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“Feliz no amor”: o conceito de performance e a cultura do amor romântico na
publicidade de Chanel Nº5 1
TRINTIN, Claudia Farias Lopes (Especialista)2
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS
Resumo: O presente artigo traça uma relação entre o conceito de performance apresentado por Freire
Filho e o modo como as relações amorosas são tratadas pela publicidade do perfume Chanel Nº5. Através
da análise de conteúdo proposta por Bardin, levanta-se que o amor romântico é o fio condutor das
narrativas exibidas ao longo de quase 40 anos de publicidade. A linha criativa das campanhas segue a
mesma lógica e apresenta em diferentes momentos uma continuidade em relação ao tema amor,
exemplificada aqui através da apresentação dos comerciais La Piscine, de 1979, Monuments, de 1986, Le
Film, de 2004 e The one that I want, de 2014, sendo este último o objeto explorado de forma mais
aprofundada na análise. O drama e o sofrimento evocados pelo romantismo impõem uma alta
performance à realização amorosa, associando essa busca ao luxo e, com isso, reforçando a cultura do
consumo.
Palavras-chave publicidade; performance; amor romântico; Chanel.
INTRODUÇÃO
Acostumados a atingir metas na maioria das vezes desumanas no mundo
competitivo de economia global de nossos tempos, não refletimos sobre o quanto nossa
motivação é produto de uma cultura de “manuais”. Seguindo as normas dos livros de
autoajuda e das matérias de sites e revistas que sempre apontam os “melhores jeitos de
viver”, buscamos parâmetros de desempenho quase que inconscientemente. Os produtos
da mídia nos fornecem a “melhor direção” para nossos comportamentos há muito
tempo, sejam eles destinados a obter uma forma física padrão, atingir o nível máximo
de gerenciamento do tempo ou ainda constituir um casamento sólido e inviolável.
O conceito de performance, proposto por Freire Filho (2011)3, quando atrelado
ao significado de aprimoramento, apresenta também um sentido de representação: é a
interpretação de um papel social. É o papel que devemos desempenhar para atingir o
ideal proposto por todos esses manuais que nos cercam no cotidiano. Geralmente
1 Trabalho apresentado no GT de História da Publicidade e da Comunicação Institucional, integrante do 6º
Encontro Regional Sul de História da Mídia – Alcar Sul | 2016. 2 Especialista em Artes Visuais pelo SENAC. Mestranda em Comunicação Social pela PUCRS. Graduada
em Publicidade e Propaganda pela PUCRS. Consultora e professora. E-mail: [email protected] 3 Freire Filho apresenta o conceito de performance inspirado nos estudos realizados por Nicole Aubert,
Alain Ehrenberg e Benoît Heilbrunn, a respeito do culto da performance.
seguindo uma lógica empresarial, em que o desempenho de cada um resulta em
números, a ideia de performance não se restringe ao terreno mercadológico, mas pode
estar presente em vários âmbitos de nossas vidas. Segundo Freire Filho,
a ambição e a injunção da performance se manifestam,
também, em outros domínios existenciais. Não se trata
somente de uma necessidade econômica, mas de uma
doutrina ou de uma utopia de autorrealização que
dinamiza o individualismo contemporâneo, dando alento
moral a novas formas de concorrência de diferenciação
social. O desejo de ser mais – desafiando e superando, sem
trégua, os próprios limites – cativa o imaginário
contemporâneo, mobilizando energias psíquicas, anseios
narcísicos de reconhecimento e fantasias de onipotência.
(FREIRE FILHO, 2011, p. 37)
Partindo desse ponto de vista, deduz-se que mesmo as situações emocionais
podem estar condicionadas aos indicadores de comportamento. Bauman menciona uma
seção do jornal inglês Guardian Weekend, denominada “Espírito dos Relacionamentos”,
onde conselhos sobre como proceder diante de um problema amoroso são a pauta
recorrente. Relacionar-se hoje significa necessitar de instruções e prescrições para evitar
desconfortos e prever consequências (BAUMAN, 2004, p. 29). Isso também pode
significar a busca por “sintomas” que diferenciem o que é um “sentimento verdadeiro e
bom” do que não é. Parâmetros para avaliar como deve ser o amor que nos faz felizes.
Toda essa mobilização em torno de modelos e critérios, e nossa já habitual
crença no mundo das imagens, nos deixa mais expostos às influências dos meios de
comunicação, desejando viver as mesmas sensações que os personagens e entendendo
nossas vidas como pobres em desempenho emocional. Todas as possibilidades de elevar
os níveis de experiência parecem nos atrair. A publicidade conhece muito bem essa
dinâmica herdada da literatura, do cinema, da televisão: emocionar vende. E vende não
só produtos, mas modelos de comportamento.
Este artigo busca refletir sobre como a publicidade pode sugerir uma
performance em relação ao sentimento amoroso-sexual, partindo da análise da
publicidade de uma das marcas mundiais de maior sucesso: Chanel. Alguns autores
mostram-se de maior relevância para este estudo. O conceito de performance, já
apresentado, está atrelado ao estudo sobre felicidade proposto por João Freire Filho
(2011). Um olhar sobre o amor na cultura baseia-se em Yalom (2013), Bauman (2004) e
Campbell (2001). A referência sobre luxo, necessário para compreender a marca
explorada, busca o apoio de Lipovetsky e Roux (2005). A metodologia utilizada é a
análise de conteúdo proposta por Bardin (1977). O objeto de estudo é o comercial do
perfume Chanel Nº5, intitulado “The one that I want”4, veiculado em 2014.
O universo Chanel
Na trajetória das campanhas publicitárias de Chanel Nº5, um dos produtos mais
cultuados das prateleiras de luxo no século XX e ainda nas primeiras décadas do século
XXI5, a presença do amor é uma constante. Impregnados com a alma da estilista, os
comerciais recorrem a questões centrais que envolvem os conceitos impressos por Coco
Chanel: sedução, poder e sucesso feminino, apresentados quase sempre em situações
tipicamente românticas. Lançar um olhar sobre a forma de abordar as emoções através
da publicidade da marca Chanel, requer entender um pouco do seu universo, sua história
e sua importância.
A francesa Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971), ou Coco Chanel, tornou-se
um símbolo para a moda no século XX, deixando como obra o que foi considerado
como uma das revoluções mais importantes no vestuário feminino. A revista Times, em
1998, “incluiu o nome de Coco Chanel entre os vinte artistas que marcaram o século”
(ROUX, 2005, p. 154).
As referências sobre a vida de Gabrielle Chanel são sempre enfáticas ao que se
refere às suas origens: órfã, humilde, foi criada dos 12 aos 18 anos em um convento no
sudoeste da França, onde aprendeu a costurar. Saindo de lá, trabalhou como auxiliar de
costura, vendedora, corista de cabaré. Na vida boêmia, conheceu figuras importantes da
sociedade francesa, e, através dessa roda de amigos influentes e com um trabalho e uma
atitude inovadora, construiu uma carreira de sucesso como estilista.
Em uma sociedade ainda dominada pelos homens, credita-se à Chanel o mérito
de libertar a mulher através da criação de um vestuário mais leve, que concedia a
agilidade necessária que o início de 1900 exigia. Segundo o jornalista Hal Vaughan,
Ela queria que as damas deixassem de ser objetos
empoados e glamorosos e adotassem uma silhueta leve e
4 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8asRWe5XNw8. Acesso em 27/04/2016.
5 Segundo Roux, “Chanel faz parte, quaisquer que sejam os países, das „referências universais de luxo‟,
tanto em estudos qualitativos quanto quantitativos”. (LIPOVESKY; ROUX, 2005, p. 153).
ágil, usando seus pretinhos básicos e vestidos tubulares
como os boás. Iria fazer uma fortuna como o grande ponto
de referência para ambição e a emancipação das mulheres:
livres para ganhar a vida, para amar, para viver como
quisessem; não sob o tacão dos homens. (VAUGHAN,
2011, p. 40).
Se a vida moderna condicionada pela revolução industrial obrigaria as mulheres
– ao menos as da classe trabalhadora – a conquistar esse poder naturalmente, Chanel,
atuando junto às camadas mais altas da sociedade, definiu como isso se daria. Sua
posição enquanto criadora do vestuário para as modernas damas da sociedade de Paris,
o centro cultural do ocidente nesse tempo, leva à compreensão de como sua moda
tornou-se sucesso posteriormente entre as classes populares.
Num misto de invenção e realidade sobre sua vida pessoal, com polêmicas em
torno de seus amores, temperamento e personalidade, Chanel tornou-se um mito, e sua
marca herdou a responsabilidade de perpetuá-lo mesmo após a sua morte. A grife segue
no ranking das líderes de vestuário de luxo e a cada desfile ou lançamento de coleção,
renova o estilo consagrado por sua criadora. De acordo com o site de notícias G1 em
janeiro deste ano, a agência de informações financeiras Bloomberg teria afirmado que o
faturamento do grupo Chanel atingiu 7,51 bilhões de dólares em 2014, superando em
9,4% o ano anterior (CEO norte-americana...2016).
É notória a preocupação em manter a marca renovada e seu público
rejuvenescido. A cantora e atriz estadunidense de 15 anos Willow Smith foi nomeada
em 2016 como a mais nova embaixadora da marca Chanel (FILHA de Will Smith...,
2016). Acompanhando as novas gerações, que valorizam a diversidade em todos os
sentidos, a marca apresentou em seu desfile para o inverno 2016/17 um casting de
modelos de diferentes etnias e nacionalidades, mirando a economia global (CHANEL
dá um show..., 2016). De olho na recente abertura diplomática e econômica entre EUA e
Cuba, Chanel anunciou em outubro de 2015 que o país de Raúl Castro será o palco de
um dos desfiles da grife em 2016 (CHANEL anuncia..., 2015). Na edição de abril deste
ano da revista Vogue Brasil e no site da loja online, a publicidade da marca para sua
coleção feminina apresenta duas modelos caminhando de mãos dadas ou abraçadas,
evocando uma possível homoafetividade, ou simplesmente apontando numa direção
feminista (CHANEL, 2016).
Todos esses aspectos que refletem questões culturais atuais fortalecem a
importância de Chanel mundialmente, o que simboliza uma expansão de seus valores
tanto no sentido tempo quanto espaço, já que seu público-alvo expandiu-se em faixa
etária e procedência. Isso representa uma influência cultural dilatada, em que as
mensagens trazidas através de sua comunicação têm um poder de alcance
inquestionável. Sendo assim, a observância de sua publicidade constitui-se em uma
tarefa inevitável e de interesse de estudiosos da mídia.
Chanel e a cultura do amor romântico
As biografias publicadas em livros, peças de teatro e filmes trazem à tona a
presença imperativa das relações amorosas na vida de Coco. “Uma mulher sem amor
não é ninguém... uma mulher sem amor está perdida, não lhe resta outra coisa senão
morrer...” diz a mademoiselle Chanel da peça homônima de Maria Adelaide Amaral
(AMARAL, 2004, p. 111). De acordo com Mazzeo, na época em que esteve no orfanato
do convento de Aubazine, período compreendido entre 1885 e 1901, a jovem Gabrielle
escondia das freiras no sótão da abadia “seus livros de aventuras românticas”, entre eles,
“A Dama das Camélias” escrita por Alexandre Dumas (filho) em 1848. Era um
romance que “Gabrielle Chanel conhecia muito bem” (MAZZEO, p. 29) e que contava
a tragédia de uma cortesã e seu amor impossível por um jovem cavalheiro.
O romantismo era o movimento literário mais popular na França no século XIX,
iniciado por Rousseau ainda em 1761 com a obra “A Nova Heloísa”, de largo sucesso
imediato entre todas as camadas sociais da população francesa. A história que inspirou o
romance de Rousseau é na França o equivalente a de Romeu e Julieta no resto dos
países ocidentais. As cartas entre os apaixonados Abelardo e Heloísa no início do século
XII representam o amor associado à tragédia, bem como muitas outras narrativas que
estenderam o mito do amor impossível até os dias de hoje (YALOM, 2013). Este amor
idealizado ou marcado pelo sofrimento tem origem no que conhecemos por amor cortês.
O amor cortês, simbolizado pelos romances de cavalaria em que corajosos
paladinos veneravam damas de atributos quase divinais, foi a pedra fundamental para a
concepção de um modelo a ser desejado por toda uma sociedade que ansiava por viver
grandes paixões. As raízes dessa veneração a uma nobre dama, de valores tão elevados,
estão em parte situadas na prática religiosa do culto à Virgem Maria na Idade Média,
por isso as características desse amor estão direcionadas à idealização, onde a mulher
amada era sempre inacessível, e os poetas-menestréis faziam questão de renunciar às
suas expectativas de recompensas físicas. O sofrimento era uma dádiva para o poeta-
amante, que geralmente provinha de uma aristocracia que idolatrava cada vez mais os
amores impossíveis, já que o casamento não era considerado o lugar para isso acontecer.
Os romances de cavalaria e as canções trovadorescas geraram “uma teoria de
efeito multiplicada da cultura da alta nobreza em direção à cultura das classes
populares” (YALOM, p. 37), ou seja, como uma tendência de aspiração social, esse
comportamento afetivo das camadas favorecidas da sociedade serviu de modelo para as
demais. Isso explica como essa literatura disseminou-se no Ocidente através dos séculos
e chegou ao romantismo que conhecemos e que influenciou de forma evidente a vida de
Coco Chanel, que ficou famosa por proferir frases carregadas de sentimentalismo, como
“não se sentir amada é se sentir rejeitada em qualquer idade” (apud, VAUGHAN, 2011,
p. 41).
De acordo com Campbell (2001), o amor romântico tem uma afinidade com o
espírito do consumismo moderno, em especial no que tange à publicidade e sua criação,
que não só apresenta o “romance” como tema central ou pano de fundo de suas
campanhas, mas que recorre à exploração da imaginação, do excesso de fantasia e da
idealização para converter espectadores em consumidores. A proposta do autor não
apenas aponta esse elo entre o romantismo e a publicidade, mas trata de inverter a
lógica: teoriza sobre o romantismo ter desempenhado “um papel decisivo ao facilitar a
Revolução Industrial, e por essa razão, o caráter da economia moderna” (CAMPBELL,
2001, p. 10). Em sua visão, a fantasia instaurada pela cultura romântica provoca o
ambiente necessário para o consumo acontecer, onde o homem, envolto na dureza de
um cotidiano burocrático e calculista, tem no aspecto ilusório do sonho evocado pelo
“romance” a eterna mola propulsora para a realização de uma vida ideal.
A Publicidade de Chanel Nº 5 e a performance do amor romântico – uma análise de
conteúdo
Seguindo a linha investigativa proposta por Bardin para a análise de conteúdo,
foi selecionado para estudo o filme mais recente de Chanel Nº5 por representar a atitude
da marca nos dias de hoje, para que se perceba como esta compreende a questão do
amor na contemporaneidade. Para entender a concepção criativa como uma
continuidade histórica, apresenta-se brevemente os filmes exibidos em épocas
anteriores, levando em consideração os aspectos similares entre as peças através de
quase 40 anos. Partindo desse recorte, são apresentados os dados levantados e,
posteriormente, suas possíveis interpretações (BARDIN, 1977).
Nenhum produto da marca Chanel construiu uma história tão solidificada quanto
o Chanel Nº5. Envolto em lendas sobre sua criação, em 1920, o perfume nasceu sob a
égide do luxo, tanto pelo que o precede – a clientela sofisticada que Coco conquistou –
quanto pela configuração de sua produção, uma trama imersa em aventuras ao ártico e
em memórias da vida no convento de Aubazine para a busca das fragrâncias ideais
(MAZZEO, 2011).
Essa aura de dramaticidade na confecção de um produto está relacionada ao que
Roux refere como “busca de uma perfeição sinestésica” (LIPOVETSKY; ROUX, 2005,
p. 146) que envolve um artigo de luxo da produção ao consumo: matérias primas raras,
trabalho altamente artesanal, ambientação impecável do ponto de venda, entre outros
fatores. Fica evidente o quanto a publicidade deve se preocupar em divulgar valores
pertinentes a essa esfera de encantamento e lugar de exceção. Perceber o que está
associado ao luxo nas campanhas de Chanel então é identificar que comportamentos e
emoções são luxuosos, ou seja, é identificar um guia de como viver uma vida de “raro
valor”.
Na linha histórica das campanhas publicitárias de Chanel Nº5 encontramos
abordagens pouco dissonantes entre si. Com um trabalho evidente de marketing, onde a
construção da marca é feita de forma regular e pertinente ao seu conjunto, as campanhas
quase sempre dividem-se entre peças gráficas e filmes para a televisão, buscando
associar ao produto imagens de mulheres famosas – com exceção de Brad Pitt, único
homem que estrela um dos comerciais, em 2012. Assim, o clima adotado especialmente
nos filmes apresenta continuidade, mostrando situações em que a mulher ora fala sobre
uma relação amorosa, ora a relação é apresentada no enredo, com a presença secundária
de um ator homem. É sempre evidente certa contradição nessa personagem central dos
comerciais: ao mesmo tempo em que se mostra sedutora e confiante, fica clara sua
dependência emocional em relação ao homem – ela é a principal, mas parece que algo a
domina o tempo todo.
O filme mais recente criado para o perfume tem o título de “The one that I
want” (“você é quem eu quero”, numa tradução livre em português), é dirigido por Baz
Luhrmann e é estrelado pela top model Gisele Bündchen. A escolha por Gisele já indica
a estratégia e o posicionamento da marca: uma mulher de origem latina com traços
europeus – o que garante um alcance de público ainda maior – que é referência em
beleza, profissional reconhecida e detentora de grandes contratos comerciais, mãe e
casada com um homem igualmente famoso. Gisele já é por si só o que se pode chamar
de “unanimidade” no quesito performance. Em paralelo ao lançamento do comercial,
Chanel postou um vídeo com a modelo em sua casa nos Estados Unidos (CHANEL,
2015). Ela fala sobre suas origens, paz de espírito, conexão com a natureza, filhos e
“cheiro de terra molhada”. Toca violão e pratica yoga. Para os valores médios de
consumo, Gisele representa a mulher que todas desejam ser. No artigo que investiga as
concepções de felicidade feminina predominantes em duas revistas brasileiras, Freire
Filho aponta o perfil das entrevistadas, fornecendo uma referência para compreender a
escolha por Gisele.
A faixa etária das entrevistadas varia entre os 23 e os 48
anos. Todas possuem uma profissão de ensino superior e
pertencem à classe média/alta. Todas são brancas e têm
cabelos lisos. Quatro praticam atividades físicas. Das seis
mulheres, apenas uma não é casada. Somente duas não são
mães (...). Apesar da pretensa heterogeneidade dos perfis,
que anunciam que é possível ser feliz de qualquer forma,
percebe-se uma continuidade em relação aos ideais das
revistas femininas da metade do século XX: o casamento e
a maternidade são questões centrais para a felicidade.
(FREIRE FILHO; LEAL, 2015, p. 14)
O comercial tem como trilha sonora uma versão de “You’re the one that I want”,
do musical estadunidense “Grease” (no Brasil, conhecido por “Nos tempos da
brilhantina”), de 1978. A letra fala em transmitir a alguém o que se está sentindo, que é
preciso ser verdadeiro ao coração e o eu lírico acaba se declarando, dizendo “você é
quem eu quero, você é de quem eu preciso”. Quem canta a música é o cantor e
compositor norte-americano Lo-Fang, que aparece no filme executando a canção em um
local que lembra um teatro parisiense do início do século XX – já uma referência clara
à Coco Chanel.
A versão do filme para a internet tem duração de 3 minutos e 16 segundos e
conta a história de um homem que se declara a uma mulher – da qual ele parece fugir.
Fica evidente que há algo não mencionado: um casamento em crise, um caso
extraconjugal, um relacionamento ainda incipiente. Entende-se que o conflito faz jus à
narrativa de ficção, por trazer dinâmica e envolver o espectador6, no entanto, aí está
apresentado o drama característico do romantismo: um obstáculo a ser superado para a
realização do amor.
Gisele (para efeito de compreensão, mencionaremos seu nome para relatar as
ações da personagem interpretada por ela no comercial) inicia o filme praticando surfe7.
Surfar é dominar uma técnica, é a prática de um esporte radical, o que denota certo
poder e ao mesmo tempo é o cumprimento da normatização da vida saudável e ativa, da
busca e manutenção da boa forma, tão exaltada dos anos 80 para cá. De acordo com a
pesquisa realizada por Freire Filho, “verifica-se uma continuidade do ideal da beleza
como uma exigência tradicional da feminilidade, mas com uma ampliação de suas
justificativas. Ao lado da estética, ganha importância a questão da saúde física e
psicológica” (FREIRE FILHO, 2015, p. 16).
Ela surfa em frente à sua casa, e de dentro do mar, parece observar que o homem
com o qual se pressupõe que ela mantenha uma relação amorosa está prestes a ir
embora. Ele apresenta um ar preocupado e de fato deixa a casa. Ela observa a cena
também com fisionomia apreensiva, e vem correndo da praia em direção à casa na
tentativa de alcançá-lo. O drama está instaurado: ele a deixou, e ela, tristemente, o
observa através de uma janela, saindo num automóvel. Gisele abandona o encontro
consigo mesma dentro do mar, um instante de prazer, de plenitude, para literalmente
tentar alcançar algo que não a deixa relaxar. O seu momento deixou de ser seu.
Figura 1: CHANEL. Chanel Nº5: The one that I want – the film.
O que segue é uma sequência de demonstração da performance exigida da
mulher contemporânea. Ainda diante da janela da qual observa o carro do homem partir,
a personagem percebe a chegada de uma menina de cerca de 5 anos, com uma babá.
6 O conflito “revela uma verdade que aporta sentido a nossas vidas” (XAVIER, Adilson, 2015, p. 12).
7 A utilização do surfe no comercial também pode ser referência da inspiração esportiva para as criações
de Chanel na década de 1920 (VAUHGAN, 2011).
Gisele e a garota sorriem uma para outra, o que nos leva à dedução de que se trata de
mãe e filha. Ao abaixar-se para abraçar a criança, Gisele vê que o homem deixou um
bilhete sobre uma pequena mesa. Lê-se no envelope: “To my heart I must be true”
(“para meu coração tenho de ser verdadeiro”). Ela segura o bilhete, mas não o abre.
Aparece o perfume no comercial: Gisele repousa o envelope ao lado do frasco, que em
seguida é tomado por sua mão para ser borrifado no ar. Já é outra cena, onde ela aparece
maquiada e com o cabelo escovado. Está ao lado da filha, que brinca com o perfume
lançado no ar e observa a mãe aplicando batom. Em seguida, Gisele aparece em uma
sessão de fotos posando para a marca Chanel, exibindo roupas da grife. Nesse tempo
todo o envelope permanece fechado, o que nos induz a concluir que ela deu preferência
a ser a mãe dedicada, a mulher vaidosa e a profissional responsável – três papeis sociais
muito evidenciados pela cultura massiva. Essa contenção indica mais uma faceta da
performance: um controle das emoções, demonstrando gestão sobre as mesmas.
A partir daí, o romantismo volta com força total ao comercial e o autocontrole
exposto até o momento explode diante de uma situação que se faz urgente. Num
intervalo da sessão de fotos, Gisele decide abrir o envelope deixado pelo homem e ler
seu conteúdo. Com uma expressão abalada, ela sai às pressas do estúdio, fugindo do
chamado do fotógrafo (interpretado pelo diretor verdadeiro do filme). Vestindo o
figurino utilizado no trabalho, ela aparece dirigindo um automóvel e chora. O bilhete
está ao seu lado no banco do carona e agora é possível ler a mensagem, que, entre outras
palavras, exibe a frase “you’re the one that I want”. É a revelação de que o homem a
ama. O automóvel dirige-se a Nova York. Gisele chega a uma rua estreita, joga a chave
para o manobrista e corre para o teatro onde está o cantor e também o homem que a
deixou. Ele está sozinho, sentado observando a apresentação do cantor e com a gravata
borboleta desfeita – designando certa tristeza e despreocupação com os demais no
entorno, uma imagem de pouco cuidado consigo mesmo, como se algo o estivesse
incomodando. Ela o encontra, para em pé diante dele, segura de forma suave seu rosto e
senta em seu colo, beijando-o. O comercial finaliza com um insert do logotipo do
perfume e a hashtag #theonethatiwant sobre a imagem da modelo de costas sobre a
prancha dentro do mar.
A mulher que cumpre à risca todos os “mandamentos para a vida feliz” de hoje –
pratica exercícios físicos, é mãe, tem sucesso em sua profissão e possui uma condição
financeira capaz de lhe proporcionar luxo – parece ter uma performance ainda mais
severa a desempenhar: a exigida pelo amor romântico. Se todas as suas ações no
comercial induzem à compreensão de que essa é a maneira de mais alto valor de se
viver, afinal estamos tratando do luxo evocado por Chanel, então para ser “feliz no
amor” é preciso viver a lógica dramática de uma relação que penaliza, que impõe
sofrimento. O amor romântico de Chanel invoca uma alta performance. O histórico das
campanhas do perfume confirma.
Em 1979, o filme “La piscine”(“A piscina”), dirigido por Ridley Scott, mostra
uma mulher à beira de uma piscina, onde um homem possivelmente imaginário nada em
sua direção, até que desaparece quando se aproxima dela. Logo depois disso, o slogan
dito por um locutor off completa: “Share the fantasy” – ou, em português, “compartilhe
a fantasia”. Essa mulher, envolta em um cenário luxuoso, fantasia a presença de um
homem, como se sinalizasse o que lhe falta, talvez representando um amor impossível.
Figura 2: CHANEL. Chanel Nº5: La Piscine.
“Monuments” (“Monumentos”), de 1986, outro filme rodado por Ridley Scott
para a marca, desta vez com a atriz Carole Bouquet, mostra uma mulher vestida com o
famoso tailleur da estilista, seduzindo um homem que parece ser bem mais velho e
outro que parece ser bem mais jovem do que ela. Confiante e segura, a personagem
dirige sozinha por uma estrada em meio a um deserto para encontrar-se com um terceiro
homem, que, ao final do filme, a beija. A frase agora pronunciada por uma voz feminina
em off é “I am Chanel Nº5” – “eu sou Chanel Nº5”. O deserto é o símbolo claro do
obstáculo das relações românticas idealizadas.
Figura 3: CHANEL. Chanel Nº5: Monuments.
Já em 2004, o diretor Baz Luhrmann cria o comercial “Le film” (O filme) que
lembra um trailler de cinema, estrelado por Nicole Kidmann e o brasileiro Rodrigo
Santoro. Ela é uma celebridade, que, numa crise provocada pelo estresse da fama,
desaparece em um táxi com um estranho. Ele a leva para sua casa e lá, vivem uma
história de amor. Depois de diversos clichês cinematográficos ilustrando o romance,
como a clássica cena em que o homem inclina a mulher para beijá-la (incrementada pela
presença de um céu de fogos de artifício), ela precisa retornar à sua vida real, e, com
muito sofrimento e lágrimas, os dois se separam e terminam o comercial sonhando com
o amor impossível. Ela encarna a dama medieval, mulher inatingível, perfeita e agora
intocável.
Figura 4: CHANEL. Chanel Nº5: Monuments.
O que todas essas histórias têm em comum são personagens que parecem sempre
buscar viver uma fantasia ou uma emoção de alto impacto para provar que se sentem
vivas ou felizes. Quando assistimos a um roteiro com esse tom, temos a ideia de que um
amor do cotidiano não é o amor verdadeiro. O amor possível, o do convívio diário,
aquele que contribui para tornar uma vida em comum mais prazerosa, mais tranquila,
não representa o amor que vale a pena viver. A ideia romântica do amor arrebatador,
aquele que existe nos filmes, nos livros e na publicidade, não proporciona paz e paz
nem é o que se quer. Partindo desse ponto de vista, para viver um “grande amor”, ou
talvez, pior, um amor “de verdade”, raro e com todas as atribuições de um artigo
luxuoso, é preciso muita dedicação e esforço, pois é um tipo de amor que requer a
execução de tarefas árduas e a superação de obstáculos. Viver um amor deluxe, digno de
páginas de revista, é preciso mais do que ser magra, bem sucedida financeiramente e
estar bem vestida. É preciso construir uma alta imagem de poder e estar disposta a
investir num amor irrealizável – ou realizável, mas com doses altas de drama, ou seja, o
poder investido em si não é útil nem desejado no amor romântico.
O que se pede aqui é que se possa encadear tudo o que foi mencionado nesta
reflexão. Chanel é um exemplo da mulher empreendedora em um tempo em que as
opções eram poucas para o sexo feminino. De certa forma, tem uma importância que
representa liberdade em diversos sentidos. No comercial, essa liberdade existe, mas a
dominação exercida por uma relação que traz desassossego se sobressai. Todo o
investimento da marca para a construção de um sentido que vem ao encontro dos
desejos atuais de emancipação da mulher, da concretização de formas diversas de amar,
pensando em diversidade, parece que se esvai diante da força imperiosa de um amor que
impõe obstáculos. Não nos interessa levantar possibilidades sobre a história, já que uma
parte não nos é entregue pelo roteiro, e fica mesmo para a imaginação dos espectadores.
No entanto, o que aparece não deixa dúvidas: a mulher de Chanel Nº5 continua
dependente do amor romântico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Amor, publicidade e o conceito de performance. Neste breve estudo, pôs-se em
diálogo esses três elementos na tentativa de explorar as possíveis construções que vêm
sendo estabelecidas através de nossas práticas culturais. Enquanto objeto de tamanha
exposição, entende-se como necessário pensar as relações amorosas não somente no que
tange às próprias inclinações do ser humano, como se tudo o que se vivesse em termos
de emoções fosse simplesmente natural. Segundo Lévi Strauss, citado por Bauman, “o
encontro dos sexos é o terreno em que natureza e cultura se deparam um com o outro
pela primeira vez” (BAUMAN, 2004, p. 45). As concepções sobre relacionamentos
também devem ser analisadas como fruto de uma corrente de representações culturais,
que pela força de repetição ou pelo poder, podem converter-se em crenças e
expectativas e, com isso, transformar o panorama pessoal e social no qual estamos
inseridos.
Os efeitos de persuasão da publicidade estão hoje num patamar talvez menos
seguro, já que a vida na era informação permite o acesso a redes de opiniões e debates
sobre as construções culturais das mídias. Ainda assim, quando uma marca lida com
competência estética e protege valores muito sólidos pode envolver de forma fácil quem
busca entretenimento ao deparar-se com suas narrativas de alto teor emocional.
A ideia de que temos força para poder tudo, fazer tudo e merecer tudo no intuito
de viver uma vida plena e realizada, pode estar contemplando interesses muito
favoráveis somente para quem vende algo. A autorrealização máxima, em que o amor
tem seu posto inquestionável, está sujeita a ser permeada por ilusões muito antigas e que
podem beneficiar unicamente um quadro de consumo que se utiliza de nossa satisfação
em buscar indefinidamente novas e fortes emoções, de preferência “pagando caro” por
isso, pois é aí que o valor se apresenta. Para quem observa, qualquer semelhança entre
essa configuração e o mundo da moda talvez não seja mera coincidência.
REFERÊNCIAS
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