Felicidade Nao Tem Cor

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  • 5/17/2018 Felicidade Nao Tem Cor

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    JULIO EMiLIO BRAZFelicidade nao tern cor

    2" EDIC;:AO

    IL U ST R ACOE S OD IL ON - MORA ES3 2 ' I M PRES SAO

    , = 11 1 Mo de rn a'>

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    BLOG SO LlVRINHOS

    http://solivrinhos.blogspot.com

    Para Ruth de Souza , . ,alguem que sempre me emociona.

    Sumario

    Redac; :ao6

    Maria Mario11

    Assim como somos18

    http://solivrinhos.blogspot.com/http://solivrinhos.blogspot.com/
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    Branco e born?22

    Me espera 18.ora!27

    Branca31

    Em busca de Michael Jackson34

    Teimoso demais37Sobe e desce

    41Papo-cabeya

    46Adeus, Fael

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    Redac;ao

    A sala de brinquedos era pequena. Pra falar a verdade,continua sendo. Quando todo mundo ficava quietinho, davapra ouvir as meninos e ainda mais as meninas falando nasala ao lado, maior, cheia de mesas e cadeiras, onde, quasetodos as dias, eles vinham estudar. Estudar. Aprender. Brin-car. Falar. Falar. Falar ...Como falam as crlancasl ...Eles vinham de todos os lados. Com dinheiro. Sem dl-

    nheiro, Quietinho. Bagunceiro. Inteligente. Nem tanto assim.Menino lourlnho, Menina pretinha. Menino com cara de chi-nes. Menina de bochechas vermelhinhas iguaizinhas, iguai-zinhas aquslas da minha vizinha.Tinha crianca de tudo quanta era jeito.Filho de feirante.Filha de professor.Filhos de gente importante.Os quatro mhos espertos do contador.Uma criancada brincalh6na e daquelas bern animadas, de

    dar gosto de se ver.Born, e bern verdade que, de vez em quando, eles abusa-

    yam e a dona Evangelina, santa mocinha na graciosidadeora severa, ora brincalhona, de seus vinte e poucos anos,perdia a paciencia,Nada de bater, claro, que ela nao era disso. Quando

    muito, ela gritava aqui, agitava 0 dedo ali , puxava os ocu-6

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    los de aros redondos e bern grandes para a frente e, de-pols, para tras,

    Minha nossa!Quando ela puxava aqueles 6culos para tras ... Ah, quan-

    do ela puxava aqueles oculos para tras ...Nem quero contar.Puxa eu sinto saudade das caras e bocas da dona Evan-

    gelina. Pra falar a verdade, eu sinto saudade de todo mundo.E , de todo mundo.Nao acredita?Pois pode ir tratando de acreditar. Eu nao esqusco de ne-

    nhum. Gada rostinho. Gada jei tinho maroto de falar e de olhar.Mesma as palavrinhas ruins que um au outro me dizia detempos em tempos serviram pam me deixar com raiva oupara me fazer esquecer esse ou aquele ..Nao e pra me gabarnao, mas eu tenho um eoracao bern grande pra compreen-der e pra aceitar certas coisas na vida.

    Tenha todo mundo aqui dentro. Gada rostinho . .Cada nome!E tinha uns ate bern engrac;:ados. Cada historinhal Sim, porquecada urn deixou a sua por la....entre as paredes daquela salagrande .... la fora ou por aqui, presa num brinquedo, abando-nada numa roda solta de carrinho, no nome rabiscado na bar-riga ou na perna de uma boneca ... Nao na rnlnha, que eu naodava essa confianca toda ... e nem era tao requis itada assim.

    Bom, sendo sincera, mas sincera mesmo, ate que eu tam-bern nao era ta muito procurada pelos meninos e meninasda sala grande. Sendo ainda mais sincera, eu ficava maislargadinha do que as minhas vizinhas, muitas vezes sozinhaou me apegando as poucas rnaos ..aquelas rnaos bem pe-quenininhas, que vinham me procurar.

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    Antigamente eu ficava umpouco chateada com isso:"0 que as outras tem que eunao tenho?"Que coisa!A gente ia levando, e agora,pensando bern, mesmo aque-les rostinhos que nao me da-vam tanta atencao assim mefazem uma falta ... Saudadedanada!

    Volta e meia, estou pen-sando neles e, quandopenso neles, lembrodo Fael e da nossaaventurinha.

    Aventurinha ou aventu-razinha?

    Tern importencie?Pra mim, nao!Pra mim vai ser sempre

    aventurinha, aquela viagempequenininha mas inesquecr-vel para alern das paredes co-loridas de nossa salinha.

    Fai aquela redacao, E , foisim. Comecou com aque-la redacao que a donaEvangelina pediu pra to-

    dos fazerem. Sei que foi8

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    sem querer, que ela nao tinha a Intencao de levar as coisaspra aquela direcao. Mas foi pra 18 .que 0 Fael levou a reda-~EIO dele. "0 que eu quero ser quando ereseer."

    Eu lembro dela direitinho. Palavra ap6s palavra.Nao era grande. Eu nao ouvl tudo. e bern verdade, mas 0resto na o devia ser muito diferente do que deu pra ouvir quan-do eu espichei 0 ouvido e ele disse ...

    Eu queria ser branco. Se eu fossebranco, ia ser diferente. Todomun-do ia gostar da gente. Eu ja faleipro meu pai que 0Michael Jackson

    sabe como a gente faz isso. Papaiachou engrar;ado. A mae tembem. Dis-

    se que 0Michael Jackson e bobo echato, mas eu nao acho ele boboe chato, nao. Ele foi e sabido.

    Agora que ele e branco todomundo gosta dele. Nem im-

    plica com a gente.Ninguem oiz coisefeia pra gente.

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    Como e que a gente fica branco? Vou perguntar ao CidBanda/heira. Ele tem umprograma na Radio Roda- Vivae s6toca Michael Jackson. Ele ate ja deu 0endereco do MichaelJackson pra gente, mas euperdi. Voupedir pra ele denovo.Eu cuero ser branco.Todo mundo riu muito. Implicaram ainda rnais com ele. A

    dona Evangelina ficou olhando pro Fael sem saber 0 quedizer e 0 que tazer. Ela mesma ficou com cara de culpadaporque costumava chamar 0 Fael de "escurinho". Aposto queela ja estava arrependida de ter pedido uma redacao aosalunos. Dava pra ver pe la cara dela tarnbern.E, nao parecia ser um assunto tao preocupante assim ...

    Todo mundo ri u muito e zombou ainda mais do Fael de-pois daquela redacao. Alguns chegaram ate a ir mais lon-ge. Nao largavam do pe dele, implicando, mexendo, repe-tindo aqueles ape lidos e aquelas brincadeiras que tantoaborreciam Fael.

    Fiquei com pena dele.Eu sabia muito bem a que ele estava sentindo. Fael era

    negrinho como eu. E, eu sabia muito bem pelo que eleesta-va passando. Tarnbem tlnha la meus problemas, coisas as-sim como passar quase a tempo inteiro comigo mesma, nofundo da caixagrande, vendo aquelas maozinhas pegandoas outras bonecas, as lourinhas e de bochechas vermelhi-nhas, deixando que eu ficasse mais e mais sozinha, pen-sando em como dol a soiidao.

    Machucava.Sempre machuca ser deixado de lado.E , eu sabia muito bern 0 que ele sentia,

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    Maria Mario

    Quando atquern me levou pra escola, eu lembro bem dacara da protessora que me recebeu:- Uma boneca preta?! Onde [a se viu boneca preta?!Eu fiquei muito aborrecida e ate me deu vontade de dizer:Alto Ic~!Preta, ruio! "Negrinha" va te, mas preta .. . eh, pre-

    ta nao!A pessoa que tinha me levado ainda tentou argumentar.- Que e que tem?E eu tarnbern disse:E ! 0que e que tern? Boneca neo pode ser negra, niio?Tern que ser tudo lourinha? Por que?

    . Mas nao adiantava. Duvido que aquela protessora ou-visse e, se ouvisse, quem garante que ela saberia me daruma res posta?

    - N E lO sei nao ... Ninguem g08ta ...Acabou que ela tambern nao deu nenhuma boa resposta

    pra pessoa que me levou pra escola ...Fui pro fundo da caixa grande cheia de brinquedos. Rara-

    mente safa de la. De vez em quando, "para pegar um 501zi-nho" - como costumava dizer a professora que tomava contada saJa de brinquedos -, eu era colocada numa prateleira,do lado de fora; talvez com a esperanca de que alquern mepegasse pra brincar.

    Algumas vezes dava certo; outras nao.Que fazer, nao e mesmo?

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    ao podemos obrigar ninquern a brincar com a gente. Eume conformava - alias, eu sempre me conformo - e espe-rava. Ficava al i, quietinha, os olhos sempre esperancosos,brilhantes de ansiedade sempre que alquern - menino ournenina, tanto fazia - se aproximava e procurava algum brin-quedo na caixa.Me leva! Me leva!Eu pedia, mas qual nada, ninquem ouvia!Eu acabei virando a "boneca preta" com quem ninquern ou

    muito pouca gente queria brincar. Aquela que ficava abando-nada no fundo da caixa ou num canto de uma das prateleiras.

    Nao tenho certeza, nao, mas acho que foi isso que fez 0Fael se interessar por mim. Sabe, eu acho que posso atedizer que tenho certeza. E , tenho sim.

    Foi todo aquele abandono em que vivfamos - eu na prate-leira, eele, no fundo da sala grande - que nos aproximou .Ele era um menino t riste. Nao e brincadeira, nao. Fael era

    um negrinho meio magrinho, . de olhos grandes e labios gros-sos e vermelhos. Por causa dos olhos gran des e muito bran-cos alguns garotos - principalmente 0 Rornaoztnho - achamavam de "Zoiao". Outro apelido entre os tantos comque ele era obrigado a conviver.

    Quanto mais ele reclamava e ficava aborrecido, mais elesrepetiam:

    "Zoiao.!""Neqao!""Pele!""Picole de astalto!" (Porque ele era bem pretinho mesmo.)"Macaco!" (Esse dora de verdade, e samente 0HomaozinhoL gostava de usa-lo, porque era um menino danada de malvado.)12

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    "Anu!"E um monte de outros apelidos, sempre mexendo com

    algo que Fael reclamava muito. Fael vivia reclamando queera negro e que, por isso, ninquern brincava com ele. 0 queele nao notava era que nao eram os outros, mas principal-mente ele que se afastava, que se importava muito com 0fato de ser negro. Havia outros - outros nao tao negrosquanto ele e que gostavam de dizer que eram "mulatinhos","escurlnhos", "pardinhos" e outros "inhos" ate engrac;ados-,mas apenas ele reclamava, apenas ele encontrava dificul-dade em brincar e se divertir com os colsqas.S6 que ele nao notava.Mesmo quando estava jogando bola com os outros garo-

    tos (e como ele gostava de jogar bola!), bastava alguem gri-tar urn daqueles apelidos que 0 Rafael (esse era 0 nome

    dele) ia encolhendo, murchan-do, murchando, ate desapa-recer pelos cantos.

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    IEleacabava na salinha dos brinquedos, olhando pra mim.Depots de algum tempo, depois que ele comecou a se sen-fir como urn velho conhecido ou a perceber que eu era umaboa ouvinte (nao tinha mesmo nada pra se tazer naquelasala alern de esperar que alquern aparecesse para brincarcom a gente), Fael tarnbern passou a falar. Quer dizer, re-damava mais do que falava.Dizia que nao gostava de ser preto.Repetia os apelidos de que nao gostava e pelos quais todo

    mundo gostava de charna-lo.IDiziaque nao entendia por que Romaozlnho implicava com

    ele daquela maneira e, quando estava rnais revoltado, che-gava a charna-lo de "paraiba chato".lEu cheguei a pensar em Ihe dizer uma ou duas palavrl-

    nhas sobre algo chamado "preconceito", mas deixei pra la,pois ele nao la ouvir mesmo.Como eu disse, sernpre fui uma boa ouvinte e ficava la,

    assim, como quem nao quer ia nada, Bern, na verdade, osoutros e que nao queriam nada comigo, entao eu ouvia.

    Coltado do Fael!Tinha vezes em que eu achava que ele vivia fazendo tern-

    pestade em copo d'aqua, mas daqueles copos bern peque-nos e para tempestades bemexageradas. Outras vezes, noentanto, eu chegava a conclusao de que ele tinha urn poucode razao. Nos, as bonecas de pano bern pretinhas, temosurn senso de observacao bern aqucado,o Homaozinho gostava de rnexer com ele, talvez porqueFael se aborrecia multo quando a incomodavam ..Nao era 56pelo prazer de ve-lo chateado, mas tambern porque Fael jo-gava bola rnelhor e era sempre chamado parajagar, enquanto14

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    o Hornaozinho tinha que ficar insistindo para entrar num ounoutro time.

    Mas t inha uma outra coisa ainda: Fael aprendia depressa,escrevia direitinho e, por isso, v ivia recebendo elogios dadona Evangelina. Era por grandes e pequenos motivos ..Erapor tantos grandes e pequenos motivos.

    Volta e meia, Fael aparecia urn pouco mais triste. Eu J asabia e, se nao sabia, pelo menos suspeitava 0 que t inhaacontecido.

    Tinha sido 0 Homaozinho.o Hornaozlnho e 0 apelido.E, 0apelido 0deixava daquele jeito. Amuado, abatido, maisescondidinho no fundo da sala de brinquedos. Abracado aspernas, 0 queixo apoiado nos joelhos, aquela vontade dana-da de forte de chorar. Uma raiva ainda rna is forte quandouma laqrirna escorr ia dos olhos.

    Ele nao gostava daquele apelido. Carvac lDe todos, era 0 que Fael mais odiava.Eu vivia tentando console-to:Uga nso, bobo! Apelido e coisa de gente mal-educada!Cerveo? 0que e que tern ser csrvtio?Cerviio nao aquece?Quem ruio gosta de um cetorzinno de vez em quando, as-

    sim... assim... Assim quando fica muito frio? Quem? Quem?Larga mao de ser bobo, s6! Voceniio veque, quanto mais

    voce se importar com um apelido, mais eles VaGficar dizen-do e repetindo 0 bendito ape/ido?Quem diz que ele me ouvia?Por isso e por nenhum outro mctivo, os outros meninos _

    e algumas meninas tarnbern - mexiam tanto com 0 Fael,

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    Tlnha 0 Birisco, comprido e magro como urn rnacarrao, 0Japa, urn baixinho que era nissei e ficava muito doido quan-do 0 chamavam de "Japa", e 0 Pitaluga, um gordo enormeque nem ligava quando 0 chamavam de "Holha-de-Poco".

    E'lesmexiam mais. Eles impllcavarn sempre.Apenas 0 Cera nao mexia ou implicava com 0 Fael , Pra

    falar a verdade, ele era outra vltlma das brincadeiras e impli-cancias dos outros meninos e meninas, e eu acho que eraisso que os tornava amigos.o nome do Cera era Geraldo, mas na escola nlnquern 0conhecia por outro nome que nao fosse Cera. Era "Cera"porque 0 Geraldo nao gostava de tomar banho, e algunsmeninos um dia chegaram dizendo que ele andava com osouvidos cheios de cera. Ele brigou, reclamou, e 0 inevitavelaconteceu. 0 apelido pegou.o fato de serem vftimas de seus apelidos deve ter aproxl-made os dois, e nem um nem 0 outre tinham muitos amigosalern de si mesmos ou um ao outro. Alern de mim, 0Fael naoconversava com outras pessoas. Nao tanto quanto conver-sava comigo e com 0Cera.

    Era ele, 0Cera e eu, mas apenas eles dais falavam. Cla-ro, apenas 0 Fael conversava comigo. Bem que ele tentouconvencer 0 Cera a fazer 0 mesmo, mas quem diz que 0Cera topou?

    "Falar com uma boneca, Fael? T8.doido? Boneca e coisade menina? Eu sou homem!"

    Born, nao fazia diferenca, Eu s6 ouvia e, quando falava,era Fael que nao ouvia. A gente se entendi.a assim mesmo.

    Era ate born que fosse assim.Ja pensou seele pudesse me ouvir?

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    Acho que Fael nao gostaria. Ele ia ouvir que eu 0 achavameio bobo por se preocupar tanto com a cor da pelee iaouvir ainda mais algumas coisinhas.

    Que nada!Eu nao ia ter coragem.A quem voce este querendo enganar, Maria Mario?Eu nao ia ter coragem de magoar aquele coracaoztnho

    tao confuse e tao machucado. Nao ia mesmo.Par lsso, eu preferia ouvir. Fazia bem pra mim e pra ele.

    Pelo menos a gente nao ficava sozinho.

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    Assim como somos

    Fael de vez em quando falava da famflia. Pra dizer a ver-dade, mas verdade verdadeira mesmo, ele falava muito dafamilia.

    Nao sel se devia tlcar contando essas coisas por ai, masele nao pediu silencio, nao disse nada sobre eu contar ounao para os outros.Ah, ele nao se importa, ruio ...Bom, como eu estava dlzendo, Fael tinha uma familia pe-

    quena. Era ele, a mae e 0pai. Nem avo ou av6 ele tinha ..Eras6 as tres,

    Fael era filho unieo e os pais se preocupavam muito comele, ainda mais com a fato de ele ser um menino que prefe-ria f icar sozinho. E, elies tarnbem tinham reparado., que pai lque e pal repara logo, logo essas coisas, mesmo trabalhan-do tanto como as dais trabalhavam.

    Eles eram feirantes .. a pal e a mae do Fael. Os dotsti-nham uma grande barraca de frutas. "A maior da tetra", comogarantia Fael , com orgulho.

    Dona Juliana era grande. Nao gorda, apenas "grande",como dizia 0 Fael antes que eu comecasse a acrescentarmuitos qui los a imagem de sua mae. Tinha um sorriso largoe de dentes muito bran cos e brilhantes. as labios grossoscomo 0 do pai dele, seu Gilberta - 0 Gil da Banana.

    Mais apelido pra aborrecer 0 Fael. Ele fechava a caraquando os amigos do pai 0 tratavam por outro apelido, urn18

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    apelid_ogostoso e car inhoso, mas que, por raz5es que to-dos nos conhecemos, 0deixava tremendamente contrana-do. Que apelido?

    Ba-na-ni-nha!Uai, ele nao era 0 filho do Banana?o seu Gilberto, esse sim, era grande.Grande, gordo e sempre mais gordo, e dernaos enormes. Sorria facil e sorria fran-co. Muita gente no bairro 0 conheciada televisao, Nao, ele nunca trabalhouna novela das oito. Mas aparecia natetevisao, principal mente no Car-naval, pois 0 seu Gilberto, orgu-Ihoda sua rua, era 0 diretor debateria da escola de sambamais famosa do bairro.

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    Eu tarnbern dou os meus gingados e requebrados por aquimesrno, dentro da caixa, com os outros brinquedos, e seireconhecer urn bom sarnbista quando vejo um. Eo seu Gil-berto, ou 0Gil da Banana, era sambista dos bons.Mesmo com aquele tarnanhao todo, 0 homem sambavatanto ou mais do que a dona Juliana. 0 que? Voces pen-

    saram que ela nao ia? la, sarnbava e participava de tudona escola.De vez em quando, ouvindo Fael falar dos dois daquela

    maneira orgulhosa, mas com 0 rostinho triste,eu nao con-seguia entender como pais tao alegres podiam ter urn f ilhotao [ururu,

    Era em tats horas que euficava morrendo de raiva de mimmesma por nao conseguir me comunicar com ele.Puxa, eu queria perguntar tanta coisa ...Como nao dava, eu f icava ouvindo. Ouvindo e sentindo

    pena dele.Os pais tarnbern tinham notado a tristeza interrrunavel do

    Fael, e ele me disse que j i l . tinha ouvido os dois conversandosobre arranjar um irrnaozinho pra ele.- Como e que eles vao tazer isso, Maria? - perguntou a

    Fael com a cara rnais inocente do mundo.Pronto! Eu sabia que ia sobrar pra mimiVocenao sabe que e teio ficar ouvindo a conversa dos ou-

    tros, menino?, desconversei. Bobagern, ele nao ouviu mesmo.Ele nao se entusiasmou rnuito com a ldela de ter um ir-

    mao. Acho que, mesmo com tada a atencao, as pais delenao perceberam que 0 problema dele nao era solidao.A mae dele de vez em quando percebia alguma coisa,

    que mae e bicho danado de observador.20

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    Ela estranhava nunca ter sido chamada para uma reuniao? e pais e p:~fessores na escola. Fael nunca avisava quandora ter reun~ao. Reclamava de na o conhecer outros amigosdo Fael alem do Cera. Fael nao tinha. Sentia que Fael naogo~tava mui to quando ela encontrava um ternpinno e ia leva-1 0 aescola. Fael se aborrecia porque os outros meninos emeninas riam deles e ate diziam coisas feias sobre ela.

    DonaJuliana cornecou a tazer perguntas que Fael naoresp~ndia ou nao respondia direito ..Eu fico meio sem jeitode dizer que 0 Fael muitas vezes mentia.

    Ela ~ao era boba. Nao dizla nada, mas sentia que tinha alqu-rr:_acorsa errada. Perguntava com cuidado, assirn como quemnao quer nada, so de vez em quando, pra nao assustar ouaborrecer. Perguntava tarnbern ao Cera, mas 0Cera, medrosocomo a propria desconfianc;:a, fugia ou tingia. Nao dizia nada.Certa rnanha, sentado com a mae, Fael perguntou:- Por que a gente e assirn, mae?Ela nao entendeu:- Assim como, Fael?- Tao preto ...Dona JUl iana apenas sorriu:- U e, eu nao sei, .. Por que?- A:a~ mae, porque runquem gosta da gente quando a

    gente e tao preto assim. Todo mundo fica dizendo coisas emexendo corn a gente ...- Ora, Who, eu . ..- A senhoragosta de ser preta, mae?Fael' acabou vindo reclamar comigo:- Sabe que et a nem respondeu ... Por que ela nao res-pondeu, Maria?

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    Branco e bom?

    Fael falava muito quando vinha a sala dos brinquedos eenquanto mexia e remexia a caixa atras de mim.

    Falava de tudo. Reclamava de todo mundo.Era fulano que continuava assim. Era beltrano que pedia

    assado. Havia ainda 0sicrano que . ..E bfa-bfa-bla-bfa.!Ti-ti-ti-ti!Quanta reclamacaol Ele s6 nao reclamava do Cid Ban-

    dalheira.- Sabe, Maria, ele tem um programa na Radio Roda-Viva

    que s6 toca rnuslca legal!Pois e, quando ele cornecava a falar do tal Ci!d Banda-

    lheira, nao parava mais. Nao tinha jeito. Era Cid Bandalhei-ra pra la, Cid Bandalheira pra CE L Fael nao tinha mais ne-nhum outro assunto.- 0 Cid Bandalheira sabe das coisas - garantia .. E de

    tudo 0 que 0Cid Bandalheira sabia nao havia nada que maisinteressasse ao Fael do que 0 enderec;:o do Michael Jackson.

    - Ele tern, voce sabia?E como poderia deixar de saber?Fael nao falava de outra coisa ..Pr incipal mente depois quetomou a decisao de se tornar branco.- Ser branco e bom - qarantia. - Quando eu for bran-

    co, ninquern vai mais impl icar comigo. Eu quero ver 0Homao-zinho me chamar de "Carvao" quando eu for branco.

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    Pra ele, 0 Cid Bandalheira iaaiuda-lo,

    - Ele sabe 0endereco do Mi-chael Jacksone,. quando a gen-te pedir, ele val dar. Ai nos va-mos la, perguntamos ao MichaelJackson como foi que ele fez en6s dois ficamos branquinhos,branquinhos. Legal., nao e , Maria?

    Nao gostei, nao.Ser branco e bom?Por que ser branco e bom?E, se ser branco e bom, per

    que ser negro tarnbern naopode ser bam?

    Faz diferenga?Que diferenca?Ser gente nao e melhor?Sei nao. Eu nao tinha nada

    contra ser branca, mas euera pretinha e g08tava. Aln-da g08tO. 0 diffcil mesmoera per lsso na cabecinhadura do Fae!.

    E se ele ficasse brancomesmo?Eu queria ver a cara delese 0 Romaozinho cornecas-se a charna-lo de "brancoazedo", "Ieitinho", "branquelo"

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    e outras brancuras menos engra-cadas e mais bobas.

    Ele iaf icar com a cara vermelhade raiva!

    Ou branca de indiqnacao?E se a formula maqlca nao

    fosse de boa qualidade e, em vezde ficar branquinho, ele ficasse

    um pouco amarel inho como 0 Japa?Sua mae 0 reconheceria?

    E 0 Hornaoztnho?Ah, podem ter certeza de que

    ele ia chamar 0 Fael de China ouJapa mesmo. Bom, na verdade,iabrincar mais urn pouco e chama-10de "Fujiro Nakombi" ou "TesujoAkueka".

    Nao ia ter esse problema se af6rmula rnaqica do MIchael Jackson

    o deixasse um pouco vermelhinho. 0Hornaozinho certamente ia pensar maisum pouco e ia passar a chama-to de"Indio", "Aritana", "Raoni" ou "Buqre''.

    Agora, se 0 Fael ficasse assim,digamos, com ur n je ltao urn pouconordestino, 0Hornaozinho nao iatercara de chama-to de "Paralba", poisde Paraiba os outros ja 0 chamavame ele nao gostava.Talvez se 0 Fael ficasse azul .. .

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    Nao, nao, Azul tarnbern nao iaser legal.

    Verde?E , verde ate que nao ia ser

    uma ma escolha.Nao?E , verde e cor ecotoqtca,

    cor da esperan9a ...Mas e se cornecassern a cha-

    ma-Io de "Grama"?A grama tambern e verde. Capim

    tarnbsrn. Pimentao. Lirnao,Eu sernpre gostei da cor laran-

    ja, mas nao ia dar certo, nao,lam charna-lo de "Laranja",

    E rosa. Nao ... acho querosa ele nao ia topar, nao, ladizer que e cor de menina. Vo-ces sabem como esses men i-nos sao preocupados com cores,nao e mesmo?

    Roxo?Azul-cobalto? Azul-da-prus-

    sia? Azul-marinho (nao, nao,iam charna-lo de "Peixe")?

    Ambar? Coral? Grena?Hum, nao vai ser tacil,E par essas e outras que eunao entendia por que era taobom ser branco ..

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    E, se ser branco era bam, azul nao seria ainda melhor?Afina] de contas, azul e a c or do ceu e 0ceu era a primeira

    coisa que eu via quando abriam a tampa da caixa de brin-quedos. 0ceu e lindo ...

    Eu andava pensando em aconselha-lo (se ele pudesseme ouvir, claro) a se transformar num carnaleao, daquelesque mudam de cor conforms 0 lugar onde esta, Nao seriar n a ideia.

    Ja pensou?Quando 0Romaozinho cornscasse a falar ou a chama-to

    de "Carvao", cheio de maldade e rna intencao, bastava es-talar 0 dedo, piscar urn dos olhos, dar uma rebolada ausaltar numa perna 56 (a escolha seria dele, ou podia sefazer urna eleicao rapida entre os interessados ou preocu-pados com a sua cor) e zasl Urn azul-satisfeito, um verde-aqradavel , urn amarelo-aventura, um vermelho-trabalho, urngrena-juventino .... ou, melhor ainda: um monte de cores es-palhadas pelo corpo.

    Ah, mas que beleza!Ser branco e born?Que nada!Born mesmo e ser de um monte de cores!

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    Me espera leifora!

    U rna das janelas da sala dos brinquedos se abre para aquadra. Eu gosto. Durante toda a martha 0 sol entra poreta, junto com 0 barulho gostoso dos meninos e meninasbrincando ou jogando qualquer coisa. Nao importa 0 que, 0barulho e sempre 0 mesmo. Gosto daquele barulho e da-quela janela, pois e quase sempre atraves dela que eu vejoo Fael jogar.

    Ele joga bern. Mas bern mesmo! Pareee ate urn Pele bai-xinho e cabecudo, driblando pra la, pra ca, fazendo com abola 0 que bern entende.

    Puxa, como ele joga!Fael era 0 melhor entre todos os meninos, e alguns deles,

    como 0 Hornaozinho, nao gostavam nem urn pouco. Mais:nao perdiam uma oportunidade de impl icar com ele sernpreque Fael errava alguma coisa no jogo. Acho que todos fica-yam rnais preocupados em encontrar um erro do Fael doque em jogar.

    Quase sempre se contentavam apenas em irnpl icar, repe-tindo aqueles ape lidos que tanto aborreciam Fael. Eu naosei por que, mas naquela manha 0 Hornaozinno achou queera pouco e abusou.Ah, mas abusou mesmo!Cornecou a inventar nomes novos. Uns ate bem feios. Al -

    guns deles nem os outros, tao impl icantes quanto 0Hornao-z inho, t iveram coragem de repet ir, de tao feios e maldosos

    27

    que srarn. Ate eu, uma boneca geralmente cal-ma e educada, senti vontade de ser huma-

    na por urn ou dois minutinhos para darurnas bolachas naquele l inguarudo.Maldade, pura maldade.- Voce nao acha que ta exage-rando, Romaozinho? - perguntouBirisco.o Japa eoncordou. 0 Pi ta-

    luga concordou:- Isso ja e maldade!

    Quem diz que 0Romaozinho se

    importou?

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    Nem liqou, Continuou implican-do. Repetindo aqueles apeli-dos ruins. Dizendo boba-gens ate mesmo quandoFael fazia urn qol, Eleque ria mesmo era lrn-plicar. Eu senti queaquele jogo nao iaacabar bern, e real-mente nao acabou.Teve uma hora la,

    nao sei quando, 0Fael chutou, e abola, em vez deir na dlrecao dogol, saiu pro ou-tro lado. Foi 0su-ficiente pro Ro-rnaozlnho,=-Ta ccm o pe

    torto, nego burro? -gritou.o Fael se virou com tanta raivaque eu tapei os olhos com as maos pra nao vero soco na cara do Hornaozinho. Me desequilibrei e car devolta no fundo da caixa de brinquedos, de onde continueiouvindo os gritos dos meninos e meninas incentivando osdois brig6es. Briga teia. Briga que s6 acabou quando a vozforte e severa do diretor da escola calou os gritos dos meni-nos e meninas.

    29

    Nao sei 0 que aconteceu, mas deu pra imaginar.Fael e Romaozinho brigando com muita raiva urn do ou-

    tro, Os outros gritando e cercando os dois pra ver quem ga-nhava a briga. A voz do diretor misturando-se as de donaEvangelina e de outros meninos e meninas. Confusao,

    Naquele dla, eu fi 'quei pensando em Faet, Aquele meninome deixava sempre ta o preocupada ...- Me espem ,I a fora! - gritou Rornaozlnho. Depois disso,

    eu ouvi alguns passos se aproximando da caixa de brinque-dos e a tampa desceu, la no alto, fechando-me novamenteno sllenclo e na escurldao.

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    Bronca

    Fael ftcou um born tempo sem aparecer na sal a dos brin-quedos. Surniu, Eu quase nao sa fa ca caixa. 56 de vez emquando aparecia alquern e brincava comigo. Eu, que vivia es-perando par esses momentos, nao cheguei a me entusiasmarmulto. Brincava s6 por brincar, porque t inha side feita pra isso.

    Fiquei esperando. Mais do que isso, tiquei multo tr iste.Eu nunca tinha experimentado isso antes, nem mesmo

    quando vivia abandon ada no fundo da caixa de brinquedos,e nao gostei A tristeza d6L

    Fael!Ele apareceu algum tempo depots, Eu sabia que era 0Fael porque s6 ele levantava a tampa da caixa de uma vez eestendia as rnaos diretamente pro cantinho da escuridao dofundo, onde eu geralmente ficava a espera de carinho, deum instante de atencao,

    Meu coracao bateu mais depressa e bem farte, cheia deernocao. Eu pulei , esperneei e gritei, comogritei.

    Fael! Fael! Faet!Ouvir, ouv ir, ele nao ouviu, mas tenho ca eomigo que pelo

    menos sentiu coma eu fiquei feliz ao ve-lo.Ouis perguntar um monte de eoisas, mas ele falau antes,contanda tudo a que t inha aconteeido.Tanto ele quanta a Romaozlnho foram suspensos .. Naa

    teve jeito, po i s a diretor preeisava dar a exemplo pra naohaver mais contusao au briga no coleqlo.

    31

    Fael fai pra casa com aviso na eaderneta. Dona Juliana foiehamada na direcao, Ouviu eoisas, talou eoisas, levou Faelpra casa sem dizer uma s6 palavra. Nao sentia raiva, masdava pra ver sua decepcao,

    Seu Gilberto, este sirn, falou demais. Bater ele nao bateu,pais nao gostava disso, nao, Mas falou, e Fael disse quemuitas vezes era ate melhor apanhar em vez de ouvir aque-la bronca tao grande que parecia ate serrnao.

    Ele nao bateu mas se aborreceu. Falou e deu bronca. Dis-se que Fael nao devia ter brigado e criado confusao. Faelbem que tentou talar e expliear a situacao, mas ele nao dei-xou. Continuou falando e dizendo coisas que deixaram Faelmuito triste.- Em preto todo mundo presta mais atsncao ~ recla-

    mou seu Gilberto. - Quando voce faz uma coisa boa oucorreta, nao fez mais do que a sua obriqacao. Quando erra,mesmo que erre poueo, todo mundo diz que n6s somesassim mesmo, que nao merecemos confianca e que naotemos educacao.

    Fael nao concordava e tentou dizer. Seu Gilberto nao dei-xou. Ficou falando - eu que nao a conhecia ja me aborre-cia. Como falava aquele homem! Falava multo e so besteira.Pareeia ter vergonha de si mesmo.

    Pediu muito. Exigiu rnais. Fael, pelos pedidos e conse-Ihos, tinha que ser a propria imauern da perteicao.

    Porque?Tinha que ser gentil e educado. Quando nao pudesse aju-

    dar, fieasse ealado pra ninquern dizer que era burro. Do jeitoque falou, e do tanto que falou - e, se nao falou, pelo me-nos pensou -, Fael tinha que virar anjo de procissao.32

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    Da pra entender?Pior que, depois de tanta bronea e de tantasordens e de-terrninacoes, seu Gilberta ainda achou pouco e se aborreceuquando Fael, ja eansado e muito eontrariado, desabafou:- Se eu fosse branco nao tinha que ouvir nada disso!Seu Gilberta se espantou:- Como e que e?- Ninguem cobra nada de ummenina braneo!- 0 que e isso, Fael?- Eu vou procurar 0 Cid Bandalheira. Ele val me dar a

    endereco do Michael Jackson, e a MichaelJackson vai me ensinar a ficar branqui-

    nho como ele.Fael contou que 0pai dele nao fa-lou rnais nada depois disso. Pare-ee que ele ficou meio sem jeito

    au sem saber exatamenteo que dizer.

    - Meu pai disse que euestava dizendo boba-gem, mas eu nao li-guei, nao: - garan-tiu Fael, cheio dedaterrninacao. -Eu vou ficar bran-co como 0MichaelJackson! Vou simi

    33

    Em busca deMi!chaell Jackson

    E u estranhei. Assim que a tampa da caixa de brinqusdoslevantou - de uma 56 vez, como sornente Fael fazia-,. eunao vi a azul-brilhante do ceu pela martha e sim ummonte deestrelas cintilantes. Um raia de luar iluminou 0 rosto de Fael.o que ele estava fazendo ali?Como tinha entrado na escola?Eu ainda tmha urn monte de perguntas na cabeca, mas

    elas perderam airnportancia quando Fael estendeu as rnaosna minha direcao e me pegou:- N6s vamos encomrar 0Michael Jackson, Maria.Como?!- 0 Cid Bandalheira tern urn proqrama de noite na Ra-

    dio Roda-Viva. A gente vai 118 pega 0endersco do MichaelJackson corn ele.Adianta dizer que eu protestei?Pois bern, eu protestei. Reclamei que era muito tarde. Que

    pessoalmente eUIachava aquela hlstoria uma grande boba-gem - igualzinho ao pai dele. Cheguei ate a perguntar seele sabia que 0Michael Jackson morava num pais razoavel-mente distante chamado Estados Unidos da America.Voces acham que ele me ouviu?Voces acreditam mesmo que ele deu alqurna atencao ao

    que eu dizia?Voces pensam que deu alguma irnportancia aos meus

    argumentos?34

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    Nem ouvio.Pra dizer a verdade, ele nunca ouviumesmo - essa eterna barreira I 'inguls-t ica sempre a nos separar! pen.se~q~eos meus ostorcos e a grande reslstenclBem entrar na mochila que ele trazia pen-durada nas costas - uma hora eu pren-dia 0 pe de proposito numa al~a, n?utraeu me agarrava ao zlper, prendla minhas

    incontaveis trancinhas aqui ou al i - pu-desse Ihe daralgum tempo pra pen-

    sar melhor.Que nadalEle queria mesmo que eu

    fosse junto._ Nos dois vamos fi-car branquinhos, vocevai ver - garantia, en-quanto se eSforg.ava parame enfiar na mochila,talvez pra me conven-cer a colaborar comaquela aventurinha. -Af todo mundo vai que-rer brincar conti go!Nao posso negar que aproposta mexeu comig,?

    Atinal de contas, quem naogosta de ser querido e pro-curado, nao e mesmo?

    35

    No entanto ... ficar branca?!?!Sabe, eu me assustei ..Me assustei mesmo. Logo eu, que vivia meio triste, recla-

    mando do meu abandono e invejando as outras bonecasbranquinhas e lourinhas que sempre eram mais procuradaspra brincar.

    Eu... branca?!De repente, eu ja nao sabia se me preocupava tanto as-

    sim com 0 fato de ser pretinha como a noite. Mais: de ummomenta para 0 outro, eu vi como a minha preocupacaoera boba.Ser a menos procurada nao era tao ruim assim. Nao, nao

    era. Eu era a mais conservada de todas as bonecas da cai-xa de brinquedos. Verdade! Enquanto a maioria ja t inha idopro hospital das bonecas pra uma reforma (muitas nem vol-taram), eu estava ali , bonitona como sempre, rebolativa esorridente como ganhador da loteria. Alem do mais, eu sem-pre podia me gabar diante das outras de que, quando al-quem vinha brincar comigo, vinha porque gostava, porquenao I,igavapra cor da minha pele, porque me achava interes-sante e outras coisinhas que deixavam as outras bonecasmorrendo de inveja.Nao, nao era tao ruim assim ser uma boneca pretinha.

    Nao, eu nao queria ser uma boneca branquinha e lourinha.Nao! Me larga! Me solta!Estou muito satisfeita com a minha cor!Sou pretinha e sou feliz! Sou pretinha e sou...Nao adiantou nada. Ele nem me ouviu. Fechou a moch.i la

    comigo dentro e saiu da escola bern depressa.

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    Teimoso demais.-0,garoto, voce sabia que sequestra e crime?Fiz a mesma pergunta varias vezes pro Fael, mas nao sei

    se ele ouviu. Tarnbern nao sabia se nas leis dos humanostinha alguma coisa sobre sequestro de bonecas. Pelo sim,pelo nao, eu continuava gritando enquanto Fael andava de-pressa e a mochila pendurada nas suas costas balancavade um lade para 0 outro comigo dentro.

    Eu ja estava completamente zonza. Via tres e cumprimen-tava quatro, pra depois descobrir que estava enganada ehavia cinco comigo dentro da mochila.

    Cai em cima de uma revista com a foto do Michael Jack-son na capa. Rolei sobre um calendario onde estavam a nomeeo endereco da Radio Roda-Viva. Nela tambern tinha a fotode um grandalhao, tao negro quanto eu, usando uns oculosde aros muito finos e com fones nos ouvidos. 0 sorriso deleera tao grande quanto a brilho do sol pela martha, e a fraseembaixo da foto nao deixava duvida: modestia nao era umadas virtudes daquele que eu descobri ser 0 famoso e taofalado Cid Bandalheira.

    "0 maior pe-de-valsa do planeta", estava escrito.Acho que fizemos uma curva em algurn lugar, pois rolei de

    novo e cai em cima de urn ret r ata preso numa moldura cinti-lante onde se via Fael entre 0 pai e a mae. Mais sorrisos.

    Depois de algum tempo caindo pra la e pra ca, finafmenteconsegui colocar a cabeca pra fora da mochila.

    37

    Nossa, que susto!A cidade estava em torno

    de nos, carros indo e vindo ,apressados, buzinando, fre-ando, sumindo nas ruasmuito iluminadas. Vi uns ca-minh6es. Onibus tarnbern- nos entramos num de-les e viajarnos um ternpaoantes de desembarcarnoutra rua ainda maior emais movimentada. Pratodo lugar que a gente iao que mais se via era exa-tamente isso, gente, mui-ta gente. Gente demais.

    Mais gente apressada.Gente correndo. Gentese empurrando. Gen-te gritando e gente -hum - xingando.Espero que voce sai-

    ba pre onde este indo,Feel, pois eu estoumorrendo de medal

    FaeJparecia saber 0que estava fazendo.Desde que sairnos da

    escoJa - ele pulou 0 muropra entrar e fez 0mesmo pra

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    sair -, nao tirava os fones dos ouvidos. Deu pra ouvir u rnpouquinho.

    Er a 0 programa do Cid Bandalheira ("Agitando a galera anoite inteira!", prometia ele, tocando umas rruisicas barulhen-tas e numa lingua que nao era a minha. Samba que e born eque ta z a Maria Mario cair no gingado, nada! Pode?) ..

    "Voce danca melhor do que eu?", ele perguntava, enquantopassos estalavam num piso que devia estar bern limpinho."Entao ouve essa!"

    E colocava outra daquelas rnusicas barulhentas.Haja ouvidos!Enquanto nos dois famos de urn lado para 0 outro da cida-

    de atras daquele homem barulhento e gargalhante (puxa,como ele ria!), eu ficava pensando nos pais de Fae!.

    Sera que [a sablam que ele tinha fugido de casa?a que estariam fazendo? a que estariam pensando?Men/no teimoso!Ele nao ouvia ninquern, Bastava cismar com alguma coi-

    sa pra correr atras del a como um doido.Que coisa!A gente andava e andava. Tinha hora que, com aquela

    rnusica barulhenta nos ouvidos, impaciente, eu perguntava:A gente nao este perdido, neo e, "atoderzlnno"?au:A gente vai acabar branco e de susto, com todos esses

    cerros a . nossa volta... Aaaa;;;! Viuaque/e? Viuaquele? Quasepega a gente!au tambem:6,Fael, vamos deixar de brincadeira e voltar logo pra casa,

    vamos? Esta muito frio aqui dentro, viu?39

    Querendo ou nao, continuel naquela aventurinha pela ci-dade. Depols do onibus, pegamos 0metro - sempre com 0Cid Bandalheira em nossos ouvidos ("Relou, creize pipou,camom, camom, dence, dence" ... Eta lingua danadal) - e,depois, trocamos de metro e pegamos outro onibus depoisque deixamos aquele metro. Eu ja estava achando que 0 taldo Cid Bandalheira transmitia aquele programa barulhentodireto dos Estados Unidos, de tao lange que era a RadioRada-Viva. Das duas uma: ou era lsso, au nos dois estava-mos perdidlnhos, perdidinhas.

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    Sobe e desce

    A Radio Roda-Viva FM (0 que sera que e "FM"? Feia eMaluca? Fazemos Maluquices?) ficava num predio bem altono centro daquela cidade muito grande, luminosa e baru-lhenta, NEIO fol diffcil chegar la - quer dizer, depois que agente descobriu que pegou 06nibus que nao devia ter pega-do, depois que nos disseram que entramos a toa no metr6 e,ainda por eima, pegamos 0 destino errado, foi facil ,

    Todo mundo sabia onde ficava a Radio Roda-Viva FM (For-te Mesmo?).

    Facil, pode acreditar.Diffcil foi entrar.Logo que a gente parou na entrada do predio e empurrou

    aquela porta todinha de vidro, quem dlz que ela abriu? Esta-va fechada.

    Apareceu um homem enorme e mal-encarado, dentro deum uniforme de guarda.- 0 que voce quer , garoto? Nao ta vendo que ta fecha-do?

    - Eu queria ver 0 Cid Bandalheira - respondeu 0 Fael,urn pouco assustado.

    - Como e que e? - 0 tal guarda ticou aborrecido.Quanta falta de paclencla'- Eu queria falar com 0Cid Bandalheira, rnoco ...- Voce e a cidade inteira, garoto!- E importante, rnocol

    41

    - Val embora, garoto!- Mas mogo ...- Par acaso os seus pais sabem que 0 senhor esta na

    rua uma hora dessas, sabem?Fael se apavorou.

    E S8 0 guarda salsse e pegasse ele?E se 0 pegasse 8 ligasse pra

    seus pais?Hum, que grande contuseotFael saiu de perto da porta

    de vidro e fingiu que ia emborapra casa, mas nao foi. Bastouo guarda S8 afastar da porta,pra ele voltar e ficar olhando.Olhando e esperando. Olhan-do e pensando numa manei-ra de entrar na radio. Ele qua-se enlouqueceu quando, ain-da com os fones do radio nosouvidos, ouviu 0Cid Bandalhei-ra tocar uma rnusica do novo

    disco do Michael Jackson.Entender, entender , ele nao en-

    tendia .. Eu mesma, que sempre meconsiderei uma boneca muito inteli-genteeletrada, entendla pouco auquase nada.

    Que Ifngua mais danada!Mas sabe de uma coisa? Era diffeil

    f iear parada ouvindo aquela rnuslca.

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    Pode crer, gente, rebolei mais que minhoca na areia quente!Volta e meia 0guarda nos via. Fazia cara feia e ficava la na

    porta, gritando arneacas e... minha nossa! Gritando palavr6es.Sujeito desbocado!Fael - teimoso como ele s6 - se afastava, ia ate a es-

    quina e logo voltava.Mas quem diz que entrava?Nada.A porta nao abria nem por decreto e, quando abria, 0 guar-

    da logo mostrava a cara e, assim que nos via, fechava de-pressa. Eu ja estava vendo a hora que ele ia sair de la e daruma corr ida na gente.

    Pior que a raiva dele s6 a teimosia do Fael, que queriaporque queria ver e falar com 0 ta l do Cid Bandalheira. Nadaparecia desanimar aquele garoto. Ele era teimoso, determi-nado toda vida.

    Voltava. Voltava sempre.Tantas vezes ele voltou que acabou encontrando uma

    maneira de entrar. 0 Fael era muito esperto, muito mesmo.Algumas pessoas estavam saindo - umas sorrindo, ou-

    tras se despedindo do guarda, que tinha aberto a porta praelas - e 0 Fael se misturou aquela gente. Mas nao entrou defrente, que ele nao era bobo e sabia que 0 guarda nota ria.Entrou de costas, fingindo que conversava com as pessoas,rindo, agitando as maos, e, brincalhao como ele so, ate sedespediu do guarda:

    - Ate arnanha, Carlao!Quando 0 guarda percebeu, tentou agarrar 0 Fael, que

    depressinha escorregou pelo meio daquelas maozonas e cor-reu. Correu como nunca tinha corrido antes.

    43

    - Volta aqui, menino! - Ele veioatras de n6s.

    Sacudida pra todo lado,misturando-me com aque-las bugigangas todas queo Fael carregava na mo-

    chila, ainda pus a cabecara e arrisquei uma olhada.

    cara dele estava de metero-papao. Assustava defunto e

    i;;HI!::".a~);:,umbracao.protetor de todas

    espumando atras demos escada numa cor

    ila sacudia tanto nasensava que ia cairo Ja naoser . ra todo lado e ser amassrevistas, golpeada pelo calendario com a carado Cid Bandalheira ou passar a noite inteira me

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    esquivando de perigosos biscoitos de chocolate. Tinha querolar escada abaixo dentro daquela mochila ..Nunca uma boneca sofreu tanto quanto eu naquela noite.Entramos e saimos de algumas salas. Fael passou por

    baixo de duas ou tres mesas. Saltou de uma pra outra. Fo-Ihas de papel rodopiavam a nossa volta. Pior do que a mi-nha sltuacao, so a do Fael, que nem sabia pra onde estavaindo. leve uma hora que 0 guarda chegou ate a alcanca-lo.Agarrando a mochila, gritou, triunfante:- Ah, te pegueitDei-Ihe uma mordida no dedao e ele largou, gritando. Nes-

    se mesmo instante, ele escorregou e se esparramou de cos-tas no chao.Senti-me vingada:Viu seu boca-suja? Isso e pra voce aprender a fer modos

    na frente de uma dama!Quando olhei para a frente, apavorei-me. Gritei teito lou-

    ca. Fael acabava de trombar com uma porta, que se escan-carou barulhentamente, mas nao antes de eu ler:

    Esiudio AFael tropecou e caiu de brucos, e continuou escorregando

    por uns bons metros naquele chao liso. Paramos bem nafrente de um homem grandalhao, que sorria pra nos, senta-do numa cadeira de rodas tao grande quanto ele.- Cid Bandalheira! gritamos quase ao mesmo tempo, urn

    mais espantado que 0 outro.Ele sorriu pra gente e balancou a cabsca, garantindo:- Em carne e osso, garoto!

    45

    Papo-cabe(:a

    Gostei daquele tal Cid Bandalheira logo que pus os olhosnele. Devia ser 0 sorr iso, aquele sorriso de sol entrandona caixa de brinquedo logo que a tampa era levantada pelamartha. Ou seria 0 seu jeitao de acenar uma das rnaosenormes e sacudi-Ia tranqOilizadoramente para 0 guardaquando este entrou no estudio querendo nos levar pra foraa tapas?Nao sei. 0 que sei e que gostei daquele Cid. Parecia - e

    depois eu vi que era mesmo - um cara muito legal.- Pode deixar, Carlao - disse ele no momento em que 0

    guarda (aquele desbocado!) tentou arrancar 0 Fael de suasmaos, Envolvendo os ombros do Fael com um dos braces,olhou para 0 guarda e garantiu:- Ele e meu convidado de hoje.Como 0 guarda fez cara de quem nao acreditou, 0 Cid

    sorriu para 0 Fael e concluiu:- Voce esta atrasado, nao e, garotao?- Mas seu Cid ...- 0 que, Carlao? Ele nao estava na lista que te passei?- Na verdade ... nao . ..- Ah, eu devo ter esquecido. Deipra voce colocar e tudo

    ticar numa boa?- Dei... da sim. - 0 guarda ainda olhou pra gente com

    cara de poucos amigos, mas 0que ele podia fazer? 0 tal Cidt inha colocado sua asa protetora - aquele bracao enorme46

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    - sobre a gente e 0guarda nao v ia jeito de tirar nos dois dalide baixo.

    Fiz urna bela careta para 0 guarda quando a porta se fe-chou atras dele. Logo em seguida, 0Cid colocou outra rnusi -ca pra tocar e, virando-se para 0 Fael, perguntou:

    - Entao, garoto? Eu salvei sua pele. Agora me conta suahistoria.

    Fael olhou pra ele meio sem jeito e, depois de um segun-do de silencio, perguntou:- 0senhor e mesmo 0 Cid Bandalheira?Cid sorriu.- Quer ver a minha carteira de identidade?- Nao ... mas .. _- Mas 0 que? Voce ainda nao esta acredi tando?-E...- Por que nao?- A gente ouve 0 senhor no radio e ... quer dizer. .. -

    Fael olhava, embaracado, para a cadeira de rodas do Cid.- 0que e que tem? - Cid percebeu e perguntou: - E a

    cadeira de rodas?- E .. . eu pensei. .. eu pensei. ..- Ja sei, [a sei. Voce ouve 0 programa pelo radio, ouve 0

    sapateado e pen sou que ia chegar aqui e encontrar um rna-luco dancando as rnusicas que toea, nao e isso?-E...- Ficou decepcionado?-Bem ...- Nao se preocupa, nao, garoto. A maioria das pessoas

    tarnbern fica. Claro, eu nao posso dancar, mas a cadeira naotirou 0meu gosto pela rnusica. Alias, a cadeira nao ti rou nada.

    47

    Voce pensa 0 que? Mesmo aqui em cima dela, eu ainda ar-risco os meus passinhos. Sou 0 maior dancarino sobre ro-das do planeta. Pode crer, pode crer ...

    Fael ia fazer uma pergunta, mas 0 Cid sacudiu a mao,pedindo para ele esperar. Tinha acabado a musica e 0 Cidprecisava falar alguma coisa antes de tocar outra. E ele dis-se alguma coisa parecida com:

    "Aqui eo Cid Bandalheira, e a cidade treme inteira quandoouve 0 meu som! Vamos la, galera. Se liga no meu sorn.Danca comigo esta musiquinha espertfssima."

    E apertou um dos muitos bot5es que 0 rodeavam. Logo agente ouviu 0 som de pes aqeis sapateando em algum lugarbem longe da cadeira de rodas.

    Cid notou que 0 Fael ficou olhando pra ele e pra cadeira;piscou um olho, sorrindo, Em seguida, sem que a gente es-perasse, ergueu a cadeira e, equilibrando-a nas duas rodasgrandes, rodopiou e assobiou, tal como tazla pelo radio. Emseguida, sempre em duas rodas, balancou pra la e pra ca,tornou a rodopiar e, diante da nossa cara de bobos, garga-Ihou, dizendo:

    - E isso al, galera!Colocou outra rnusica pra tocar.- Mas voce ainda nao me disse 0que esta fazendo aqui ,

    garoto - lembrou ele, tirando os fones dos ouvidos e colo-cando sobre a mesa.

    Fael ainda olhava pra ele meio abobalhado, surpreso.- Bem, eu ...- Voce quer alguma coisa, nao quer?Fael sacudiu a cabeca afirmativamente e Cid perguntou:- Vamos la, entao: 0 que e?

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    ~ Eu queria 0 endereyo do Michael Jackson - respon-deu Fael.- Mesmo? E pra que?- Eu queria saber como ele fez pra ficar branco.- Pra que? Nao me diz que voce tarnbern ta querendoficar branco ... ta?-E...Cid Bandalheira calou-se par um instante, pensativo, olhan-

    do fixamente para 0 Fael.- Por que?- Ue, ser branco e bornl- Quem disse?- Ninquem ...- Entao como voce sabe que ser branco e bom?- Quando eu far branco ninquem mais vai me chamar de

    "Carvao".Cid sorriu, cheio de cornpreensao.- Entao e disso que eles te chamam? - perguntou.-E...- E voce nao gosta.- E claro que naolCid tornou a sorrir.- E claro ... entao e por isso que voce quer 0 endereco do

    Michael Jackson?- Ninguem mais vai me chamar de "Carvao" quando eu

    for branco.- E, nao vai, nao. Talvez te chamem de "Branco Azedo",mas de "Carvao" nunca mais.

    Fael olhou para Cid, surpreso.- Branco azedo?

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    - Ou "Sranquelo", se voce preferir.-Nao ...- Pode ser "Leitinho" tarnbern. Eu tinha um amigo que

    odiava esse apelido.- Verdade?- Claro. Fui eu mesmo que pus 0 apelido nele!- Voce?!- Ue, ele vivia me chamando de "Soneco de Piche".-Ear?- Volta e meia a gente acabava dando soco na cara um

    do outro por causa disso. Ele dizia que preto era burro, quepreto era ladrao, que preto era isso e aquilo. Eu dizia quetodo portuques era porco e nao gostava de tomar banho. Airma dele usava uns oculos de lentes muito grossas e euimplicava com ela, chamando-a de "Ceguinha". Mexia coma mae dele chamando ela de "Maria Preta".

    - Maria Preta?!- 0 pai dele vendia carvao, de modo que eles andavam

    sempre sujos. Mao suja, cara suja. Tudo sujo. Mas 0 quedeixava 0 Leite doido de raiva era quando a gente chamavaele de "Portuga". Coisa de crianca mesmo! Preconceito bobo!

    - Precon-o-que?- Preconceito.- 0 que e preconceito?- Sao algumas bobagens que a gente pensa e diz pras

    pessoas.-Hem?- Coisas como as que eu dizia para 0 meu amigo Leite

    ou como as que eu ainda ouco quando alpuern olha pra mime pensa que so porque eu nao posso andar, tarnbern nao

    posso fazer coisas como viver, trabalhar ou ate dancar com aminha cadeir inha de rodas modernona. Preconceito tambeme achar que born e aquilo que as pessoas dizem que e bom enao 0 que nos achamos que e . Preconceito e acreditar quesomos 0 que as pessoas dizem da gente ou pra gente. Pre,-conceito e assim: eu digo pra voce e voce diz pra mim. Eaquela coisa que eu penso e voce acaba acreditando que everdade. Conta pra outro, que conta pra outro, e logo aquelae uma grande verdade, po is ja nao pertence a mim, mas atodo mundo ... - Cid sorriu para Fael com carinho e eu meapaixonei mais urn pouquinho por aquele sorriso. - Nao sei

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    se voce entendeu bern, mas, de qualquer forma, [a que voceveia aqui atras do endereco do Michael Jackson pra ele teensinar direitinho como ficar branco, eu vou pegar. ..

    - 0 senhor tambern nao quer ficar. ..- ... branco? Eu? Pra que?~Eu ...- Eu vou fiear mais sabido?-Bern ..._ Ah, ja sei: mais bonito. E isso? Eu yOU ficar mais bonitao?- Vou falar todas as linquas do mundo?_ Vou tocar gUitarra como 0 Jimmy Hendrix? Nao, como

    o Jimmy nao da . .Ele era negro. Ih, garoto, per que mesrnoque eu tenho de ficar braneo?

    Fael ficou olhando pra ele cal ado, sem saber 0 quedizer.o Cid riu de se arreganhar. Piscou urn olho paraele.- Te peguei nessa, hem, garoto?. - E-e-eu nao sei ... - disse Fael, meio confuso.- Diz al, garoto: voce ta a fim de ficar branco apenas porcausa do apel ido?-E...- Mas e se alquern te botar urn apel ido novo quando voce

    ficar branco? Eu nao conheco ninquern que faz a gente virar[apones, nao. Nem indio. Born, e bem verdade que, se voceestiver interessado em flear verde ou amarelo, eu conhecoos pinto res que por um precinho razoavel ate que te pintamtodinho. Nao, mas af vai aparecer sempre urn enqracadinhopra te colocar outro apelido, nao e mesmo?

    - E al, garoto? 0 que a gente vai fazer?- Sabe, Cid ...- Eu sei, garoto. Sei que nao e tacil aquentar as implican-

    cias, mas sabe de outra coisa? Pior do que 0 apelido e 0medo, a vergonha ou a raiva que a gente sente dele, ouvoce acha que eu gosto de ser chamado de "Aleijadinho"?

    - Eo que, voce faz?- Bom, quando eu tinha a sua idade, eu dava uns soeos

    aqui e ali. Mas nao adiantou multo, porque eu tomava outrossoc os aqui e ali e 0 apelido continuava. Depois, eu comeeeia par apelidos nos outros. A coisa que mais aborrece as pes-soas que poem apelidos nos outros e que as outros ponhamapelidos nelas. Adiantou um pouquinho, mas ainda tinha unsque continuavam me perturbando com aquela hlstoria deBoneco de Piche ...

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    -Ear?- Ai eu deixei pra la, Fazer 0 que?- E 0 apelido?- Sabe que eu nao sei? Urn dia eu notei que ninquern

    mais me chamava de Boneco de Piche ...Os olhinhos do Fael brilharam de interesse.-E?Cid sorriu, divertido.- Chamavam de Cid, Cid Bandalheira, porque eu fazia

    muita bagunga na sala.Fael desanimou-se novamente.- Puxa ...- Ah, mas desse eu gostei. Gostei tanto que fiquei com

    ele pra mim, como 0 Pele ficou com 0 dele.-E?!- Pergunta pra ele.-Eu?- Claro! Eu tarnoem tenho 0 enderego dele em algum

    lugar por aqui . E bem verdade que 0 endereco dele fica emNova York, mas ja que voce vai mesmo pros Estados Unidosatras da formula de branqueamento do Michael Jackson,pode dar uma passadinha e . ..-Cid ...- Que foi, garoto? - Cid sorriu. Acho que ele, como eu,

    ja sabia 0que 0 Fael ia dizer, mas nem ele nem eu deixamoso Fael notar,- Sabe aquele endereco do Michael Jackson? ..

    - Claro, eu [a vou pegar. Assim que eu puser outra rnusl-ca aqui, eu ...

    - Nao, nao ...

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    -Hem?- Nao e iS50...- Nao e 0 que?Fael sorriu, urn pouco constrangido.- 6, Cid, sera que voce vai ficar chateado se eu nao pe-

    gar ... nao pegar. ..- Pegar 0 que?- 0 endereco do Michael Jackson ... - tornou a sorrir. -

    Voce fica?- Bern . .. - Cid Bandalheira amarrou um pouco a cara

    pra fazer suspense, mas depois se desmanchou num gran-de sorriso de satistacao, concluindo: - ache que nao.

    - Puxa, Cid, voce e urn cara bern legal. ..- Voce tambern, garoto, voce tarnbern ...

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    Bom, ta tudo muito bom, ta tudo rnuito bem, mas eu achoisso tude uma grande injustica. 0 tal de Cid - aquela sim-patia de sorriso - abracou Fael, 0 Fael abracou ele ... 0Cid fez um catune na cabeca do Fae.l- ate deixou ele colo-car aqueles fones enormes nos ouvidos - e aproveit?u praavisar aos pais do Faell pelo radio once ele estava, que 0Cidera danado de esperto. 0 Fael teve 0 direito de colocar va-rias rnusicas das suas preferidas pra tocar. 0 Cid deu umbeijinho na cabeca do Fael quando ele comecou a cochilarno seu colo eo Fael disse que nao ia mais esquece-lo.Ta legal, taleqal, ta legal .... mas e eu?Em todo aquele papo ate anlrnado entre os dois, ninquern

    se lembrou de mim. 0 Cid, aquele ingrato, nem olhou pramim quando eu consegui colocar a cabeca prafora da mo-chila e acenei pra ele. Nao me perguntou se eu queria ouviruma musiquinha.Voce quer ouvir alguma coisa especial, Maria Mario?

    Bebe alguma coisa? Urn cetezinho? Que tal utn licor?Comer? Que tal urn misto-quente com fritas?Nada.Depois eu e que sou feita de pano ...Quanta insensibilidadel

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    Adeus, Fae:1

    - E ' e dormiu ....Eu acordei quando os pais de Faelentraram no estudio e enoontraramFael dormindo no colo de CidBandalheira.

    - 0 que aconteceu? 0que 0meu filhinho esta fa-zendo aqui e a uma horadessas? - preocupou-se dona Juliana.

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    _ Depois euconto - cochichou Cid, passan-do 0 Fael para os braces que ela estendia,af li ta, em sua dire9ao. - Mas pode crer queeu gostei muito da conversa.Juliana othou para Gilberto, 0 filho nosbraces, e sorriu, agradecida.- Obrigado por tudo, Cid -

    agradeceu ela.- Nao tem de que, dona Ju-

    liana. - Os dois cornecavarna sair, quando ele os cha-mou. - Isso aqui e doFael - disse, entre-gando a mochilapara Gilberto.

    Safmos os quatro de volta a cidade grande, barulhenta erepentinamente rnais luminosa. Fiquei acenando para 0 Cidde umafresta da mochila mesmo depois que a porta do es-tudio sefechou e flcou entre nos. Estava completamente apal-xonada.Ate hoje guardo a toto dele que encontrei na rnochila. 0Fael sempre podia conseguir outra, mas eu nao.A vida sem-pre e muito diffcil pra urna bonequinha de pano, e conseguiruma coisa dessas exige mais esforco do que eu ando dis-posta a fazer ultimamente.Sabe, e a notoriedade.Depois que voltel pra escola, a vida nunca mais foi a mes-

    ma pra mim. De um momento para 0 outro, todos os outrosbrinquedos queriam a minha companhia, cercavam-me decarinhos e atencoes, mas, pr incipal mente, de perguntas,grandes tnterroqacoes. Todo mundo queria conversar com aboneca sequestrada. Ouvir col-sas, narrativas tantasticasde minha aventur inhapelo mundo grandioso doshumanos com seusbarulhos e luzes in-termi navels.

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    Ate entre as crlancas as coisas mudaram, e muito. Eu naoficava mais quietinha no fundo da caixa de brinquedos. Bas-tava alguma crianca parar de brincar comigo e me largar nofundo da caixa, que vinha outra brincar e conversar, fazercoisinhas que eu [a tinha esquecido como era.Brincar de casinha. Dar comidinha. Trocar e trocar roupi-nhas.

    Que coisa mais maravilhosa!Virei uma celebridade dentro efora da caixa de brinque-

    dos. A aqltacao era tamanha que teve um dia que eu precl-sei rodar a baiana para que toda aquela gente me deixas-se em paz. Escondi-me bem la no fundo e foi diffcil metirarem de la.

    Fael ainda continuou aparecendo de tempos em tempospra um papinho. Cada vez menos. Sabe como e, nao? Eletambern pegou urn pouquinho da minha notoriedade. Naocomo seqOestrador da Maria Mario, mas como 0 garoto quetinhafeito um programa com 0 Cid Bandalheira ou como 0amigo do peito do maior disc-j6quei da cidade.Nao se falou em outra coisa naquela escola durante um

    bom tempo. Todo mundo queria conversar com ele, sabermais e tarnbem para ficar amigo de alquern tao famoso - amalaria, urn bando de interesseiros -, alguns ate descobri-ram que 0 Fael era um cara bem legal.Fael fez novas amigos e se tornou ainda mais amigo do

    Cera, que amigo deverdade mesmo - tanto pra ele quantopra mim - era 0 Cera.Fael foi aparecendo cada vez menos. Quando aparecia,

    nao falava mais no apelido. Nern no apelido nem no Hornao-zinho. Deixou pra la aquele desejo de ficar branco.

    Fael tinha outros papos. Falava das provas e das notasboas... dotime de futebol que a escola estava formando pradisputar 0 Intercolegial. Falava do pai e da mae. Certa vezfalou ate de uma certa lnes, muito engrayadinha, que tinhaacabado de entrar para a sua turma. Ele estava dando umaatencao danada para aquela tal de lnes, Morri de chimes.Fael sumiu.Fael cresceu.Fael, vi ontem de maos dadas com a lnes,Adeus, Fael.

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    AUTOR E OBRA

    o preconceito e mais velho do que a conscienciae do que a inteligencia. Invariavelmente nasce daignorancia, do medo e da incornpreensao. Desde aminha infancia em varias favelas do Riode Janeiro- apesar demineiro de nascimento, vivo desde oscinco anos par essas bandas que amo de paixao-, eu encontrei esse tipo de coisa (negro, pobre, tavelado... essacornbinacao pods lazer comque 0preconceito crave unhas afiadas na gentee, mesmo agora, aos 34 anos, ainda d6i e indigna. Como sou de pavio curto,indiqna perigosamente).Como e que um homem de 34anos, macaco velho de longas corridas ebatalhas pela vida (fuijornaleiro, boy, empregado de supermercado e geren-te de retif ica, antes de cornecar a escrever, 13para os idos de 1980), fariapara talar de preconcei to - racial, social ou economico, tanto faz, pois notundo, no lundo, tudo e igual , e sempre preconcei to - e, principalmente,

    para criancas?No corneco foi dificil. Para ser absolutamente sincero, 0 primeiro livro queescrevi sobre 0 tema foi recusado pela editora. Talvez tenha sido por issoque resolvi linear pe e vencer 0desatio - esse e 0 trace maisforte deminhapersonalidade. Eu sou tinhoso. Pensa, rnatuta, esquenta as calulas clnzsn-tas, olha pra vida e, de repente, "nao mais que de repente", lembrei de umaantiga mater ia de um telejornal num dos Natais de minha existancia. Elafalava de uma creche da Febem, em Sao Paulo, onde as criancas tinhammuitos brinquedos com que se divertir. Falando dos varios brinquedos, umadas assistentes sociais mencionou casualmente uma certa boneca negraque f lcava sempre no lunda de uma grande caixa de brinquedos e com aqual nem mesmo as criancas negras gostavam de brincar. Ajornalista faloude preconceito. A assistente social sentiu a insinuacao e tratou logo de rnu-dar de assunto. Tudo ficou por isso mesmo.Compreendo seu ernbaraco. Alias, quem nao ticaria ernbaracado se derepente se visse controntado com uma realidade tao dura e tao triste?o preconceito aparece nagente muito antes do que imaginamos e talc nagente com a maior sem-cerirnonia do mundo, pols muitas vezes eu tambernme surpreendoresponsavel por aJgumtipo de preconceito. Ele esta par ai,saibam todos, E quase inevitavel,E como lidar com ele?

    6:

    Sei lalJa escrevi de tudo um pouco: hist6rias em quadrinhos, bolsolivros, propra-masde humor para OsTrapalh6es, naTV Globo,e atenovela para0Paraguai- e ja conheci gente demais. Algumas realmente chegaram a mim com osolhos cheios de preconceitos (e, ainda por cima, sou gordo e usa oculos. Emole au quer mais?). Por isso, com a autoridade de muitas pauladas dessetlpo, acho que a genIe bem que poderia comecar pensando no assunto. Ourindo dessa bobagem au do medo que ele provoca.Naotenho respostas prontas. S6 ostolos as tern em quantidade. Ah, sim...astolos e os preconceituosos. Euprefiro nao saber de nada e aprender comtodos. Alias, sou umexcelente autodidata. Preliro sempre falar do pouco qu econhaco para aqueles que podem meajudar a conhecer mais. E conversan-do que criarnos consciencia, e ouvindo que descobrimos inteligencia. E fa-lando que vencemos 0 medo e a ignorancia.

    Julio Emilio Braz

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    FELICIDADE NAO TEM COR

    Gente e gente! N[o Impor-ta a raca ou a cor!E todos devem ter seu Ingar neste murido,Voce e negro, branco, amarelo, rnarrom oucor-de-rosa- Voce gostaria de trocar cle cor?Ficar, quem sabe, verrnelho, Iaranja, verdinho?

    Foi Isso que Fael resolveu fazer: mudar de cor paraacabar com as gozacoes do Romaozinho.Maria Mario uao gosrou nem 11111POllCO daIdeia. Mas quem clava ouvidos a