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fenômeno cada vez mais tratado de forma latente, velada, oculta, por meio de recomendações sutis de como evitá-lo, atenuá-lo, enfrentá-lo, combatê-lo e dominá-lo. 16 A partir de fundamentos da lingüística textual e da pragmática (ADAM; BONHOMME, 1997) uma das principais características da estrutura global do discurso publicitário é a de regular sua mensagem de acordo com o destinatário. Paralelamente aos efeitos do suporte e do tipo de produto, a publicidade esforça-se por adaptar-se aos pré- construídos socioculturais do público que, de alvo passivo, transforma-se em coenunciador. 17 Noções como esta podem explicar a tendência para aproximações com temáticas que trazem o ocultamento do envelhecimento, nos anúncios de cosméticos. Semelhantemente à estrutura enunciativa de outros produtos, o discurso dos cosméticos também é conformado - adquire a forma - ao que o público aprecia, valoriza ou pode compreender. A maioria dos anúncios não se dirige mais a tipos de públicos, mas a grupos específicos, determinados por suas tendências. 4. 2.1.1 Velhice, a palavra quase proibida Colocar em evidência conflitos, sejam eles lingüísticos ou extralingüísticos, não representa uma tendência predominante nos enunciados de cosméticos. Tal inclinação pode ser explicada pela assertiva de que a publicidade não se compromete com a veiculação de 16 Na década de setenta, Simone de Beauvoir publicou A velhice, uma obra de caráter filosófico e sócio- antropológico, antecipando preocupações e mudanças de atitude relacionadas com a chamada “terceira idade”, que viriam a ocorrer a partir das décadas de 80 e 90. A autora, além de caracterizar a velhice como uma instituição social, e não simplesmente como uma condição biológica, analisando-a através da história e situando-a em diversas sociedades e culturas, trata de gerontologia, medicina, sociologia, psicologia e economia, combatendo a postura até então dominante que caracteriza a velhice como uma espécie de segredo vergonhoso, sobre o qual é indecente falar (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990). O livro é, hoje, considerado um clássico e teve impacto comparável ao O Segundo Sexo que, em 1949, despertou interesse internacional e muita polêmica por colocar em pauta assuntos até então considerados tabus, como virgindade, menstruação, orgasmo, controle da natalidade e outros temas que viriam a ser centrais no movimento feminista ao final dos anos 60. 17 Para ADAM e BONHOMME (1997) a comunicação atual encontra-se apoiada sobre os sociostyles - sócio-estilos -, provenientes de cartografias sociais que, desde os primórdios da década de 70, na França, tentam difundir os estilos de vida das populações. Os “sócio-estilos” são avaliados por enquetes sistemáticas e não somente apresentam as características sócio-econômicas do público, mas igualmente, as suas motivações. Os autores enumeram cinco grandes famílias de “sócio-estilos” existentes na França: os ativistas, os materialistas, os conservadores, individualistas, e por fim, os egocêntricos. 189

fenômeno cada vez mais tratado de forma latente, velada ... da... · revolução industrial, da constituição da ciência médica, do triunfo da razão e da afirmação dos direitos

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  • fenmeno cada vez mais tratado de forma latente, velada, oculta, por meio de

    recomendaes sutis de como evit-lo, atenu-lo, enfrent-lo, combat-lo e domin-lo.16

    A partir de fundamentos da lingstica textual e da pragmtica (ADAM;

    BONHOMME, 1997) uma das principais caractersticas da estrutura global do discurso

    publicitrio a de regular sua mensagem de acordo com o destinatrio. Paralelamente aos

    efeitos do suporte e do tipo de produto, a publicidade esfora-se por adaptar-se aos pr-

    construdos socioculturais do pblico que, de alvo passivo, transforma-se em

    coenunciador.17

    Noes como esta podem explicar a tendncia para aproximaes com temticas

    que trazem o ocultamento do envelhecimento, nos anncios de cosmticos.

    Semelhantemente estrutura enunciativa de outros produtos, o discurso dos cosmticos

    tambm conformado - adquire a forma - ao que o pblico aprecia, valoriza ou pode

    compreender. A maioria dos anncios no se dirige mais a tipos de pblicos, mas a grupos

    especficos, determinados por suas tendncias.

    4. 2.1.1 Velhice, a palavra quase proibida

    Colocar em evidncia conflitos, sejam eles lingsticos ou extralingsticos, no

    representa uma tendncia predominante nos enunciados de cosmticos. Tal inclinao pode

    ser explicada pela assertiva de que a publicidade no se compromete com a veiculao de

    16 Na dcada de setenta, Simone de Beauvoir publicou A velhice, uma obra de carter filosfico e scio-antropolgico, antecipando preocupaes e mudanas de atitude relacionadas com a chamada terceira idade, que viriam a ocorrer a partir das dcadas de 80 e 90. A autora, alm de caracterizar a velhice como uma instituio social, e no simplesmente como uma condio biolgica, analisando-a atravs da histria e situando-a em diversas sociedades e culturas, trata de gerontologia, medicina, sociologia, psicologia e economia, combatendo a postura at ento dominante que caracteriza a velhice como uma espcie de segredo vergonhoso, sobre o qual indecente falar (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990). O livro , hoje, considerado um clssico e teve impacto comparvel ao O Segundo Sexo que, em 1949, despertou interesse internacional e muita polmica por colocar em pauta assuntos at ento considerados tabus, como virgindade, menstruao, orgasmo, controle da natalidade e outros temas que viriam a ser centrais no movimento feminista ao final dos anos 60. 17 Para ADAM e BONHOMME (1997) a comunicao atual encontra-se apoiada sobre os sociostyles - scio-estilos -, provenientes de cartografias sociais que, desde os primrdios da dcada de 70, na Frana, tentam difundir os estilos de vida das populaes. Os scio-estilos so avaliados por enquetes sistemticas e no somente apresentam as caractersticas scio-econmicas do pblico, mas igualmente, as suas motivaes. Os autores enumeram cinco grandes famlias de scio-estilos existentes na Frana: os ativistas, os materialistas, os conservadores, individualistas, e por fim, os egocntricos.

    189

  • questes que exijam um posicionamento marcadamente ideolgico, por parte do pblico

    consumidor.

    O espao organizacional do discurso publicitrio, de uma forma geral, no comporta

    uma via que nos conduza a leituras reflexivas acerca de problemas sociais, ou tragam

    questionamentos de ordem existencial. Parece existir uma tendncia geral de seduo, que

    suspende as leis do real e do racional e que retira a seriedade da vida (LIPOVETSKY,

    1989). Por outro lado, esta tendncia geral reinante no exclui abordagens polmicas acerca

    de aspectos que envolvam o produto, sua funo e sua simbologia.18

    Grande parte do universo discursivo da publicidade de cosmticos encontra-se

    alinhada com a ainda mais difundida - ou dominante? - das interpretaes reinantes no

    contexto social para o fenmeno do envelhecimento: a de que este processo sinnimo de

    decrepitude. Deduzimos que, talvez em decorrncia deste posicionamento, os enunciados

    publicitrios de cosmticos, em geral, no reafirmem, no relembrem, no evoquem, nem

    difundam esta interpretao.

    No entanto, no decorrer de nossas observaes dos anncios de cosmticos,

    percebemos a existncia de um ponto de tenso, ou ponto evidenciador de mudanas, que

    julgamos merecedor de destaque: trata-se da existncia de duas vises conflitantes de

    velhice.

    Uma primeira, mais cristalizada, que fortalece a compreenso de que o processo de

    envelhecimento representa uma poca sombria, decrpita, repleta de temores da morte, de

    acometimento de doenas, que culmina com o isolamento do indivduo dos processos de

    socializao, em sua fase final de vida.

    18 Um exemplo marcante desta situao o das campanhas de roupas da grife italiana Benetton, concebidas e realizadas pelo fotgrafo Oliviero Toscani. Constantemente apontado pelos publicitrios, como um profissional que no do ramo da propaganda, Toscani possui uma viso crtica aguada da prtica publicitria atual. Para ele, a publicidade deve tambm, alm de promover a venda da mercadoria, pronunciar-se acerca de questes sociais, polticas, ideolgicas, religiosas, no sentido de procurar conscientizar os sujeitos-alvo de sua comunicao. Afirma: Acho apavorante que todo esse imenso espao de expresso, de exposio e de afixao de cartazes, o maior museu vivo de arte moderna, cem mil vezes o Beaubourg e o Museu de Arte Contempornea de Nova York reunidos, esses milhares de quilmetros quadrados de cartazes mostrados no mundo inteiro, esses painis gigantes, esses slogans pintados, essas centenas de milhares de pginas de jornal impressas, esses milhes de horas de televiso, de mensagens radiofnicas, fiquem reservados a esse paradisaco mundo de imagens imbecil, irreal e mentiroso. Uma comunicao sem qualquer utilidade social. Sem fora. Sem impacto. Sem sentido. Sem outra mensagem que no seja a exaltao grotesca de um modo de vida acintosamente yuppie, bastante agradvel e bem-humorado (1996, p. 22).

    190

  • Perseguindo estas marcas, encontramos alguns enunciados que, embora no faam

    aluses diretas a essa viso, parecem traz-la implcita:

    - Loral.Plnitude. Quando um simples anti-rugas no mais suficiente... (Vide Figura 29);

    - Avon. Accolade. Alimente sua pele duas vezes ao dia. [...] Peles especialmente secas ou maduras, um tratamento mais rigoroso pode trazer de volta o vio perdido.

    Figura 33: Accolade, da Avon. Revista Elle, julho de 1996.

    Existe, no entanto, convivendo com a concepo institucional, uma segunda viso,

    mais recente, que aponta para a existncia de uma terceira idade.19 O numeral ordinal

    terceira nos remete a uma compreenso de continuidade, de que existem fases anteriores: a

    primeira e a segunda idade. inegvel que a terceira idade posiciona-se como o ponto

    culminante de uma linha abstrata, convencionalmente instituda como condutora da vida:

    aps uma segunda idade - compreendendo a maturidade;

    e aps uma primeira idade - compreendendo a infncia. 19 A expresso terceira idade tem origem numa das conhecidas divises das chamadas Idades do Homem - infncia, maturidade e velhice -, imortalizada em um quadro desse mesmo nome, pintado pelos pintores Ticiano (1488/1576) e Giorgioni (? /1510). Muitas outras divises em idades se celebrizaram atravs dos tempos, desde Hesodo, que em uma de suas obras - O trabalho e os dias - identifica cinco idades do homem. Na pea de Shakespeare, As you like it, so mencionadas oito idades do homem - o infante, o escolar, o amante, o soldado, o homem maduro, a velhice, a senilidade e a morte -, seguindo uma linha que vem da Idade Mdia que classificava as idades em infncia, puerilidade, juventude, idade madura, velhice e senilidade. Este tema foi muito popular entre os sculos VIII e XVII, estando presente em textos, calendrios e iconografias.

    191

  • Andrew Blaikie (apud WEIRNICK, 1995) associa a generalizao do uso do termo

    terceira idade para se referir velhice, com a mudana de atitudes e valores associados

    ps-modernidade. O autor enfoca o envelhecimento a partir de perspectivas que privilegiam

    as dimenses discursivas e de construo social de imagens e identidades. Assinala que,

    enquanto a modernidade e o industrialismo tiveram por base a ideologia do progresso, com

    a exortao do novo e, portanto, da juventude e a resultante desvalorizao da experincia,

    vista como conhecimento obsoleto, a ps-modernidade tende a borrar as linhas da velhice e

    da aposentadoria e promete, atravs do consumismo que crescentemente se volta para as

    necessidades dos compradores mais velhos, tanto novas possibilidades para o auto-

    desenvolvimento pessoal - cursos e atividades culturais voltadas para a terceira idade,

    universidades da terceira idade etc. -, quanto um aumento da influncia cultural e poltica

    desse grupo.

    Tais disposies possuem suas razes nas mudanas demogrficas das trs ou quatro

    ltimas dcadas do sculo XX e, apesar de atingirem mais diretamente os pases

    desenvolvidos, tendem a tornar-se globais. A nova realidade demogrfica leva criao de

    um grupo de terceira idade caracterizado por uma velhice ativa e direcionada

    principalmente para atividades de lazer e auto-desenvolvimento.

    A tecnologia e o consumismo criaram, pelo menos para os indivduos de classe

    mdia, no apenas condies materiais para uma velhice melhor, mas tambm novas

    opes para a renovao, identidade e desenvolvimento.

    Ainda que aponte para a etapa final da vida, a nomenclatura terceira idade faz

    desaparecer a aluso direta a vocbulos to semanticamente marcados, como velhice,

    senilidade e envelhecimento. Quer significar um novo sentido para a etapa final da vida,

    como uma poca no necessariamente sombria, penosa e infeliz, mas repleta de

    possibilidades de interao social. Tendo, como um dos fatores potencializadores para sua

    existncia, o avano da medicina e, conseqentemente, o desenvolvimento da geriatria,

    como especialidade mdica que se ocupa das doenas e das condies gerais de vida dos

    idosos.

    Essa dicotomia permeia os anncios de cosmticos durante a dcada de 90. Mais

    explicitamente ligados idia da terceira idade esto os anncios de duas empresas

    192

  • nacionais: Natura e O Boticrio. A primeira chega a expressar, literalmente, ser pioneira,

    no Brasil, da cosmtica voltada para a terceira idade:

    - Chronos. O primeiro anti-sinais para a 3 idade (Vide figuras 12 e 14;); - Eu nunca menti minha idade. Pra qu? A quem eu vou estar enganando? A mim? Eu

    tenho orgulho da idade que tenho.

    Figura 34: Chronos, da Natura. Revista Marie Claire, junho de 1998. O Boticrio veicula uma implcita aceitao do passar dos anos e suas repercusses

    aparncia, desde que estes anos tenham sido vividos plenamente: No importa quantos

    anos voc tem. Mas como voc viveu esses anos. Por meio da leitura do texto conclumos

    que o passar dos anos no deve ter tanta importncia, se vivido com estilo, ainda que o

    produto seja um tem indispensvel para a aquisio deste modo de vida (vide figura 2):

    Sua pele reflete mais do que sua idade. Ela reflete seu estilo de vida, quanto sol voc tomou, o quanto voc dorme, as experincias e emoes que viveu [...] so produtos que utilizam alta tecnologia para prevenir o envelhecimento precoce, ou para atenuar os sinais que j surgiram (REVISTA ELLE, ago. 1999).

    193

  • Embute-se a tal aspecto, em nossa observao, outra noo mais ampla que pode ser

    resumida na consensual expresso qualidade de vida.20 Amplamente significativa do

    ponto de vista social, mencionada anteriormente no captulo inicial, nesta noo encontra-

    se presente uma certa doutrina holstica do mundo, do indivduo. Remete-nos idia de

    aspirao por um estilo de vida que preza o equilbrio fsico, mental e emocional, a ser

    vivido, preferencialmente, distante dos grandes centros urbanos, sem poluio ambiental,

    sem o enfrentamento dirio das grandes distncias, sem o afastamento da natureza.

    Segundos dados da Associao Brasileira das Indstrias de Higiene Pessoal,

    Perfumaria e Cosmticos - ABIHPEC -, h vrios fatores que tm contribudo para o

    excelente crescimento deste setor nos ltimos cinco anos21 e situa o aumento da expectativa

    de vida, que traz a necessidade de conservar uma impresso de juventude, como um deles.

    Castells (1999) chama a ateno para o fato de que o mundo desenvolvido da

    revoluo industrial, da constituio da cincia mdica, do triunfo da razo e da afirmao

    dos direitos sociais alterou o padro dos ltimos dois sculos, prolongando a vida,

    superando as doenas, controlando os nascimentos, diminuindo os bitos, questionando a

    determinao biolgica dos papis sociais e constituindo o ciclo vital em torno de

    categorias sociais. Dentre estas, a educao, o tempo de servio, os padres de carreiras e o

    direito aposentadoria adquiriram extrema importncia.

    A expanso do tempo de vida ou elasticidade de seu limite biolgico prolongando

    sua durao mdia para o final da faixa dos setenta para os homens e incio da faixa dos

    oitenta para as mulheres, um elemento desencadeador de conseqncias sociais

    considerveis nas atuais sociedades e concepo de cada um, individualmente.

    Embora no passado fosse considerado um ltimo estgio homogneo da vida,

    dominado tambm pelo que se intitula de morte social, a velhice, atualmente, um

    20 A expresso qualidade de vida, em que pesem as justificativas para esta busca face degradao scio-ambiental em que vivemos, principalmente nos pases de capitalismo perifrico, passou a ser fruto de intenso modismo, empregada de forma irritante e abusiva, como justificativa ou chamariz para os mais diversos tipos de empreendimentos, sejam eles de domnio pessoal ou de mbito comercial. Por exemplo, os negcios imobilirios destacam-na para vender qualquer projeto predial: desde um que possua uma real e considervel rea verde em volta dele, at aquele que pe em destaque a presena de trs pequenos arbustos, na calada do prdio. 21 Conforme a ABIHPEC, a indstria brasileira de higiene pessoal, perfumaria e cosmticos apresentou um crescimento mdio deflacionado composto de 9,3% nos ltimos cinco anos, tendo passado de um faturamento lquido de impostos sobre vendas de R$ 5,5 bilhes, em 1997, para 8,3 bilhes, em 2001. Informaes mais pormenorizadas podem ser encontradas no prprio site da Associao, em . Acessado em: 18 jan. 2004.

    194

    http://www.abihpec.org.br/

  • universo altamente diverso, composto de aposentados precoces e mdios, idosos capazes e

    idosos com vrios graus e formas de limitao. A terceira idade se estende na direo de

    grupos mais jovens e mais velhos e redefine de forma substancial o ciclo de vida de trs

    modos.

    O primeiro deles, porque contesta a sada do mercado de trabalho como critrio

    definidor, visto que, para uma grande proporo da populao, cerca de um tero da vida

    pode ocorrer depois disso.22 O segundo diferencia os idosos fundamentalmente em termos

    de seu nvel de limitao fsica, nem sempre relacionado idade. O que de certa forma,

    atribui a condio de invlidos a outros grupos de deficientes mais jovens e,

    conseqentemente, produz uma nova categoria social. O terceiro deles, obriga a distino

    entre vrias faixas etrias, cuja diferenciao real depender muito do capital social,

    cultural e relacional acumulado durante a vida.

    Nos pases ricos, conforme atesta Pascal Bruckner (1997), a idade cessou de ser um

    veredicto. No existe mais um limiar alm do qual o ser humano estaria fora de uso, e hoje

    podemos recomear a vida aos 50 ou 60 anos, modificar o destino at os ltimos

    momentos, contrabalanar a desgraa da aposentadoria, que pe no refugo pessoas

    intelectual e fisicamente capazes. Lembrando Goethe - envelhecer retirar-se

    gradualmente da aparncia - o autor considera altamente positivo que, atualmente, um

    grande nmero de homens e mulheres desejem persistir na aparncia, em estado de boa

    sade relativa e sem sofrer discriminaes.

    So crescentes as estatsticas que atestam um nmero cada vez maior de indivduos

    chegando velhice, com uma sade menos degradada pelo tempo.23 Os resultados do censo

    demogrfico de 1991 mostram que um novo padro populacional entraria em vigncia,

    causando profundas repercusses sobre o futuro do Brasil. O grfico abaixo mostra o

    22 Para uma grande parcela de aposentados, a aposentadoria no significa a sada do mercado de trabalho, mas a entrada em novas relaes empregatcias, com o acmulo de penses e salrio e, portanto, com o aumento da capacidade de consumo. 23 Estudos recentes sinalizam que a populao brasileira est envelhecendo rapidamente. No final dos anos 60 iniciou-se no Brasil um processo de declnio acelerado das taxas de fecundidade - nascimento. Este fenmeno, inicialmente restrito aos segmentos populacionais urbanos mais privilegiados das regies desenvolvidas, logo se espalhou para todos os segmentos sociais, tanto na rea urbana, quanto na rural. A generalizao do declnio da fecundidade e o avano dos mtodos contraceptivos, conjugados com as transformaes econmicas e sociais, apontam para a continuidade deste processo nos prximos anos. Fonte: Livro Branco da Previdncia Social. Braslia: 1997. Documento Oficial da Presidncia da Repblica do Governo FHC. Disponvel em: < http:// www.planalto.gov.br >. Acessado em: 7 jan. 2004.

    195

  • crescimento do percentual de idosos na populao brasileira e suas projees, durante um

    perodo que abrange cinqenta anos:

    Fonte: Livro Branco da Previdncia Social. Braslia, 1997.24

    No Brasil, apesar da queda da mortalidade infantil, iniciada j na dcada de 40,

    observa-se, conforme Duval Fernandes (1996), que a reduo de fecundidade - taxa de

    nascimentos - ser de fato a responsvel pela modificao na estrutura etria da populao,

    com sensvel diminuio da proporo de jovens com menos de 15 e aumento da parcela da

    populao com mais de 65 anos.

    O quadro da recente dinmica populacional no Brasil mostra que o pice da

    pirmide etria, populao de 65 anos e mais, provavelmente o grupo que experimentar

    o maior crescimento e dever receber maior ateno, no que se refere aos benefcios das

    polticas pblicas. As pirmides etrias abaixo apontam que, apesar de no muito numeroso

    - so previstos aproximadamente 18 milhes de idosos em 2020 - a participao deste

    24 Grfico e informaes disponveis no site: . Acessado em: 8 jan. 2004.

    196

    http://www.planalto.gov.br/

  • grupo no total da populao brasileira dever estabilizar-se em 15%, por volta do ano de

    2050.

    197

  • Na situao descrita por Fernandes (1996), na qual h um processo de queda da taxa

    de fecundidade, a tendncia geral a de reduo do tamanho mdio das famlias, o que

    fatalmente colocar o idoso em condio material e psicolgica desfavorveis. Para as

    famlias menores, o idoso passar a ser um peso maior, com menos filhos para dividir a

    tarefa dos seus cuidados; o que poder trazer a probabilidade de ficar sozinho. Esta situao

    poder afetar principalmente as mulheres, que formam o maior contingente deste grupo

    etrio.25

    4. 2. 2 Associaes entre sade e beleza

    No universo enunciativo da publicidade de cosmticos, h uma outra referncia que

    se traduz em importante marca discursiva: a busca por um estado de sade plena/integral,

    que conjuga a aquisio da sade fsica, mental e espiritual. Este simboliza a garantia de

    uma vida mais longa e com mais beleza fsica. Esta, fundamentalmente relacionada com a

    aquisio da sade plena; do contrrio, no poder ser adquirida, cultivada e preservada. O

    estado de sade plena vem acompanhado de menes a outros fatores que permeiam os

    horizontes sociais deste novo milnio: cuidados com o corpo, adoo de hbitos como a

    prtica de exerccios fsicos, dietas alimentares etc.

    Partindo da premissa de que o discurso publicitrio pertence ao conjunto de prticas

    sociodiscursivas, que expe, refora e/ou instaura matrizes de sentido de uma poca,

    observamos, nos enunciados de cosmticos, as marcas discursivas de tempo identificadas

    com o conceito da utopia da sade perfeita (SFEZ, 1996).

    Os anncios abaixo comprovam que os cuidados com o corpo, alm de se refletirem

    na aparncia geral, trazem efeitos benficos para a pele do rosto. Estes exemplos, embora

    situados na dcada de 90, j apontam para uma nova orientao: a de no haver marcas

    25 Embora escrito em 1996 e tomando como base o censo demogrfico de 1991, o artigo de Fernandes j apontava para a necessidade de um debate profundo sobre a situao da previdncia pblica no Brasil. Conforme o autor, apesar do aumento na esperana de vida, no declnio da fecundidade e conseqente alterao nos pesos relativos dos diversos grupos etrios da populao, que reside o maior problema relacionado com as aposentadorias. O aumento da taxa de dependncia da populao de 65 anos e mais, em relao quela em idade produtiva - de 15 a 64 anos - praticamente ir dobrar entre 1980 e 2020, passando de 6,9% para 12,8%. O autor afirma ser necessrio gerar recursos suplementares para fazer frente s despesas de um sistema que hoje, apesar de toda a polmica suscitada pelo assunto, considerado por todos como imperfeito e falido (1996, p. 194).

    198

  • dicotmicas entre a necessidade de se cuidar da pele do rosto e a necessidade de se cuidar

    do corpo:

    - Biofitocosmtica. A cincia a servio da sade. A sade a servio da beleza. A beleza como conseqncia de ser, estar e se sentir bem. Regime bsico de tratamento facial. clean. clnico. Clinance;

    - Para ficar mais bonita depois deste creme, s se voc pudesse comer seus cosmticos.

    Agora voc pode. Radicaline,[...] gel creme para a pele e um complexo vitamnico e cpsulas para voc ingerir. Agora voc vai tratar de sua beleza por dentro e por fora.

    Figura 35: Linha completa de produtos Clinance. Revista Claudia, out. 1990.

    199

  • Figura 36: Radicaline, de Pierre Alexandre. Revista Elle, agosto de 1997.

    Dentre inmeros anncios em que tambm comparecem como principal referencial

    enunciativo, as relaes entre beleza e sade so patentes nos enunciados selecionados

    acima. No caso especfico do anncio de Radicaline, de Pierre Alexandre, de folha dupla e

    criado com a preponderncia de tons alaranjados, a modelo leva boca uma drgea como

    se fosse ingeri-la. H uma sintonia, um processo de estreita referncia entre o texto - Para

    ficar mais bonita depois de usar este creme, s se voc pudesse comer seus cosmticos - e

    as imagens: modelo, pote aberto com o creme mostra e a ao de levar a drgea boca.

    Esta linha demonstra uma nova maneira de tratamento cosmtico que conjuga o produto

    tradicional - uma substncia cremosa em tons alaranjados, acondicionada em embalagem

    redonda, um pote, reconhecidamente adequada para este fim - , mais um frasco maior que

    comporta um complexo vitamnico, em forma de drgeas vermelhas.

    Originria da medicina, a apresentao de medicamento representada pela drgea -

    popularmente conhecida como comprimido -, tradicionalmente empregada em

    tratamentos de sade. Com a expresso Agora voc pode, referindo-se oportunidade que

    se cria em tratar a pele internamente, organicamente, por meio de substncias que no so

    200

  • aplicadas sua superfcie, constatamos indcios de novos conceitos em tratamentos de

    beleza.

    No queremos dizer com isto que nossas dedues estejam aliceradas unicamente

    na observao deste anncio, mas na constatao de que vrias outras ocorrncias similares

    encontram-se presentes no corpus da investigao e podem ser conferidas no Apndice. Os

    dois anncios aqui analisados so apenas exemplos deste tipo de ocorrncia.

    O anncio de pgina nica, da Clinance, caracteriza-se por trazer um extenso ttulo

    no qual a apresentao de termos como biofitocosmtica, por exemplo, que rene trs

    palavras: o prefixo bio - vida-, a abreviatura de fito - em referncia fitoterapia -, e o termo

    cosmtica, que posteriormente explicado no texto: A cincia a servio da sade. A sade

    a servio da beleza. A beleza como conseqncia de ser, estar e se sentir bem [...].

    Sintetiza-se, assim, uma concepo de beleza - que no mais se restringe unicamente a um

    padro fsico, traduzido na perfeio dos traos -, bem como uma viso futurstica da

    cosmtica.

    Na anlise do atual culto ao corpo, duas grandes tendncias podem ser delineadas:

    uma que se preocupa com a sade e outra, cujo objetivo esttico (MIRA, 2001). So duas

    inclinaes que se encontram em estado de tenso. O que tambm no impede que, muitas

    vezes, cheguem a confundir-se na idia de que um corpo saudvel um corpo bonito e

    vice-versa.

    O exerccio fsico e a dieta alimentar aparecem como os pontos de confluncia

    dessas duas vises. Quem se alimenta corretamente e faz exerccios fsicos tem um corpo

    bonito - magro - e no apresenta problemas circulatrios, respiratrios, depressivos etc. Os

    exemplos abaixo atestam esta vertente que procura conjugar os cuidados com a sade como

    aliados na busca pela aquisio de beleza:

    - Healthy-Skin. Revela a beleza do seu rosto. Restaura a sade da sua pele; - Face Sculptor. O efeito lifting sem cirurgia.[...] a utilizao do poder de Pro-Phosphor

    para estimular o fsforo cutneo naturalmente presente no organismo e fortalecer internamente os tecidos da pele.

    201

  • Figura 37: Healthy-Skin, da Neutrogena. Marie Claire, mar. 1998.

    Figura 38: Face Sculptor, da Helena Rubinstein. Revista Marie Claire, 1998.

    202

  • Nos anos 90, as bancas estiveram repletas de revistas que abordam temticas

    relacionadas com preocupaes associadas esttica e sade. Embora os objetivos

    estticos ainda prevaleam, os cuidados com a sade so tratados de forma compatvel com

    eles, podendo at mesmo englob-los. Mira (2001) destaca a presena da transformao de

    um padro de beleza baseado em artifcios - uso do pan-cake, de perucas, de unhas postias

    etc.- , para um look mais natural, mais saudvel, em um universo que aborda tambm

    contedos relacionados com exerccios fsicos e dietas.

    Este processo de transformao do padro esttico acima descrito comparece no

    universo enunciativo da publicidade de cosmticos, de forma mais ampla, aliado a outras

    temticas que contribuem para a configurao deste universo enunciativo. Os laboratrios

    nacionais Natura e O Boticrio, por exemplo, destacam-se no corpus que analisamos, por

    institurem como argumento central nos anncios de seus produtos, o destaque

    necessidade de se dar especial ateno a uma concepo de vida mais saudvel, na busca

    pela beleza.

    Consolidando-se como uma outra temtica tambm presente no universo

    enunciativo da publicidade de cosmticos - embora menos recorrente que a mencionada

    acima - encontra-se o prolongamento da concepo de natural e de natureza que permeia

    outros mbitos do social. Normalmente associada aos hbitos alimentares, a formas de

    viver, maneiras de vestir, e s indicaes de consumo de produtos fabricados sob esta

    orientao, esta temtica tambm se fundamenta em uma viso mais ampla de beleza, que

    alia os cuidados com a aparncia com a ateno para os hbitos de vida.

    Williamson (2000, p.122) defende ser o natural o sentido dado pela cultura

    natureza; um sentido que socialmente determinado e no uma qualidade fixa, como

    demonstrado pela mudana do que constitui o natural em diferentes momentos da histria.

    Complementa que a sociedade trabalha a natureza de duas maneiras: com a tecnologia para

    criar produtos manufaturados e com a ideologia para criar smbolos do natural, que se

    justapem a estes mesmos produtos.

    O universo enunciativo dos cosmticos associa a busca por uma aparncia mais

    natural e saudvel com as possibilidades de utilizao de um produto igualmente natural,

    composto de elementos primais da natureza, provenientes dos reinos vegetal e/ou mineral.

    203

  • Os anncios que estabelecem tais relaes, normalmente destacam os benefcios que este

    tipo especial de cosmtico pode oferecer. Vemo-las muito claramente em:

    - gua. Essencial vida. Creme Hidratante com vitaminas A e E e[. ..]; - Farmaervas. Tracta [...]. Um novo conceito em tratamento natural. A Fora das

    plantas medicinais.

    Figura 39: Linha Acqua, da Nasha. Elle, dez. 1994.

    Figura 40: Linha Tracta, da Farmaervas. Marie Claire, set. 1994.

    204

  • No ttulo do primeiro anncio, a gua destacada como um elemento natural,

    hidratante, presente na composio do cosmtico: gua. Essencial vida. No texto que

    comparece ao lado das fotografias dos produtos, outros elementos no to naturais quanto a

    gua, o colgeno e a elastina apresentam-se como componentes da mesma frmula: os

    protetores solares, de formulao qumica. O que nos leva a concluir que o destaque gua,

    nos ttulos do anncio e da linha de produtos - chamada Acqua -, uma estratgia

    publicitria empregada para chamar a ateno ao produto.

    Tratamento natural o enfoque dado aos produtos da linha Tracta, da Farmaervas.

    Por meio do slogan, fora das plantas medicinais, este laboratrio apostou em uma certa

    predileo social pelo que se intitula como sendo natural. Os produtos apresentados no

    anncio trazem explicaes sobre suas composies. Aps a descrio da funo de cada

    um deles - creme de limpeza esfoliante, mscara facial regeneradora -, os principais

    ingredientes ativos so destacados: papana, rosmarino, hamamlis, extrato de ch verde,

    arnica, tlia, algas marinhas etc. Aqui, h uma clara exacerbao do poder das plantas

    medicinais, enquanto ocultada a frmula real e os demais ingredientes no naturais que,

    muitas vezes, constituem a quase totalidade da composio do produto.

    4. 2. 2. 1 A democratizao dos cuidados estticos

    Os processos associativos entre a necessidade de ser saudvel para ser belo,

    decorrem do desenvolvimento dos cuidados e prticas de beleza. Conforme Lipovetsky

    (2000), foi preciso esperar a chegada do sculo XX para, pela primeira vez, os produtos e

    as prticas de embelezamento deixarem de ser um privilgio das classes mais favorecidas,

    iniciando-se uma era democrtica da beleza, resultante da difuso dos cuidados estticos.

    O consumo de cosmticos aumenta moderadamente at a primeira Grande Guerra e

    se acelera nos anos 20 e 30. O batom fez imenso sucesso a partir de 1918 e os bronzeadores

    e os esmaltes de unhas fizeram furor nos anos 30. Em virtude de fatores como os

    progressos cientficos, os mtodos industriais, a elevao do nvel de vida, os produtos de

    beleza tornaram-se, em nossas sociedades, artigos de consumo corrente, um luxo ao alcance

    de todos.

    205

  • Ao longo das ltimas dcadas, a democratizao das prticas de consumo dos

    produtos de beleza no apenas se intensificou, como tambm foi acompanhada por um

    deslocamento de prioridade, por uma nova economia das prticas femininas de beleza que

    institui o primado da relao com o corpo. Durante muito tempo, conforme Lipovetsky

    (2000), os cuidados proporcionados aparncia feminina foram dominados pela obsesso

    com o rosto, por uma lgica decorativa concretizada no uso dos produtos de maquiagem,

    nos artifcios da moda e do penteado.

    Nas sociedades contemporneas essa tendncia j no mais dominante. O corpo e

    sua conservao mobilizam cada vez mais as paixes e a energia esttica femininas. No

    presente, as prticas de beleza procuram menos construir um espetculo ilusrio do que

    conservar um corpo jovem e esbelto. Seu objetivo o de se importar menos com a

    sofisticao da aparncia e de dar mais importncia ao rejuvenescimento, tonificao, ao

    fortalecimento da pele. Encontramo-nos no momento da antiidade e do antipeso e o

    centro de gravidade esttico deslocou-se das tcnicas de camuflagem para as tcnicas de

    preveno (LIPOVETSKY, 2000, p. 131).

    Muito embora a publicidade de cosmticos no exponha de maneira explcita os

    projetos e os desenvolvimentos tecnolgicos que objetivam melhorar radicalmente nossos

    sistemas fsicos e mentais, podemos seguramente confirmar - e sobre isto j falamos mais

    especialmente no captulo inicial -, a existncia de pontos de ligao que, embora apaream

    de maneira sutil, tnue, demonstram que a instncia enunciativa da publicidade de

    cosmticos, encontra-se sintonizada com estes novos vetores de transformao da esttica

    corporal.

    Os motivos que impulsionam o uso dos cosmticos j no mais se encontram

    centralizados em justificativas como ausncia de beleza, imperfeio dos traos ou em

    anormalidades que se apresentam na ctis, mas, sim, localizados na evocao ao combate

    do desgaste fsico: cansao, ressecamento, flacidez, olheiras, inchaos, bolsas em volta dos

    olhos etc. Alguns exemplos abaixo:

    - Shiseido.Vitalidade fluida. Desperta a pele cansada para uma nova vitalidade e

    elasticidade; - Force -C, o antdoto para o cansao da pele; - Revitalift-Olhos. [...] suaviza as linhas finas ao redor dos olhos. Reduz as bolsas. Absorve

    facilmente. No oleoso. Sem perfume. Testado oftalmologicamente(Vide figura 16).

    206

  • Figura 41: Vital-Perfection, da Shiseido. Marie Claire, jun. 1996.

    Figura 42: Force-C, da Helena Rubinstein. Marie Claire, jul. 1997.

    207

  • At o presente momento, fundamentamos nossas hipteses de que o tempo a

    marca discursiva central da publicidade de cosmticos e alia-se a outras temticas -

    juventude, sade e beleza - , para construir seu universo enunciativo. A seguir, destacamos

    importante simbiose lingstica que o discurso publicitrio de cosmticos estabelece com

    estruturas discursivas, reconhecidamente identificadas com o universo lingstico-

    discursivo da cincia e da tcnica, a fim de legitimar seu discurso.

    4. 3 AS RELAES INTERDISCURSIVAS COM O UNIVERSO DA CINCIA

    E DA TCNICA

    As relaes temporais so o principal referencial enunciativo do amplo universo

    discursivo dos produtos cosmticos. Em torno delas gravitam e originam-se outras

    associaes discursivas j analisadas anteriormente: juventude, sade, beleza. Vencer a

    passagem dos anos, combater e/ou atenuar as marcas que o tempo impe sobre a aparncia,

    uma das funes para a qual o cosmtico foi criado. O tempo, posicionado como inimigo

    implacvel deve ser combatido, vencido, domado.

    Contudo, necessrio convencer para a compra e para a utilizao do cosmtico.

    Nos anncios, os argumentos para a aquisio e utilizao so geralmente associados com a

    eficcia do produto. Cada cosmtico, em particular, deve ser mais eficiente que o seu

    concorrente. As particularidades que vo diferenci-lo dos demais so quase sempre

    alusivas sua composio, ao processo de fabricao e aos procedimentos por meio dos

    quais o testado e comprovado.

    Na construo do enunciado, o destaque frmula requer a aproximao com outros

    universos lexicais. No caso especfico dos anncios de cosmticos, comum o emprstimo

    de termos que tenham propriedades semnticas associadas a impresses de credibilidade,

    veracidade, confiabilidade e eficincia. Normalmente, a frmula aquela que possui os

    mais potentes ingredientes, recm-descobertos, que vo corrigir as imperfeies cutneas,

    proporcionar mais luminosidade, mais hidratao, mais maciez, etc.

    Afirmando que toda publicidade dos produtos de beleza fundamenta-se em uma

    espcie de representao pica do ntimo, Roland Barthes (1993, p. 58) argumenta que as

    208

  • pequenas introdues cientficas destinadas a apresentar publicitariamente o produto, nos

    informam que ele limpa em profundidade, desobstrui em profundidade, alimenta em

    profundidade, ou seja, que custe o que custar o produto se infiltra na pele.

    Constatamos, por meio da anlise do corpus, que os emprstimos lexicais

    originrios do universo discursivo da cincia e da tcnica caracterizam as relaes

    interdiscursivas mais freqentes do discurso da publicidade de cosmticos. Alm de

    produzir a ao de limpar em profundidade, percebemos que os emprstimos das estratgias

    do universo tecno-cientfico tambm legitimam um conjunto amplo de aes igualmente

    positivas, desempenhadas pelo cosmtico: hidrata, amacia, d luminosidade, suaviza as

    rugas, protege a pele etc, etc. Por meio destas associaes com estratgias lingstico-

    discursivas reconhecidamente identificadas com o lxico da cincia e da tcnica, a

    publicidade fundamenta seus argumentos e legitima as potencialidades do produto.26

    A compreenso da instncia discursiva da publicidade suscita a necessidade de

    reflexo sobre a heterogeneidade discursiva que a caracteriza. Partimos da premissa de que

    qualquer prtica discursiva definida por suas relaes com outras prticas e recorre a elas

    de forma complexa - captulo dois. Amparando-nos em Fairclough (2001, p.133) para

    explicar como se estabelecem essas relaes, por meio da afirmao de existncia de uma

    distino entre duas noes que podem explicar a natureza heterognea de uma prtica

    discursiva: a) a intertextualidade, que manifesta, na qual percebemos a presena explcita

    de outros textos em um texto; b) a interdiscursividade, que representa a constituio de um

    texto com base em uma configurao de tipos de textos ou convenes discursivas.

    No processo relacional estabelecido entre a esfera discursiva da publicidade e a

    esfera discursiva da cincia e da tcnica, h o predomnio da interdiscursividade,

    caracterizada pelos entrelaamentos entre um e outro tipo discursivo e pelos processos de

    mesclagem que acontecem de forma constitutiva. Embora incorporados, os entrelaamentos

    no alteram o formato caracterstico do que consideramos ser um anncio publicitrio.

    26 Para Coimbra (2001), as linguagens tcnicas e cientficas possuem um papel fundamental na progresso, manuteno e transmisso do saber. Em todas as lnguas, estas linguagens so elementos de diversidade e de riqueza, sobretudo no que toca terminologia. Por meio delas, novas realidades so descobertas e inventadas, novas explicaes so fornecidas, novas relaes so desvendadas e novos termos vo surgindo. Para a autora, com o tempo e a divulgao do saber, os novos termos podero ser eventualmente incorporados no lxico comum da comunidade lingstica, enriquecendo-o e ampliando-o.

    209

  • O produto resultante deste processo de mesclagem no traz com ele as estruturas

    caractersticas dos textos de natureza tecno-cientfica, como os relatrios, monografias,

    teses, dissertaes, projetos de pesquisa, artigos cientficos etc. Como j sinalizamos

    anteriormente, o processo de mesclagem tambm no provoca modificaes quanto ao

    nvel grfico do que reconhecidamente concebemos como sendo um anncio publicitrio.27

    O interdiscurso pode abranger unidades discursivas de dimenses muito variveis

    (CHARAUDEAU, 1997). No caso dos anncios de cosmticos percebemos uma dupla

    ocorrncia quanto ao emprstimo das estratgias discursivas oriundas dos universos tecno-

    cientfico. A primeira delas de ordem lexical. Refere-se ao emprego de vocbulos que

    nomeiam substncias pertencentes a consagrados campos do saber, de reconhecida

    autoridade, especificamente, queles que pertencem s cincias biolgicas, e suas

    especialidades: farmcia, medicina, bioqumica etc.

    - Ganhe Tempo. cido Gliclico, Extratos Placentrios e Pentaglycan num nico produto; -. Bio Active Phase 1+2. [...] O nico produto feito no Brasil que contm bioecolia e beta

    hidrxi cidos.[...] No irrita e mantm o PH natural da pele (Vide figura 20).

    Figura 43: Chronos +, da Natura. Revista Claudia, agosto de 1994.

    27 Estrutura clssica de um anncio publicitrio, conforme Adriano Duarte Rodrigues (1987, apud GUEDES PINTO, 1997, p. 20) ) comporta vrios elementos: o ttulo normalmente a frase que em letras mais destacadas acompanha a ilustrao; esta ltima , por sua vez, encerrada pela linha de assinatura que inclui o nome do produto e que se posiciona, habitualmente, junto do logtipo e do slogan, a frase-emblema que define o produto ou marca. Muitos anncios incluem ainda o texto de argumentao que , como facilmente se conclui, aquela parcela de texto de maior dimenso, onde se concentram os argumentos especficos de venda. Nem todos os anncios obedecem a uma estrutura clssica, com a presena de todos os elementos referidos; alguns deles, como sabemos, limitam-se a exibir a ilustrao e a linha de assinatura.

    210

  • A segunda ocorrncia comprometida com a exaltao de procedimentos e

    convenes, prprias das prticas tecno-cientficas. Nos enunciados de cosmticos, eles so

    caracterizados como processos valorativos, que adicionam mais credibilidade ao produto.

    So freqentes as menes prtica da pesquisa, descoberta e ao destaque a algum

    ingrediente ativo presente na composio do cosmtico, ao uso do teste como recurso para

    a comprovao dos resultados, s recomendaes de como aplicar o produto, dentre outras

    convenes.

    importante reiterar que estes emprstimos so estrutural e estilisticamente

    incorporados nos enunciados de cosmticos como textos argumentativos, normalmente

    posicionados nos anncios com fontes de tamanho mais reduzido.

    Vejamos alguns exemplos ilustrativos:

    - Com este objetivo Claude Bergre pesquisou e desenvolveu um produto base de Hyasol e Hygroplex [...];

    - Aps vrios estudos, os pesquisadores de Lancme concluram suas pesquisas e

    venceram uma etapa decisiva na luta contra o envelhecimento da pele, surgindo assim, PRIMORDIALE (Vide figura 15);

    - Uma revoluo cientfica. Orlane apresenta com exclusividade a primeira

    aplicao cosmtica dos resultados da Pesquisa dos Fatores de Crescimento Celular, ganhadora do Prmio Nobel (Vide figura 13).

    211

  • Figura 44: AH2, de Claude Bergre. Claudia, julho de 1992.

    Uma vez que so muitos os anncios com as caractersticas de interdiscursividade,

    julgamos pertinente eleger um deles - aquele que rene de maneira bastante representativa

    estas propriedades, em sua superfcie textual - para uma anlise mais extensa e,

    conseqentemente, mais detalhada.

    Assim foi feito, na seo seguinte.

    4. 3. 1 Um caso ilustrativo: Chronos Gel C+

    Para finalizar este captulo, realizamos uma anlise mais detalhada do anncio do

    cosmtico Chronos Gel C+. Ele combina de maneira patente as relaes interdiscursivas

    em dois nveis distintos: o lexical e o grfico. No primeiro, apresenta nominalmente vrias

    substncias que compem sua frmula. No segundo, apresenta como recurso cenogrfico o

    ambiente de um laboratrio qumico - o laboratrio da Natura, empresa responsvel por sua

    fabricao -, no espao prprio e caracterizado como o de um anncio.

    212

  • Figura 45: Chronos Gel C +, da Natura. Revista Claudia.

    213

  • O anncio disposto em trs pginas. Na primeira, expe os rostos de modelos com

    pele j tratada pelo produto. Nas segunda e terceira, reproduz o ambiente do laboratrio,

    onde a pesquisadora-Natura, que aparece em destaque por trajar roupa branca,

    posicionada, por meio de uma legenda que explica a sua funo, como profissional

    competente para realizar a tarefa de demonstrao do produto.

    Por intermdio de uma interpretao que extrapola as caractersticas formais e

    procedimentais e busca alcanar uma concepo institucional, arriscaramos afirmar que a

    publicidade vale-se das estruturas discursivas da cincia com o objetivo de dar

    credibilidade ao produto, exaltar e legitimar suas potencialidades e destacar, em sua

    formulao, alguma matria-prima recente, revolucionria, tanto para o campo de

    produo do qual provm, quanto para o mercado consumidor para o qual destinado.

    Lembramos que o sabo em p Omo, h dcadas, vem sendo anunciado em um simulacro

    de laboratrio, de onde testado por especialistas e aprovado por donas-de-casa do pas

    inteiro.28

    A interseco com o universo discursivo da cincia e da tcnica faz parte da busca

    do discurso publicitrio para adquirir as mesmas condies de legitimidade social

    alcanadas pelos enunciados tecno-cientficos. A estratgia de amparar o discurso

    publicitrio em um dizer cientfico evidencia uma compreenso socialmente disseminada29

    de que, por intermdio da pesquisa, do aprofundamento e da investigao em determinados

    campos do saber, alcana-se a objetividade, a eficcia e a resoluo de todos os problemas,

    sejam eles individuais ou coletivos.

    Tratando-se deste espao comum, de fuso, entre a esfera discursiva da publicidade

    e a esfera discursiva da cincia, podemos observar que o discurso publicitrio refora as

    noes correntes do que vem a ser uma investigao cientfica, retirando-a do ambiente

    fechado do laboratrio e transportando-o para a ambincia meditica. Ao proceder assim,

    28 pouco conhecido o fato de que o primeiro livro de Marshal McLuhan (1951) ter sido inteiramente dedicado anlise da publicidade e do lazer. Seu objetivo era desmistificar as tcnicas usadas pelos publicitrios em manipulao, controle e explorao da mente pblica e coletiva. Um dos captulos, The Voice of the Lab, p. 90, discute o uso de imagens cientficas para legitimar socialmente produtos comerciais. 29 Como j visto anteriormente, uma caracterstica bsica da Modernidade a substituio da teologia pela cincia, como autoridade espistemolgica. Apesar dos questionamentos e do relativismo epistemolgico instauradas pela ps-modernidade, no imaginrio social a hegemonia do pensamento cientfico persiste enquanto balizadora de objetividade e, em ltima instncia, verdade.

    214

  • concorre para um processo de popularizao e destituio da aura de hermetismo que

    caracteriza o processo produtivo e os resultados dele, no universo cientfico.

    Na publicidade de cosmticos, em particular, o apelo ao discurso cientfico reside na

    tentativa de atestar a eficcia do produto, que pesquisado, fabricado com as melhores

    substncias e tecnicamente bem produzido, indubitavelmente, trar bons resultados. Estes

    processos de legitimao do produto cosmtico, quase sempre terminam por atribuir a ele,

    o status de produto de ltima gerao.

    No anncio de Chronos Gel C+ encontra-se implcita uma importante noo que

    ampara e auxilia no estabelecimento das relaes de interdiscursividade, porque fornece

    lastro para a compreenso do que se passa no anncio. Referimo-nos noo de contrato

    de comunicao, to amplamente difundida pela anlise de discurso (CHARAUDEAU,

    1997).

    Todo discurso depende, para a construo de seu capital social, das condies

    especficas da situao de troca dentro da qual ele aparece. Os tipos de discursos

    informativo, demonstrativo, didtico, para alm de seu condicionamento enunciativo

    global, especificam-se em funo do condicionamento enunciativo particular, que

    caracteriza cada situao de comunicao. necessrio descrever os componentes de cada

    uma delas antes de estudar as coeres - contraintes - que caracterizam o discurso de

    informao meditica.

    O contrato de comunicao simboliza o conhecimento prvio atravs do qual

    identificamos, como leitores, um determinado objeto cultural. No caso em questo, embora

    se trate de um anncio de cosmtico, a cenografia escolhida a de um laboratrio. O que

    nos leva a pensar que havia um pressuposto por parte dos produtores do anncio, de que tal

    215

  • cenografia seria reconhecida e compreendida pelas leitoras de Claudia, potenciais

    consumidoras de Chronos Gel C +.30

    Neste anncio, em particular, imperioso destacar o emprego do ditico de pessoa

    representado pelo pronome pessoal voc. Em nosso pas, o pronome familiarmente usado

    como segunda pessoa.31 O seu emprego, nos enunciados publicitrios, faz parecer que a

    relao entre o fabricante, o produtor do anncio e a potencial consumidora seja permeada

    pela sensao de intimidade, de proximidade:

    Logo na primeira aplicao, voc nota sua pele imediatamente revitalizada, mais macia, mais firme, mais viosa. A partir de quinze dias de uso, voc v sua pele mais luminosa e com tonalidade visivelmente mais uniforme [...].

    No anncio analisado, ao observarmos o funcionamento das estratgias discursivas,

    constatamos que, ao estabelecer o elo lingstico entre emissor-receptor ou enunciador-co-

    enunciador, o fabricante e o publicitrio dirigem-se s mulheres, enquanto consumidoras do

    cosmtico Chronos Gel C+, produzido pela Natura, tratando-as pelo pronome pessoal

    voc.32

    Em Chronos Gel C+, a instncia do co-enunciador, alocutrio, mais comumente

    interpretado pela publicidade como destinatrio - aquele para quem se destina a mensagem

    - corresponde leitora da revista Claudia. Conforme adverte Brando (s/d, p.52), ao tratar a

    instncia do alocutrio por voc, o discurso da publicidade passa a represent-la como uma

    entidade autnoma que, distinta do eu, parece fornecer uma ilusria identidade no processo

    30 Vestergaard e Schroder (1988, p. 16) destacam que a existncia do processo de reconhecimento prvio do anncio publicitrio decorre, principalmente, porque produto de uma situao particular de comunicao - a comunicao publicitria - inserida no universo da informao meditica. Descrevem os atores desta comunicao, enfatizando quais os mecanismos envolvidos: o emissor o anunciante e o receptor o leitor; o significado transmitido refere-se ao produto - mais especificamente a uma tentativa de induzir o leitor a adquiri-lo; o cdigo, no caso de um anncio impresso, a linguagem verbal escrita, mas que tambm pode vir acompanhada de certos cdigos visuais. O canal consiste em publicaes impressas e o contexto inclui aspectos como a situao do leitor - se ele j possui o produto, se tem condies de adquiri-lo etc.; a publicao em que o anncio aparece e, por ltimo, mas no menos importante, o conhecimento de que o texto um anncio. 31 Embora seja predominantemente empregado como segunda pessoa, o voc, no Brasil, tambm usado com as flexes verbais e pronominais da terceira. Michaelis - Moderno Dicionrio da Lngua Portuguesa. So Paulo: Melhoramentos, 1998. Pgina 2214. 32 No captulo 2, ao abordarmos metodolgica e operacionalmente, os diticos ou embreantes de pessoa, tempo e lugar, como importantes marcas lingsticas nas quais se manifesta a enunciao (Maingueneau, 2001, p. 105), antecipvamos as ocorrncias encontradas do emprego destas marcas nos enuncidados publicitrios de cosmticos.

    216

  • de alocuo. A autora afirma que se trata de uma ilusria identidade, porque sob a mscara

    de um tratamento personalizante, o voc da propaganda visa a um interlocutor annimo,

    uma vez que qualquer um pode ler o texto.

    Contudo, ele exerce um papel importante no processo enunciativo, porque sua

    funo a de interpelar ideologicamente o indivduo. Esta forma de tratamento, assinala a

    autora, permite uma interpelao mais direta que afeta o alocutrio e, por meio dela, ocorre

    o processo de assujeitamento, no qual o indivduo, evocado e entendido como diferente e

    singular, passa a ser sujeito assujeitado.33

    Perseguindo a trilha dos diticos, no texto que abre o anncio, por estar situado em

    sua pgina inicial, a aluso feita quelas mulheres que j experimentaram Cronos Gel C +

    e que pela aparncia bem cuidada da pele, recomendam o seu uso. Neste texto - mais

    assemelhado a um ttulo - de abertura do anncio, as modelos so tratadas como

    referenciais,34 na terceira pessoa do plural, atravs do pronome elas (Vide figura 45) :

    Elas notaram resultado j na primeira aplicao. Imagine na centsima.

    H um entendimento geral entre aqueles que estudam os processos lingustico-

    discursivos de que a concepo de eficcia discursiva um fenmeno prprio, intrnseco,

    ao texto publicitrio. Este fato ocorre, segundo Maingueneau (1997, p. 49), porque mostra

    de forma paroxstica aquilo que provavelmente constitui a tentativa de toda formao

    discursiva: o convencimento. Convencer consiste em atestar o que dito na prpria

    enunciao.

    33 Estes aspectos que caracterizam, e terminam por particularizar, o universo discursivo da publicidade de cosmticos, foram contemplados por ns em texto intitulado Breves articulaes entre noes da anlise de discursos e pressupostos tericos da publicidade, em anlise de anncio, apresentado em Conferncia Pblica, no Departamento de Lnguas e Culturas, da Universidade de Aveiro-Portugal, em maio de 2002. Posteriormente publicado em: ComunicArte. Revista do Departamento de Comunicao e Artes da Universidade de Aveiro, v. 1, n. 4, dez. 2003. A revista pode ser consultada no endereo eletrnico: http:www.cemed.ua.pt//comunicarte. Estas questes tambm podem ser aprofundados por meio do texto: Subjetividade, argumentao, polifonia: a propaganda da Petrobrs, de Helena Nagamine Brando. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Editora da Universidade Estadual Paulista, 1998. 34 Referente, adjetivo dos dois gneros, pode ser compreendido como aquele a que se refere; relativo; respeitante; alusivo. Em Lingstica, objeto, real ou imaginrio, que um signo representa. Vocbulo derivado do latim referente, que refere , particpio presente de referre, reconduzir; confirmar. Dicionrio da Lngua Portuguesa, 8 edio, Porto: Porto Editora, 2000.

    217

  • Ao trazermos as idias do autor como ferramentas para anlise do anncio de

    Chronos Gel C+, adquirimos uma compreenso mais ampla de como a publicidade de

    cosmticos, na tentativa de convencer para o ato da compra, procura dilogo com outro tipo

    de discurso, e realiza as incorporaes na prpria estrutura grfica do anncio, preservando

    seu aspecto prprio.

    O anncio apresenta, em sua estrutura textual e na cenografia35 escolhida, uma

    fundamentao do propsito de cientificidade. H um certo valor social atribudo aos

    procedimentos laboratoriais porque deles resultam a produo de conhecimento, as

    invenes, as aplicaes tcnicas e tecnolgicas. 36

    A aluso ao ambiente laboratorial sugere a idia de pesquisa, investigao,

    legitimidade, eficincia e tecnologia aplicada. Todos estes aspectos caracterizam e

    identificam o laboratrio Natura como ambiente apropriado para a realizao segura e

    apropriada do teste, enaltecido como importante procedimento cientfico.

    Os procedimentos cientficos so processos prticos de produo e obteno de

    conhecimento, originrios e costumeiramente identificados como pertencentes ao campo da

    cincia. Este, lugar de uma concorrncia violenta, no qual o discurso produzido por um

    pesquisador no resultante apenas do desejo de saber, mas que, segundo Maingueneau

    (1997, p.57), viria em troca da notoriedade existente no meio cientfico visado, no qual o

    que est em jogo o monoplio da autoridade cientfica. O cientista, de qualquer que seja

    o campo do saber, fala para seus pares, atravs de um tipo de discurso, cuja tendncia

    fazer coincidir o pblico de seus produtores com o de seus consumidores: escreve-se

    apenas para seus pares que pertencem a comunidades restritas e de funcionamento rigoroso.

    Entendemos que a publicidade no divulga, propriamente, estes mesmos produtos

    cientficos aos quais o autor se refere. Ou seja, o discurso publicitrio no explora as

    35 Sobre a noo de cenografia, Dominique Maingueneau (2001, p. 87) adverte que [...] a cenografia no simplesmente um quadro, um cenrio, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espao j construdo e independente dele: a enunciao que, ao se desenvolver, esfora-se para construir progressivamente o seu prprio dispositivo de fala. 36 A revista Super Interessante (Portugal, abril de 2002, p. 60) publicou matria especial - documento- sobre A Cincia da Publicidade e em forma de desenhos - linguagem de quadrinhos- comps um pequeno roteiro intitulado Sete armas para vender, baseado no livro As Armas da Persuaso, do psiclogo italiano Robert B. Cialdini - no qual este autor agrupa as estratgias de vendas em sete categorias. Uma das sete armas apontadas pela matria, constitui-se no princpio da autoridade: um especialista est investido de maior credibilidade do que uma pessoa que no o seja. A tendncia de seguir a autoridade actua a seu favor. [...] E se, para alm de bonito e simptico, o vendedor for um especialista no tema, ainda melhor. Quem sabe mais sobre sapatos de desportos do que Michel Jordan ou Lus Figo?.

    218

  • mincias do ambiente cientfico-acadmico, mas, sim, as noes consensuais deste fazer,

    que sedimentam uma mentalidade social calcada na compreenso de que tudo que

    cientfico, verdadeiro, seguro, certo, irrefutvel.

    Valendo-se dessas estratgias, o discurso publicitrio refora e sedimenta,

    socialmente, os valores identificados como pertencentes ao universo cientfico ao difundir,

    cada vez mais amplamente, suas convenes. No anncio de Chronos Gel C+, percebemos

    o uso destes recursos, quando um dos elementos qumicos que compem a frmula do

    produto realado como algo positivo, de forma natural, como se fosse algo bastante

    conhecido por todos ns:

    - Chronos Gel C+ foi produzido com OPC, um potente antioxidante natural [...].(Vide

    figura 45).

    Neste anncio, por meio da utilizao de um mosaico fotogrfico colorido, as quatro

    paredes que estruturam o laboratrio Natura abrem-se para o pblico. Em geral, o

    laboratrio, enquanto ambiente fsico hermtico, destinado ao desenvolvimento do saber e

    da produo cientfica, acessvel apenas a especialistas.37 No anncio, a Natura abre suas

    portas para um pblico distinto: as modelos e, por extenso, as leitoras de Claudia e

    potenciais consumidoras do produto.

    As imagens laboratoriais saem do enclausuramento das quatro paredes do ambiente

    fechado e distendem-se, ampliam-se, procura de outro pblico, embora ainda

    acompanhadas da aura de hermetismo que circunda e caracteriza os enunciados tecno-

    cientficos. A conservao da fama e da superioridade da cincia, por exemplo, podem ser

    visualizadas neste anncio, por meio de alguns destaques que j anunciamos anteriormente:

    um novo produto, fabricado com potente elemento qumico, testado laboratorialmente por

    uma especialista, posicionada em destaque, por seu traje branco.

    No cenrio construdo para anunciar Chronos Gel C+ o mosaico fotogrfico revela

    a visita de Vera Gagliani, Ana de Hollanda, Berenice Moreira, Lucinha Carvalhes, Vera

    Burgetti e Sylvia Gonalves, realizada nos dias 10 e 11 de julho de 1999, para acompanhar

    37 Laboratrio. Substantivo masculino. Lugar especialmente apetrechado para experincias ou trabalhos de ndole cientfica; (fig) lugar onde se realizam grandes transformaes ou operaes Do latim laborre, trabalhar, pelo francs laboratoire, laboratrio. Dicionrio da Lngua Portuguesa, 8 edio. Porto: Porto Editora, de 2000.

    219

  • a demonstrao de uso - teste - do produto. Esta escolha cenogrfica nos leva a construir

    uma interpretao de que o anncio e seu produto destinam-se a mulheres normais,

    representadas por modelos annimas, entretanto, democrtica e igualitariamente

    posicionadas neste cenrio como usurias do produto.

    A interpretao acima pode ser justificada por trs fundamentos presentes no

    prprio anncio:

    a) o nome prprio de cada uma delas aparece, em legenda, abaixo de suas

    respectivas fotografias, dando-lhes crdito, acrescendo imagem um princpio de realidade;

    b) a meno do nome prprio de cada mulher que se encontra provando o produto,

    leva-nos a interpretar a situao de visita ao laboratrio como envolvendo mulheres

    desconhecidas, que no fazem parte do mundo olimpiano das manequins renomadas das

    revistas, dos atores de televiso e de cinema, nem das personalidades pblicas

    freqentemente abordadas pelos jornais;

    c) o anncio traz ainda a legenda que esclarece a atividade profissional de cada uma

    delas. Sintomaticamente, em um movimento de incluso generalizada, insere a ocupao de

    dona-de-casa dentre as outras profisses.

    As receptoras de Chronos Gel C+ so annimas e supomos que sejam mulheres

    pertencentes ampla classe mdia brasileira e leitoras da revista Claudia. Para chegar a

    elas, os sujeitos comunicantes - neste caso, o fabricante e o publicitrio, que autorizado a

    falar em seu nome - devem fazer um esforo para forjar um elo simblico entre eles

    (SOULAGES, 1996). O elo com os sujeitos comunicantes sempre hipottico e recorre a

    saberes, normas, valores e universos de referncia supostamente partilhados.

    Um dos pontos exaltados no anncio, representado pela tentativa de estabelecimento

    do elo simblico destacado pelo autor, o fato de que as j consagradas consumidoras de

    Chronos Gel C + presentes no anncio sejam mulheres e modelos annimas, que

    recomendam e atestam o uso do produto a partir de sua prpria experincia.

    H a exaltao de um certo clima de confiabilidade, instaurado pelo princpio de que

    elas so mulheres normais, que se cuidam dentro de suas reais condies materiais de vida.

    As imagens no representam mulheres clebres, famosas, e portanto, possuidoras de tempo

    220

  • e de condies financeiras compatveis com a aquisio de qualquer cosmtico,

    independentemente de seu custo.

    No anncio, tanto a pecuarista Vera Burgetti, de 39 anos, como a psicloga Sylvia

    Gonalves, de 48 anos, ocupam o espao grfico-visual em posies de igualdade, num

    mosaico colorido, no qual as fotografias so semelhantes em tamanho e colorao. A forma

    de apresent-las nos sugere um tratamento democrtico: elas tm profisses/atividades

    distintas - terapeuta corporal, psicopedagoga, dona-de-casa, cantora etc.-, e idades distintas

    - 33, 27, 39, 48, 50, 41 e 44 anos. E so, ainda, ilustres desconhecidas.

    Igualando os cosmticos aos perfumes e chocolates como mercadorias que no se

    enquadram em gneros de primeira necessidade, diferentemente dos artigos de consumo

    essenciais, Odber de Baubeta (1995, p.117) identifica nesta desigualdade, a presena de um

    desafio para os publicitrios. Segunda a autora, eles necessitam criar os sentimentos que

    estimulem o pblico a desej-los.

    A autora assinala a existncia de uma compreenso, quase hegemnica, de que a

    publicidade seja conservadora por no visar provocar mudanas revolucionrias na

    sociedade, mas apenas nos hbitos de consumo. Assim, espelha a realidade social atravs

    de expresses e imagens familiares, reconhecveis e tranqilizadoras, com as quais os

    comerciantes e os clientes podem se identificar de forma cmoda.

    No itinerrio persuasivo da publicidade de cosmticos, ao anunciar um produto, no

    caso em questo um cosmtico facial, o publicitrio quer fazer entender que ele vem

    preencher uma necessidade, ou at mesmo um desejo, da consumidora. Como produtor da

    mensagem, quer fazer entender que se preocupa em pr em oferta uma mercadoria para

    cada uma delas, em particular.

    O anncio de Chronos Gel C caracteriza-se por apresentar de forma evidente as

    relaes de emprstimo estabelecidas entre a publicidade e a instncia discursiva da cincia

    e da tcnica. A anlise nos leva a afirmar que so mltiplas as possibilidades de

    entrelaamentos entre os dois tipos de discurso: desde as mais patentes, realizadas em

    nveis como o grfico, sinttico e lexical, s mais sutis, situadas no nvel semntico, por

    exemplo, que no conseguimos perceber seno em observaes mais aprofundadas.

    221

  • Por estar circunscrita, neste estudo, instncia da publicidade de cosmticos, nossa

    anlise no nos autoriza afirmar que tais procedimentos sejam usuais e regulares por parte

    da prtica publicitria, em geral. Neste domnio, quando partimos para o exame da

    interdiscursividade foi necessrio observar quais os procedimentos utilizados pelo discurso

    da publicidade quando, deliberadamente, recorre a emprstimos de outros tipos de

    discursos - jurdico, filosfico, religioso, literrio etc. - para cada vez mais legitimar o seu.

    222

  • CONCLUSES

    A hiptese central que orientou nossa investigao sugere que as referncias temporais

    caracterizam-se como importantes marcas discursivas da publicidade de cosmticos. Ao

    desenvolvermos a pesquisa, esta hiptese no somente se confirmou, como ampliou nossa

    compreenso de que, alm de se caracterizarem como marcas discursivas, elas possuem o estatuto

    de centralidade, podendo ser chamadas de marcas discursivas centrais e aglutinadoras de

    sentidos, no conjunto de anncios da dcada de 90 analisados em nosso estudo.

    Afora o carter de ancestralidade - por se encontrarem diretamente relacionadas com uma

    remota funo do cosmtico que a de rejuvenescer - as marcas discursivas de tempo possuem

    tambm a funo de ponto de ancoragem para outras referncias temticas, neste universo

    enunciativo. As menes ao tempo, quando descoladas e/ou desviadas das referncias

    cronolgicas e das metforas temporais, estendem-se, ampliam-se e passam a se relacionar com

    outras vozes enunciativas igualmente relevantes, na construo do projeto enunciativo da

    publicidade de cosmtico, s quais denominamos de pr-construdos correlatos ao tempo: a

    busca pela juventude, sade, beleza.

    Confirmao e ampliao de sentidos originalmente dados a elas, tambm se verificaram

    com relao a nossas duas hipteses secundrias que, no decorrer da pesquisa, foram adquirindo

    contornos mais amplos. Constatamos que, apesar de denominadas de secundrias, tais hipteses,

    em seu teste e confirmao, acabaram por adquirir importncia igual ou superior da hiptese

    central, porque, alm de concederem um carter de originalidade pesquisa, revelaram a

    amplitude do universo enunciativo da publicidade de cosmticos, em seus vnculos com os

    aspectos sociais incorporados no processo de produo discursiva.

    A primeira hiptese secundria relaciona-se com aluses a estados de juventude. No

    universo enunciativo da publicidade de cosmticos, as menes juventude simbolizam o estado

    ideal de ser. Vigor, energia, boa forma e a busca pela longevidade so valores continuamente

    exaltados, confirmando a hiptese da qual partimos no incio do trabalho. Novamente, porm,

    nossa anlise remeteu a questo para alm da simples constatao de ocorrncia dos marcadores

    esperados.

    A observao dos anncios caracterizados pelas aluses a estados de juventude permite-

    nos sugerir que, na dcada de 90, no contexto das publicidades de cosmticos, ocorre o

    223

  • estabelecimento de um novo marco biolgico, modificando os at ento vigentes e preconizando

    que os cuidados com o corpo deveriam iniciar-se aos 20 e no aos 30 ou 40 anos, como

    anteriormente se compreendia. Esse movimento dos balizadores temporais no se restringe ao

    nvel puramente retrico - como nos anncios de dcadas passadas que aconselhavam, desde

    cedo, cuidados com a pele para preserv-la na idade madura - mas se consubstancia no

    lanamento de linhas de cosmticos direcionadas especificamente para faixas etrias jovens, ao

    contrrio do que anteriormente acontecia quando um creme genrico era anunciado e seu uso

    recomendado desde cedo.

    Estamos afirmando que na dcada de 90 ocorre uma segmentao do discurso publicitrio

    de cosmticos e dos produtos efetivamente colocados no mercado, que passam a se direcionar,

    especificamente, para faixas etrias determinadas: jovens, meia idade, pessoas idosas. Um

    exemplo ilustrativo desta afirmao o lanamento, nesta dcada, do creme facial Chronos,

    produzido pela Natura, cuja concepo e apresentao seguem uma linha cronolgica crescente:

    Chronos 30-45, 40-60 e Gel Creme 3 Idade. A segmentao indica que, ao compr-lo, a usuria

    deve atentar para os diferentes tipos e escolher aquele adequado sua faixa etria. A imagem

    abaixo reproduz o anncio de lanamento da campanha e apresenta os trs tipos. Posteriormente,

    foram produzidas outras peas publicitrias direcionadas para cada uma das trs faixas etrias,

    em particular.

    Figura 46: Novo Chronos C+ E +A, da Natura. Marie Claire, outubro de 1998.

    224

  • No espao discursivo da publicidade de cosmticos, a busca pela juventude somente faz

    sentido, porque destinada a combater a velhice. H um processo de inter-relao entre estes dois

    estados, apesar de essencialmente antagnicos: conservar a juventude tambm combater a

    velhice, combater a velhice buscar recuperar a juventude.

    A incurso ao corpus da pesquisa levou-nos ao encontro de alguns pontos de tenso que,

    embora visualizados no mbito discursivo refletem - e tambm terminam por instaurar - novos

    processos de compreenso de fenmenos de natureza social. O principal deles localiza-se na

    flagrante presena de duas nomenclaturas para o processo de envelhecimento: a j consagrada

    palavra velhice e a nova denominao intitulada terceira idade.

    Mais evidente em anncios de duas empresas nacionais - O Boticrio e Natura - e nos

    anncios que se aproximam do final da dcada de 90, a nova acepo faz desaparecer uma

    compreenso de que velhice seja uma fase da vida penosa, infeliz, repleta de doenas. Com o

    avano das biotecnologias, da medicina e a conseqente elasticidade do ciclo biolgico de vida, a

    terceira idade representa a opo de se viver quase um tero da vida, principalmente nos grandes

    centros urbanos, de forma mais ativa, sob o ponto de vista fsico-psquico, e mais integrada, sob o

    ponto de vista social.

    Os pontos de tenso localizados na prpria materialidade lingstica dos anncios de

    cosmticos trouxeram com eles questes de natureza discursiva, por entendermos o discurso da

    publicidade como uma prtica moldada pela estrutura social e, ao mesmo tempo, constitutiva

    desta mesma estrutura. Este fenmeno foi discutido e documentado em nossas apreciaes dos

    principais autores, originrios tanto da sociologia, quanto da anlise de discurso, levadas a efeito

    especialmente nos captulos 1 e 3 desta tese.

    Nossas concluses, neste particular, coincidem em grande medida com as posies de

    Fairclough (2001) quando assinala que a mudana discursiva ocorre mediante a reconfigurao

    ou a mutao dos elementos da ordem de discursos que atuam dinamicamente na relao entre as

    prticas discursivas. Ela pode estender seus efeitos sobre os sujeitos e suas identidades, as

    relaes sociais e os sistemas de conhecimento e de crena. Em um mundo de grandes

    transformaes como o nosso, esta , sem sombra de dvidas, uma questo central.

    Falar em terceira idade ou velhice ainda representa uma ambivalncia semntica, embora

    haja uma relao de assimetria entre os sinais de desaparecimento de um termo e de sua

    substituio por outro. A expresso terceira idade um marcador explcito de hierarquia, que

    225

  • cada vez mais tende a tornar-se menos evidente, ao mesmo tempo em que, a palavra velhice um

    marcador encoberto, que cada vez mais tende a tornar-se sutil.

    Uma segunda hiptese secundria e importante marco de partida de nossa pesquisa,

    relaciona-se com os novos paradigmas sociais, principalmente amparados no que Sfez (1996)

    chama de utopia da sade perfeita, que sugerem novas maneira de olhar e de tratar o corpo, na

    cultura contempornea. Sendo o discurso publicitrio pertencente ao conjunto de prticas

    sociodiscursivas que instauram e expem matrizes de sentidos de uma poca, seria de se esperar

    que revelasse em suas estruturas discursivas os sinais desta nova utopia. Comprovamos que,

    agregadas s marcas discursivas de tempo, algumas temticas identificadas com a noo de sade

    perfeita, so incorporadas ao universo enunciativo da publicidade de cosmticos: a obsesso pela

    sade, a busca por uma aparncia jovem, pelo emagrecimento como sinnimo de uma forma

    fsica ideal, pela qualidade de vida, pelas alteraes no modo de alimentar-se, dentre outras.

    Ainda nos domnios da noo de sade perfeita, constatamos de modo inequvoco que

    embora os anncios que compem o corpus da pesquisa sejam destinados a tratar a pele do rosto

    so patentes nas marcas lingstico-discursivas as recomendaes de que a pele deve ser tratada

    organicamente. Conclumos que, no corpus pesquisado j se antecipam os processos de

    transformao de um padro de beleza centrado nos cuidados com o rosto, para um outro que

    inclui a busca pela sade plena - fsica, psquica e emocional -, como condio para a aquisio

    da beleza.

    Afinados com essa tendncia, os argumentos textuais utilizados para convencer a leitora a

    usar o cosmtico, j no mais se encontram unicamente centralizados em justificativas como

    imperfeio dos traos ou anormalidades que se apresentam na ctis e podem ser disfaradas e

    corrigidas, mas, sim, so marcados pelo destaque necessidade de combater o desgaste fsico:

    fadiga, flacidez, inchao, bolsas em volta dos olhos etc.

    Outra importante constatao verificada ao longo de nosso trabalho a de que as relaes

    de interdiscursividade estabelecidas entre a instncia discursiva da publicidade de cosmticos e

    estratgias discursivas originrias do universo prtico-discursivo da cincia e da tcnica so

    recursos reiteradamente utilizados como meios apropriados para exaltar e dar credibilidade s

    potencialidades do produto. Neste sentido, constata-se que, a despeito do que afirmam alguns dos

    analistas da contemporaneidade - captulo inicial -, no que diz respeito gradual perda da

    hegemonia e centralidade do discurso cientfico no mundo atual, persiste na construo do

    226

  • discurso publicitrio de cosmticos, o paradigma da cincia enquanto autoridade epistemolgica,

    legitimadora, capaz de transferir para o produto o estatuto de verdade, o grau de eficcia, a marca

    da confiabilidade etc.

    Observa-se, nesse sentido, uma clara continuidade e adaptao de uma frmula discursiva

    que, no Brasil, tornou-se amplamente conhecida atravs das campanhas televisivas do sabo em

    p Omo, com imagens de testes laboratoriais e a presena de figuras legitimadoras vestidas de

    branco. A tcnica pode ser observada j nos primrdios da publicidade impressa moderna, com

    muitos exemplos nos anncios do incio do sculo XX, quando a autoridade do doutor ou do

    cientista era chamada para legitimar os efeitos atribudos ao produto. Na imagem reproduzida

    abaixo, por intermdio do slogan Multides geram contgio, o texto argumentativo do anncio,

    produzido em 1923, utiliza a autoridade de doutores e de grandes instituies de sade para

    legitimar o apelo de que o uso regular do sabonete Lifebuoy evitaria o contgio de doenas como

    a febre tifide.

    Figura 47: Anncio em revista norte-americana (1923)

    227

  • Nos anncios de cosmticos, percebe-se que as escolhas temticas, as estratgias

    discursivas e as diretrizes, quanto organizao de seu prprio espao, so determinadas por

    fatores que vo desde o modo de falar - o que deve ser dito e como diz-lo -, passam pela escolha

    de um suporte adequado - que tanto pode ser um media alternativo, como um tradicional -, pela

    anlise do contexto etc.

    Confirmando as expectativas levantadas pelo conjunto de nossas hipteses, nestes

    anncios, no somente o corpo perfeito, a sade, mas tambm a beleza e a juventude

    comparecem como mercadorias simblicas anunciadas, subliminar e conjuntamente, com a

    mercadoria concreta - a substncia cosmtica que, acondicionada em embalagens adequadas,

    transforma-se no produto final destinado ao consumo.

    A anlise do corpus demonstrou que, enquanto espao de confluncia de discursos, que se

    comportam em forte consonncia com os modos de dizer de uma determinada poca histrica, o

    discurso da publicidade de cosmticos quer afirmar que, com a adoo de novos hbitos de vida

    aliada aplicao diria do produto, os resultados benficos prometidos, textualmente, nos

    anncios podem ser conquistados. O uso do cosmtico deve, portanto, conjugar-se com uma dieta

    alimentar em conformidade com as atuais recomendaes mdicas, a prtica regular de atividades

    fsicas e com hbitos de vida mais saudveis e menos estressantes.

    Acreditamos que neste momento de concluso cabem tambm algumas consideraes e

    avaliaes sobre o modo de abordagem de nosso objeto. Em que pese multiplicidade de

    definies que o fenmeno da publicidade possui - em decorrncia de posies diferenciadas, que

    coincidem com os diversos quadrantes disciplinares a partir dos quais analisada -, partimos da

    premissa de que a publicidade combina uma dimenso textual, um exemplo de prtica discursiva

    e um exemplo de prtica social. A definio operacional com a qual trabalhamos - e sobre a qual

    j nos debruamos no captulo 2 - delimitou uma viso socioterica de discurso, determinada pela

    incorporao dos aspectos sociais vinculados ao processo de produo discursiva.

    Localizar e interpretar as mais representativas manifestaes temporais do discurso

    publicitrio da atualidade, utilizando ferramentas tcnicas retiradas do amplo arsenal da anlise

    de discurso, foi uma das tarefas que nos propusemos a realizar. Temos conscincia de que nossas

    percepes sobre aspectos do processo de produo do discurso publicitrio, seu sistema de

    significao e sua linguagem alcanam uma nfima parte deste vasto fenmeno. A prpria seleo

    e privilegiamento de algumas correntes, autores e, em ltima instncia, tcnicas de anlise,

    228

  • ocorreram, necessariamente, em detrimento de outras igualmente aplicveis, que poderiam

    revelar outros aspectos da prtica discursiva publicitria que nosso percurso no logrou alcanar.

    Apesar de termos conscincia de tais limitaes, acreditamos que nossas opes metodolgicas

    lanaram luzes sobre aspectos relevantes do objeto em anlise.

    Caracterizando as marcas lingsticas por meio das quais se manifesta a enunciao, os

    diticos de tempo, que funcionam como importante elemento na construo de nossa anlise,

    revelam que h algumas regularidades quanto ao emprego dos marcadores temporais, na

    construo do itinerrio persuasivo da publicidade de cosmticos na dcada de 90.

    Apesar da celebrao do agora, o tempo do presente da enunciao comprimido,

    representa o instante em que se tem contato com o anncio. Nossa anlise deixou entrever

    claramente que no percurso de construo dos enunciados publicitrios, existem dois estgios

    marcados por uma espcie de deslocamento temporal: aquele que representa o antes, um estado

    de carncia, de falta do objeto, e se move em direo ao depois, um estado da posse do objeto, de

    prazer, de satisfao. No eixo pelo qual se move a temporalidade, h uma confluncia entre

    passado, como estado de carncia, e futuro, como momento do desfrute, intermediada pelo agora,

    instante celebrizado, representado pela imediatez da euforia da compra.

    O movimento de atrao e de concentrao dos marcadores temporais pode ser explicado

    pela necessidade de fazer convergir para o instante decisivo do presente - do agora -, que

    representa o momento em que o sujeito toma a deciso da compra, todos os esforos do projeto

    persuasivo da publicidade.

    Ao que parece, os argumentos que motivam para o ato da compra convertem-se em

    projees orientadas para o futuro, fundamentadas no ato de preterir, alm de acompanhadas do

    ocultamento de conflitos provenientes do contexto extralingstico, como aqueles inerentes

    prpria histria do produto ou quantidade de dinheiro necessria para adquiri-lo. A explicitao

    destes conflitos poderia ofuscar ou at desmantelar o projeto persuasivo em questo.

    Na construo do itinerrio persuasivo da publicidade de cosmticos, algumas das

    estratgias discursivas que identificamos como pertencentes ao discurso publicitrio da

    atualidade de modo geral so aplicadas, repetem-se. Estas semelhanas, a nosso ver, identificam

    o anncio, imprimem a ele uma marca histrica, determinam uma feio prpria, ratificam a

    assertiva de que o discurso publicitrio se afina com formas de dizer prprias de uma poca.

    Referida no captulo anterior, a principal delas, em nosso caso, a da utilizao de argumentos

    229

  • que invocam a necessidade do ato da compra para o instante do presente, quase coincidente com

    o instante da leitura do anncio: O compromisso com a sua pele no pode ser adiado para

    amanh ou A melhor idade para comear a usar um antiidade a que voc tem hoje.

    Na publicidade impressa de cosmticos, o instante do presente, como em qualquer outra

    pea publicitria, coincide com o momento da leitura do anncio. Quando, simultaneamente sua

    leitura, pode ser constatada a falta, a carncia pelo objeto. Ao examinarmos o funcionamento dos

    marcadores temporais na construo do projeto persuasivo do discurso publicitrio, conclumos

    que, a despeito da apropriao de temporalidades reconhecidamente pertencentes a um tempo

    social compartilhado, principalmente no que se refere ancoragem no ancestral eixo de passado,

    presente e futuro, este itinerrio persuasivo pode alterar-se, sofrer transformaes relativas ao

    destaque de algumas temporalidades, mas sempre em conformidade com o tipo de produto

    anunciado. Constatamos que, tanto possvel evocar ou ocultar o passado, prolongar ou encurtar

    o presente, como aproximar ou distanciar o futuro.

    Seria um contra-senso de nossa parte afirmar a existncia de um projeto nico,

    uniforme, imutvel, de emprego dos marcadores temporais, na construo do itinerrio

    persuasivo da publicidade, e que seria indistintamente utilizado a todos os produtos que

    ambiciona vender. Anunciar um jazigo - em que pese a singularidade do exemplo - pode

    dispensar ao enunciador o apelo ao passado, exigir o destaque ao presente e recomendar ser

    prudente pensar no dia de amanh. Contudo, referir-se ao amanh como um dia que

    inexoravelmente vir, requer cautela, sutileza e sensibilidade para no assustar o potencial

    consumidor, avisando-lhe, por exemplo, que o futuro se aproxima... ou que o seu dia pode estar

    prximo... Neste caso, o ato ilocutrio recomendvel aquele que aponta para o prolongamento

    do futuro, apesar de, sutilmente, indicar que o ato da compra deva ser realizado no presente. Algo

    assim: sabemos que seu dia demorar a chegar, mas enquanto no chega, que tal pensar nele

    agora?

    Contrariamente, a venda de um pacote turstico, uma viagem a uma cidade europia, por

    exemplo, pode evocar a atmosfera do passado pela nostalgia, pelo romantismo, pelo destaque de

    paisagens, monumentos e ambientes j celebrizados como pertencentes a tal lugar, e por outro

    lado, pode abreviar o futuro. Tendo ou no j estado l, o potencial consumidor, que poderamos

    identificar como um indivduo com um certo poder aquisitivo e preferncias de consumo

    condizentes com o custo necessrio a ser dispendido na compra do produto, poder sentir-se

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  • envolvido por essa atmosfera nostlgica - mesmo que seja uma nostalgia criada por imagens de

    cinema e televiso e no por uma visita fsica real, anterior. A nostalgia suscita uma aura de

    passado, como um tempo que pode ser identificado por todos, embora, paradoxalmente, no

    pertena ao passado de ningum, em particular. Por outro lado, o futuro ser um tempo que

    poder ser apressado, aproximado, adiantado, porque h uma quase garantia de que ser

    agradvel, prazeroso.

    Apesar de tambm utilizar-se do eixo temporal marcado pelas temporalidades de passado,

    presente e futuro, a publicidade de cosmticos comporta suas especificidades, como pudemos

    observar ao longo da anlise. A primeira delas a de resgatar e amparar seu discurso no tempo

    cronolgico, como uma temporalidade central no processo de enunciao. Esta parece ser uma

    premissa bsica de composio dos enunciados de cosmticos: tomar emprestadas unidades

    temporais mensuradas pelo relgio e pelo calendrio com o objetivo de qualificar e exaltar as

    potencialidades do produto.

    Nos enunciados de cosmticos produzidos durante a dcada de 90, observamos que as

    exaltaes potencialidade do produto esto intrinsecamente relacionadas com a obteno dos

    resultados, apresentados na pele: quanto mais rpido se manifestam, mais eficiente o produto. O

    o produto ideal aquele que oferece benefcios em intervalos menores de tempo.

    Outra importante caracterstica deste universo enunciativo localiza-se nas representaes

    de passado. A meno a ele no se ampara na evocao de estados nostlgicos. Apesar de

    obviamente retrospectiva, h uma preferncia pelo resgate do passado como um marco

    referencial para a mulher que foi jovem, ontem, e quer permanecer assim hoje e amanh.

    Observamos que no h espao para lembranas nostlgicas, porque h uma urgncia em

    recuperar o tempo perdido, aquele em que a mulher ainda no havia tomado a deciso de tratar da

    pele.

    Aps estas constataes, no podemos afirmar que o passado esteja sendo vendido ao

    pres