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O PENSAMENTO PEDAGÓGICO EM PORTUGAL Biblioteca Breve SÉRIE PENSAMENTO E CIÊNCIA

FERNANDES - Pensamento Pedagógico Em Portugal

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  • O PENSAMENTO PEDAGGICO EM PORTUGAL

    Biblioteca Breve SRIE PENSAMENTO E CINCIA

  • ISBN 972 566 052 8

    DIRECTOR DA PUBLICAO

    ANTNIO QUADROS

  • ROGRIO FERNANDES

    O pensamento pedaggico em Portugal

    MINISTRIO DA EDUCAO

  • Ttulo

    O Pensamento Pedaggico em Portugal ______________________________________________________ Biblioteca Breve / Volume 20 ______________________________________________________ 1. edio 1978 2. edio 1992 ______________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Ministrio da Educao ______________________________________________________ Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14 -1. 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao, reservados para todos os pases ______________________________________________________ Tiragem 4 000 exemplares ______________________________________________________ Coordenao geral Beja Madeira ______________________________________________________ Orientao grfica Lus Correia ______________________________________________________ Distribuio comercial Livraria Bertrand, SARL Apartado 37, Amadora Portugal ______________________________________________________ Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA Janeiro 1992 Depsito Legal n. 52 080/92 ISSN 0871 - 5173

  • NDICE

    Pg.

    Introduo.........................................................................................6

    Primeiros Alvores ............................................................................8

    Do Aprender a Ensinar Contestao do Saber.......................13

    O Jesuitismo na Educao Domstica........................................29

    A Revoluo do Sculo XVIII..................................................37

    Educao para a Liberdade? .........................................................90

    Novos Caminhos para o Futuro ................................................121

    Notas .............................................................................................126

    Bibliografia....................................................................................137

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    INTRODUO

    Sob os limites impostos pelas dimenses maneirinhas da Biblioteca Breve, este livro no passa de um roteiro. Por deciso pensada, no tem mais ambies do que demarcar ao viandante percursos possveis e assinalar com pedra branca certos pontos mais notveis do caminho.

    A primeira questo a resolver foi a de esquadriar a rea de explorao. Encurtando razes, diga-se que considermos pensamento pedaggico no apenas todo o trabalho reflexivo em que a educao e a instruo aparecem, conjunta ou separadamente, como objecto especfico mas tambm as grandes snteses de conhecimentos de inteno formativa clara. A plasticidade da definio autoriza-nos a ter em conta a digresso especulativa ou o manual escolar, sob a condio, em qualquer dos casos, de satisfazerem ao critrio suplementar da projeco histrica. A mera existncia histrica no coincide forosamente com a historicidade.

    Nestas circunstncias, a exaustividade no poder ser preocupao obsessiva. Ao leitor assiste, certamente, o direito de discutir os critrios de organizao dos materiais e de denunciar a gravidade de eventuais lacunas.

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    Que se no esquea, nesse caso, o facto de que elas tero sempre de existir e que a supremacia de um critrio se determina pela sua maior ou menor eficincia na reconstruo total do passado, ou, mais precisamente, de um passado que se descortina em funo das linhas de fora do presente, do movimento histrico geral.

    No lcito afirmar que o nosso pas tenha voltado costas teoria e prtica de alm-fronteiras. A evoluo das nossas instituies escolares e o pensamento pedaggico portugus revelam, pelo contrrio, numerosos pontos de contacto com o exterior. As condies histricas nacionais infundem-lhes, porm, caractersticas peculiares. intil e absurda querela da originalidade sobrepe-se a pesquisa das mltiplas e por vezes surpreendentes relaes do pedagogo com os aspectos multiformes da vida e da cultura do seu pas e de outras naes cultas.

    O pensamento pedaggico no pode ser desligado do contexto histrico geral, (poltico, social e econmico) nem das instituies escolares e do seu dinamismo. Infelizmente, no possvel incluir todas as referncias necessrias, at porque nem sempre esto estudados os vnculos que ligam a escola sociedade portuguesa nos diversos momentos da Histria. A bibliografia, no final do volume, embora circunscrita a obras fundamentais, permitir, esperamos, que o leitor v mais longe pelas suas prprias foras.

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    PRIMEIROS ALVORES

    Ignora-se tudo, ou quase tudo, acerca da vida cultural na Lusitnia Pr-Romana. A escrita estaria a pouco divulgada, embora Estrabo afirme na Geografia que os Iberos possuam a sua Gramatik. Desconhecem-se os seus processos de numerao e de medida; como calculavam o tempo; as noes que possuam sobre astronomia, geografia, etc., Sabe-se, contudo, que dispunham de poesia e de arte, de cnticos, danas, jogos, exerccios corporais e de tcnica militar. Por mais rudimentar que fosse a sua cultura, a existncia dela pressupe a existncia de um processo transmissor e aquisitivo dos seus elementos. Se, alm disso, nos lembrarmos de que na Lusitnia Pr-Romana existiam homens livres e escravos, de supor que o grau de aculturao de cada um deles dependesse do seu ponto de insero no tecido social 1.

    Com a romanizao, elevou-se em toda a Pennsula o nvel cultural, tornando-se esta o bero de homens notveis na literatura e na erudio dives viris doctis 2. O imperialismo romano consistiu no domnio poltico e econmico sobre os povos autctones mas tambm na sua impregnao cultural. Entre outras provas da

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    extenso desse movimento, refere o especialista Henri-Irene Marrou a existncia de ensino primrio elementar ao alcance dos filhos dos mineiros num povoado to longnquo e obscuro como Vipascum (Aljustrel). Do mesmo facto depreende F. Adolfo Coelho que, ao tempo da dominao romana, a instruo se encontrava sofrivelmente difundida no territrio que viria a ser Portugal. Por seu turno, o erudito Gabriel Pereira v a um indcio de que tambm os estudos superiores, e no apenas os elementares, existiam em vora pela mesma poca 3.

    No perodo que vai do sculo V ao sculo VIII assistiu-se no Ocidente derrocada do Imprio Romano. As invases germnicas determinaram a formao dos reinos brbaros na Pennsula. No puderam apagar, todavia, o influxo da cultura intelectual romana, nem modificar o estilo da educao antiga.

    Foi a pedido de um prncipe suevo que S. Martinho de Dume redigiu, em pleno sculo V, um livro de educao moral intitulado Formulae Vitae Honestae, ou De quatuor virtutibus, ou, ainda, Senecae De copia Verborum. Outra obra dumiense de contedo didctico e de natureza apologtica, o De Correctione Rusticorum, catecismo das matrias elementares que deviam ensinar-se a quem o cristo pretendesse converter sua f.

    Durante o perodo brbaro ganhou extraordinrio incremento na Pennsula a criao de mosteiros e de escolas, sobretudo a partir de S. Leandro e de St. Isidoro de Sevilha. A aco deste ltimo pde penetrar at ao extremo ocidental deste tracto de territrio devido aco de S. Frutuoso de Braga 4.

    A dominao rabe determinou a criao de centros culturais de fulgor inapagvel, entre os quais o de Silves.

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    A existncia de escolas elementares destinadas ao povo mido depreende-se, por exemplo, de um documento da poca almorvida relativo a Sevilha. Nele se estabelecia que as mesquitas de bairro no deveriam servir como escolas para os meninos, j que estes no cuidavam de no sujar os ps nem os vestidos, acrescentando-se que o ensino deveria ser ministrado nas galerias se no houvesse mais apropriada soluo. O mesmo texto apresenta ainda algumas indicaes acerca do ensino na mesquita maior. Nas galerias, onde deveria ser instalado um doutrinador religioso, tambm se poderiam ler as demais cincias alm do Coro e das tradies da Suna 5. Esta regulamentao contm igualmente interessantes preceitos de carcter pedaggico.

    A poltica no-integracionista dos rabes evitou a completa absoro cultural dos povos submetidos ao seu domnio. Segundo F. Adolfo Coelho, h revelaes indirectas da persistncia de um ensino, domstico, ou escolar, dos elementos da leitura e da escrita, e do conhecimento da literatura eclesistica, at conquista definitiva de Coimbra (1064). A sua tolerncia cultural permitiu igualmente a existncia de uma literatura judaica florescente nesta zona geogrfica 6.

    Numerosos factos atestam que a criao de instituies escolares durante a Idade Mdia esteve ligada em Portugal, como em outras naes europeias, aco da Igreja Catlica, com o apoio deliberado da realeza, quer no grau elementar, quer no superior. Assim, foram os priores de St. Cruz e de Alcobaa que, aos 12 de Novembro de 1288, em Montemor-o-Novo, conjuntamente com os de S. Vicente de Lisboa, Guimares e Santarm, na companhia de vinte e dois reitores de vrias igrejas, deliberaram propor a criao de

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    uma Universidade, comprometendo-se a pagar das suas rendas os salrios do reitor, lentes e oficiais. A proposta foi dirigida ao Rei e ao Papa. D. Dinis acolheu-a favoravelmente criando em Lisboa um Studium Generale, por carta rgia de 1 de Maro de 1290. Pouco depois o Papa reconhecia a Universidade por meio de uma bula em que se estabeleciam providncias e regulamentaes genricas sobre o funcionamento dos Estudos. Em 1308 a Universidade foi transferida para Coimbra, instalando-se definitivamente nesta cidade no reinado de D. Joo III 7.

    Que a difuso da instruo entre as vrias classes sociais deveria ser muito restrita facto comprovado pela ignorncia do clero e da nobreza, no s nos primeiros sculos da monarquia mas nos subsequentes.

    Sendo Portugal um pas que desenvolveu relaes internacionais desde o sculo XII, de estranhar que neste perodo inicial da monarquia no encontremos vestgios de escolas destinadas educao dos mercadores semelhana do que ocorreu noutros pases da Europa no sculo XIII 8.

    Era a Corte, entretanto, um dos principais focos de cultura no pas. Quase todos os nossos primeiros monarcas se interessaram pelo desenvolvimento dos estudos e um deles, D. Dinis, marcou presena indelvel na histria da poesia portuguesa. Contudo, nenhum dos antecessores do rei-poeta assinou por sua mo qualquer documento, o mesmo se verificando com personagens de posio elevada na escala social 9.

    Outro exemplo da aco cultural da Corte a chamada literatura didctica, designadamente a que ficou a dever-se a prosadores da dinastia de Aviz.

    O gosto da caa e da luta, das justas, torneios, canas, bafordos, etc., apresentado pelo Prof. Rodrigues Lapa

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    como um dos traos distintivos da sociedade portuguesa desde o reinado de D. Fernando. De todos estes factos, acrescenta, havia de surgir uma curiosa literatura, que reflecte as preocupaes dominantes da poca e tem necessariamente uma feio didctica at profissional 10.

    Sob o ponto de vista da instruo profissional dos Senhores, so os trabalhos de D. Duarte, o Leal Conselheiro e o Livro da Ensinana de Bem Cavalgar toda a Sela, que mais avultam na literatura pedaggica portuguesa.

    O primeiro trata da educao moral e social da aristocracia; o segundo, da sua instruo militar. Ambos os livros se destinavam a preencher uma funo eminentemente prtica mas permaneceram inditos at ao sculo XIX. O facto de terem ficado inacabados no basta a explicar a sombra que sobre eles desceu. As novas tarefas cometidas classe senhorial no Portugal das descobertas e das conquistas impunham uma formao profissional de novo tipo 11.

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    DO APRENDER A ENSINAR CONTESTAO DO SABER

    A instruo elementar parece ter feito progressos em Portugal na segunda metade do sculo XV e no sculo XVI. Mas j em 1406, os procuradores da cidade de vora referiam a existncia de um bacharel que ensinava gramtica e a escrever aos filhos dos bons e a quaisquer outros que quisessem aprender, havendo notcia de um mestre de meninos em 1439 naquela cidade 12. O funcionamento de escolas elementares para cada um dos sexos na Lisboa do sculo XVI atestado por outros documentos. Os filhos dos burgueses abastados e dos nobres recebiam, por via de regra, instruo elementar em suas casas 13. Com D. Manuel h notcia de serem subsidiados rapazes e adolescentes nobres, (em nmero difcil de contar, diz D. Pedro de Menezes em 1504), para frequentarem a Universidade de Lisboa, os quais deixam o pao durante o tempo dos estudos, e recebem o costumado soldo e diria que ele liberalmente lhes d 14. O prprio pao foi tambm, uma escola, como o demonstra o caso do historiador Joo de Barros que, nascido numa grande famlia em 1496, iniciaria no pao a sua educao literria e cientfica com a idade de jogar o pio, aprendendo o latim e o grego.

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    Deve-se a Joo de Barros a obra pedaggica mais notvel da nossa literatura quinhentista no mbito da instruo elementar.

    Em 1539 editada em Lisboa, por Lus Rodrigues, a Cartinha para aprender a ler, no seguimento de anteriores tentativas 15. Maria Leonor Carvalho Buescu demonstra que s por abuso do editor foi a Cartinha publicada como livro isolado. Pelo contrrio, a Gramtica da Lngua Portuguesa formaria uma espcie de Corpus didctico constitudo pela Cartinha como primeiro livro, pela Gramtica da Lngua Portuguesa como segundo livro, pelos dilogos Da Viciosa Vergonha e Em louvor da nossa linguagem a ttulo de concluso e de textos de leitura 16.

    O prprio Joo de Barros indicou, de resto, a estrutura da obra 17, seguindo-se a esta explicitao a Introduo para aprender a ler, onde as letras aparecem ligadas a uma imagem e cada uma delas como inicial de uma palavra. Pela primeira vez se usa entre ns a imagem para efeitos de ensino.

    A aprendizagem da lngua materna (e sua gramtica) era vista por Joo de Barros tambm como introduo aprendizagem de outras linguagens. Assim, no pargrafo intitulado O proveito que tem saber muitas slabas, chamava a ateno para o facto de algumas delas no existirem ou raro aparecerem na lngua portuguesa mas declarava no lhe ter parecido infrutfero poer exemplo dlas, ca todas srvem assi no latim como em outras lingugens 18.

    Na seco Preceitos e Mandamentos da Igreja com algumas doutrinas catlicas em que os meninos devem ser doutrinados, inclua oraes em latim e portugus, assim como elementos de doutrina e o tratado da missa 19.

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    Ao passo que a Cartinha era profusamente ilustrada, tirando o maior proveito possvel de um grafismo atraente, a Gramtica, observa pertinentemente Maria Leonor Carvalho Buescu, no contendo ilustraes, apresenta as matrias dispostas em pilha, por vezes em duplicaes desnecessrias mas que demonstram a aplicao do princpio da repetio como mtodo de fixao 20. Em abono deste ponto de vista, recorda-se a declarao de Barros, de que teria seguido a ordem de ensino adoptada pelos artistas (pedagogos), afastando-se dos gramticos especulativos, visto que o seu intuito era a utilidade das crianas, levando-as a aprender do simples para o complexo, do elementar para o superior 21.

    No Dilogo em Louvor da nossa Linguagem inseriu Joo de Barros algumas pginas de crtica incisiva ao sistema escolar portugus sobre o qual nos proporcionava, indirectamente, interessantes informaes.

    Dilogo entre Pai e Filho, o primeiro defendia o ensino da Gramtica Portuguesa como condio de aprendizagem da Gramtica Latina 22. Acentua Maria Leonor Carvalho Buescu ser lcito pensar que a prtica seguida consistia em levar o jovem estudante quinhentista, logo aps as primeiras letras, a embrenhar-se no estudo da gramtica latina, depois do que faria a transposio dos conhecimentos adquiridos para a lngua materna. Entretanto Joo de Barros, segundo a mesma autora, aparece j como que envolvido no processo de uma alterao pedaggica que levaria, na segunda metade do sculo, a uma tendncia muito mais moderna, devemos dizer para fazer preceder o estudo da gramtica Latina pelo estudo da gramtica nacional [ . . . ] 23.

    Criticando a prtica das escolas de Gramtica Latina, o Pai declarava que os mestres, ignorando as regras da

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    gramtica portuguesa, tinham dificuldade em achar as matrias da latina, pelo que tinham cartipios de latins em lingugem, por onde s dvam aos moos, como frcos prgadores, sermonrios pera todo o ano 24.

    Propunha o Filho, em seguida, o estudo da Gramtica Portuguesa na escola de ler e escrever, passando os meninos a ir j gramticos para as chamadas escolas latinas. Representante da opinio de Barros, o Pai rejeita a proposta, com base na deficiente habilitao dos professores. Nem todos os que ensinavam a ler e escrever estavam altura desse ofcio, e ainda menos para ensinar gramtica portuguesa. Reputava Joo de Barros condenvel que se consentisse que qualqur idita e nam aprovdo em costumes de bom viver pusesse escla de insinr mininos, o que no se verificava em relao aos ofcios mecnicos. Entretanto, os maus mestres deixam os discpulos dandos pera toda sua vida, nam smente com vios dlma, de que poderemos dr exemplos, mas ainda no mdo de s ensinar 25.

    Pela voz do Pai, surgiam depois aceradas crticas falta de educao doutrinal crist nas escolas de ler e escrever. Em lugar de ensinarem por uma cartinha de letra redonda ento existente per que os mininos lvemente saberm ler, e assi os preeitos da nssa f, que nla estm escritos 26, praticavam os mestres um ensino pelos autos dos tabelies, de maneira que os moos, ao sarem da escola, ficavam somente industriados no processo de organizar demandas judiciais mas em no mais do que isso. Com a agravante, acrescentava, de que a letra manuscrita dos termos judiciais no apresentava a uniformidade desejvel ao ensino 27.

    Contra este ensino formalista defendia Joo de Barros um artifcio conforme tenra idade dos meninos,

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    antagnico da coaco e da rudeza. Isto tanto mais de salientar quanto certo que os castigos corporais, que Joo de Barros no exclua em absoluto das escolas, constituam prtica de todos os dias.

    Especificamente no captulo da iniciao escrita, esse artifcio teria de ser anlogo ao que ele preconizava na iniciao leitura: conhecimento das letras, silabrio, formao de palavras, e, per derradeiro, [ . . . ] variam de todalas outras prtes, porque assi, de gru em gru, de pouco a mis, aprendem a ler.

    De modo idntico se deveria proceder quanto ao gnero de escrita e seus caracteres. A letra de imprensa seria utilizada na fase de iniciao, s depois se passando manuscrita, na qual os homens se tornariam peritos mais tarde pela fora da prtica.

    O dilogo encerra-se com um discreto apelo aco reformadora do rei em relao aos estudos menores, semelhana do que fizera na Universidade de Coimbra, o que dever ser aluso reforma de 1537 28.

    A Gramtica da Lngua Portuguesa termina com o Dilogo da Viciosa Vergonha 29. Nesse texto, Barros criticava o costume, corrente na Europa do sculo XVI, de se entregarem as crianas s amas ou amos, mediante o pagamento de certa quantia. A educao moral era necessidade que se manifesta desde cedo, pelo que se impunha munir os meninos com as armas convenientes aos vcios naturais de sua idade 30.

    Em concluso: parece indubitvel ser Joo de Barros o escritor portugus quinhentista que maior ateno concedeu educao infantil e primria, sob o ponto de vista pedaggico-didctico. Algumas das suas ideias revelam-se plenamente concordantes com o progressismo pedaggico generalizado na Renascena.

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    Embora sem a envergadura do pensamento pedaggico de Joo de Barros, outras obras se impem nossa considerao no plano da educao elementar. Supe-mos, porm, que se destinassem a uma classe social em que Barros no pensava: a dos mercadores. provvel, com efeito que os filhos da burguesia comercial comeassem, neste perodo, a receber os rudimentos de uma instruo profissional especializada em matrias de interesse para a actividade de suas casas.

    Neste contexto, significativo que a edio de 1590 do livro de Manuel Barata, Exemplares de Diversas Sortes de Letras, tirados da Poligrafia de Manuel Barata, Escritor Portugus, contenha igualmente um tratado de Aritmtica e outro de Ortografia Portuguesa, este ltimo da autoria de Pero de Magalhes Gndavo, acompanhado de um breve dilogo em defesa da nossa lngua.

    Quanto Ortografia, informa-nos o autor de que a maior parte dos portugueses so mui estragados e viciosos, corrompendo a pronncia da lngua com inumerveis erros que cometem. As regras de ortografia elaboradas por Gndavo destinam-se instruo primria elementar, isto , para os que no so latinos, embora admita que a outros possam igualmente aproveitar 31.

    Uma passagem do Dilogo em defensam da lngua portuguesa sobre a qual tem disputa um Portugus com um Castelhano autoriza-nos a levantar a hiptese do ensino de lnguas estrangeiras, o que, naturalmente, interessava burguesia. Com efeito, uma das provas apontadas para a preeminncia da nossa lngua que a todos os naturais habilita e dispe de maneira, que em pouco tempo e com muita facilidade (como claramente se v por experincia) tomam qualquer lngua estranha, e nisto fazem vantagem a todas as outras naes.

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    Os ensinamentos do Tratado de Arismtica, que o livreiro Joo de Ocanha acostou por sua iniciativa aos excertos caligrficos de Barata destinavam-se a crianas, como parece legtimo depreender do trecho seguinte: Prtica de Arismtica: primeiramente necessrio conhecer as letras: e depois de conhecidas saber numerar [ . . . ] . As matrias contidas no volume so elementares: tabuadas, numerao, quatro operaes, tcnicas de disposio das contas, regra de trs ch (simples), regra de trs com tempos (composta) e regra de juros.

    O Tratado de Arismtica no denota veleidades especulativas. concordante neste aspecto com ideias expressas por outros pedagogos deste perodo. D. Pedro de Menezes, ao falar perante D. Manuel no Estudo Geral de Lisboa, em 1504, refere-se Aritmtica e Geometria, presentes nos currculos de 1431 e de 1504, assinalando-lhes a utilidade no somente para os homens de saber mas tambm para todos os que se dedicavam s actividades mercantis 32. O valor da Aritmtica e da Geometria foi igualmente sublinhado por Jernimo Osrio no plano da educao do prncipe, tendo em conta a sua aplicao possvel a vrios sectores da administrao pblica. Essa opinio levava um dos interlocutores, Tvora, a perguntar se o educador pretendia fazer do prncipe um negociante e no um rei 33, do que se julga lcito deduzir que o ensino da Aritmtica e da Geometria era reputado parte essencial da formao dos que se entregavam ao comrcio.

    Outro sector digno de meno na literatura pedaggica portuguesa relaciona-se com a educao dos prncipes, o qual tem copiosa literatura entre ns 34. No sculo XVI, distinguem-se Diogo de Teive, autor do De Institutione Boni Principis, conjunto de sentenas sobre a educao de

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    D. Sebastio, e a obra de Jernimo Osrio, Da Instituio Real e sua Disciplina (1572), considerado pelo crtico Aubrey Bell como um dos grandes livros da Renascena 35.

    Jernimo Osrio no reconhecia finalidade e valor prprios infncia. As crianas deveriam ser divertidas com brincadeiras que se no afastassem muito das ocupaes em que os pais ambicionassem que elas viessem a distinguir-se 36. Este preceito aplicava-se a toda a educao do prncipe, tanto no relativo aos objectivos educacionais como no concernente s matrias e mtodos de ensino.

    Um dos aspectos mais interessantes das concepes do Bispo de Silves a sua defesa incondicional da aliana entre a educao fsica e a educao intelectual na construo da personalidade 37. Inclinando-se para uma educao de base naturalista, criticava aqueles que impediam a criana de contactar com o sol e o ar puro, ao mesmo tempo que a atulhavam de alimentos condimentados como se fosse um patinho na engorda, crtica que, obviamente, s teria cabimento em relao s classes sociais privilegiadas. A robustez fsica, a sade e a longevidade, avisava Osrio, no se alcanam pela abundncia de alimentos nem pelo excessivo conforto, e muito menos dependem da absteno de qualquer esforo 38.

    Na aprendizagem de quaisquer artes cumpria averiguar o temperamento daqueles a quem pretendemos ensinar, decorrendo da confluncia de trs factores as vantagens atingidas pelos alunos: aptido natural, arte (tcnica) e, por fim, aplicao e grande exerccio. A crena de Jernimo Osrio na fora da educao levava-o a afirmar que dificilmente se encontraria um esprito to obtuso e acanhado que no possa, de maneira nenhuma,

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    desbravar-se e desenvolver-se com a aplicao a uma arte determinada na qual se exercite. 39

    O objectivo a alcanar com a educao do prncipe era bem a formao de uma brilhante personalidade da Renascena: Osrio desejava o Prncipe de esprito activo, vivo, curioso, e dotado de memria tenaz. Que muito busque, que investigue, que deseje saber, e que fixe na memria tudo quanto ouvir dizer. Que, alm disso, deseje honras sem medida, tudo isto temperado por virtudes de equilbrio e prudncia 40. Todo apetite desordenado deveria ser reprimido, menos pelo temor do castigo corporal (hiptese no excluda) do que pelo temor da infmia. A disciplina das crianas, tanto quanto o entendimento delas o permitisse, devia basear-se no prazer.

    A educao infantil, incluindo a do prncipe, estribar-se-ia no jogo, segundo o exemplo da paideia grega e do ludus latino, porque, em parte, se inculca e ensina maneira do jogo, para mais facilmente se fixar e imprimir no esprito delas 41.

    Cumpriria inculcar a educao religiosa criana, dizia o Bispo de Silves, de tal modo que, se possvel, bebesse os primeiros ensinamentos de piedade com o leite da sua ama 42.

    Chegado idade das primeiras letras, todos os cuidados no seriam demais na escolha do mestre, que no deveria ser ignorante, nem taciturno, nem, sobretudo, descomedido, mas, sim, douto, eloquente e bem comportado. No ensino do prncipe ter-se-ia o cuidado de eliminar todas aquelas inutilidades gramaticais em que eram frteis, usualmente, os preceptores 43.

    Na idade da instruo primria elementar, os exerccios corporais consistiriam na corrida, no salto, na luta,

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    adestrando-se nas armas e caando ao ar livre nas rudes condies da natureza, pratica que qualificava da maior importncia sob o ponto de vista dos exerccios guerreiros e da arte militar. Contudo, para manter o equilbrio no nimo do prncipe, preconizava que se apartasse por vezes do bosque e cultivasse as artes humanas. Defendia que o futuro rei aprendesse msica, como, alis, todos os nobres. O dio msica era sinal de brbara crueldade, cumprindo que se considerasse desumano todo aquele que musica fosse estranho. O Rei teria a obrigao de se dar msica no s para recrear o esprito durante as suas ocupaes ou para mitigar ou refrear os mpetos da natureza, mas tambm para entender, com as normas da msica, que o bem-estar e a felicidade residem na moderao da ordem e da justia 44.

    Os ofcios mecnicos eram rigorosamente excludos do currculo escolar do prncipe como indignos da grandeza e da majestade reais.

    As artes, se contivessem divertimento honesto ou conhecimentos dignos da nobreza, poderiam ser estudadas pelos soberanos. Estavam nesse caso, como j referimos, a Aritmtica e a Geometria, elementos da formao profissional dos mercadores, que o rei estudaria pela sua aplicabilidade aos assuntos da administrao pblica e ao estudo da astronomia. Este ltimo no possua um fim em si mesmo, seno que ajudaria o prncipe a organizar a repblica segundo a harmonia e equilbrio do firmamento.

    No devendo ignorar a Astronomia, tambm teriam de ser-lhe familiares a Dialctica e a Retrica. O estabelecimento do currculo de estudos conclua com um elogio ardente do valor das Artes 45.

  • 23

    Homem do seu tempo, Jernimo Osrio traou um modelo de educao do Rei que no teve aplicao em Portugal. Posto que influenciada pela sua classe, a obra pedaggica do Bispo de Silves profundamente representativa dos ideais da Renascena.

    A reflexo dos pedagogos sobre a educao da classe dominante teve a sua expresso no regulamento de instituies escolares portuguesas e estrangeiras. Neste sector, avulta a interveno de D. Pedro de Menezes, em 1504, no Estudo Geral de Lisboa, perante D. Manuel, em louvor das cincias e das artes exercitadas naquelas escolas e dos seus restauradores 46. O orador comeava por destacar o valor da Teologia, louvando em seguida a Filosofia, o Direito e a Medicina, passando, depois, a ocupar-se das Artes: a Retrica, que, sob o ngulo da aplicao, se chamava Oratria, a Lgica ou Dialctica, a Astrologia, a Msica, a Aritmtica e a Geometria. A Gramtica, considerava-a na realidade e na prtica, a primeira de todas as artes 47. Elogiando a poltica manuelina de desenvolvimento do ensino universitrio, D. Pedro de Menezes cingia-se ao currculo existente ao tempo. Quatro anos depois, o Estatuto Manuelino estabeleceria um currculo universitrio em que, no sector das Cincias, se estudariam Teologia, Cnones, Filosofia Natural, Filosofia Moral, Leis e Medicina, reduzindo-se as Artes Lgica e Gramtica 48.

    Em 1534 foi a vez de Andr de Resende proferir na Universidade de Lisboa uma Oratio Pro Rostris, classificada com razo por Hernni Cidade como um impressivo manifesto da pedagogia humanista 49.

    A orao de Resende enaltecia as cincias principais de um plano de estudos de ndole humanista. Comeava pela Gramtica, a qual compreenderia tambm o mtodo de

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    escrever, assim como leitura e interpretao correctas, invadindo ainda os domnios da msica, astronomia e filosofia 50. Em seguida, apelava no sentido de no ser permitido, pela prpria Universidade ou pelos magistrados das cidades, que persistissem reticncias no ensino acerca deste ponto, tanto mais que quase toda a Europa renascia.

    Resende qualificava as gramticas latina e grega indispensveis a todos quantos pretendessem cultivar as letras, defendendo, no mesmo plano, a oratria, a filosofia fsica e tica, natural e moral, a astrologia, a medicina, o estudo do direito e a teologia 51.

    O orador terminava com a incitao reforma da Universidade num sentido compatvel com um ideal humanista e aristocrtico. As humanidades assinalavam o pice da vida, no havendo quaisquer ocupaes humanas que pudessem ombrear com a dignidade dos estudos. Os estudos davam uma imagem quase divina da prpria felicidade, ao passo que nas actividades vulgares havia muitas coisas comuns s feras, permitidas apenas a homens de baixa condio e categoria, mas ilcitas a homens livres e nobres e quase todas indignas da divindade das almas, para no falar, acrescentava, dessas artes que os gregos apelidavam de mecnicas e que consistiam em trabalhar com mquinas, nem dos mesteres vis que nenhum homem sensato, assevera, traria quele debate. A glria da guerra e as formosas riquezas, senhoras do mundo, diz, se as considerarmos de livre razo e sem a caligem da mente, em nada acharemos que sirvam para bem e felizmente, ou ao menos docemente, vivermos 52.

    No plano das estruturas curriculares e da organizao do ensino, o pensamento pedaggico portugus

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    salientou-se, no sculo XVI, atravs de duas instituies: o Colgio da Guiana, em Bordus, e o Colgio das Artes, em Coimbra. Com efeito, da extensa famlia dos Gouveias humanistas distinguem-se particularmente Diogo e Andr de Gouveia, reitores, respectivamente, dos Colgios de Santa Brbara e de Bordus.

    Do ltimo, diz Montaigne ter sido sans comparaison le pus grand et le plus noble principal de France 53. Foi de resto em 1583, presidindo Montaigne Jurada de Bordus, que o regulamento de estudos do Colgio de Guiana, conhecido pela designao de Schola Aquitanica, veio a pblico, em latim, sem assinatura, sob a responsabilidade do humanista Elias Vinet. Atribudo a este ltimo durante muitos anos, foi todavia Andr de Gouveia o autor da sua estrutura fundamental, como estabeleceu o investigador portugus Alfredo Carvalho 54.

    Em 1547, quando se fundou em Coimbra o Colgio das Artes sob a proteco rgia, a instituio foi vazada nos moldes de Guiana ou de Santa Brbara. Gouveia, no dizer de Alfredo Carvalho, no trouxe apenas professores de to elevada estatura como Grouchy, Vinet, Diogo de Teive, Fabrizio, Guerante e Buchanan: trouxe o plano de estudos, programas, regulamento e didctica 55. O Primeiro Regimento que El Rei D. Joo III deu ao Colgio das Artes no tempo que em ele leram os Franceses, isto , o Regimento de Novembro de 1547, nomeava Andr de Gouveia como principal, conservando o essencial da sua orientao pedaggica.

    Em 1555 o Colgio foi entregue aos Jesutas. Esse facto, ao contrrio do que se tem sustentado, no implicaria forosamente mudana de orientao. Tanto Andr de Gouveia, como os fundadores da Companhia de Jesus, conforme recorda Serafim Leite, procediam, sob

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    o ponto de vista pedaggico, da mesma cepa: o Colgio de Santa Brbara em Paris, de que fora principal Diogo de Gouveia, o Velho 56.

    Ainda no domnio da organizao dos estudos, assinalem-se os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1559, mais amplos do que os da Universidade de vora.

    O domnio da Companhia de Jesus sobre as instituies de ensino originou, ainda, toda uma corrente pedaggico-didctica conhecida por uma srie de obras compreendidas sob a designao comum de Commentarii Collegii Conimbricensis e divulgados por toda a Europa at ao sculo XVIII. Na literatura didctica produzida pelos Jesutas salienta-se igualmente a famosa De Institutione Grammatica. A Arte ou Gramtica de Manuel lvares teve inumerveis edies em Portugal e no estrangeiro 57.

    digna de nota a contribuio portuguesa no sector do ensino durante o sculo xvi. Os estudos humanistas alcanaram extraordinrio brilho entre ns. Raras sero as Universidades de alm-fronteiras onde nesse perodo no tenham ensinado com proficincia mestres portugueses.

    Entre os sbios lusitanos a quem a pedagogia ficou a dever pginas de incontestvel merecimento figura Francisco Sanches 58. Foi no Quod Nihil Scitur, publicado em 1581, que Francisco Sanches fixou o essencial da sua teoria pedaggica. Sanches afirmava o princpio de que a educao modifica o homem e observava que a maioria dos homens que ao estudo se entregam fazem dele um meio de promoo social ou de obteno da riqueza, ao passo que o homem que estuda no deve ter outra finalidade seno o saber 59. Em seguida, postulava o princpio da educao universal. A obteno do saber pressupunha o ensino. Ningum podia tornar-se douto

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    por si, pelo que tanto o pobre como o rico deviam ser ensinados 60.

    Passando crtica do ensino, Sanches censurava, em primeiro lugar, os professores, acusando-os de ocultarem a verdade ou de ensinarem falsidades. A ignorncia, os baixos salrios, a pobreza, a doena, a incapacidade dos discpulos, o medo ou a parcialidade eram motivos determinantes do facto. Era o ensino do erro, para Sanches, uma inexcedvel calamidade, sobretudo quando se produzia na infncia, cuja fora receptiva e retentiva tanto maior quanto maior for a autoridade do mestre 61. Arremetia tambm contra a cincia meramente livresca e logomquica, baseada na autoridade do mestre e constituda por discusses interminveis, contrapondo-lhe os que perscrutavam a natureza em si e que, todavia, eram vulgarmente alcunhados de ignorantes 62.

    O psitacismo originado pela cincia livresca projectava-se negativamente sobre a educao dos jovens, prejudicando-os para todo o sempre. As discordncias de opinio entre os professores, provocadas por essas disputas sem nexo, lamentavelmente destroem e dilaceram o desgraado esprito do principiante, o qual, hesitando entre opinies contrrias, acabava por aderir ao sentir de quem gritou mais alto 63.

    Entendia o mdico portugus que o mtodo to importante como o ensino. A natureza e a sociedade oferecem-nos o espectculo de uma grande variedade de coisas. Que dever fazer o jovem no meio desta diversidade? Para achar a verdade, os humanos dispem de dois meios: a experincia e o juzo. A experincia torna o homem douto e prudente e por isso se inventaram a escrita e o livro, para que se aprenda em pouco tempo aquilo que este ou aquele experimentaram em toda a vida

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    e em vrios lugares (. . . ) 64. Se o jovem quiser aprender tem de estudar perpetuamente, tem de ler o que tem sido dito por todos e at ao fim da sua vida lutar com as coisas por meio da experincia 65. Essa luta permanente smbolo da cultura derivaria da evanescncia das opinies, quer do discpulo, quer do mestre. As certezas desaparecem, assim como as inclinaes do esprito, e da a impossibilidade de conhecer a essncia do real. As coisas que se ensinam no tm mais fora do que a que recebem de quem as ensina. 66 Fonte de todo o saber, o acto pedaggico seria, segundo Sanches, a estrada real para a verdadeira Filosofia, isto , para o cepticismo.

    As crticas dirigidas por Sanches ao saber livresco e comentarstico visavam as instituies escolares do tempo. Elas esto em harmonia com outras vozes clebres da mesma poca: Rabelais ou Montaigne.

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    O JESUITISMO NA EDUCAO DOMSTICA

    O sculo XVII portugus evidenciou a insularidade cultural relativa a que o conduziram a Contra Reforma e a Inquisio. Para fazer Portugal mais catlico do que latino, os seus pedagogos, como diria Hernni Cidade, subtraem-no s inquietaes que o agitam, defendem-no de qualquer acordo com o ritmo de uma actividade espiritual que ameaa de apostasia 67. O monoplio da preparao para a Universidade fora confiado aos padres da Companhia, os quais, em vora e nos Colgios de Lisboa e Coimbra, repeliam toda a especulao filosfica que no fosse a escolstica 68. O exemplo de Antnio Cordeiro mostraria a fora da represso intelectual que mandava afastar do ensino os mestres inclinados a novidades ou de engenho demasiado livre 69.

    O excesso da educao literria e a falta de uma educao capaz de preparar os homens para a vida tero determinado neste sculo algumas atitudes perante o ensino. O captulo LXXX das Cortes de Lisboa de 1641 preconizava o encerramento das Universidades, com excepo da de Coimbra, por cinco anos, aplicando-se os respectivos rendimentos s despesas da guerra, porquanto, alegava-se, pela maior parte se vo mais os

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    homens s letras que s armas que hoje so mais necessrias 70. Talvez por esse motivo, apesar da educao requintada do monarca, o reinado de D. Joo IV, bem como os de Afonso VI e Pedro II, foi escasso em providncias sobre a instruo pblica. As academias particulares no logravam suprir a frieza oficial quanto a essa matria, embora tenha sido na dos Generosos, fundada em 1647, que o tema do mtodo dos estudos foi analisado pela voz do Conde da Ericeira.

    A falta de educao tcnica (associada fuga s profisses mecnicas, organizao irracional da nossa vida colectiva e aos preconceitos relativos ao trabalho) incluir-se-ia entre os factores explicativos dos problemas nacionais, na ptica de um Lus Mendes de Vasconcelos, de um Manuel Severim de Faria, de um Ribeiro de Macedo ou de um Manuel da Costa 71. Contudo, esta educao tcnica no dever entender-se na sua modalidade escolar mas como aprendizado dos ofcios.

    At ao fim do sculo XVII, afirmava Adolfo Coelho, no se v enunciada a ideia da necessidade da educao popular, pelo que, falta de instituies pblicas, se desenvolve um pouco mais o ensino primrio particular, pelo menos em Lisboa 72.

    O sculo XVII portugus particularmente pobre no sector da literatura pedaggica. As obras de Fr. Pedro de Santa Maria e do Cnego Pedro de S. Joo Pinto, intituladas, respectivamente, Tratado da boa criao e polcia crist em que os pais devem criar os seus filhos e Vida Espiritual do Homem, ambas publicadas em 1633, tm interesse muito diminuto.

    A educao dos prncipes teve neste sculo alguns cultores, de que o leitor j tem notcia, mas cuja envergadura no de molde a justificar meno

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    desenvolvida. No sector especial da educao do nobre, sobressai a stira de Francisco Manuel de Melo, O Fidalgo Aprendiz, publicada em 1665.

    da autoria de um jesuta, Alexandre de Gusmo, (tio do famoso secretrio de D. Joo V, seu homnimo), a obra pedaggica portuguesa mais significativa de seiscentos: a Arte de criar bem os filhos na idade da puercia (1685).

    O autor principiava por salientar a importncia da boa criao dos meninos nos vrios planos da vida. A criana comparada a uma tbua rasa onde o desenho depender da conformao das primeiras linhas 73.

    educao atribui um papel mais relevante do que natureza. Antes que o caso do selvagem de Aveyron marcasse um ponto culminante na evoluo das ideias pedaggicas, referia a existncia de meninos criados entre os animais selvagens, conferindo educao o papel determinante da prpria hominalidade: De um menino que se criou trs anos entre os lobos se conta que no podia andar depois seno de gatinhas como lobo, e sendo achado de um caador e levado ao Prncipe daquela terra, procurou que andasse como os demais meninos em dois ps e no puderam facilmente consegui-lo. De outro tambm se diz que, sendo criado entre porcos, se metia como qualquer deles entre as imundcies 74. Os traos positivos e negativos em geraes sucessivas da mesma famlia, poderiam provir de factores naturais mas em grande parte, seriam consequncia da primeira criao 75. A boa educao dos meninos era tornada tambm como factor condicionante de todo o bem da Repblica 76.

    Abordando o tema da criao das crianas chamadas difceis, diria no haver condio de menino to ruim que no possa ser domada pela boa criao 77. O

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    substracto pessoal de cada um podia ser melhorado pela educao: o menino de inferior condio bem ensinado pode igualar ao que tem condies de ouro, faltando-lhe a criao [ . . . ] 78. Defendia por isso a educao individualizada, visto que as crianas podiam comparar-se aos metais: nem todos se lavram de maneira idntica 79.

    A segunda parte leva por ttulo Como se ho-de haver os Pais na criao dos meninos. Comeava por afirmar como condio essencial de xito para a aco pedaggica a oferta da criana a Deus logo aps o nascimento. Enunciava ainda outros conceitos que decorriam, alis, de supersties. Uma recomendao a fixar, e que figuraria na literatura pedaggica posterior: se, por justas causas, as mes no pudessem amamentar as crianas, tivessem grande cuidado na escolha das amas. Contudo, sempre que possvel, devia o aleitamento dos meninos ser assegurado pelas mes. Gusmo v a mltiplas vantagens, desde uma educao mais cuidada at defesa da sade da criana 80.

    A doutrinao religiosa seria o primeiro imperativo na educao dos meninos quando chegavam idade da discrio. A esse propsito, recomendava a criao da criana no temor a Deus e no dio ao pecado, considerando que o principal era o pecado desonesto contra a Angelical virtude da castidade [ . . . ] . 81 Os termos utilizados por Gusmo nesta matria so bem reveladores da sua viso preconceituosa da sexualidade infantil. Advogava, ainda, o castigo severo das crianas sempre que delas se soubessem aces ou palavras desonestas, sem curar de atenuantes. Elevava-se contra o que parecia constituir costume vulgar, qual fosse o de permitir que as crianas vagueassem durante todo o dia fora de casa, ou o de lhes franquear as portas noite para

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    rondarem as ruas ou os cantos da cidade; ou o de facultar dinheiro aos filhos, visto que, afirma, o rapaz a que no falta na algibeira o dinheiro, ou h-de sair jogador ou desonesto, e a bom livrar guloso, porque raro o que com esse dinheiro compra santinhos para o oratrio 82. Exprobrava tambm o demasiado alinho com que alguns pais tratam e enfeitam os meninos 83. Com uma exagerada concepo da gravidade de certas faltas, ocupava-se dos vcios prprios da idade infantil, tais como o mentir, o furtar pequenos objectos, o jurar, o chamar nomes e o dizer palavras obscenas 84.

    Gusmo exclua energicamente todo liberalismo na educao das crianas, preconizando, pelo contrrio, pesadas limitaes liberdade do educando 85. Um dos seus conselhos era que domemos os filhos e lhes cortemos a vontade enquanto so meninos 86, a pretexto de que entregue a si prprio, sua vontade pessoal, o menino posto em liberdade de fazer quanto lhe pede o apetite e de ir para onde lhe pede a vontade, segue o mau exemplo dos maus e se perde 87. Encarecendo os perigos da liberdade, no lhe acudia a ideia de que a submisso no sinnimo de orientao correcta.

    Aconselhando uma educao religiosa muito incisiva, atacava, de toda a evidncia, costumes do seu tempo, do qual nos d indirectamente um painel com alguma cor. Censurava os pais que tinham grande preocupao em trazerem muito enfeitados e alinhados os filhos pequenos, sem que as crianas estivessem instrudas nos mistrios da f e da piedade: V-los-eis de espadinhas prateadas, vestidos de seda arrendada de prata, porm sem cartilhas para aprenderem os mistrios da F, nem Rosrios ou horas de nossa Senhora para terem orao. Estes podereis esperar que sejam bons vadios, no bons

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    cristos ou bons Doutores, ajuntava com severidade. Outros pais, em lugar da piedade e devoo, se ocupam todos em ensinar os meninos a bailar, tocar viola, cantar, esgrimir ou correr a cavalo; porm de os ensinar a rezar, confessar e mais exerccios de piedade, pouco ou nada curam. Estes filhos podero sair bons danantes ou bons cavaleiros mas no bons cristos. Outros pais h to imprudentes e maus Cristos que ensinam aos filhos ditados bem contrrios piedade crist e humildade de Cristo, como a de ser timbrosos, melindrosos; a ttulo de nobreza, os ensinam a ser soberbos; a ttulo de discrio, bachareis; a ttulo de cortesia, entremetidos; e, talvez a ttulo de zombaria, a ser desonestos, fazendo-os repetir palavras bem torpes, as quais, ainda que o menino as no entenda, so como a peonha que mata ainda que se no conhea (. . . ). 88 Verifica-se, pois, que a educao dos meninos nobres tinha aspectos muito pouco elevados na sociedade frvola do sculo XVII.

    Gusmo consagrava, em seguida, alguns comentrios ao respeito e obedincia devidos aos mestres, aios e tutores. Os mestres, considerados a alma das escolas, deviam assentar a sua aco no amor e no temor, que so a alma de toda a disciplina. 89 Os castigos corporais encontram em Gusmo um defensor entusiasta. Saudveis so os aoites que em vossas casas dais a vossos filhos, escreve, mas os da escola so mais proveitosos vida, porque aproveitam aos vossos e mais aos alheios; porque o menino com o aoite prprio se emenda, e com o alheio se acautela, e vai cobrando o temor, e com ele o respeito. 90

    Acerca da orientao dos filhos na escolha da profisso, o autor preconizava a sondagem das inclinaes das crianas e dos jovens 91. Censurava o

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    tempo perdido na puercia e tambm na adolescncia a aprender a danar, a tanger viola, a esgrimir ou a montar o cavalo. A opinio do Jesuta ia no sentido de que os pais prudentes, uma vez observados os prstimos e inclinaes dos filhos na idade de meninos, os aplicassem desde logo para o estado que ho-de ter. Numa observao assaz significativa entendia ser de louvar que os filhos se aplicassem na puercia ao estudo das letras, ao menos a ler e escrever, porque, como bem disse um prudente, no de todo homem o que ao menos no sabe ler e escrever, recomendao reveladora de no serem certamente invulgares os casos de analfabetismo entre a nobreza 92.

    Por ltimo, o autor ocupa-se dos jogos e brincos dos meninos e do especial cuidado que se deve ter na criao das meninas.

    Para evitar a ociosidade, diz o P.e Gusmo, deviam permitir-se, sob vigilncia, alguns jogos e brincos pueris, apontando como ilcitos os bailes, as danas, as pedradas, a esgrima, e o hipismo, aconselhando a proibio das espadas, facas, escopetas, e semelhantes instrumentos, assim como os dados, as cartas e outros que eram prprios da tafularia. Quanto aos jogos honestos, Gusmo apontava o aro, a pela, o pio e outros, ou ento fazer altares, prespios, o arremedar o sacerdote e o pregador 93.

    Quanto educao das meninas, formulava os preceitos destinados a assegurar a subjugao tradicional das mulheres. A guarda e recolhimento eram a primeira norma, opinando o sacerdote que se no consentisse que sassem rua depois de desmamadas a brincar com os meninos. As meninas deveriam ser criadas no amor da pureza. No seriam de autorizar pinturas e enfeites excessivos. Num ponto, contudo, teria de coibir-

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    se a autoridade paterna: os pais no poderiam impedir as filhas de professar, sendo de gabar aqueles que as educavam na perspectiva de uma possvel vocao freirtica 94.

    Apesar de Gusmo no ultrapassar o seu tempo quanto a estes aspectos da educao feminina, noutros, contudo, mostrava menos acanhamento de ideias. Recomendava que as meninas fossem educadas como os rapazes quanto s artes liberais, entendendo ser no apenas conveniente mas louvvel ensinar as boas artes s filhas desde meninas. A leitura e a escrita, pelo menos, deveriam ser ensinadas a todas, assim como alguns princpios da lngua latina s que se destinassem a religiosas 95.

    Referindo-se Arte de criar bem os filhos na idade da puercia diz Ferreira-Deusdado nos Educadores Portugueses que o livro se ressente dos efeitos literrios do seu tempo mas que, sob alguns aspectos pedaggicos, no inferior Educao das Donzelas de Fnelon e aos Pensamentos sobre a Educao, de John Locke, ambos posteriores ao do pedagogista portugus 96. Independentemente desse juzo de valor, talvez exagerado, parece-nos o melhor tratado de educao infantil do nosso sculo XVII, ao mesmo tempo que pretende ser um guia prtico de educao domstica.

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    A REVOLUO DO SCULO XVIII

    O pensamento pedaggico, no Portugal setecentista, apresenta elementos de continuidade e de rotura, numa tela a que no faltam contrastes nem contradies.

    O facto de o ensino elementar se ministrar em escolas pblicas, sob a direco de mestres particulares (em coexistncia com o ensino oficial realizado em colgios) justificava a existncia de uma literatura pedaggico-didctica laica. A influncia jesuta , todavia, patente quanto s concepes fundamentais e moldes de organizao escolar.

    Uma das suas manifestaes mais interessantes data de 1722; a Nova Escola para aprender a ler, escrever e contar, dedicada a D. Joo V por Manuel de Andrade de Figueiredo, mestre desta arte nas cidades de Lisboa Ocidental e Oriental. O autor tivera escola pblica mas, data da redaco do livro, a fama da aura popular impusera-se estimao dos principais senhores e primeira fidalguia desta Corte de ambos os sexos, a quem, acrescentava empoladamente, cuidadoso sirvo em ensinar a escrever 97.

    Apesar de parecer cingir-se ao ensino da caligrafia, a Nova Escola abarcava outros assuntos. Dividida em quatro

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    classes ou tratados, a obra de Andrade de Figueiredo ocupava-se da iniciao leitura, caligrafia, ortografia e aritmtica, no s por pertencer s escolas mas porque muitos desejam aplicar-se a esta arte, e depois de crescidos o no fazem, por no tornarem a sujeitar-se aos mestres como meninos (. . . ). O cuidado em responder s solicitaes do autodidactismo manifesta-se nesta passagem, assim como se projecta no Breve Tratado de Ortografia, de Joo Pinheiro Freire da Cunha, ou na Recreao Filosfica e nas Cartas Fsico-Matemticas do P.e Teodoro de Almeida.

    A primeira questo a da escolha dos professores pelos pais de famlia. Algumas das ideias de Andrade de Figueiredo decalcam visivelmente as de Alexandre de Gusmo. Considerava o exerccio de ensinar o mais nobre, entendendo que essa elevada dignidade exigia ao docente uma personalidade moral de excepo. Preceituava-lhes que no fossem tbios em castigar e repreender as crianas. Embora condenveis todos os extremos, entendia que a vara e correco so as que do a sabedoria ao menino 98.

    Andrade de Figueiredo atribua largo alcance social educao. As qualificaes dos sbditos, assegurava sem hesitaes, provm da sua aplicao enquanto meninos e do ensino dos mestres. Estas recomendaes eram especialmente motivadas pela necessidade das Escolas elementares, cujos docentes desejava Figueiredo que possussem todos os requisitos indispensveis 99.

    O captulo imediato trata Do ensino das Escolas, com algumas advertncias para os Mestres ensinarem com perfeio. As indicaes do autor tm um carcter eminentemente prtico. Os seus primeiros conselhos relacionam-se com a repartio do tempo na escola.

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    Durante uma hora, at entrada do Mestre, os meninos achar-se-iam entregues a eles prprios, devendo ocuparem-se a ensinar uns aos outros a lio de ler e contar e em fazerem os trabalhos escolares 100. Nas escolas com elevada frequncia, os Mestres poderiam escolher dois discpulos que, nesta primeira hora, recolhessem os trabalhos de escrita e de aritmtica, registando os nomes dos alunos que os no tivessem feito, deste modo se evitando a confuso de as virem trazer ao bufete 101. Segundo uma prtica tradicional, tinha o mestre duas horas e meia de trabalho. Sentado num ponto de onde pudesse abranger toda a aula com a vista, pedia as matrias (trabalhos escritos), controlando pelo nmero de escrives os que faltavam. Emendadas, eram as matrias devolvidas aos seus autores, permanecendo sobre o bufete as que mereciam castigo ou continham erros 102. Das matrias escritas passava-se s contas dos principiantes. Concluda a sua reviso, chegavam ao bufete os decuries (chefes de grupos de dez alunos) com os seus cadernos. O mestre examinaria as contas, mandaria que os alunos, neste caso apelidados de contadores, lessem os respectivos resultados, deixando outras para a lio seguinte, e ordenando que fizessem na sua presena as que estivessem erradas.

    Findas as contas, mandaria o mestre averiguar, por rol ou pelos decuries, do motivo por que faltavam os meninos. Por serem rebeldes ou por cabea de outros mal inclinados, os alunos pareciam propensos em fugir s aulas 103. Finda esta operao, ordenava o mestre ao cantor que rezasse a orao do dia, aps o que se dizia um captulo ou, em alternativa, se aprendia a ajudar missa, a menos que mandasse aos meninos que lhe

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    parecer tomar lio aos principiantes, [ . . . ] 104. Os mestres deveriam informar pessoalmente os pais dos alunos em falta. Quanto ao aproveitamento, os decuries informariam o mestre do nome dos alunos que no soubessem a lio; e, nesse caso, conviria que o professor a tomasse pessoalmente a esses alunos 105.

    A sobrecarga de alunos determinava este sistema em que o mestre dispunha de auxiliares. Era o embrio do ensino mtuo. Um dos seus inconvenientes seria, decerto, o pouco tempo de ensino que o professor dispensava aos ltimos. Figueiredo aconselhava, por esse motivo, que, finda a lio dos principiantes, fossem estes mandados embora para aliviar a Escola, chegando ento ao bufete os escrives e contadores, aos quais tomaria o mestre nesse momento a sua lio 106.

    No ensino das matrias religiosas recomendava Andrade de Figueiredo que as oraes fossem repartidas pelos dias da semana. Quanto ao ensino da leitura, advertia ser necessrio ajustar a lio capacidade do aluno e que o excesso de dureza provocava, muitas vezes, o absentismo 107. Censurava os pais que perseguiam os mestres para que estes adiantassem os filhos, no atentando na pouca idade ou rudeza deles, e supondo erradamente que o saber escrever sinnimo de saber ler.

    Figueiredo recusava o mtodo global, mesmo quando os alunos, utilizando-o, tivessem atingido resultados satisfatrios, e preconizava o mtodo silbico. Na formao das slabas consistiria o principal e o maior trabalho do menino. O autor atribua impreparao metodolgica dos docentes o facto de os discpulos penarem longamente nas escolas sem aprenderem a ler.

    O ensino da escrita mereceu-lhe tambm uma srie de regras prticas, entre elas a de os mestres ensinarem esta

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    matria aos decuries, os quais, ajudando os professores e fazendo exames semanais, totalmente se aperfeioariam inteiros escrives 108. Ensinava a delinear todas as formas de letras, indicando os instrumentos necessrios e dedicando Ortografia Portuguesa todo um captulo.

    No domnio da Aritmtica, entendia que os alunos, assim que soubessem as quatro operaes at regra de trs, deveriam dirigir-se pessoalmente ao bufete, dispensando a interferncia dos decuries. Usavam-se tambm argumentos de taboada, aps as oraes das sextas-feiras, trabalho que Figueiredo reputava extensivo diminuio e diviso e no apenas soma. O clculo permitiria aprender mais facilmente as operaes respectivas 109. Voltaria a ocupar-se da Aritmtica no Tratado Quarto do seu livro, versando as oito espcies de Aritmtica de inteiros e quebrados com regras pertencentes s Escolas 110. Ensinaria a os nmeros e unidades, a soma, a subtraco, a diviso, com exemplos tirados da vida prtica, a tabuada da multiplicao, regras de trs simples e composta, regra de companhia, as operaes com quebrados, dzimas, operaes com medidas de capacidade, etc. 111.

    A avaliao dos conhecimentos ou seja, os Exames Gerais, deveria realizar-se com regularidade, semanalmente ou de quinze em quinze dias, em data varivel.

    O pedagogo pretendia tambm que os mestres ensinassem as regras gerais da Ortografia, no obstante a opinio de quem sustentava que s com os estudos gramaticais se aprende a escrever correctamente. Nem todos os alunos das primeiras Escolas seguiam os Estudos. E comentava: Ao menos para os que tomam

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    outros empregos lhes servir de grande proveito, terem sado com os primeiros documentos das regras gerais, para com eles estarem hbeis para se aperfeioarem (querendo) pelos volumes que tratam destas regras, o que no faro com facilidade sem as notcias delas; e finalmente por ser deslustre para o Mestre, sarem os discpulos com bom corte de letra e perderem parte da estimao pelo que a escrita tiver, de errada 112.

    As apostas das matrias afiguravam-se-lhe teis. Trata-se de uma prtica seguida em Portugal at ao sculo XIX, consistindo em que os alunos submetessem os seus trabalhos ao voto de pessoas alheias escola a fim de serem escolhidos os melhores.

    Manuel de Andrade de Figueiredo tinha, como se v, uma percepo muito ntida das necessidades dos professores nas escolas elementares. A Nova Escola , por isso mesmo, a obra pedaggica portuguesa do sculo XVIII que mais diligencia inserir-se na realidade escolar, na medida em que pretende constituir um ponto de apoio para o docente.

    Inscrevem-se, pelo contrrio, no sector da educao domstica o Discurso sobre a Educao, de Manuel Bernardes, todo ele orientado no sentido da formao religiosa do jovem ou a Arte Directiva para Educao de Filhos Ingnuos de Fernando Pereira de Brito. Este livrinho na realidade um folheto de quinze pginas foi publicado em Lisboa, talvez em 1730-1740, consistindo fundamentalmente numa srie de preceitos morais e religiosos. O objectivo do autor, sobre ser altamente ambicioso, estava imbudo de um racismo difuso: tratava-se, declara, de proporcionar ao filho as normas de maior necessidade para que vivesse segundo as obrigaes de Racional, de Catlico e de homem branco (. . . ). 113 O

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    autor no excede, porm, os limites do saber-viver e das boas maneiras segundo as entendia um corteso beato do sculo XVIII portugus.

    de envergadura incomparavelmente superior a obra de Martinho de Mendona Pina e Proena, aparecida em 1734 sob o ttulo de Apontamentos para a Educao de um menino nobre 114.

    Desincumbindo-se dos deveres de pai, dedicara-se o autor leitura da melhor literatura pedaggica e, naturalmente, dos autores mais em voga, aos quais, alis se refere: Locke, Rollin, Fnelon. Se verdade que, por vezes, se limitava a decalcar para portugus as suas leituras (o que no era invulgar, na poca) no menos certo que, muitas outras vezes, dissentia abertamente do parecer das autoridades com base na sua experincia pessoal. No tinha, de resto, pretenses de originalidade, nem a ambio de que a doutrina dos seus apontamentos alcanasse validade universal. O objectivo que pretende atingir essencialmente prtico: deixar uma norma de educao dos filhos se viesse a falecer, ou ser til a outros pais que se quisessem esclarecer acerca do assunto.

    Os apontamentos abrem com algumas observaes sobre puericultura. Recomendava moderado uso dos mantimentos vulgares e dos exerccios laboriosos, proibia totalmente tudo o que se pode chamar regalo 115. O vesturio no devia tolher os movimentos. Convinham s crianas os banhos frios, assim como o contacto ocasional com o Sol, a chuva, o vento e a neve. Igualmente lhes seriam salutares os exerccios de corrida 116.

    Aps o desmame, a alimentao seria simples e leve, em doses moderadas. Quanto s bebidas, preceituava apenas a gua, no que discordava do autor de On

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    Education. Divergindo mais uma vez de Locke, autoriza o uso de frutas frescas 117.

    Dos sete aos dez anos os meninos dormiriam apenas oito horas, podendo no futuro o sono reduzir-se a sete.

    Quanto s regras da Medicina, recomendava serenidade aos pais a fim de no chamarem o mdico sem urgente necessidade. Entendia que a dieta costumava ser o melhor mdico, de poucas drogas se precisando para cuidar da sade das crianas.

    Com uma intuio pedaggica segura, advertia que se evitassem dois erros de igual modo perniciosos na educao dos meninos: supor insusceptvel de instruo uma criana de dois ou trs anos, ou, pelo contrrio, antecipar as lies de ler e escrever, aplicando nelas horas inteiras numa criana de quatro ou cinco anos 118. Citava, no entanto, vrios exemplos de educao durante os primeiros anos de vida. Surpreendendo com grande frescura de observao as mltiplas e importantes aprendizagens da criana na idade pr-escolar, referia, designadamente, a da lngua materna. Consciente do dinamismo intelectual da criana, advertia da necessidade de lhe proporcionar objectos adequados de educao moral 119.

    Outra viso muito moderna da psicologia infantil manifesta-se na afirmao de ser difcil criana, por motivos de fisiologia cerebral, focar a ateno durante longo tempo sobre um mesmo objecto e permanecer quieta num lugar determinado, pelo que lhe seria danosa uma aplicao regular e seguida. Pensava que no seria de lhe forar a capacidade de linguagem articulada. Apesar disso, dever-se-ia responder pontualmente a todas as perguntas que formulasse, por mais ociosas que parecessem. Pina e Proena revelava-se mais uma vez um

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    observador sensvel da criana, ao discorrer sobre o valor da curiosidade infantil. Outro fenmeno psicolgico detectado pelo autor dos Apontamentos o da imitao, o que tornava imperativa uma seleco cuidadosa das pessoas que rodeiam a criana 120.

    Se em relao s predileces, por vezes caprichosas, dos meninos, Pina e Proena no advogava a permissividade, j em relao ao jogo abria uma excepo. No desenfado e divertimento haver-se-ia de permitir s crianas, uma inteira liberdade de brincarem como quiserem. O divertimento e brincar pueris considerava-os to necessrios quela idade como o repouso ou o alimento 121.

    Preconizava completo equilbrio afectivo no modo de os pais tratarem os diversos filhos. Em seu entender, era de combater a tendncia das crianas para considerarem sua propriedade pessoal determinadas coisas, o que, certamente, constitua uma exigncia excessiva. A cobardia e a temeridade afiguravam-se-lhe dois males a evitar. Proscrevia energicamente as ideias horrorosas, ou fantasmas, defuntos, demnios e outras semelhantes a que recorriam as amas para aquietarem as crianas, assim como pinturas de batalhas ou de monstros. Entendia, porm, no se dever evitar-lhes totalmente o contacto com a dor, nem permitir s crianas a crueldade, ainda que inconsciente, ensinando-se-lhes a que tratem com amor e civilidade as pessoas inferiores e os criados 122.

    Queria que se inculcasse s crianas o hbito de no mentirem e de serem capazes de guardar segredo. Quanto a educao religiosa, recomendava que se iniciasse ainda antes de os meninos saberem falar. Desde cedo deveriam tambm ser acostumados a subordinarem a vontade razo e a guardarem submisso, obedincia e respeito a

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    seus pais. Entretanto, era partidrio de que a atitude dos pais para com os filhos deveria permitir que os filhos fossem adquirindo autonomia crescente 123.

    Reprovava o uso dos castigos servis e s em caso de extrema necessidade consentia em aoites ou palmatoadas. Rejeitava o uso da palmatria na ocasio em que a criana estivesse a aprender a leitura, a escrita ou a Gramtica. Igualmente reprovava recompensas ou prmios materiais 124.

    Adiantava outra ideia que s mais tarde ganharia contorno cientfico definido: a importncia do conhecimento objectivo da criana e da busca do meio de ensino mais adequado. Em funo da natureza de cada criana ter-se-ia de escolher o mtodo mais ajustado, o que viria a invalidar a ideia de um nico mtodo com valor universal 125.

    O autor dos Apontamentos debate mais adiante a questo de saber se era prefervel a educao domstica ou a ministrada em Colgios. Pondera que o problema poderia parecer imprprio no nosso pas, tendo em conta a inexistncia, entre ns, de uma instituio semelhante ao Real Colgio de Madrid. Esperava, todavia, que o debate no fosse intil, e que o soberano reformasse as Escolas e fundasse Colgios onde a nobreza, diz, se instrua nos exerccios mais convenientes ao seu estado. Como se v, e como tem sido lembrado, transparecia aqui a ideia de ser necessrio o que viria a ser o Real Colgio de Nobres. Em reforo, aduzia a falta de professores particulares nas Provncias e o elevado custo da sua manuteno 126. Enquanto no existissem os colgios, recomendava que os pais tivessem nas suas casas os mestres que ensinassem a leitura, escrita e gramtica latina, evitando que as crianas frequentassem a escola

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    pblica, no por duvidar da grande capacidade e zelo dos Mestres, afirma, mas por conhecer o inevitvel dano que podem causar alguns condiscpulos. O evitar rudes contactos e contgios de linguagem, entre o menino nobre e os condiscpulos menos bem criados que frequentam as Escolas pblicas compensaria, no seu entender, o inconveniente da falta de emulao e do natural encolhimento que traz consigo o ensino domstico ( . . . ) 127. A quem para tanto dispusesse de meios sugeria, por isso, juntar na mesma casa um ou muitos meninos bem educados, os quais receberiam ensino domstico em conjunto com o filho do fidalgo. Essas crianas pertenciam, manifestamente, a uma classe no nobre, porquanto, acrescentava Pina e Proena, tal prtica poderia vir a favorecer os netos de quem a adoptasse, visto que alguns desses meninos, assim instrudos, poderiam vir a ser os respectivos aios ou mestres. Alis, a propsito da escassez de professores, acrescentava: A grande falta (de que todos se queixam) que h de sujeitos capazes desta ocupao nasce de que raras vezes so bem instrudas as pessoas faltas de meios; e as que os tm se no querem sujeitar a um ofcio muito laborioso e pouco til. 128

    Pina e Proena ocupou-se longamente das matrias curriculares e dos mtodos de ensino. Sobre o ltimo tema escreveu algumas pginas de modernidade indiscutvel. O verdadeiro modo de ensinar os meninos, afirmava, consistia em desenvolver-lhes a curiosidade de aprender, o amor e a inclinao para o que se lhes ensina e por quem os ensina 129. Os processos vulgarmente praticados tinham o efeito oposto. Num esboceto impressivo, dava-nos a imagem de uma aula no Portugal setecentista. Descreve-nos o mestre como um velho

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    melanclico, vestido de luto, que afecta uma autoridade desptica e dura, obrigando os meninos a estarem em p, sisudos e imveis enquanto do a lio; durante o interrogatrio do aluno, a qualquer inadvertncia ou esquecimento, segue um castigo spero, e mais spero do que se cuida, suposta a constituio branda e sensvel da primeira idade. Na adopo deste sistema pedaggico reside, quanto a Pina e Proena, a razo de muitos alunos detestarem o ensino e os livros. Notava, a propsito, que o ensino das lnguas vulgares, assim como o de desenho, dana, esgrima e equitao decorria sem castigos, ao passo que o estudo da lngua latina, devido ao grosseiro e desaprazvel mtodo seguido pelos mestres, se fazia custa de golpes 130.

    O mtodo a adoptar, em seu entender, combina a lio com o desenfado. O ensino deve basear-se no interesse da criana. Saber despert-lo um requisitos do professor genuno. As lies tero de ser de durao compatvel com a incapacidade da criana para se concentrar num s objecto. O ensino ser apresentado como vantagem ou privilgio da maior idade ou da melhor condio ou qualidade a fim de excitar por esse modo a ambio do aluno. O nobre ardor de aprender, assim estimulado, receber o reforo positivo do louvor e demonstraes de estimao proporcionadas ao adiantamento 131.

    As ocupaes prprias de um pai de famlia tornavam indispensvel a presena de um aio ou mestre nas casas nobres. Pina e Proena defendia o prestgio desses mestres domsticos, recomendando que todos os membros da famlia os tratassem com respeito. Seriam morais as qualidades mais frisantes do mestre, que normalmente serviria de amo ao menino antes dos quatro

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    anos; alm delas, teria de saber ler e escrever, alm de Gramtica Latina, entendendo ainda Pina e Proena muito til que soubesse a lngua grega, falasse as principais da Europa, fosse bem instrudo na Geografia, Cronologia, Histria e Cincias Matemticas, e tivesse algum conhecimento do direito pblico, dos interesses dos Prncipes e da Filosofia. A verdadeira educao no consistiria em fazer da memria do discpulo um escuro e confuso armazm de factos e de vozes ( . . . ), como tinha dito Montaigne, mas em prepar-lo para a vida social e cvica 132.

    Da educao da criana e do jovem exclua o teatro, as novelas de amor e as poesias. Dos autores antigos elegia Xenofonte e Virglio (embora corrigidos ou expurgados). A educao pela imagem tinha no autor dos Apontamentos um adepto apaixonado. A Livraria para os meninos e principiantes deve consistir mais em imagens sensveis e agradveis vista, que em livros prprios para o estudo, que sempre causa trabalho, afirma, alm de que a imaginao do que se oferece vista imprime mais duravelmente as coisas na memria ( . . . ) 133. A conversao quotidiana com o mestre seria outro valioso meio de aprendizagem e de conhecimento da criana 134.

    O estudo no contm um fim em si prprio: a sua verdadeira finalidade a vida prtica, O principal acerto dos estudos consiste em proporcion-los ao estado que se espera tenha o menino ( . . . ) . Neste livro Pina e Proena declara s encarar o fim geral que pede ter para o estudo um moo nobre, reservando para outra obra, que parece no ter chegado a escrever, a questo de uma educao mais especializada 135.

    Em sua opinio, a aprendizagem da leitura comearia logo que a criana soubesse falar, agregando-se-lhe o

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    ensinamento dos significados das palavras. As primeiras lies do ABC deviam ser dadas mais como brinco ou desenfado que como estudo ou ocupao sria ( . . . ). Aconselhava a utilizao de uns poliedros de marfim ou dados em cujas faces estivessem inscritas as letras, a fim de os meninos se divertirem enquanto aprendiam, ou, em alternativa, cartas de jogar que representassem as letras ao lado de smbolo sensvel, semelhana da Cartinha de Joo de Barros, mtodo que j fora utilizado no ensino da Histria e da Geografia. Entendia que a iniciao leitura deveria ser feita por um ABC impresso com letra cursiva parangona. Como livro para o ensino da leitura aconselhava o livro do espanhol Joo Paulo Bonet, Reduccion de letras y arte para ensear a Hablar los mudos. Sabidos o abecedrio e as principais combinaes das letras, passar-se-ia leitura de palavras.

    O tipo de letra com que se procede a este ensino e evoluir gradualmente da cursiva para a usual e de para a letra chancelaresca 136.

    Iniciado na leitura, o menino passaria escrita. Pina e Proena era partidrio da estenografia, professada nessa poca em Inglaterra, cujo ensino gostaria de ver mais difundido. A Ortografia deveria merecer particular cuidado a quem ensina a escrever, opinio que vem repetir a de Andrade de Figueiredo 137.

    Em seguida, ensinar-se-ia a arte do desenho e perspectiva, assim como os rudimentos da Herldica, e dos Escudos de Armas.

    Das lnguas vivas estrangeiras, a francesa teria a precedncia sobre todas as demais, sendo mesmo reputada indispensvel. As lnguas castelhana e italiana seriam de fcil compreenso, ainda que no necessitando de grande estudo, o que o impelia a recomendar o ingls

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    como segunda lngua viva 138. Quanto ao latim, o autor elogiava o exemplo de um austraco que fizera ensin-lo aos filhos pelo mtodo directo. Demarcando dois graus na aprendizagem da lnguas vivas e tambm no latim, observava que do latim no era preciso saber mais do que o necessrio para entender os livros e no ficar privado da lio dos melhores autores 139.

    Cumpriria igualmente ensinar-se a Gramtica da Lngua Portuguesa. A Retrica parecia-lhe menos necessria e quase inteis as suas regras.

    Tambm se lhe afigurava til que os alunos se iniciassem na arte epistologrfica.

    No tocante Poesia, debatia-se Pina e Proena em certa perplexidade. Negar a sua leitura aos meninos seria priv-los do contacto com a beleza e com as lies positivas que podia encerrar. Permiti-la, seria exp-los ao doce veneno das paixes. Assim, aconselhava ao mestre que apontasse ao discpulo, na conversao familiar, as regras mais essenciais da poesia, elaborando uma antologia de lugares selectos dos poetas clssicos 140.

    Desde tenra idade se deveria ensinar ao menino tudo quanto para se perceber no necessita mais que de aplicar os sentidos, e para se saber basta conservar na memria. Assim, desde o momento em que o aluno, na sugestiva frase de Pina e Proena comea a distinguir os quartos da casa em que se cria, deveria o mestre inculcar-lhe as primeiras noes de Geografia, recomendando-se o uso de mapas e cartas geogrficas, auxiliares igualmente aplicveis ao estudo da Histria. Aconselhava tambm os globos celestes e terrestres, alm da esfera armilar 141.

    Quanto Histria, era de opinio que se comeasse por uma leve ideia geral muito sucinta, abrangendo a histria nacional 142.

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    As primeiras noes de Aritmtica aprender-se-iam aquando da iniciao leitura e escrita. Alm das suas mltiplas aplicaes vida prtica, teria ainda o efeito de dirigir e aperfeioar a imaginao e o entendimento. Aos seus preceitos seguir-se-iam os elementos da Geometria, a Trigonometria, com as suas aplicaes arte militar, a lgebra especiosa ou Analtica. A partir da, o aluno teria acesso Mecnica, ptica e Astronomia, surgindo ento a Lgica, que desejava ver fundada no mtodo matemtico e no nas smulas dialcticas 143.

    Inclinava-se a crer que os meninos no careciam de nenhuma ginstica especial. Bastaria que se lhes consentisse liberdade e largueza. Recomendava energicamente o exerccio da espada, por ser til sade, aconselhando que se agregasse lio de espada a do manejo da arma e movimentos do exerccio militar moderno 144.

    A dana no podia faltar na educao do menino nobre, assim como a arte de andar a cavalo. Outros passatempos a consentir seriam a agricultura (no sentido da jardinagem), a conversao, o passeio, a caa 145.

    Depois de ter versado a noo de honra como ponto fundamental da educao infantil no nobre, Pina e Proena voltava srie dos estudos afirmando que, aps a Matemtica, se deveria seguir a Fsica, se, declara, nesta parte da Filosofia houvera coisa em que se assentar, ou sistema Fsico com que se satisfazer ( . . . ). Parecia-lhe que a Fsica corpuscular era o sistema que daria mais clara noo das operaes sensveis. Mas, acrescentava, se entrarmos neste estudo sem preveno de partido, quanto maior notcia tivermos da histria da natureza, quanto maiores progressos fizermos com observaes e

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    experincias, tanto maior embarao acharemos para abraar algum -sistema, no bastando nenhum para to complicadas variedades. Rejeitava, por isso, o sistema de Aristteles, ou, melhor dizendo, dos Escolsticos, os de Descartes, Gassendi, Newton, More, Cudworth e Leibniz. Opinava, contudo, ser justo que o mestre guiasse o discpulo, mostrando-lhe esta encantada arquitectura de Sistemas Fsicos ( . . . ). O estudo da Fsica teria menos por objectivo o conhecimento da natureza do que o reconhecimento da existncia da divindade 146.

    Do mundo fsico cumpriria passar ao mundo moral, ao conhecimento da bondade ou malcia das aces humanas. Queria Pina e Proena que se principiasse pelo estudo de direito natural, seguindo-se o do direito das gentes e a do direito ptrio (ou municipal). Desde a mais tenra infncia deveriam inculcar-se aos meninos os fundamentos das leis e acostumar as crianas sua observncia 147.

    Pina e Proena realizava, em seguida, um pequeno excurso relativo origem do Estado a partir da famlia, segundo uma perspectiva que se opunha explicitamente filosofia revolucionria. Das suas palavras depreende-se a sua preferncia pelo despotismo com todas as inerentes consequncias para a educao do moo nobre. Seria de grande utilidade o conhecimento das noes fundamentais de legislao portuguesa e de Direito Romano. Como remate da sua educao, individual e social, no faltariam as noes de Teologia e Direito Divino.

    Embora os seus horizontes sociais sejam mais limitados do que os de outros documentos nacionais do tempo, o pensamento de Pina e Proena enraza profundamente na experincia concreta do pai de famlia

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    educador. Por isso mesmo, em aspectos fundamentais, supera largamente a tendncia para o doutrinarismo abstracto, revelando uma frescura nem sempre atingida por muitos dos seus sucessores.

    Nove anos depois do aparecimento do livro de Martinho de Mendona surge o Verdadeiro Mtodo de Estudar de Lus Antnio Verney. sua ida para o estrangeiro recebera particular ordem da Corte de iluminar a nossa nao em tudo o que pudesse [ . . . ] , encargo cujos meios de execuo nunca lhe foram dados 148. frustrao desses intentos no foi alheia a aco dos Jesutas e, durante o perodo de Pombal, as intrigas de influentes. A sua reputao alcanou, todavia, uma dimenso verdadeiramente europeia.

    Segundo Antnio Salgado Jnior, o Verdadeiro Mtodo de Estudar a primeira obra portuguesa ambicionando propor um sistema de pedagogia completo 149. O seu campo de aplicao predominante no que hoje denominaramos ensino secundrio e preparatrio do superior.

    Embora testemunhando na Carta Primeira a mais alta admirao pela Companhia de Jesus, cujo papel positivo na histria do ensino salientava, marcava a suas distncias em relao a vrios aspectos da sua actividade pedaggica 150.

    Os estudos deveriam comear pela Gramtica da prpria lngua, isto , a arte de a escrever e falar correctamente. Repelia a intimidao dos rapazes com mau modo ou pancadas, como todos os dias sucede [ . . . ] . Advogava a anlise do prprio falar do aluno, de um livro vulgar ou de uma carta bem escrita ou fcil, por exemplo, as de Vieira. A utilizao da epistolografia como mtodo didctico tambm era apontada.

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    Recomendava, ainda, o ensino da Ortografia e da Pontuao, cujo estudo, diz, se pode continuar no mesmo tempo em que se explica o Latim, bastando meia hora cada manh para ler e explicar o Portugus 151.

    Depois de salientar a convenincia de preparar os rapazes para o exerccio das funes de Secretrios dos Grandes e de tudo mais, fora das Secretarias Reais, Verney ocupa-se do estudo da Ortografia, da Pontuao e da Gramtica Latina, criticando o compndio de Manuel lvares e os mtodos geralmente adoptados. Em relao ao ensino da latinidade no era menos discordante, preconizando at a substituio dos Jesutas por outros professores mais jovens da mesma Companhia.

    A aprendizagem do Latim pressupunha conhecimentos de Geografia, Cronologia e do que ento se designava por Antiguidades. Quanto aos estudos de Geografia, advogava a utilizao do Mapa-Mundo e da Esfera Armilar, conquanto, sobretudo, se tratasse neste caso de Geografia histrica. O seu ensino deveria ser activo, imprimindo a Geografia na memria como quem brinca 152. Em relao Cronologia e Histria, Verney formulava conselhos de onde se depreendia o empenho em evitar erudies desnecessrias.

    No estudo da Latinidade a explicao das matrias apontadas poderia ocupar apenas uma hora em cada manh. O nvel do ensino do Latim ir-se-ia elevando das escolas baixas para as escolas maiores 153.

    O mestre deveria exercitar a memria dos principiantes, dois ou trs dias por semana, levando-os a decorar textos escolhidos. Mais uma vez recomenda o banimento dos castigos corporais, advogando que se concedessem prmios ou louvores queles que melhor o

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    fizessem. Na ltima escola de Latinidade ou Retrica deveriam os estudantes ser treinados em falar latim.

    Verney considerava necessrio o estudo das lnguas orientais, em particular do Grego e do Hebraico. Censurava a falta dos respectivos estudos em Portugal, embora o Grego figurasse no elenco das disciplinas do Colgio das Artes. Depois de traar planos para o ensino daquelas duas lnguas, acompanhados de bibliografia, Verney rematava com a afirmao de que seria til ao estudante aprender duas lnguas vivas estrangeiras, Francs ou Italiano.

    Os estudos das escolas baixas incluam ainda a Retrica. Verney criticava que o seu ensino se fizesse em latim nas escolas. Entendida como Arte de Persuadir, a sua aplicao no se cingia ao plpito: todo o lugar teatro para a Retrica.

    As manifestaes da Poesia portuguesa no lhe mereceram menos viva reprovao que as da Retrica. Para o ensino daquela matria gostaria que houvesse uma escola separada, em que se no trataria de outra coisa e onde o rapaz entraria se expressamente o desejasse. O estudo da Poesia admitiria dois graus 154.

    Verney condenava a ignorncia e tacanhez da grande maioria de professores portugueses de Filosofia, que continuavam a desconhecer e a atacar sem base os modernos sistemas. As cartas dedicadas s matrias filosficas Lgica, Metafsica, Fsica e tica constituem no seu conjunto um ardente manifesto em defesa do moderno esprito racionalista e experimentalista e, ao mesmo tempo, de ataque escolstica.

    Quanto ao estudo da Fsica, considerava o Barbadinho dever ser precedido do estudo da Geometria e da Aritmtica, compreendendo-se nesta ltima a lgebra.

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    Recomendava, ainda, a leitura de uma histria das experincias ou dos elementos de Fsica como introduo a esta cincia.

    Depois de traar um programa de Fsica, fornecia Verney algumas indicaes concretas sobre a repartio do tempo no ensino das respectivas matrias, dentro do objectivo geral de reservar apenas dois anos ao estudo da Filosofia, ou, no mximo, dois anos e meio. Neste pressuposto, e quanto ao 1. ano, dedicava o mximo de quatro meses aos Elementos de Euclides; um ms para a Aritmtica, aps o que, num ms ou dois, ficaria esgotada a lgebra. No 1. ano, o ensino da Lgica seria acompanhado, todas as manhs, por uma hora de Aritmtica, durante um ou dois meses, aps o que se passava lgebra com uma hora em cada manh. No caso de no se concluir o programa nesse ano, terminar-se-ia no ano seguinte. Nesse primeiro ano de Lgica, a primeira hora da tarde seria consagrada Geometria. No segundo ano, a primeira hora dedicava-se lgebra; de tarde, s Seces Cnicas, Problemas de Arquimedes, etc. O resto do tempo, Fsica.

    A segunda parte do ltimo ano de Filosofia seria ocupada no estudo da tica. Depois de uma defesa vibrante do carcter no-inato da nobreza, Verney traava um programa de estudo da tica, com vista formao do indivduo e como prolegmeno ao estudo do Direito, matria de especial interesse para os futuros funcionrios do Estado 155.

    Em seguida ocupa-se da Medicina e da Jurisprudncia. Deveria o futuro mdico principiar pelo estudo da Filosofia, durante dois anos no mximo. No plano de matrias especficas surge, em primeiro lugar, a Histria

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    da Medicina. Da Fsica bastar-lhe-iam a Qumica, a Mecnica e a Histria Natural.

    No 1. ano recomendava que se estudasse a fundo Anatomia. No 2. ano, ler-se-iam as Instituies Mdicas, compreendendo o Uso das Partes do Corpo Humano (Fisiologia), a Patologia, a Semitica (Diagnose e Prognose), a Higiene ou Diettica, sendo a 5. parte reservada Teraputica. Depois das Instituies surgia a Praxe Mdica, ou seja a aplicao desses estudos ao doente. O estudo da sintomatologia, dos medicamentos e da Cirurgia preencheriam esta parte do curso. A Praxe Mdica exigiria o trabalho hospitalar, observao e histrias clnicas. O 4. ano reservar-se-ia para trs actos pblicos finais, havendo no fim de cada ano um exame particular. Ao cabo de dois anos ou trs anos de treino estaria formado o clnico de medicina geral. Quanto especialidade de Cirurgio, implicava cinco ou seis anos de trabalho hospitalar como assistente. O estudo da Botnica tambm seria til ao Mdico.

    Passava, depois, aos estudos jurdicos, Verney no se furtava a criticar o sistema coimbro de ensino do Direito. Demonstrava a incapacidade profissional dos que se candidatavam docncia, assim como dos que se entregavam magistratura ou advocacia. Mostrava que a aprovao em exames no significava excelncia de ensino, dizendo conhecer infinitos moos que, matriculados em Coimbra, tinham passado todo o tempo em Lisboa sem abrirem livro e que, no momento devido, haviam passado com brilho os seus exames, exercendo posteriormente a sua actividade profissional com pleno sucesso. Da conclua pela inutilidade dos estudos jurdicos, em contraste com os conhecimentos adquiridos atravs da prtica.

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    Nesta perspectiva, reduzia a um ou dois, no mximo, os oito anos, que, entre ns, se consumiam no Direito aps seis e sete de Gramtica e trs ou quatro de Filosofia Peripattica. Principiaria o estudante por trs anos de Filosofia (Lgica, Fsica e tica), passando Histria Romana e Universal, includas a Cronologia e a Geografia. Vinha, depois, a Histria do Direito Civil, principalmente do Romano, passando ento ao estudo crtico das Instituies de Justiniano. Entrava-se, depois, no Direito Civil. No comeo do 5. ano surgiria o Direito Portugus ou as leis municipais. Notava com estupefaco a sada de licenciados que, sapientssimos nas leis de Justiniano, nada sabiam do direito ptrio.

    O resto do 5. ano seria preenchido pela realizao dos actos, reduzidos a trs, em cada um dos quais o estudante se apresentaria a concluses sobre as matrias principais. Obtido o grau de bacharel, poderia seguir-se o doutoramento, no ano imediato.

    A graduao habilitaria para a docncia ou para o fore. O candidato a advogado comearia por se inteirar das normas de Direito Processual, exercitando-se na prtica durante quatro anos. Quanto aos magistrados judiciais, a sua formao especializada assentaria no Direito da Natureza e das Gentes, Histria das Antiguidades Romanas, Histria Ptria e Legislao do seu pas, estudos de Teologia e Cnones, Direito Internacional, Lgica, Poltica e Arte Oratria.

    Os Estudos Teolgicos mereceram-lhe tambm severas crticas, advogando a sua modernizao. Segundo Verney, as matrias essenciais seriam a Histria da Igreja, ligada Histria Civil, como prologmenos, passando depois Teologia. O respectivo curso duraria quatro ou cinco anos, havendo um sexto ano reservado aos actos;

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    trs para alcanar o bacharelato, quatro para a licenciatura. Seguia-se o doutoramento 156.

    O Direito Cannico figurava entre os temas finais da obra. A formao do canonista principiaria pela familiarizao com a Histria Civil e Instituies Civis; no 2. ano, com a Histria da Igreja, no termo do que se estudaria Histria do Direito Cannico. No 3. ano apareciam as Instituies do Direito Cannico. No 4. ano e durante o primeiro semestre do seguinte, o estudante aprofundaria matrias do terceiro e abordaria novos assuntos de Direito Cannico. No fim do 5. ano, realizaria os actos nos moldes preconizados para o Direito Civil. Por ltimo, ocupou-se Verney do canonista advogado, juz ou catedrtico, formulando igualmente conselhos quanto formao prtica.

    A Carta 16., e ltima, consagrada a recapitular e precisar vrios pontos expostos e a examinar temas a que no pudera aludir at esse momento. Em sua opinio, a organizao dos estudos deveria abranger a escola elementar, admitindo mesmo que a instruo principiava antes da fase propriamente escolar. Aos sete anos proceder-se-ia iniciao na leitura e na escrita. Em seguida ensinar-se-iam as quatro operaes. Advertia serem muitas as pessoas que, vestindo camisa lavada, no sabiam ler nem escrever entre ns. Fora de Portugal vive-se de outra sorte, escrevia: so to raros os plebeus que no sabiam escrever, como aqui os que sabiam. O mochila, o carniceiro, o sapateiro, todos se divertem com os seus