordinárias a delimitação das competências municipais.
4
com incidência sobre bases domésticas como a principal fonte de financiamento do setor
público. Do ponto de vista fiscal é significativo que nesta Constituição, pela primeira
vez, os municípios foram incluídos na discriminação constitucional das rendas. Assim,
foi atribuída competência privativa aos estados e municípios para a fixação de certos
impostos; com a proibição da cobrança do imposto de exportação pelos estados nas
operações interestaduais; além de se criarem mecanismos de repartição da receita de
impostos entre as diferentes esferas de governo.
Não obstante o perfil autoritário do regime do Estado Novo, a Constituição de
1937 reproduz na área fiscal o perfil tributário da Constituição de 1934, com a
enumeração dos tributos de competência da União, estados e municípios, e com a
sistemática das transferências verticais. Consoante com a orientação centralizadora em
vigor, observa-se então uma ligeira redução dos recursos fiscais dos estados e
municípios como percentagem da receita tributária federal, conseqüência da introdução
no texto legal de restrições à tributação por parte de estados e municípios de
determinados fatos geradores. Contudo, neste período, apesar do caráter centralizador do
Estado brasileiro oriundo da Constituição do Estado Novo, a participação do nível
central de governo no total dos recursos fiscais era ainda inferior à participação da União
no total de receitas fiscais em países federais como Argentina, Canadá e México. (Love
1993)
Já com relação à Constituição de 1946 o aspecto mais notável relaciona-se com a
promoção de um aumento dos recursos fiscais à disposição dos municípios por meio da
5
criação de impostos sob sua jurisdição e mediante uma redistribuição da receita
disponível entre as diferentes esferas de governo em seu favor mediante a participação
de estados e municípios no produto da arrecadação federal do imposto de renda, do
imposto sobre combustíveis, do imposto sobre minerais e do imposto sobre energia
elétrica (Art.15). Determinava a Constituição ainda que fosse aplicados 3% da receita
tributária da União na execução do plano de defesa contra os efeitos da seca no Nordeste
(Art. 198) e do plano de valorização da Amazônia (Art. 199). Apesar do ambiente
favorável de que desfrutam as teses municipalistas neste período8, em um clássico da
Sociologia Política brasileira produzido no contexto da redemocratização brasileira ao
final da Segunda Guerra Mundial, Victor Nunes Leal informa que todas as constituições
republicanas até 1946 (inclusive) recepcionam diferentes instrumentos de controle da
União sobre os estados e municípios e dos estados sobre os municípios. Segundo este
autor
“...nosso federalismo se tem desenvolvido à custa do municipalismo: o preço
pago foi o sistemático amesquinhamento do município, apesar da abundante literatura
louvaminheira, que não basta para amenizar o seu infortúnio.” Leal (1976:103)
8 É neste contexto que são criadas a Associação Brasileira de Municípios (ABM) em 1946, e o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) em 1952, as duas mais importantes instituições do municipalismo brasileiro da segunda metade do século XX. Inicialmente o IBAM surge como um think-tank da ABM. Com o passar do tempo, a transformação da ABM em uma frente nacional de políticos provincianos aproxima-a do modelo de uma constituency agency, enquanto a preservação de um viés tecnocrático por parte do IBAM faz dele uma self-directing agency. (Rourke 1980)
6
Com a Constituição de 19679 foram instituídos os fundos de participação dos
estados e municípios na receita tributária federal. Em relação à reforma tributária
promovida por esta Constituição e alguns atos normativos imediatamente posteriores, é
digno de nota a menor autonomia dos estados para legislar sobre o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias (ICM). Diante do objetivo de se rever a repartição da carga
tributária entre União, estados e municípios, houve uma melhoria na arrecadação
tributária federal e em sua receita disponível promovidas pela criação de novos tributos,
mas também pela redução dos repasses da União em favor das demais instâncias
governamentais cuja autonomia na utilização dos recursos transferidos pela União foi
drasticamente reduzida.
Redemocratização e federalismo fiscal no Brasil
Desde o advento da República, todas as constituições federais brasileiras
comportaram dispositivos relativos a modificações da estrutura territorial de nosso
Estado Federal. Assim, tem razão Horta (1990:67) quando afirma que “a estrutura
territorial não é perpétua e pode sofrer modificações dentro dos critérios estabelecidos
9 Optou-se neste trabalho por considerar a Constituição de 1967 como a penúltima das nossas constituições republicanas. Registre-se contudo a controvérsia jurídica em torno da interpretação da Emenda constitucional nº1. Enquanto para Manoel Gonçalves Ferreira Filho a Emenda em questão não pode “...nem formalmente, nem materialmente...” ser considerada fonte de uma nova Constituição, José Afonso Silva assegura que “Teórica e tecnicamente não se tratou de emenda, mas de nova Constituição”. (Apud Tavares 1998:103)
7
em cada Constituição. Há critérios comuns e critérios variáveis, critérios mais rígidos e
critérios mais flexíveis.”10
Em relação aos estados federados, com a exceção da Constituição de 1967, todas
as demais constituições republicanas contêm dispositivos relativos aos procedimentos
autorizativos de alterações territoriais nos estados. A desconstitucionalização da matéria
em 1967 e sua conseqüente regulação por lei complementar (ordinária) responde, pelo
menos em parte, pela criação de novos estados em número superior às modificações
territoriais ocorridas sob a vigência das quatro primeiras constituições republicanas.
De fato, a partir da estrutura original do federalismo brasileiro consagrado pela
Constituição de 1891 até a Constituição de 1988 verifica-se a ocorrência de cinco
alterações na organização territorial dos estados federados, sendo duas sob a vigência da
Constituição de 1946, e três sob a vigência da Constituição de 196711. Já no período
mais recente, em meio a várias propostas de criação de novos estados, a Assembléia
Nacional Constituinte (ANC) de 1986/88 decidiu pela elevação dos territórios do Amapá
e Roraima à condição de Estado, e pela criação do Estado do Tocantins a partir do
desmembramento do Estado de Goiás12 . (Horta 1990)
10O Estado Federal brasileiro é composto, hoje, pela União, Distrito Federal, 26 estados e 5561 municípios.11 Criação do Estado da Guanabara (1960) por ocasião da transferência do Distrito Federal para Brasília; criação do Estado do Acre (1962) por meio da elevação de antigo território federal; criação do Estado do Rio de Janeiro (1975) pela fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro; criação do Estado do Mato Grosso do Sul (1977) em função de desmembramento do Estado do Mato Grosso; e a criação do Estado de Rondônia (1981) também pela elevação de território.12 Desde a promulgação da Constituição de 1891, a criação e extinção de territórios federais foi uma das fontes de alteração da estrutura territorial da federação brasileira. Em 1904 tem-se a criação do território do Acre; em 1942 surge o território de Fernando de Noronha; em 1943 são criados os territórios do Amapá, Rio Branco, Guaporé, Ponta Porã e Iguaçu. A Constituição de 1946 elimina os territórios de Iguaçu e Ponta Porã e mantém o território do Amapá, Rondônia (antigo Guaporé) e Roraima (antigo Rio Branco). A Constituição de 1988 extinguiu o território de Fernando de Noronha, reintegrando-o ao Estado de Pernambuco. Ao contrário das constituições federais a partir de 1934, a Constituição de 1988 excluiu os territórios federais da organização da República Federativa, integrando-os na União (Art. 18, 2º).
8
Entretanto, quanto à forma do Estado brasileiro, a mais notável inovação
produzida pelos constituintes de 1986/88 foi a elevação do município ao status de ente
federado, parte integrante do Estado Federal, condição que assegura aos nossos
governos locais autonomia política, legislativa, administrativa e financeira, algo
inusitado até então no âmbito das federações, ao mesmo tempo em que se diminuíam as
restrições à criação de novos municípios por meio do desmembramento de antigas
unidades.
Com efeito, com a promulgação da Constituição de 1988 assiste-se a uma
expressiva proliferação de novos municípios no Brasil, fenômeno que se observa desde
o início da década.13 Entre 1980 e 2001 foram instalados no Brasil 1570 novos
municípios, sendo que entre o anos de 1988 e 2000, houve um incremento da ordem de
35% (1438) no número de municípios. Destes, 53% correspondem a municípios com
menos de 5 mil habitantes; 26% correspondem a municípios de 5 a 10 mil habitantes;
enquanto que 20% dos novos municípios comportavam no momento de sua criação mais
de 10 mil habitantes. De forma que de maneira geral a onda emancipacionista pós-1988
corresponde a um processo de intensa criação de micro e pequenos municípios
interioranos. (Bremaeker 2001; Gomes e Mac Dowell 2000; Tomio 2002)14 (Tabelas 1 e
2)
13 A defesa da criação de novos municípios envolve argumentos que vão desde o maior índice de reeleição dos prefeitos dos municípios recém-emancipados, o que atestaria uma maior adequação de suas gestões às preferências de seu eleitorado; até o alto grau de insatisfação da população com relação a seus municípios de origem, passando por considerações a respeito do melhor atendimento das necessidades daquelas populações uma vez processada a emancipação. Ver Bremaeker (2001).14 Tendo como base dados relativos à emancipação de distritos de municípios de Minas Gerais no ano de 1992, Cerqueira (1996) chama a atenção para a necessidade de maiores restrições sobre o processo de criação de novos municípios, a partir
9
Tabela 1Distribuição dos Municípios por Faixas de População / 1997
Faixa de População No de Municípios
Brasil
% Norte Nordeste
Centro-oeste
Sudeste
Sul
Até 2.000 139 2,5 28 21 12 32 29De 2.001 a 5.000 1274 23,13 90 265 137 249 371
De 5.001 a 10.000 1316 23,90 98 403 110 153 302De 10.001 a 20.000 1388 25,20 107 590 101 342 248De 20.001 a 50.000 910 16,59 90 378 60 258 124De 50.001 a 100.000 277 5,02 23 89 15 100 50
De 100.001 a 200.000 108 1,96 6 21 5 57 19De 200.001 a 500.000 68 1,23 5 11 3 35 14
De 500.001 a 1.000.000
16 0,29 0 6 2 8 0
De 1.000.001 a 2.000.000
7 0,12 2 2 1 0 2
De 2.000.001 a 5.000.000
2 0,03 0 1 0 1 0
De 5.000.001 a ... 2 0,03 0 0 0 2 0Total 5507 100 449 1787 446 1237 1159
Fonte: IBAM.
do diagnóstico de que, de maneira geral, os processos de emancipação envolvem, entre outros aspectos, o deslocamento das bases econômicas dos municípios originais.
10
Tabela 2Nº de municípios instalados por ocasião das eleições municipaisEleições municipais Municípios instalados
1982* 4.016 1985* 4.108
1988 4.1801992 4.4911996 4.9742000 5.507
*Em 1982 os prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e áreas de segurança nacional não foram eleitos diretamente. Em 1985 ocorreram eleições diretas nestes e em alguns outros novos municípios.Fonte: IBGE
A partir de 1988 as relações federativas sofrem uma importante inflexão em
decorrência também da abertura de uma nova etapa da história do federalismo brasileiro
em virtude de uma série de mudanças fiscais. Em relação à distribuição dos recursos
fiscais entre os entes federais, o texto constitucional de 1988 coroa um processo de
crescente descentralização fiscal e de autonomia de gasto que tem início, ainda que
timidamente, em meados dos anos 70. Entre outras medidas, a partir de 1975 os entes
governamentais subnacionais beneficiam-se de aumentos recorrentes nas transferências
da União em favor dos fundos de participação de estados e municípios, sendo que os
estados são favorecidos pela assunção por parte do Tesouro Nacional dos custos dos
subsídios às exportações de produtos manufaturados, até então sob sua responsabilidade.
Além disso, em 1979 os estados são beneficiados por uma elevação das alíquotas do
ICM e pela eliminação das vinculações das transferências constitucionais da União em
seu favor. (Abrucio e Samuels 1997)
11
Em relação às receitas tributárias disponíveis, a nova Constituição promoveu uma
importante redistribuição vertical de recursos da União em favor dos entes subnacionais
e dos estados em favor dos municípios. Em relação aos estados, isto ocorreu por meio da
elevação do percentual (21,5%) da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto
sobre Produtos Industrializados (IPI) destinados ao Fundo de Participação dos Estados
(FPE); da partilha de 10% dos recursos provenientes do IPI com os estados na proporção
de suas exportações de produtos manufaturados; e do alargamento da base imponível do
principal imposto estadual, o antigo ICM, agora Imposto sobre Operações Relativas à
Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e
Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Já os municípios foram beneficiados pelo
aumento dos recursos (22,5%) do Fundo de Participação dos Municípios (FPM); pelo
aumento do percentual (25%) e dos valores absolutos das transferências de parcela do
ICMS a seu favor, e pela transferência de 25% sobre os 10% transferidos pela União aos
estados em proporção às suas exportações de produtos manufaturados.
Em conseqüência, observam-se importantes alterações nos montantes das receitas
tributárias disponíveis da União, estados e municípios. Assim, para o ano de 1995, início
do 1º mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, enquanto os governos
subnacionais são responsáveis pela arrecadação direta de aproximadamente 55% de
todos os tributos, uma vez processadas as transferências constitucionais passam a dispor
de 71% da receita de impostos no país. Levando-se em consideração os impostos e todas
as taxas e contribuições, tendo sido responsáveis diretamente por 34% da arrecadação,
12
estados e municípios passam a dispor de 44% dos recursos arrecadados. Tudo isto em
um quadro em que não obstante os fluxos de transferências intergovernamentais
alcançarem o montante de 6% do PIB, estados e municípios desfrutam de uma ampla
autonomia de gasto, podendo dispor de aproximadamente 65% de todos os recursos que
lhes são repassados sem qualquer tipo de restrição, ou de 90% deles se computadas
aquelas vinculações genéricas para ensino e saúde – tipo block grants – passíveis de
serem utilizadas com uma autonomia de gasto relativa significativa. (Afonso e Lobo
1996; Serra e Afonso 1999) Para o ano de 2001, tendo arrecadado diretamente 31,3% da
carga tributária bruta, uma vez realizadas todas as transferências constitucionais estados
e municípios passam a contar com 40,7% da receita de nossos tributos. (Tabela 3)15
15 Embora beneficiados pelo sistema de transferências intergovernamentais, note-se a importância da participação
de estados e municípios na atual estratégia de ajuste fiscal. Para o ano 2000 observa-se uma elevação do superávit primário de todo o setor público de 3,3% em 1999 para 3,5% do PIB. Enquanto em 1999 a União (governo federal, Previdência Social e Banco Central) foi responsável por 72,93% de todo o superávit primário; estados e municípios por 6,77%; e empresas estatais por 20,3%, no ano seguinte tem-se uma nova distribuição do esforço fiscal, com a participação da União caindo para 53,55%, enquanto estados e municípios aumentam sua participação para 15,79% e empresas estatais para 30,66% do PIB. (Tabela 4) Segundo dados da Secretaria da Receita Federal, para uma variação real de 5,88% da arrecadação tributária agregada entre 2000 e 2001, a União contribuiu com o aumento de suas receitas em 5,34%, ao passo que estados e municípios elevaram suas receitas em 7,30% e 5,82%, respectivamente.
13
Tabela 3Arrecadação Direta e Receita Disponível como Percentual da Carga Tributária
(1991/2001) – %União Estados Municípios
Arrecadação Direta
Receita Disponível
Arrecadação Direta
Receita Disponível
Arrecadação Direta
Receita Disponível
1991 63,7 52,5 31,3 30,0 5,0 17,51992 64,8 53,9 31,1 29,6 4,1 16,51993 67,9 56,4 27,2 27,0 4,9 16,61994 66,9 58,5 27,7 26,0 5,4 15,51995 65,4 55,1 28,9 27,3 5,7 17,61996 65,0 54,5 29,6 28,0 5,4 17,51997 67,7 57,3 27,3 26,6 5,1 16,21998 68,7 59,2 26,2 25,0 5,2 15,81999 69,9 60,1 25,4 24,7 4,7 15,22000 69,1 59,6 26,4 25,4 4,5 15,02001 68,7 59,3 26,8 26,5 4,5 14,2
Fonte: Secretaria da Receita Federal.
Tabela 4Necessidade Primária de Financiamento do Setor Público Consolidado
Brasil / 1997-2000 - % PIB1997 1998 1999 2000
Governo Federal e Banco Central
0,3 -0,6 -2,4 -1,4
Estados 0,7 0,4 -0,2 -0,4Municípios - -0,2 -0,1 -0,1Empresas Estatais -0,1 0,3 -0,7 -1,1
Fonte: Banco Central do Brasil.
Assim, em que pese o viés “estadualista” presente na evolução recente do
federalismo brasileiro em virtude do pronunciado grau de influência dos governadores
de Estado na cena política nacional, a elevação dos municípios à condição de entes
federados e o crescimento em termos absolutos e em relação ao PIB de sua receita
14
disponível vis-à-vis os recursos fiscais em mãos dos estados e da União foram
interpretados como componentes de um “federalismo municipal” corroborado pela
intensa criação de novos municípios de maneira geral fortemente dependentes quanto a
suas receitas das transferências constitucionais e de convênios com os estados e com a
União (Gomes & Mac Dowell, 2000). Aliás, foi com base neste tipo de avaliação da
dinâmica recente da evolução do federalismo brasileiro que Almeida e Carneiro (2002,
p.7) afirmaram que
“o modelo federativo resultante da Constituição de 1988 não parece congruente
com a interpretação do processo de transição para a democracia que enfatizou o papel
de liderança dos governadores, especialmente depois de 1982 (...). Se assim foi, como
explicar que tenha sido o município o principal beneficiário da reforma do sistema
federativo brasileiro?”
No contexto da redemocratização do sistema político nacional, diversos fatores
influenciaram tanto a emergência do fenômeno emancipacionista municipal que então se
observa, quanto a substancial melhoria da participação relativa dos municípios na receita
tributária disponível.
Sob a ótica estritamente institucional, o caráter pouco restritivo do texto original
da Constituição de 1988 em relação à criação de novos municípios; a transferência da
regulamentação do processo emancipacionista para a lei estadual; e a vigência de regras
de repartição dos recursos do FPM que incentivavam a ação no sentido da emancipação,
redundaram na criação de uma matriz de incentivos favorável à ação em prol da
15
emancipação municipal16. Já com relação ao atual sistema de transferências
constitucionais de recursos tributários deve-se levar em consideração que por ocasião da
elaboração da Constituição de 1988 as propostas de descentralização de receitas e gastos
públicos tornaram-se particularmente influentes nos trabalhos da ANC. Em um contexto
em que a descentralização fiscal era considerada ao mesmo tempo como corolário e pré-
condição da transição do autoritarismo para um sistema político tido como
verdadeiramente democrático, e em reação a determinadas limitações impostas aos entes
federais durante o ciclo de governos militares, o fortalecimento da federação por meio
da elevação da autonomia fiscal dos estados e municípios foi eleito como objetivo
inarredável na elaboração do novo texto constitucional. (Arretche 1996; Varsano 1996)
As regras de funcionamento da ANC influenciaram sobremaneira a estruturação
daqueles dispositivos institucionais contidos na Constituição de 1988 e que respondem
pelas mudanças operadas no desenho da federação brasileira e na distribuição dos
recursos fiscais entre União, estados e municípios. (Souza 2001; Varsano 1996)17 O
Regimento Interno da ANC definiu que os trabalhos dos parlamentares constituintes
ocorreriam inicialmente no âmbito de 24 subcomissões agrupadas em um segundo
momento em 8 comissões, cujos trabalhos seriam reunidos pela Comissão de
16Diante da necessidade de se lidar com os efeitos perversos da criação de um grande número de novos municípios, a Emenda Constitucional nº15 (12/09/96) promoveu uma alteração na redação do artigo 18 da Constituição Federal, de modo que qualquer alteração territorial nas unidades municipais passasse a depender da realização de estudos sobre a viabilidade municipal das novas unidades, da consulta plebiscitaria da população de todos os municípios envolvidos no ato de emancipação, e da observância do período hábil, definido por lei federal, para a consecução da emancipação. Antes disso, a Lei nº62 (28/12/89) instituiu as cotas estaduais de rateio dos recursos do FPM, na expectativa de minimizar os efeitos soma zero interestaduais em torno da disputa daqueles recursos fiscais. Em 2001 foram instalados outros 54 novos municípios cujos processos de criação tiveram início antes da vigência da Emenda Constitucional nº15.17 Para uma análise pormenorizada dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte tendo em vista as mudanças no quadro federativo brasileiro, ver Souza (2001).
16
Sistematização em um projeto de Constituição a ser submetido a duas rodadas de
votação nominal em plenário.
Durante a fase das subcomissões, o tema da descentralização em favor dos
municípios foi prioritário na Subcomissão dos Municípios e Regiões; a Subcomissão da
União, Distrito Federal e Territórios foi dominada pela preocupação em garantir ao
Distrito Federal autonomia financeira e política; a Subcomissão dos Estados se
concentrou na discussão da criação de novos estados; enquanto que na Subcomissão do
Sistema Tributário e da Divisão e Distribuição de Receitas a forte presença do lobby em
favor das unidades subnacionais contrastava com a fragilidade da representação do
governo federal.
Na fase subsequente dos trabalhos constituintes, a despeito da intenção de corrigir
supostos excessos cometidos durante a fase das subcomissões, os trabalhos da Comissão
de Organização do Estado giraram em torno das questões da autonomia e da
descentralização de recursos financeiros. Durante os trabalhos da Comissão do Sistema
Tributário, Orçamento e Finanças são aprovadas propostas que implicam um
aprofundamento da descentralização tributária em prejuízo da União, sem que fossem
tomadas medidas voltadas para a redistribuição de encargos entre os três níveis de
governo e avaliados os efeitos de tais medidas sobre as relações intergovernamentais.
Finalmente, quanto à questão federativa, tanto os trabalhos da Comissão de
Sistematização quanto a fase das votações nominais em plenário foram marcados por um
17
amplo consenso construído por meio de compromissos e negociações em torno da
diretriz de fortalecimento das unidades subnacionais da federação.
No que diz respeito aos municípios, particularmente, o contexto em que
transcorreram os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte foi profundamente
influenciado pela rearticulação da ideologia municipalista, uma tradicional idéia-força18,
por parte de lideranças políticas formadas ao longo dos anos anteriores, período em que
a competição política de nível local foi preservada, não obstante as restrições que lhe são
impostas pelo caráter autoritário do regime anterior. (Abrucio 1998; Almeida e Carneiro
2002)
A distribuição horizontal dos recursos fiscais entre estados e municípios é outro
aspecto saliente do atual quadro de relações federativas no Brasil. Com efeito, a
definição dos critérios de rateio do FPE e FPM terminou por consagrar um processo
interestadual, intermunicipal e inter-regional de desconcentração horizontal da receita
tributária disponível em favor dos estados com menor renda per capita e dos municípios
menos populosos. (Gomes e Mac Dowell 2000; Rezende 2001; Serra e Afonso 1999;
Tomio 2002; Varsano 1996) 19
Os repasses dos fundos compensatórios constitucionais foram disciplinados pelas
Leis Complementares Federais de nºs 61,62 e 63. No caso dos estados e do Distrito
Federal, nos termos do Decreto-Lei nº1434, de 11/12/1975 os recursos do FPE eram
18 A propósito das origens e evolução da ideologia municipalista no Brasil do Segundo Reinado até os anos 1950, veja-se Melo (1993).
18
distribuídos de acordo com coeficientes de participação de cada unidade em função
direta de sua população e em função inversa de sua renda per capita. Tais dispositivos
foram alterados pela Lei Complementar Federal nº62 (28/12/1989), que determinou
ainda a modificação da participação diferenciada de cada região do país no total de
recursos do FPE. Além disso, de acordo com o disposto na Constituição Federal (Art.
159, II), são definidos coeficientes de participação dos estados e do Distrito Federal na
parcela de 10% sobre o IPI transferidos proporcionalmente ao valor das respectivas
exportações de produtos industrializados20.
Quanto aos recursos do FPM, 10% são distribuídos entre as capitais, 86,4% entre
os demais municípios, e os 3,6% restantes entre os municípios do interior com mais de
156.216 habitantes. A distribuição dos 86,4% correspondentes ao FPM-Interior é feita
tendo como base coeficientes de participação dos estados no total a ser distribuído entre
os municípios do interior. A partir daí os municípios são classificados por coeficientes
definidos de acordo com o número de habitantes. Os 3,6% destinados aos municípios
mais populosos do interior são distribuídos a partir da divisão do total daquela parcela
do FPM pelo somatório dos coeficientes dos municípios naquela condição e posterior
multiplicação pelos coeficientes individuais de cada município a ser contemplado. Os
10% destinados às capitais são distribuídos de acordo com o resultado da multiplicação
do FPM-Capital pelo coeficiente de cada capital e dividindo-se o resultado pelo
19 Com ligeiras modificações, foram mantidos os critérios de rateio dos fundos de participação de estados e municípios vigentes por ocasião da promulgação da nova Constituição. O texto da Constituição de 1988 (Art.161, II) remeteu para a legislação complementar a revisão daqueles critérios de rateio; o que ainda não ocorreu.
19
somatório dos coeficientes de todas as capitais. (Tabela 5) Também em relação ao FPM,
observa-se uma participação diferenciada de cada região do país no total dos recursos
desse fundo. (Tabela 6)
Finalmente, o quadro de desconcentração horizontal da receita tributária
disponível completa-se por meio do expediente segundo o qual as regiões mais pobres
do país beneficiam-se da transferência de uma parcela adicional do produto da
arrecadação do IPI e do Imposto de Renda: a região Norte recebe 0,6% da arrecadação
de cada um destes tributos; a região Nordeste 1,8%; e a região Centro-Oeste – 0,6%;
fenômeno ao qual se soma uma outra componente desse processo, qual seja, a divisão
dos gastos federais diretos em ações sociais e com a previdência social do setor privado
em favor das regiões menos desenvolvidas.
Tabela 5Origem e Divisão dos Recursos do FPM
Fonte dos Recursos: 22,5 % da receita líquida de IPI e IRPercentuais Destino Critério de Rateio
10,0% Capitais FPM-Capital multiplicado pelo coeficiente de cada capital, dividindo-se o resultado pelo somatório dos coeficientes de todas as capitais
86,4% Municípios do interior com até
156.216
FPM-Interior dividido entre os municípios de acordo com seus respectivos coeficientes de participação em cada Estado
3,6% Municípios do interior com mais
de 156.216 habitantes
Calculado através da divisão dos 3,6% do FPM pelo somatório dos coeficientes e multiplicando-se o resultado pelo coeficiente de participação decada município
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional
20 Os coeficientes de participação dos Estados e Distrito Federal, e dos municípios, respectivamente nos recursos do FPE e
20
Tabela 6Participação das Regiões nos Recursos do FPE - %
Norte 25,37Nordeste 52,46Sudeste 8,48Centro-Oeste 7,17Sul 6,52Total 100
Participação das Regiões nos Recursos do FPM - %Norte 8,53Nordeste 35,28Sudeste 31,18Centro-Oeste 7,47Sul 17,55Total 100
Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional.
Federalismo fiscal e reforma tributária em um novo ambiente econômico
A atual agenda da reforma tributária remonta ao ano de 1992 com a criação,
durante a gestão de Fernando Collor de Melo, da Comissão Executiva da Reforma Fiscal
presidida pelo advogado Ary Oswaldo Mattos Filho. Em seguida, no início de seu
primeiro mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso determina ao Ministério da
Fazenda a elaboração de um projeto de reforma tributária a ser enviado ao Congresso
Nacional (PEC 175-A/95). Em setembro de 1997, o Secretário-Executivo do Ministério
da Fazenda, Pedro Parente, apresenta à Comissão Especial da Reforma Tributária da
Câmara dos Deputados um documento com a posição oficial daquele órgão com relação
à PEC 175-A/95. A partir daí até o final de 1998, o executivo federal promove
FPM são definidos pelo Tribunal de Contas da União. Ver http://www.tcu.gov.br/Dowload/Coeficientes_2003.exe.
21
mudanças sucessivas na proposta apresentada anteriormente por Pedro Parente à Câmara
dos Deputados. Em 1999 o governo federal nomeia o Secretário da Receita Federal,
Everardo Maciel, um desafeto do relator da Comissão, deputado Mussa Demes, seu
interlocutor junto àquele órgão da Câmara. Ao final deste ano, é aprovada a proposta de
reforma tributária pela Comissão Especial da Câmara. Finalmente, em agosto de 2000, o
governo federal encaminha uma emenda aglutinativa contendo uma nova proposta de
reforma tributária à Câmara dos Deputados21. Durante todo este período em que a
reforma tributária esteve sob foco, o Executivo federal foi responsável pela elaboração
de oito propostas de reforma, ao passo que diversas outras iniciativas de emenda
constitucional com origem na Câmara dos Deputados foram apresentadas por diferentes
parlamentares.
Assim, praticamente desde a promulgação da Constituição de 1988, a reforma de
nosso sistema tributário tornou-se mais um daqueles falsos consensos que permeiam o
debate político e econômico no Brasil, já que para diferentes atores portadores de
interesses divergentes e visões distintas de nossos problemas e suas respectivas soluções,
reforma tributária é um significante com diferentes significados. (Batista Jr. 1995)22 De
fato, durante todo o período pós-Constituição de 1988, e particularmente desde 1995,
com o envio pelo Poder Executivo federal de uma Proposta de Emenda Constitucional
(PEC. 175-A) ao Congresso Nacional, a questão tributária vem ocupando um lugar de
21 “As emendas aglutinativas são aquelas que resultam da fusão de outras emendas, ou da fusão de emendas com o texto da proposição principal. Diferenciam-se das outras espécies pelo fato de poderem ser apresentadas não só durante a discussão, mas também no momento da votação das proposições principais, o que não ocorre com os demais tipos de emenda”. (Câmara dos Deputados 1995:19).
22
destaque na agenda pública nacional, sem que se tenha ao menos alcançado um
consenso entre os diferentes setores da administração federal quanto à operacionalização
das diretrizes de reforma.23
Nas condições atuais da sociedade brasileira, o desafio tributário a ser enfrentado
consiste na implementação de um programa de reformas que 1) responda aos
imperativos da nova ordem econômica internacional24; 2) dê sustentação fiscal às
necessidades de recursos por parte do setor público; e 3) que seja politicamente viável
diante dos constrangimentos derivados das variáveis federativas que operam no sistema
político nacional.
Quanto à necessidade de adequação de nosso sistema tributário ao processo de
crescente internacionalização das economias nacionais e de harmonização internacional
de nosso sistema tributário, é possível identificar diversos fatores relacionados ao novo
ambiente econômico em que está inserida a economia brasileira, que respondem pelo
caráter prioritário amiúde atribuído à revisão de nosso quadro tributário. Neste caso, as
soluções normalmente propostas apontam para a necessidade de se assegurar aos
produtores locais condições tributárias similares àquelas de que desfrutam os
contribuintes daqueles países com que nossas empresas disputam mercado. Nesse
sentido, medidas como a eliminação da tributação cumulativa ou “em cascata”, a
desoneração tributária de bens de capital e das exportações, e o fim da bitributação de
22 Em Ferreira (2002), encontra-se uma ampla análise, sob a ótica empresarial, das diversas propostas e dos processos de negociação em torno do tema da reforma tributária na última década.23 A PEC 175-A/95 foi elaborada sob a liderança do então ministro do planejamento José Serra, sem contar com o apoio da equipe do Ministério da Fazenda.
23
serviços intermediários orientam-se para a retirada de todos os gravames internos
prejudiciais à competitividade dos produtos brasileiros nos mercados nacional e
internacional. (Afonso, Araújo, Rezende e Varsano, 2000)
A propósito, um ponto particularmente importante tanto com relação à definição
de nossa carga tributária e às necessidades de financiamento do setor público - com
implicações relevantes para a questão da justiça social -, quanto com a necessidade da
busca de uma maior harmonização com as práticas tributárias internacionais, diz respeito
à legislação sobre o Imposto de Renda25. Em um contexto internacional marcado pela
ausência de mecanismos de cooperação tributária que permitissem a substituição da
adoção do princípio da residência do contribuinte pela utilização do princípio da fonte
de renda, e diante de um cenário em que os Estados nacionais sofrem os efeitos
limitadores da globalização sobre o exercício de sua soberania tributária, a elevação do
coeficiente de abertura da economia brasileira produz o desafio da necessidade da
substituição da tributação de fatores de maior mobilidade pela tributação de bases (de
incidência e tributárias) mais fixas e para a busca da harmonização internacional das
regras domésticas de tributação. De forma que, se no curto prazo, um maior grau de
progressividade e algum ganho fiscal poderia ser alcançado com um revisão das faixas e
alíquotas de contribuição, no longo prazo não há como fugir da necessidade de
24 A propósito de uma abordagem compreensiva dos efeitos da globalização econômica sobre a capacidade extrativa dos Estados nacionais, ver Valladares (2000).25 Entre os anos de 1997 e 2001, a participação do Imposto de Renda na arrecadação da carga tributária bruta foi de 15.30;17.56;17.87;16.67 e 16.91, respectivamente.
24
substituição daquela base imponível por outros tributos incidentes sobre o consumo de
bens e serviços locais, a propriedade imobiliária, dentre outros.
Em essência, as mudanças que se verificam no cenário econômico internacional
no sentido de uma maior interdependência entre as economias nacionais, demandam o
enfrentamento do desafio de se processar uma adequação de nosso sistema tributário a
um cenário econômico marcado pela expansão da mobilidade dos fatores de produção e
dos fluxos comerciais e financeiros internacionais. A esse respeito, pode-se dizer que há
um amplo consenso hoje no Brasil em torno da necessidade de melhorar a qualidade de
nosso sistema tributário por meio da eliminação da incidência de diversos tributos
cumulativos. Segundo um diagnóstico amplamente compartilhado, parte importante de
nossas distorções tributárias é decorrente do agravamento da situação de crise fiscal da
União em função tanto da transferência vertical de recursos em favor de estados e
municípios, quanto da elevação de várias de suas fontes de despesa promovidas pela
Constituição de 1988. Assim, nosso texto constitucional promoveu a consolidação de
uma situação de desequilíbrio orçamentário que, embora anterior à elaboração da nova
Constituição, agravou a crise fiscal em que se encontrava o Estado brasileiro. Em função
da perda de parcela importante de seus recursos fiscais, a União optou por uma
estratégia de ajuste que envolveu, do lado da sua receita, um aumento de alíquotas e do
25
número de contribuições sociais cumulativas (não sujeitas à partilha com estados e
municípios) que acarretaram a deterioração da qualidade de nossos tributos (Tabela 7). 26
Tabela 7Evolução da participação percentual das receitas das contribuições federais no Produto
Interno Bruto (PIB) e na Carga Tributária Bruta (CTB)Ano %PIB % CTB1991 9.29 38.571992 9.64 38.941993 10.09 38.531994 11.79 40.431995 11.70 39.581996 11.75 40.581997 12.21 42.301998 12.26 41.641999 13.65 42.822000 14.51 43.812001 15.06 43.81
Fonte: Secretaria da Receita Federal.
Outro fator que opera como incentivo no sentido da revisão de nossa legislação
tributária relaciona-se com o quadro de “guerra fiscal” protagonizado por estados e
municípios. De fato, em função da crise do padrão tradicional de políticas de
desenvolvimento regional definidas e implementadas pelo nível central de governo, ao
longo dos anos 90 verifica-se um processo de deslocamento dos incentivos ao
desenvolvimento do nível da União para as unidades subnacionais. Tem-se então a
estruturação de um padrão de interação do tipo soma zero entre os diferentes entes
governamentais subnacionais que resulta em uma intensa competição territorial por
26 A estratégia da União de recomposição de sua receita tributária por meio do recurso às contribuições é vista por alguns como um verdadeiro atentado ao nosso pacto federativo. Silva (2002) sugere que aqueles recursos também deveriam ser compartilhados com os estados e municípios a exemplo do que acontece com as receitas do Imposto de Renda e IPI.
26
investimentos responsável, sob a ótica do Estado nacional, por uma situação de
desperdício de recursos públicos. (Varsano 1997) Em relação aos estados, a dimensão
tributária daquela guerra fiscal repercute particularmente na administração do ICMS.27
Neste caso, o ponto relevante relaciona-se com a necessidade da adoção de medidas que
produzam uma maior harmonização tributária tanto no âmbito interno da federação
quanto em relação às práticas tributárias internacionais.28
Isto poderia ser alcançado mediante a introdução de alterações na sistemática de
administração e arrecadação de nossos impostos sobre o valor agregado nos três níveis
de governo: ISS, ICMS e IPI. De maneira geral, as propostas mais conseqüentes com a
necessidade de minimização da dimensão competitiva do federalismo brasileiro expressa
nos episódios de guerra fiscal e que têm ao mesmo tempo a preocupação de preservar
nossa tradição de atribuição às unidades subnacionais de governo de alguma
competência tributária autônoma, contemplam a substituição do ISS por um imposto
sobre vendas no varejo (IVV) de competência municipal, e a extinção do ICMS e do IPI
e sua substituição por um único imposto sobre o valor agregado (IVA) compartilhado
por estados e União.
Neste caso, sobre um base de cálculo comum, os fatos geradores são tributados
mediante a definição de uma alíquota básica e, segundo a essencialidade de algumas
27 A importância do ICMS, um imposto estadual sobre o valor agregado, pode ser aferida a partir de uma comparação com o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), também um imposto sobre o valor agregado, de competência da União. Para o ano de 2001 estes dois impostos foram responsáveis respectivamente pela arrecadação de 23,17% e 4,75%, de nossa carga tributária bruta, tendo alcançado o patamar de 7,96% e 1,63 % do PIB, respectivamente.28 A aprovação da Emenda Constitucional nº37 (12/06/2002) – que entre outras coisas define uma alíquota mínima de 2% a ser cobrada a partir de janeiro de 2003 sobre a base de incidência do Imposto Sobre Serviços (ISS), principal fonte de arrecadação própria dos municípios – foi um passo importante no sentido de se por fim à guerra fiscal entre municípios.
27
mercadorias, de um conjunto de alíquotas que variam em torno daquele padrão. Em
seguida estabelecem-se pares de alíquotas, estaduais e federais, sendo as alíquotas
federais uniformes em todo o território nacional e as alíquotas estaduais uniformes nas
transações interestaduais, enquanto nas transações intraestaduais admite-se um
percentual de variação em torno das alíquotas estipuladas. No caso de saída de
mercadoria de um Estado para outro, a União recolheria do contribuinte um montante
correspondente à soma da alíquota federal e da diferença entre a alíquota intraestadual e
interestadual; recolhimento esse que seria devidamente compensado no momento em
que a mercadoria ingressasse no Estado de destino, com a aplicação do princípio do
destino nas transações interestaduais. (Câmara dos Deputados, 2000)
Em relação ao segundo problema, diante das necessidades de financiamento do
setor público nos três níveis de governo (municípios, estados e União); do escopo de
intervenção estatal derivado de nossas definições legais e do pacto social que lastreia
aquela intervenção; e das limitações contributivas inerentes às características de nosso
sistema econômico, as medidas de dimensionamento da carga tributária no Brasil
dificilmente poderão ultrapassar confortavelmente os limites mínimo e máximo de ¼ a
1/3 do PIB. (Varsano 1996)29
29 Nos últimos cinco anos, a carga tributária bruta no Brasil oscilou de 29,03% em 1997 para 34,36 % do PIB em 2001.
28
Federalismo e reforma tributária
Quanto à dimensão federativa, registre-se que ao longo de todo o período
republicano, e em cada uma de suas fases, diferentes atores políticos regionais vêm
desempenhando um papel destacado nas disputas em torno das políticas nacionais. Em
verdade, “as instituições federalistas vêm a ser tentativas de equilibrar os interesses
regionais uns com os outros, como também com os do centro”.(Cintra 1974:58) De
forma que os grandes momentos de mudança do sistema político nacional no âmbito do
federalismo brasileiro coincidem com alterações importantes nas relações centro-
periferia.
Durante a 1ª República, diante de um poder central relativamente débil, os
governadores de Estado eram, de fato, os mais importantes atores do sistema político
nacional. Não obstante a função moderadora atribuída ao chefe do Executivo nacional
pelo modelo Campos Sales, na verdade a União não dispunha de poder a ponto de se
contrapor de maneira eficaz aos grandes estados da federação. O que não significa que
não possamos identificar neste período a presença de “fatores de aglutinação política”
que estarão a serviço dos interesses dos estados hegemônicos. De fato, em um contexto
em que “(...) o federalismo à outrance redundaria em prejuízo para os setores regionais
mais dinâmicos” (Cintra 1974:38), o mecanismo de promoção da centralização
necessária ao atendimento daqueles interesses foi a “política dos governadores”. De
qualquer maneira, no contexto de uma economia agro-exportadora, dependente das
29
rendas provenientes do comércio internacional, a competência exclusiva para tributar as
exportações é a expressão do poder dos estados no campo tributário.
Com a Revolução de 1930, assiste-se a um processo de contínuo fortalecimento
do poder central que culmina com a adoção do Estado Novo. Entretanto, o período que
vai de 1930 a 1945 não se caracteriza por uma completa submissão e neutralização
política das elites locais preteridas por Vargas. Em um contexto em que de maneira geral
mesmo os interventores nomeados para as governadorias nos estados eram membros das
elites locais, não faltaram manifestações de descontentamento dos diferentes grupos de
elite regionais em relação à centralização política e administrativa promovida por
Vargas, fator de deslegitimação da ditadura varguista e elemento importante na queda do
Estado Novo.
Durante a República populista, verifica-se a volta dos atores políticos regionais,
particularmente dos governadores de Estado, à cena política nacional. Decerto, aquilo
que se observa então não se constitui numa simples reprise do cenário vigente durante a
República Velha. Em decorrência da tendência de fortalecimento do poder central, tem-
se um quadro de relações federativas entre União e estados mais equilibrado do que
aquele característico da 1ª República. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento da
influência dos grandes estados possibilitou o surgimento de um arranjo federal
multipolar, com um maior equilíbrio de forças entre os estados e o poder central e
também nas relações interestaduais. Tem-se enfim um quadro marcado por maiores
30
níveis de autonomia das entidades subnacionais em meio a uma situação de maior
nacionalização do sistema político. (Abrucio 1998)
Entre 1964 e o final dos anos 1970, o federalismo brasileiro sofre os efeitos de
medidas políticas, financeiras e administrativas de cunho centralizador implementadas
pelos sucessivos governos militares. Dentre estas, o controle das eleições indiretas dos
governadores de Estado e as centralização da receita tributária no âmbito da União
foram decisivas para a consecução do objetivo de subordinar a federação às decisões e
projetos impostos pelo poder central.
Entretanto, os governos militares iriam se deparar com uma série de dificuldades
para manter sob controle as elites políticas regionais. Com efeito, a imposição de um
perfil “técnico” aos candidatos governistas à chefia dos executivos estaduais não foi o
suficiente para neutralizar por completo a influência das elites tradicionais, criando na
verdade muitos pontos de atrito para o governo federal e debilitando o partido
situacionista (Arena) em futuros pleitos eleitorais. Além do mais, na busca de um certo
grau de legitimação e apoio legislativo, a União não pôde deixar de dar respostas, sob a
forma de transferência de recursos, às elites regionais que, de seus estados permaneciam
como atores políticos influentes. (Abrucio 1998, Abrucio e Samuels 1997)
Ao longo dos anos 80, em meio ao processo de redemocratização do sistema
político brasileiro, os principais atores políticos regionais voltam a ocupar uma posição
de destaque e desempenham um papel central na mudança do regime político. A partir
de 1982, com a eleição direta dos novos governadores, configura-se no Brasil uma
31
“diarquia” que potencializa o poder político destes atores regionais. Neste período, o
ponto alto da influência dos governadores é representado pela campanha das “Diretas
Já”, que contou com o apoio dos governadores de oposição, e por sua capacidade em
fazer com que os interesses regionais repercutissem nos trabalhos da Assembléia
Nacional Constituinte. Não por acaso Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito,
ainda que indiretamente, após o ciclo de governos militares foi governador de Minas
Gerais, um dos mais importantes estados da federação.
Com a promulgação da Constituição de 1988 produz-se um novo quadro de
relações intergovernamentais no Brasil a partir do reconhecimento constitucional dos
municípios como entes federativos e com o robustecimento da influência dos estados na
dinâmica do sistema político nacional. Tendo o novo texto constitucional assegurado a
majoração das transferências constitucionais da União em favor das unidades
subnacionais, e maiores autonomia e capacidade extrativa fiscais aos estados e
municípios, os principais atores políticos subnacionais (notadamente os governadores de
Estado) passam a se comportar de maneira reativa em relação a toda e qualquer mudança
vista como nociva aos seus interesses, dificultando, quando não inviabilizando, a
adoção de reformas de alcance nacional com algum tipo de repercussão nas relações
federativas. É então que se configura aquilo que Abrucio (1998) irá qualificar de modelo
federalista estadualista, marcado pela conduta não-cooperativa dos entes subnacionais
tanto na dimensão vertical quanto na dimensão horizontal das relações
intergovernamentais.
32
A propósito, um aspecto muito lembrado nas caracterizações do processo de
transição democrática no Brasil dos anos 1980, é o fato da realização de eleições diretas
“casadas” para os cargos executivos nos níveis subnacionais de governo e o Congresso
Nacional em 1982 e 1986, antes mesmo da convocação de uma eleição “solteira” em
nível nacional (1989). Não por acaso, a Constituição de 1988, que consagrou um amplo
processo de descentralização fiscal foi elaborada e votada por parlamentares eleitos nas
duas eleições casadas anteriores, nas quais os candidatos aos governos estaduais
desempenharam um papel central. (Abrucio 1998; Abrucio e Samuels 1997; Kugelmas
2001)
Em um ambiente em que estados e municípios desempenham um importante papel
de veto players institucionais com relação a quaisquer medidas percebidas como
contrárias àquilo que se considera como sendo de seu interesse, a legitimidade
complementar/concorrente dos chefes do Poder Executivo em cada nível de governo em
um sistema federal democrático como o brasileiro; - legitimidade decorrente dos
procedimentos democráticos envolvidos em sua escolha por parte dos cidadãos de suas
respectivas circunscrições eleitorais -, permite que governadores e prefeitos interfiram
na agenda de questões tributárias dificultando a implementação de políticas nacionais
que envolvam algum ônus às unidades subnacionais de governo.
33
Federalismo e democracia
O conjunto dos sistemas políticos federais contemporâneos caracteriza-se por uma
grande diversidade de arranjos institucionais. Entretanto, em meio à heterogeneidade
existente é possível identificar um aspecto essencial a toda e qualquer forma de governo
federal. Segundo a célebre formulação de Daniel Elazar (1987) as polities federais se
constituem em uma síntese entre self-rule plus shared rule. De fato, as noções de
“soberania dual” ou “compartilhada”30 são recorrentes na literatura especializada sobre o
tema quando se trata de definir aquilo que distingue as experiências de tipo federal das
diferentes formas de Estado unitário.31 De forma que, ao contrário daquilo que se
observa nos sistemas políticos organizados sob a forma piramidal e que estão sujeitos à
ocorrência de processos de descentralização/(re)centralização da autoridade pelo mais
alto nível de governo, a não-centralização do poder político (que não se confunde com a
descentralização do mesmo) é uma característica-chave do modelo federativo de
organização política. (Elazar 1987)
30 A rigor, em experiências de tipo federativo, o atributo da soberania é uma exclusividade do Estado Federal; ao passo que as subunidades nacionais são dotadas tão somente de autonomia definida constitucionalmente. Enquanto “Soberania é o atributo que se confere ao Poder do Estado em virtude de ser ele juridicamente ilimitado (...) daí ser possível dizer da soberania que é um poder que não encontra outro acima dela na arena internacional e nenhum outro que lhe esteja nem mesmo em igual nível na ordem interna (...) Autonomia (...) não é uma amplitude incondicionada ou ilimitada de atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre certas matérias, respeitados, sempre princípios fixados na Constituição (...) Autonomia, destarte, é uma área de competência circunscrita pelo direito, enquanto a soberania não encontra qualquer espécie de limitação jurídica. O Estado Federal é soberano do ponto de vista do direito internacional ao passo que os diversos Estados-Membros são autônomos do ponto de vista do direito interno”. (Bastos 1999:284)
34
Enquanto os estados unitários podem ser definidos como estruturas baseadas
na/ou voltadas para a produção de um certo nível de homogeneidade identitárias, os
estados federais são baseados no reconhecimento de múltiplas identidades e na garantia
do governo autônomo das comunidades cujas identidades têm, geralmente, mas nem
sempre, expressão político-territorial.32 Embora hoje se reconheça que existem tantos
federalismos quantos são os Estados federais, o que dificulta sobremaneira a definição
do fenômeno do federalismo a partir da enumeração de suas características, o moderno
federalismo reveste-se de alguns traços básicos: composição plural dos entes
constitutivos; indissolubilidade do vínculo federativo; soberania da União; autonomia do
Estado-membro; repartição de competências; bicameralismo; dualidade do Poder
Judiciário33 e a existência de um tribunal de controle da constitucionalidade.34
Em conexão com esta definição, alguns aspectos das federações são centrais tendo
em vista o tratamento da questão fiscal de que este trabalho se ocupa. Em primeiro
31 O Brasil é o único país em que vigora um Estado Federal trino cujo ordenamento constitucional inclui os municípios entre os entes federados que integram a República federativa.32 A Bélgica é um exemplo do que se convencionou chamar de federalismo não-territorial. Tem-se neste caso a existência de dois conselhos culturais (representativos dos grupos de língua flamenga e francesa) compostos por membros da Câmara dos Deputados e do Senado, com poderes legislativos sobre questões culturais e educacionais relacionadas àquelas duas comunidades.33 Enquanto solução liberal para riscos democráticos, o exercício do controle constitucional por parte do Poder Judiciário em sistemas federais procura preservar a Constituição federal por meio da limitação do alcance de decisões majoritárias nos legislativos nacional e subnacionais (Arantes e Kerche 1999). Sobre o poder de judicial review da Suprema Corte norte-americana, ver Melo (2002).34 No Brasil, em resposta à propositura de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal exerce, segundo a técnica de jurisdição concentrada, o controle abstrato de constitucionalidade, pela via de ação, julgando eventual inconstitucionalidade por ação ou omissão. Segundo a técnica do controle difuso de constitucionalidade, qualquer órgão judicante, por meio da via de defesa ou de exceção, tem competência para decidir no curso de um processo comum, sem efeito vinculante, e tendo em vista a reparação ou prevenção de lesão a um direito, acerca da constitucionalidade de um ato normativo. “A via de ação tem por condão expelir do sistema a lei ou ato inconstitucionais. A via de defesa ou de exceção limita-se a subtrair alguém aos efeitos de uma lei ou ato com o mesmo vício.De resto, constata-se que os objetivos perseguidos por uma ou outra via são diferentes. A via de defesa é instrumento da garantia dos direitos subjetivos. A preocupação primeira é restabelecer a ordem jurídica ofendida, liberando alguém da sua carga ilegal, consistente na iminência de ver-se obrigado ao cumprimento de lei inconstitucional.
35
lugar, tem-se a questão das fontes de legitimidade da autoridade pública em sistemas
federais democráticos; legitimidade derivada de processos eleitorais em que os cidadãos
elegem direta ou indiretamente os chefes do Poder Executivo em cada nível de governo.
De maneira que, em nosso caso, segundo as circunstâncias, presidentes, governadores e
prefeitos dispõem de legitimidade complementar ou concorrente próprias.
Em segundo lugar, o conjunto dos cidadãos de um Estado federal (demos) situam-
se nas diferentes unidades governamentais subnacionais, conformando tantos demoi
quantas forem aquelas unidades. Assim, deparamo-nos com cidadãos-eleitores
portadores de mais de uma identidade política, conquanto complementares.
Finalmente, em uma democracia constitucional federal a Constituição nacional
fixa os limites para o exercício da soberania por parte do poder da União, instituindo
uma distribuição de competências entre uma pluralidade de centros de poder dotados de
autonomia definida constitucionalmente e coordenados entre si, ao assegurar aos entes
governamentais subnacionais a prerrogativa do exercício de soberania sobre
determinadas matérias de sua competência. (Stepan 1999)35 Nas palavras de um dos
maiores estudiosos do fenômeno do federalismo:
“A constitution is federal if (1) two levels of government rule the same land and
people, (2) each level has at least one area of action in which it is autonomous, and (3)
A via de ação já, pelo contrário, encontra-se primordialmente voltada para o bom funcionamento da mecânica constitucional”. (Bastos 1999:399)35 Na Constituição norte-americana de 1787 tem-se o modelo clássico de repartição dual de competências por meio da técnica constitucional de enunciação dos poderes da União e de poderes remanescentes aos estados. Na Lei Fundametal da República Federal da Alemanha, de 1949, expressão da moderna técnica de repartição de competências entre os entes federativos e fonte de inspiração na elaboração da Constituição de 1988 no Brasil, tem-se um modelo de repartição material de competências que estabelece a legislação exclusiva da Federação; a legislação concorrente da Federação e dos estados; e
36
there is some guarantee (even though merely a statement in the constitution) of the
autonomy of each government in its own sphere.”(Riker 1964:11)
Ou ainda, numa formulação mais recente:
“Federalism is a political organization in which the activities of government are
divided between regional governments and a central government in such a way that
each kind of government has some activities on which it makes final decisions”. (Riker
1975:101)
Ao explorar algumas das relações entre federalismo e democracia, Stepan (1999)
elabora a idéia de que os diferentes sistemas federativos podem ser dispostos ao longo
de um continuum entre federações democráticas mais ou menos restritivas do poder da
maioria (demos constraining) e aquelas federações que ampliam mais ou menos o poder
do conjunto de seus cidadãos (demos enabling), estando o Brasil localizado em uma
posição extrema no continuum demos constraining. A classificação das federações
democráticas ao longo do continuum demos constraining é feita por Stepan com base em
quatro variáveis: 1) o grau de sobre-representação da câmara territorial (Senado); 2) a
abrangência das políticas formuladas pela câmara territorial; 3) o grau de prerrogativas
atribuídas pela Constituição às unidades da federação para efeito de elaboração de
políticas; e 4) o grau de nacionalização das orientações e sistemas de incentivos do
sistema partidário.
a legislação de regras gerais; admitindo-se ainda o ingresso dos Estados-membros no domínio da competência exclusiva da Federação.
37
Se em todos os sistemas democráticos de tipo federativo existem determinados
arranjos institucionais demos constraining que terminam, em maior ou menor grau, por
limitar a regra majoritária, tais arranjos introduzem nestes sistemas elementos
consociativos da maior relevância para a análise da dinâmica da produção de decisões
relacionadas à dimensão tributária. Com relação àquelas variáveis de que se utiliza
Stepan na operacionalização de seu continuum, pode-se dizer que no Brasil: 1) o grau de
sobre-representação dos estados no Senado é o maior entre todas as federações; 2) a
abrangência das atribuições da câmara territorial é alta, sendo que o Senado opera como
câmara revisora das decisões da Câmara dos Deputados; 3) as subunidades
governamentais dispõem de muitas prerrogativas sancionadas constitucionalmente; e 4)
as clivagens regionais desempenham um papel de destaque na determinação das
orientações e nos sistemas de incentivos dos membros do sistema partidário.
Em relação à variável relativa às prerrogativas das subunidades nacionais, um dos
aspectos dos sistemas federais que respondem por seu caráter mais ou menos restritivo
do poder da maioria, as competências dos entes federados fixadas no texto da
Constituição brasileira são um elemento importante na caracterização de nosso
federalismo. A esse respeito, a Constituição de 1988, afastando-se da solução clássica
norte-americana (poderes enumerados e poderes reservados) para o problema da
repartição de competências e aproximando-se do modelo consubstanciado na Lei
Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949 (Horta 1999), define as
competências exclusivas e privativas da União (Arts. 21 e 22); as competências comuns
38
a todos os entes federados (Art. 23); as competências concorrentes da União, estados e
Distrito Federal (Arts.24,236), e as competências residuais dos estados, Distrito Federal
e municípios (Arts. 18,25,30,32), contemplando particularmente a questão das
competências tributárias de cada nível de governo. Um dado notável é que ao contrário
daquilo que se observa em outros países, onde os municípios beneficiam-se de
transferências de receitas tributárias e, excepcionalmente, têm suas competências
tributárias fixadas por atos de delegação do poder central e/ou dos demais entes
federados, no Brasil a Constituição de 1988 lhes atribui competência tributária
impositiva. (Tavares 1998, apud. Martins 1990)
Destarte, em meio a um sistema federativo cujos dispositivos institucionais
operam fortemente no sentido tanto da restrição do poder central quanto do poder do
demos, uma importante variável derivada da institucionalidade de nossa ordem
federativa que condiciona as chances de implementação de uma ampla reforma tributária
no Brasil relaciona-se com o imperativo de que quaisquer mudanças nas prerrogativas
fiscais de estados e municípios dependem da aprovação de Emenda Constitucional, o
que exige um quorum de votação elevado em um parlamento em que as regiões e os
estados que se beneficiam dos mecanismos de transferência horizontal inter-regional e
interestadual estão fortemente sobre-representados tanto no Senado quanto na Câmara
dos Deputados.36 Assim, a dimensão competitiva de nosso federalismo, associada aos
36 A propósito da qualificação da Câmara dos Deputados como uma “assembléia dos estados” e da defesa da introdução de mudanças no sistema eleitoral brasileiro sob a inspiração do modelo alemão, como forma de minimizar as dificuldades oriundas de nossa estrutura federativa para uma orientação nacional da ação de nossos deputados federais, ver Jobim (1991). Segundo Góes, não são a estrutura federativa nem a eleição dos membros do Congresso Nacional a partir de compromissos
39
traços de consociativismo presentes em nosso ordenamento federativo representam um
desafio às propostas de alteração de nosso quadro tributário justamente na medida em
que a propriedade, comum aos sistemas federativos, de comportarem a coexistência de
múltiplas identidades político-territoriais entre seus cidadãos, terminam por dar margem
nas circunstâncias atuais à emergência e cristalização de rivalidades entre os entes
federativos que redundam na dificuldade, quando não na impossibilidade, de se alcançar
um certo nível de coordenação tributária (dificuldade que se manifesta nos vários
episódios de guerra fiscal envolvendo estados e municípios com relação à atração e
localização de investimentos), e em disputas do tipo soma zero em torno da distribuição
dos recursos fiscais; o que se configura, obviamente, em claro óbice à uma revisão das
linhas atuais de nosso federalismo fiscal.
No campo da Ciência Política contemporânea, o fenômeno das políticas tributárias
tem sido abordado por autores que procuram chamar a atenção para a especificidade de
sua(s) arena(s) decisória(s). Baixa visibilidade; maior dificuldade de serem utilizadas
nas disputas eleitorais; grande complexidade técnica; e grande importância do papel
desempenhado pelo consenso de especialistas são elementos que definiriam aquela
especificidade. (Beam, Conlan e Wrigtson 1990; Peters 1991)
Entretanto, a dinâmica da evolução da tramitação da questão tributária na agenda
pública brasileira desde o início dos anos 90 aponta para a alta visibilidade desta matéria
regionais e com grupos de interesse os fatores responsáveis pela debilidade da orientação nacional de deputados e senadores no Brasil, e sim “... a falta de instituições conversoras (sobretudo partidos políticos), capazes de converter motivações localistas e singulares em preocupações com o país, no conjunto de seus problemas...” (1991:169). Para uma defesa da
40
e a dificuldade de superação dos vetos derivados de nossa estrutura federativa a despeito
de um certo quantum de consenso entre os especialistas em torno do assunto. De uma
combinação de alta complexidade técnica e alta visibilidade deste issue resultou a
configuração de uma arena decisória marcada por não-decisões, incrementalismo e
paralisia decisória em relação a certos temas tidos como fundamentais no contexto de
uma ampla reforma tributária. (Azevedo 1999; Azevedo e Melo 1997) De maneira que,
mesmo involuntariamente, o resultado até agora alcançado foi a estruturação de um
processo decisório coerente com a defesa da idéia de que há uma natural lentidão a ser
preservada na evolução dos sistemas tributários, evolução essa cuja lógica não admite
descontinuidades e que se fundamenta na aversão a riscos tanto por parte do Estado
quanto por parte da sociedade. (Varsano 1996)
Atualmente, não obstante a existência de um consenso em torno da necessidade da
implementação de uma reforma de nosso sistema tributário, deparamo-nos com a
dificuldade de se promover uma reforma capaz de produzir um sistema tributário de
melhor qualidade e que seja politicamente viável diante de um conjunto de restrições
oriundas da estrutura federativa vigente. De fato, assim como acontece nas polities
federais em geral por comparação às estruturas unitárias, ceteris paribus a proliferação
de veto players induzida pelas características institucionais do Estado federal brasileiro
promove maior estabilidade política, diminuindo as possibilidades de alteração do status
quo (Tsebelis, 2002). Nesse sentido, depois de anos de discussões em torno da
adoção do princípio consociativo em relação à representação dos estados tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, ver Reis (1993).
41
concepção de reforma tributária que melhor nos atende, tudo indica que ainda estamos
longe de poder implementar medidas que produzam maiores alterações no modelo de
federalismo fiscal consubstanciado na Constituição de 1988, produzindo um grande
impacto na autonomia tributária dos entes federais e no atual sistema de partilhas e
transferências tributárias entre União, estados e municípios. (Rezende 1996)
Contudo, em que pesem as dificuldades anteriormente mencionadas a propósito da
reforma de nosso federalismo fiscal não se pode perder de vista o fato de que nos
últimos anos, particularmente ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando
Henrique Cardoso, em vez de um quadro de completa paralisia decisória o que se
observou foi que o governo federal patrocinou a implementação de uma série de
medidas que fizeram com que o status quo do federalismo fiscal brasileiro se afastasse
sobremaneira da situação que nos foi legada pelo texto original da Constituição de 1988.
Assim, durante a década de noventa a criação do Fundo Social de Emergência (FSE),
depois Fundo de Estabilização Fiscal (FEF); a aprovação da lei Kandir; a ação
disciplinadora e a privatização pelo governo federal de bancos estaduais; a
recomposição da receita tributária da União por meio do instituto das contribuições; a
implementação de políticas voltadas para a descentralização de encargos em diferentes
áreas de políticas públicas; e finalmente a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF) significaram a introdução de profundas alterações nas relações entre os diferentes
níveis de governo.
42
Por mais que fatores de natureza conjuntural possam ter contribuído para que o
governo federal fosse capaz de contornar os diferentes pontos de veto à determinadas
políticas com impacto sobre a estrutura federativa vigente (Abrucio 1998), há que se
destacar a presença de certos traços institucionais mais permanentes que fizeram com
que o sistema político brasileiro se mantivesse, no que diz respeito às iniciativas
legislativas mais diretamente relacionadas com a problemática das relações entre os
entes federativos, longe do quadro de paralisia que se poderia prognosticar como
decorrência da institucionalidade de nosso federalismo.
Assim, ao contrário da tese de que o comportamento dos membros do Congresso
Nacional é sempre uma variável dependente exclusivamente de uma estrutura de
incentivos na qual os interesses dos estados em que foram eleitos e a posição dos
governadores com respeito às diferentes políticas são as componentes dominantes, há
evidências de que os papéis de destaque desempenhados pela Presidência da República e
pelas lideranças partidárias no controle da agenda no âmbito do Congresso Nacional são
capazes de contrabalançar os incentivos imediatamente decorrentes da estrutura
federativa do país na orientação legislativa de nossos deputados federais e senadores.
It is clear, thus, that there is no indication that governors are capable of
controlling their state’s congressional delegations beyond party lines. That states play a
role in Brazilian politics is a truism given that the country is a federation and
congressional districts are defined by state borders. Yet, that this role is excessive, that
is prevents the government from governing and obtaining stable, partisan legislative
43
support is, at the minimum, a myth that finds no support in empirical evidence”.
(Cheibub, Figueiredo e Limongi 2002:12)
Mais ainda, mesmo no âmbito dos estados, há grande diversidade nas relações
entre os governadores de Estado e as assembléias legislativas. Na verdade aquelas
relações nem sempre se conformam à imagem de um “ultrapresidencialismo estadual”
que relega o legislativo estadual à posição de órgão homologatório de decisões do Poder
Executivo estadual. (Santos 2001)
Considerações finais
A dinâmica do processo histórico de criação da federação brasileira foi muito
distinta daquilo que se observa no caso norte-americano. Enquanto lá o propósito inicial
dos founding fathers era a união de entidades até então soberanas, ou a instituição de
uma coming together federation, no Brasil o propósito foi a manutenção da coesão e
preservação das fronteiras de um vasto território por meio da criação de uma holding
together federation. (Stepan 1999)
Entretanto, as discussões acerca da questão do federalismo no século XIX e sua
implantação no Brasil a partir de 1891 sofreram influências da experiência anterior de
construção da federação nos EUA a partir de sua independência ao final do século
XVIII.37 Contudo, muito mais que os autores d’O Federalista, especialmente Hamilton,
37 Para uma discussão relativa à especificidade da Revolução Americana e do sistema federal dela decorrente, ver Soromenho-Marques (2002).
44
críticos do modelo confederativo ou de federalismo descentralizado (Riker 1964;1975) e
defensores da fundação da federação ou de um federalismo centralizado a partir da
constituição de um centro de poder cujas prerrogativas teriam como contrapartida a
limitação da soberania das unidades subnacionais participantes do pacto de fundação do
Estado federativo norte americano e a criação de um quadro de soberania compartilhada
entre a União e os estados, a principal fonte de inspiração dos partidários da federação
no Brasil do século XIX foi Thomas Jefferson, com sua defesa intransigente da
autonomia dos estados. (Carvalho 1998)
A par do reconhecimento de que
“...tivemos União antes de ter estados, tivemos o todo antes das partes...”. “não
somos uma federação de povos até ontem separados e reunidos de ontem para hoje.
Pelo contrário, é da União que partimos. Na União nascemos. Na União se geraram e
fecharam os olhos os nossos pais. Na União ainda não cessamos de estar” (Rui
Barbosa, apud Torres 1961: 20,22);
o fato é que historicamente a defesa do federalismo sempre esteve associada à
idéia de autonomia dos entes subnacionais presente no legado jeffersoniano.
Daí decorre o realce da dimensão competitiva presente nas relações
intergovernamentais ao longo da evolução do federalismo brasileiro; muito embora,
assim como em outros contextos federativos, a estrutura das relações
intergovernamentais no federalismo brasileiro envolva uma combinação de competição
e cooperação entre suas unidades constitutivas, sendo que sua dimensão cooperativa
45
expressa-se claramente nas transferências constitucionais verticais da União em favor
das unidades subnacionais e dos estados em favor dos municípios; no sistema de
transferências compensatórias horizontais consubstanciadas nas regras de rateio dos
recursos do FPE e FPM entre estados e municípios, respectivamente; na fixação
constitucional da competência da União para “elaborar e executar planos nacionais e
regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social” (Art. 21,
IX); na possibilidade da União definir complexos geoeconômicos e sociais e de articular
suas ações de maneira a alcançar seu desenvolvimento e a redução de desigualdades
regionais (Art.43); na definição de um mínimo de 3% da arrecadação de IPI e Imposto
de Renda para aplicação em programas de financiamento do setor produtivo das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, assegurando-se ao semi-árido nordestino metade dos
recursos destinados à região (Art.159, I, c); e na manutenção, pelo prazo de 25 anos, da
Zona Franca de Manaus (Art.40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).
(Horta 1999)
Se no longo prazo a evolução do federalismo fiscal no Brasil aponta para a
redução da autonomia tributária dos entes governamentais subnacionais por meio da
adoção de mecanismos de coordenação das políticas tributárias em toda a federação, a
reforma institucional do federalismo fiscal no Brasil na atualidade não pode prescindir
da busca de um certo equilíbrio entre autonomia e coordenação tributárias.38 Autonomia
38 A despeito de processos relativamente recentes de criação de novos Estados Federais, observa-se nas federações como tendência de longo prazo o fortalecimento do poder central. O surgimento do federalismo cooperativo, que pressupõe uma significativa intervenção do poder central em áreas antes restritas à atuação dos Estados-membros (e dos municípios, no caso brasileiro), é expressão da crescente ascendência da União em detrimento do poder autônomo dos demais entes
46
tributária entendida, aqui, não enquanto ausência de restrições legais ao ajuste do lado
das receitas, não como autonomia na concessão de vantagens tributárias, mas como
autonomia no exercício da política fiscal pelo lado do gasto público. (Rezende 1996)
Em uma federação democrática organizada sob inspiração do modelo federalista
anglo-saxão, situada em um país marcado por importantes desigualdades regionais como
o Brasil, deparamo-nos com um duplo dilema: primeiro, trata-se de se assegurar a
autonomia tributária aos diferentes níveis de governo, ao mesmo tempo em que não se
abre mão da busca de mecanismos de coordenação vertical e horizontal de suas
competências tributárias em âmbito nacional. Segundo, diante de importantes níveis de
desigualdades regionais, há que se atentar para um trade-off entre a autonomia tributária
e a autonomia financeira e política dos entes federados e avançar no sentido de se
assegurar um certo equilíbrio entre a simples repartição de prerrogativas tributárias entre
os diferentes níveis de governo e a adoção de medidas que garantam sua autonomia
financeira por meio de um sistema de transferências compensatórias. (Afonso, Araújo,
Rezende e Varsano 2000; Rezende 2001; Varsano 1996)
Em um momento em que mais uma vez a questão da promoção de uma reforma
tributária volta à cena política nacional, não há como deixar de lado a necessidade da
busca de mecanismos de coordenação tributária entre os diferentes entes federais que, à
custa de restringir até certo ponto a liberdade de atuação dos governos subnacionais em
federados. No Brasil, segundo Raul Machado Horta, a Constituição de 1934 é expressão da transição do federalismo dual para o cooperativo em função do disposto nos artigos 140 e 177, relativos à participação da União no combate às grandes endemias e no combate aos efeitos das secas.
47
termos de incentivos tributários, permitam minimizar as perdas decorrentes da dimensão
competitiva mais exacerbada de nosso federalismo.
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