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FERNANDO HIROKI KOZU

A COMPLEXIDADE EM BRIAN FERNEYHOUGH

Aspectos de comunicação e inteligibilidade musical

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de

MESTRE em Comunicação e Semiótica (Área de

concentração: Intersemiose na Literatura e nas

Artes), sob a orientação do Prof. Dr. Silvio Ferraz.

SÃO PAULO - PUC/SP

2003

2

COMISSÃO EXAMINADORA

São Paulo, 24 de Abril de 2003.

3

Para

Lígia Maria

4

“Todo raciocínio abstruso apresenta um mesmo inconveniente: pode

silenciar o antagonista sem convencê-lo; e para nos darmos conta de sua

força, precisamos dedicar-lhe um estudo tão intenso quanto o que foi

necessário para sua invenção. Quando deixamos nosso gabinete de

estudos e nos envolvemos com os afazeres da vida corrente, suas

conclusões parecem se apagar, como os fantasmas noturnos à chegada

da manhã; e é difícil mantermos até mesmo aquela convicção que

havíamos adquirido com tanto esforço. (...) Se algo nos afeta,

concluímos que não pode ser uma quimera; e como nossa paixão se

envolve em um lado ou em outro, pensamos naturalmente que a questão

está ao alcance da compreensão humana, ao passo que, em outros casos

dessa natureza, tendemos a ter dúvidas a tal respeito. Sem essa

vantagem, jamais teria me aventurado a escrever um terceiro volume de

uma filosofia tão abstrusa, em uma época em que a maioria dos homens

parece concordar em fazer da leitura uma diversão, rejeitando tudo que

requeira um grau considerável de atenção para ser compreendido.”

(David Hume (1711-1776) — Tratado, livro III (1740), parte I, seção I, §I)

5

AGRADECIMENTOS

À FAPESP, pelo apoio financeiro.

Ao Silvio Ferraz, pela generosidade, compreensão e confiança.

Ao Mário Loureiro, pela motivação, força e entusiasmo.

Ao tio Pedro e tia Maria, pela caridade e carinho.

Aos professores da COS-PUC, Arthur Nestrovski, Fernando Iazzeta e Lúcia Santaella,

pelas experiências e conhecimentos compartilhados.

Aos professores da UEL, por toda formação e trans-formação.

A todos os amigos: André Siqueira, Fábio Furlanete, Estela Loureiro, Fátima Carneiro,

Marcos Batistuzzi, Paulo Zuben, Rogério Costa, Teca, Carisa, Suzana (in memorian),

.................................... , pelos favores inestimáveis: um abraço a todos.

Aos meus pais, pela Vida...

E à minha esposa Lígia, por estar ao meu lado, sempre...

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RESUMO

A complexidade da música de vanguarda do século XX pode ser

considerada um dos fatores que mais discussões fez incidir sobre o problema da linguagem

musical enquanto um fenômeno comunicativo, principalmente no aspecto de sua recepção ou

aceitação pelo público e pela indústria cultural. Indo na contramão do gosto padronizado,

controlado e imposto por esta última, os artistas e músicos de vanguarda defendem que tal

complexidade de suas obras, ou “dificuldade” de compreensão, justifica-se exatamente por

esta não se deixar fixar por certos valores que tendem a nivelar a riqueza de uma autêntica

obra de arte, que, auto-consciente de seu contexto e função numa determinada sociedade,

especula criticamente sobre si mesma em busca de sua própria forma de expressão. Nesta

pesquisa pretendemos explorar os aspectos da complexidade circunscrita ao pensamento do

compositor britânico Brian Ferneyhough (Coventry – 1943). Uma investigação acerca de sua

obra, seus pressupostos teóricos e seus procedimentos composicionais deverá apontar em que

sentido este autor é atualmente reconhecido como o principal promotor de uma “nova

complexidade”, além de esclarecer as peculiaridades inerentes ao seu engajamento em relação

ao ato da criação, da análise, da percepção e da interpretação da música contemporânea. Cabe

ainda a este estudo uma breve contextualização da complexidade situada dentro de uma

“genealogia” atrelada ao desenvolvimento do pensamento paramétrico-serial (de Schoenberg

a Boulez) a fim de avaliar o modo como Ferneyhough dialogou com a “tradição”, afirmando-a

e negando-a ao mesmo tempo.

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SUMÁRIO Introdução ............................................................................................................................. 8 Capítulo I ............................................................................................................................... 15 1. Complexidade e Modernidade: O paradigma da complexidade na música de vanguarda do século XX

1.1. A genealogia da complexidade musical ............................................................... 16 1.2. O paradigma da complexidade musical ............................................................... 24 1.3. Schoenberg: complexidade e inteligibilidade ...................................................... 27

Capítulo II .............................................................................................................................. 33 2. Complexidade, Multiplicidade e Semiótica: Ferneyhough e a escuta das complexidades

2.1. Complexidade e “New complexity” ...................................................................... 34 2.2. Complexidade e Multiplicidade: A Escuta das Complexidades I ........................ 36 2.3. Complexidade, Semiótica e Percepção: A Escuta das Complexidades II ............ 45

Capítulo III ............................................................................................................................ 58 3. Complexidade e Composição Musical: A dialética entre a escrita automática e a música informal

3.1. Complexidade e a música figural ......................................................................... 59 3.2. Complexidade e os “cárceres da invenção”: O ritmo, o cálculo e as operações seriais ............................................................ 65

Capítulo IV ............................................................................................................................ 75 4. Complexidade e Análise Musical: Por uma análise da complexidade em “La Chute d’Icare”. Conclusão ............................................................................................................................... 95 Anexos I. “Paisagem sobre a queda de Icarus”, de Pieter Brueghel ............................................ 99 II. “Grade” analítica de “La Chute d’Icare” .................................................................. 101 III. Partitura de “La Chute d’Icare” ................................................................................ 105 IV. Gravação de “La Chute d’Icare” ............................................................................... 106 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 107

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Introdução

“Lá teve início a minha construção, eu ainda não podia ter a esperança de concluí-la de acordo com o que estava no meu plano, comecei meio ludicamente naquele cantinho e assim se desencadeou lá a primeira alegria do trabalho numa construção labiríntica, que então me pareceu ser o coroamento de todas as edificações, mas que hoje eu julgo de forma provavelmente correta como um jogo de armar mesquinho, pouco digno da construção geral e que teoricamente talvez seja delicioso — aqui está a entrada para a minha casa, disse eu na época, ironicamente, aos inimigos invisíveis, e vi-os todos sufocarem no labirinto — mas na realidade representa uma brincadeira vulnerável, que mal resistirá a um ataque sério ou a um inimigo que luta desesperadamente pela vida.”

(Franz Kafka (1883-1924) - A Construção)

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Apresentação

Abordar o problema da complexidade na música não é uma tarefa muito

fácil. A relatividade das múltiplas abordagens possíveis dificulta qualquer aproximação mais

generalizada, e a simples constatação de que toda música pode ser interpretada de alguma

forma como um fenômeno complexo impossibilita de antemão a tentativa de responder a

questões do tipo: é possível determinar objetivamente e univocamente o que é um fenômeno

musical complexo? Ou, é possível uma simples definição generalizada do conceito de

complexidade musical?

Conscientes de que ao longo da pesquisa seremos obrigados a dar algumas

respostas a essas questões, gostaríamos de esclarecer desde já que esse problema não constitui

o objeto central da nossa investigação, mesmo que muitas vezes elas estejam presentes na

base do desenvolvimento de vários outros aspectos temáticos.

A detecção desse obstáculo inicial foi constatada após uma breve análise das

discussões mais atuais sobre o assunto, que tem se tornado um tema cada vez mais recorrente

em algumas revistas e artigos especializados nessas últimas décadas. Só para ilustrar

sucintamente a diversidade incomensurável das abordagens que encontramos, vamos citar

algumas delas para que possamos em seguida situar e demarcar com mais precisão o contexto

do nosso objeto de estudo:

1. As posições de Boros e Toop1, dirigidas às obras dos compositores da

escola intitulada “New Complexity”, caracterizam a complexidade pela riqueza interna das

“interconexões sônicas” ou dos “vários níveis de relações” entre os eventos, condenando as

1 cf.: BOROS, J. et all. (1993). “Complexity Forum”. In: Perspectives of New Music, 31 e 32 (1). Seattle: Univ. of Washington.

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outras correntes como a nova simplicidade, o novo romantismo e mesmo o minimalismo, de

reduzirem o ato da escuta ao equivalente de uma sessão de treinamento auditivo, não dando

margens a outros caminhos a serem seguidos.

2. O ponto de vista de Truax2 é mais geral, pois afirma que tais

características dizem respeito somente às relações internas da música. Para ele a

complexidade musical define-se não só pelas relações interiores (da estrutura e organização

dos materiais) que constituem uma obra, mas também por todos aqueles fenômenos externos

que influenciam de modo intrínseco a gênese de uma obra, a saber, os fenômenos físicos,

sociais e psicológicos. Ele acredita também numa mudança geral em direção ao novo

paradigma da complexidade da música do século XXI, apoiado nas novas tecnologias, além

de profetizar o fim do “compositor literato” e da “música abstrata”.

3. Outras posições são aquelas que procuram “medir” a complexidade de

um determinado evento sonoro através de experiências e testes empíricos ou partindo de

modelos algorítmicos3. E existem também as discussões em torno de questões que associam

música e linguagem, ou música e comunicabilidade com os problemas da complexidade4.

Este breve panorama já é suficiente para entender a dificuldade de se chegar

a um consenso. Por outro lado, é curioso observar que todas essas preocupações começaram a

emergir com mais ênfase só agora, principalmente a partir da segunda metade do século XX.

Se a complexidade sempre esteve presente na música desde tempos imemoráveis, então não é

2 cf.: TRUAX, B. (1992). “Musical Creativity and Complexity at the Threshold of the 21st Century”. In: Interface, 21, pp.29-42; e (1994). “The Inner and Outer Complexity of Music”. In: Perspectives of New Music, 32 (1). Seattle: Univ. of Washington. 3 cf.: NAUERT, P. (1994). “A Theory of complexity to Constrain the Approximation of Arbitrary Sequences of Timepoints”. In: Perspectives of New Music, 32 (2). Seattle: Univ. of Washington; e SHMULEVICH, I. e POVEL, D. (2000). “Measures of Temporal Pattern Complexity”. In: Journal of New Music Research, 29 (1), pp.61-69. 4 cf.: WHITTALL, A. (1988). “Complexity, Capitulationism, and the Language of Criticism”. In: Contact, 33; e (1993). “Riverrun”. In: The Musical Times, 134 (1805), p.387.

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por acaso que ela tenha se tornado um tema tão atual. Talvez seja o indício de um problema

sintomático e mais profundo que a música do século XX tenha despertado na consciência de

alguns compositores; ou então, que a consciência de alguns compositores preocupados com os

impasses surgidos na música contemporânea tenha ressaltado a complexidade como um dos

principais problemas de nossa época.

Analisando a situação por esse viés, a obra do compositor britânico Brian

Ferneyhough parece girar em torno destes problemas. Não é à toa que boa parte das

discussões mencionadas acima se desencadeou somente após o reconhecimento de seus

trabalhos a partir da década de 70, e que posteriormente o levou a ser designado, mesmo

contra a sua vontade, como o fundador da “New Complexity”.

Tendo em vista que este compositor possui também uma ampla quantidade

de escritos onde é possível verificar já uma conceitualização formalizada a respeito do

problema que nos preocupa, nosso foco dirigir-se-á a uma análise crítica e mais

pormenorizada desses textos para, a partir disso, levantar outros aspectos mais periféricos —

que podem ser tanto da área musical quanto de outras áreas pertinentes. Partindo de suas

posições e convicções, tomaremos estes dados como um guia para as nossas investigações no

intuito de buscar novas conexões ainda não muito exploradas e compreender melhor todas as

implicações entre a complexidade e o seu pensamento composicional como um todo.

Uma olhada superficial na textura densa de alguns textos e obras de

Ferneyhough nos indica pelo menos que, para o compositor, o problema da complexidade

envolve dois aspectos mutuamente interligados. O primeiro, envolvendo as preocupações

estéticas do compositor, associa a complexidade de sua música às implicações imanentes ao

processo histórico e cultural da arte moderna do século XX, especialmente quando esta se

defronta com uma série de tendências mais reacionárias, que parecem não resistir às tentações

de abrirem concessões a favor do grande público. Os rótulos ‘new complexity’ e ‘new

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simplicity’ servem no máximo como meras bulas ou prospectos desse embate sintomático

entre duas tendências particulares, mas que distorcem a realidade dos fatos quando utilizados

indiscriminadamente nos manuais de história ou artigos especializados como simples

demarcadores de escolas estilísticas.

Neste primeiro aspecto a complexidade pode ser interpretada como um

desafio que vem acompanhando desde o início do século XX o movimento modernista das

artes, tendo como referência na música compositores como Schoenberg, Webern, Berg,

Stravinsky, Bartók, Varèse, Ives, entre outros. As suas diversas reações contra os axiomas do

sistema tonal deram origem a um desafio inédito e irreversível que, segundo Georgina Born,

constitui uma das principais características de toda a arte modernista: “a experimentação auto-

consciente da forma fundada num senso de necessidade de revolucionar a “linguagem” de sua

própria arte” (BORN, 1995:41).

Todos estes aspectos relacionados à contextualização histórica serão

desenvolvidos no capítulo 1. Tomamos em primeiro lugar como referência teórica um texto

da musicóloga Georgina Born (1995) a fim de associar a complexidade em relação ao

modernismo e à música de vanguarda. Em seguida, para justificar a idéia de um “paradigma”

da complexidade musical no eixo do expressionismo de Schoenberg, utilizamos alguns dos

conceitos do filósofo da ciência Thomas Kuhn (1998). E por último, associamos a

complexidade com o problema da inteligibilidade na música, de acordo com as idéias de

Schoenberg e Adorno5.

5 Vale lembrar que uma das referências teóricas mais explícitas dos escritos de Ferneyhough é a filosofia estética de Adorno. Não só a concepção de música informal como várias outras noções que permeiam o próprio conceito de complexidade — e de modernidade — provém dos escritos deste filósofo. Ao definir a arte como um “artefato”, um produto ambíguo do trabalho social, Adorno está caracterizando a obra de arte em seu momento histórico atual contendo em si a “vinculação-negação de seu passado, a contraposição à realidade que o abriga e a utopia de seu amanhã” (PUCCI, 1999:97). A complexidade de Ferneyhough reflete exatamente esse desafio de tentar solucionar o antagonismo da vida social moderna, com uma obra de arte autônoma e auto-crítica, protestando e negando a todo momento a imediaticidade que a quer abarcar. Quando Ferneyhough afirma que uma das qualidades vitais de uma obra de arte complexa é a sua capacidade de auto-reflexão, ele quer dizer que essa complexidade consiste na exploração da natureza dos estados limites, onde as normas e as regras de

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No capítulo 2 abordamos mais de perto o conceito de complexidade em

Ferneyhough, já que é em torno dessas especulações que a sua música dialoga apontando para

uma escuta ativa e auto-crítica: uma escuta das complexidades. Após um breve exame em

relação à confusão existente entre o conceito ´new complexity’ e o problema específico da

complexidade, veremos como todas essas idéias de Ferneyhough estão em perfeita sintonia

com o contexto das especulações científico-filosóficas de sua época, especialmente em

relação ao conceito de ‘multiplicidade’. Em seguida, tomando como referência a semiótica e a

teoria da percepção de Charles Peirce, apresentamos um diagrama do modo como se dá a

percepção de uma música complexa, tal qual concebida por Ferneyhough.

Se num primeiro momento o conceito de complexidade em Ferneyhough

está vinculado a um nível mais especulativo e teórico, isto nos leva quase de modo

inseparável ao segundo aspecto associado a esse conceito, que são os problemas estritamente

técnicos, ou melhor, aqueles relacionados à sintaxe propriamente dita dos seus procedimentos

composicionais. Veremos então, no capítulo 3, que a definição de complexidade ultrapassa os

limites da mera especulação conceitual e descritiva e passa a interagir — agora

normativamente com restrições e demarcações impostas pelo próprio compositor —

diretamente com o seu processo de criação. Entretanto, mesmo uma exposição sistemática

dessas normas não pode ser resumida num sistema de composição fixo e homogêneo. E é

justamente esse aspecto da impossibilidade de fixar um padrão ou modelo num sistema de

valores pré-determinados que constitui a essência dos sistemas ditos complexos.

interpretação normalmente aceitas não podem mais ser aplicadas universalmente (1995b:66-67). Ferneyhough encara esse desafio da complexidade não apenas como um engajamento ético, filosófico e estético, mas também como um modo de fazer ressoar diretamente novos modos de expressão artística no campo da criação musical, poética e pictural. Da mesma forma que Adorno erigiu a sua filosofia partindo da experiência estética como a forma mais adequada de conhecimento para tentar exprimir conceitualmente o não conceitual, Ferneyhough vai buscar “tornar sonora as forças não sonoras”, emprestando aqui uma expressão do filósofo Gilles Deleuze.

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Por último, o capítulo 4 é dedicado exclusivamente à análise de uma obra

específica de Ferneyhough. O objetivo é apresentar uma metodologia de análise mais

condizente com o objeto em questão, neste caso, a obra La chute d’icare. Assim será possível

identificar com mais precisão alguns dos problemas e das soluções com os quais o compositor

se defronta em seu laboratório de criação, além de destacar a importância de se pensar na

relação intrínseca entre os processos criativos e a percepção.

Enfim, sintetizamos o principal objeto que pretendemos trazer à tona em

nossa pesquisa: como se dá a articulação entre as especulações teóricas e as estratégias dos

procedimentos composicionais de Ferneyhough que, ao girar em torno do conceito de

complexidade, possibilitam e garantem ao compositor um resultado consistente, original e o

mais próximo possível em relação às suas intenções e necessidades.

Gostaríamos de concluir esta apresentação com as palavras do próprio

Ferneyhough (1994b), quando de sua preocupação na busca de uma nova música in-formal:

“Sinto que uma música pertinente hoje em dia, associará, segundo os próprios termos de Adorno, um sentido do caos, de incomensurabilidade e de atomização, em via de uma potente vontade criativa de organização e da consistência estrutural e estilística. Uma nova “música informal” deverá ultrapassar o espectro da organização material e o rigor formal, sedimentando assim em sua própria substância as conseqüências sociais e informacionais das inovações e renovações do pós-guerra.(...) Esta confrontará diretamente o sujeito individual ameaçado de desintegração na sociedade ocidental com o espelhamento crítico de sua própria decomposição, apresentando ao mesmo tempo a fraca possibilidade de reconstrução deste sujeito face à poderosa hegemonia que rege os valores mercadológicos tão temidos por Adorno. Se, hoje em dia a obra de toda a vida de Theodor Adorno tem um sentido, este é aquele de encorajar e de articular a busca de novas vias musicais que, de modo a transcender os próprios meios musicais, iluminem seus ideais”.

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Capítulo I

“Os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda, primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab. Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os “clichês” da opinião”.

(Lawrence, in: Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) - O que é a filosofia)

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1. Complexidade e Modernidade:

O paradigma da complexidade na música de vanguarda do século XX

1.1. A genealogia da complexidade musical

A fim de contextualizar o nosso objeto de estudo em relação ao contexto

histórico da avant-garde musical do século XX, tomaremos como referência o texto de

Georgina Born (1995, cap. II), intitulado Prehistory: Modernism, Postmodernism, and Music.

O texto está dividido em duas partes: na primeira a autora trata das características gerais do

modernismo e do pós-modernismo, confrontando e sintetizando as posições de diversos

autores; na segunda estas características vão sendo associadas especificamente no campo da

música, apontando para uma genealogia da vanguarda serial, no eixo do modernismo, e da

música experimental no eixo do pós-modernismo.

Como não pretendemos investigar os problemas que envolvem

especificamente a definição de ‘modernidade’ e ‘pós-modernidade’, evidenciaremos apenas

aqueles aspectos que dizem respeito às características gerais apontadas por Born em relação

ao serialismo e à música de vanguarda. Este estudo nos servirá como base para situar a obra

de Ferneyhough dentro de um contexto mais amplo na história da música atual, justificando

por que este compositor é por vezes considerado um “ultra-expressionista” e um “mega-

serialista”.

Neste sentido, é possível demarcar também uma genealogia da

complexidade atrelada às três fases do serialismo implícitas no estudo de Born, a saber: 1ª.

fase - pré-serialismo (pré-complexidade); 2ª. fase - serialismo integral (complexidade); 3ª.

fase - pós-serialismo (nova complexidade). Diante das evidências, não resta dúvidas de que

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Ferneyhough segue uma certa “linhagem” da música de vanguarda ao mesmo tempo em que

supera alguns impasses desta mesma tradição, tomando uma posição análoga a Schoenberg

em relação às antinomias inerentes ao discurso modernista.

a) características gerais do modernismo:

1º) Estética negativa: é considerada como uma característica geral que constitui a base

principal de toda a arte moderna da virada do século XX. Trata-se de uma “reação dos artistas

contra as formas filosóficas e estéticas antecedentes ao romantismo e ao classicismo”, ou

simplesmente, “uma negação dos princípios da tradição prévia” (BORN, id.:40-41). Surge

então uma série de movimentos artísticos que, através da experimentação da linguagem de sua

arte, acabam rompendo — parcialmente ou totalmente — com uma série de paradigmas que

vigoraram durante séculos: impressionismo, expressionismo, futurismo, cubismo,

surrealismo, dadaísmo, etc.

2º) Cientificismo: envolve o interesse e a fascinação de determinados artistas com os novos

meios difundidos pela ciência e pela tecnologia, fruto da expansão cada vez mais intensa da

economia industrial. O teórico e futurista Severini escreveu que “a arte deve andar de mãos

dadas com a ciência” (id. ibid.), teorizando uma interdependência entre a percepção, a

psicologia e a estética. Esse novo estímulo estético ecoava nas abstrações pictóricas que

lembram o movimento das máquinas. E o músico Russolo escreveu em seu manifesto “A Arte

dos Ruídos”, de 1913, que “a evolução musical se assemelha à multiplicação das máquinas

(...); uma arte dos ruídos deve abraçar a nova paisagem industrial e urbana” (id. ibid.).

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3º) Teoricismo: fruto dos escritos e manifestos polêmicos que acompanhavam os diversos

movimentos, a ênfase nos fundamentos teóricos torna-se central para a legitimação da prática

da arte moderna, inaugurando uma mudança profunda na relação entre os textos teóricos e a

prática artística. Na maioria das vezes é a teoria que serve de base para a construção e

determinação da obra. Essa questão estará diretamente ligada com a missão prescritiva e

pedagógica da avant-garde.

4º) Retórica politizada: trata-se tanto do discurso retórico e metafórico quanto das posturas

anárquicas e dos gestos de liberdade da maioria dos movimentos modernistas centrados numa

crítica formal “designada a subverter e chocar os dois inimigos da avant-garde: os

estabelecimentos da arte oficial e acadêmica, e a audiência burguesa” (ibid.:42). A origem do

termo ‘avant-garde’, no socialismo francês do século XIX, já sugere essa ligação entre

estética e política, ou arte e revolução. Tal conotação crítica pode ser interpretada nas três

características já assinaladas acima: (1) no cientificismo a retórica do progresso, da mudança

e da constante inovação (sendo que o próprio termo ‘futurismo’ é um indicativo de que o

presente deve ser subordinado ao futuro); (2) no teoricismo a missão pedagógica para educar

e converter a audiência não-esclarecida; (3) e na estética negativa o caráter subversivo e

oposicional como crítica politizada da ordem social e moral existente. Segundo Haskell, esse

discurso estético-ideológico de que os valores artísticos devem estar “à frente” dos gostos e

preferências correntes, implicando que a arte deve necessariamente ser incompreensível para

o público, gerou a crença da hostilidade para com a arte contemporânea como uma

justificativa para a verdadeira arte: “o artista da avant-garde se aliena então do grande público

como prova do valor de sua arte” (apud BORN, ibid.:44).

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5º) Dialética entre razão e intuição: esta característica diz respeito à oscilação constante

entre o racionalismo e o irracionalismo, o objetivismo e o subjetivismo, indicativos do

discurso diferenciado e complexo da arte moderna. A autora não investiga muito este aspecto,

dizendo apenas que o racionalismo, herdado do naturalismo positivista, é inerente ao

cientificismo; o intuitivo, psíquico e irracional, herdado do romantismo tardio, culmina no

expressionismo; e que o teoricismo procura aliar ambos.

6º) Relação ambivalente com a cultura popular: junto com o modernismo cresce também a

cultura urbana popular e as novas indústrias de entretenimento. A partir disso ambas

coexistirão em domínios discretos. Por um lado, alguns artistas mais radicais defenderão a

autonomia formal da arte, excluindo qualquer tipo de referência à música popular; ao mesmo

tempo, outros artistas aceitarão certas referências estilísticas das formas populares não-

ocidentais, considerando-as “autênticas”, “primitivas” ou “exóticas”. Enfim, ambos

consideram a cultura popular como sendo o “outro”.

b) características gerais do pós-modernismo:

Este termo começou a ser utilizado como referência às novas formas de

cultura surgidas a partir dos anos 60 e 70. Assim como no modernismo, as tendências são

diversificadas e ainda não é possível determinar uma caracterização única e conclusiva. De

modo geral, pode-se considerar como característica principal que deu origem ao pós-

modernismo a insatisfação generalizada de certos artistas e intelectuais em relação aos

impasses do modernismo (id. ibid.:45). A autora divide então dois sentidos nessa reação ao

modernismo e duas tendências principais:

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� Os dois sentidos:

1º) Negação da negação: 1.1.trata-se de uma reação contra a hostilidade para o não

reconhecimento da cultura popular, buscando superar a divisão histórica entre o popular e o

“erudito” (high culture) num “novo pluralismo cultural e heterogêneo, tornando obsoleta tal

distinção”(id:46). 1.2. Disso resulta uma reapropriação das formas antigas, colocando de lado

aquela negação do modernismo em relação às antigas “linguagens” da arte clássica e

romântica. Tendências como o neoclassicismo ou o novo romantismo são exemplos dessa

negação da negação.

2º) Anti-estética: diz respeito à rejeição da crença modernista na autonomia da Estética,

resultando numa negação da política cultural elitista e pedagógica, formalista e anti-social do

modernismo.

Há ainda muitas controvérsias sobre todas essas questões, sendo que uns

consideram o pós-modernismo como uma ruptura ao modernismo, e outros defendem uma

certa continuidade, incluindo não só aquela posição negativa, mas também a apropriação das

novas tecnologias.

� As duas tendências:

I ) Vanguardismo: conserva ainda aquela postura crítica da avant-garde, mas agora aliada ou

fundada em “novos movimentos sociais” que se desenvolvem a partir de discussões em torno

da raça e etnicidade, dos gêneros e da sexualidade (id.:46-47).

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II ) Populismo: envolve um pluralismo e populismo otimista, numa celebração do consumo e

do desejo. Engloba características das duas negações acima: referência à cultura de massas e

apelo às formas convencionais.

c) o modernismo em relação à música:

1º) Schoenberg, atonalismo e dodecafonismo: a autora assinala que Schoenberg foi um

“revolucionário ambivalente” ao incorporar as antinomias próprias do modernismo. Por um

lado, após um balanço crítico e sistemático da crise que abalava toda a música tonal, e que,

desde Bach até Brahms e Wagner havia atingido os seus limiares, Schoenberg transfigura os

axiomas do tonalismo através da suspensão e anulação de todas as suas referências. Este

período designado “atonal” (a contragosto de Schoenberg), e que se refere também ao

movimento expressionista, pode ser caracterizado como uma estética negativa, com

predominância dos aspectos intuitivos, psíquicos e irracionais. No entanto, defendendo a

continuidade da tradição da música germânica, Schoenberg encontrou um novo método de

composição que pretendia substituir o sistema tonal com uma nova base para a linguagem

musical, altamente racionalista, prescritiva e estruturalista: o serialismo dodecafônico. Este

aspecto pode ser visto como um desenvolvimento positivo e não-negativo. Além disso, os

aspectos do teoricismo e da retórica politizada da vanguarda já podem ser observados em

Schoenberg, dada a quantidade de textos teóricos que o compositor produziu (muitas vezes

para se defender de seus críticos). De modo geral, a autora considera o serialismo da escola

vienense uma verdadeira revolução estilística, transformando-se no mais poderoso

desenvolvimento da música pós-tonal que, por décadas, constituirá a grande “força

organizadora” do modernismo e da vanguarda musical (ibid.: 48).

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2º) Outras tendências como “proto” pós-modernas: todas as outras tendências do

modernismo inicial são consideradas por Born como precursoras do pós-modernismo e rivais

do serialismo. A autora coloca o serialismo de um lado e o “resto” de outro, tomando como

justificativa a recusa ou aceitação das formas estilística convencionais, tanto da tradição

quanto da cultura popular: O neoclassicismo de Stravinsky e Hindemith retoma certas

referências do período barroco, clássico e romântico; Debussy, Satie e Ives se apropriam

conscientemente da música popular urbana e folclórica; Poulenc, Milhaud, Krenek, Copland,

Antheil e Gershwin fazem referência ao jazz; e o nacionalismo de Bartók, Kodály, Stravinsky,

Falla e Vaughan Williams incorporam respectivamente as influências de suas músicas

folclóricas nativas.

3º) Serialismo integral, cientificismo e teoricismo: após o período eclético do modernismo

na primeira metade do século XX, a partir de 1950 o serialismo de Schoenberg e Webern é

revigorado, “tornando-se o ponto de encontro ideológico da nova vanguarda européia do pós-

guerra nos cursos de verão de Darmstadt” (ibid.:50). Liderados por Boulez e Stockhausen (na

Europa) e por Babbitt (nos EUA) o serialismo integral, total, ou generalizado torna-se o

principal método de composição dos anos 50, levando ao extremo todas as características da

música moderna: teoricismo, cientificismo, missão prescritiva e pedagógica de vanguarda,

ultra-racionalismo e determinismo, recusa total de qualquer referência da tradição ou da

cultura popular.

As novas tecnologias subsidiadas pelas grandes instituições adquirem um

papel preponderante nesse período. Influenciado pelo pensamento dos futuristas, o compositor

franco-americano Edgard Varèse foi o primeiro e maior responsável pela aliança entre Arte e

Ciência da música moderna, importando em seu discurso teórico termos científicos como

“pesquisa”, “experimentação” e “laboratório” (ibid.:54). Seu pensamento científico-musical

23

repercute de forma profética nos estúdios radiofônicos e nos laboratórios das universidades a

partir dos anos 40 e 50, berço da música concreta e eletrônica.

O discurso teórico-científico que acompanha a maioria das composições é

fundamentado pelas pesquisas de áreas alheias, como a matemática (teoria dos conjuntos,

estatística, lógica), física (acústica e psicoacústica), telecomunicações (teoria da informação),

lingüística (estruturalismo, semiologia/semiótica), tudo isso aliado à alta tecnologia,

possibilitando uma nova concepção do próprio som, principalmente em relação ao timbre. Os

compositores devem assumir então a posição de pesquisador e teórico a fim de estabelecer

uma metalinguagem científica para a legitimação de sua prática, aliando a pesquisa científico-

acadêmica e o discurso teórico à prática composicional. Todas essas características expressam

muito bem a expansão da avant-garde na música moderna da década de 50.

4º) A genealogia da vanguarda e as três etapas do serialismo: definindo a vanguarda

musical pelas características apontadas acima (cientificismo, teoricismo, racionalismo,

determinismo, formalismo, estruturalismo, complexidade, alta tecnologia, não-referência às

formas convencionais), a autora delineia uma concepção cumulativista da história do

modernismo vinculado à evolução do pensamento serial, dividindo-a em três fases: I -

primeiro com o método dodecafônico dos vienenses, onde já é possível detectar as bases

precursoras do pensamento formalista e estruturalista; II - o que se segue no serialismo

integral é uma radicalização desses princípios, intensificando a parametrização da escritura

musical; III - e finalmente, tendo em vista os limites e as inúmeras críticas geradas pelos

impasses dessa radicalização, a autora utiliza o termo ‘pós-serialismo’ para demarcar uma

etapa posterior que, a partir da década de 60 e 70, dá continuidade ao discurso de vanguarda

com ênfase na dimensão tecnológica (agora com auxílio dos computadores), e tratando de

forma mais flexível o determinismo abstrato e formal do serialismo integral.

24

Se Ferneyhough pertence a essa última etapa do serialismo (visto que o seu

pensamento comporta todas essas características apontadas em relação à avant-garde), fica

evidente que as características da complexidade em sua música já estão presentes, de certa

forma, na de seus predecessores. E para compreendermos melhor a essência dessa

complexidade, faremos agora um estudo focalizando o momento em que houve a ruptura

entre o paradigma da música tonal e o novo paradigma, que aqui estaremos interpretando

como sendo o paradigma da complexidade musical.

* * *

1.2. O paradigma da complexidade musical

Será possível falar em paradigma da complexidade musical? Caso seja, será

possível identificar a data e o autor que fundou este paradigma? Antes de responder a essas

questões, que a princípio parecem ser negativas, será necessário delimitar o sentido no qual

estaremos nos referindo ao utilizar o conceito ‘paradigma’, dentro da metodologia proposta

por Thomas Kuhn em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas. A relevância desta

delimitação reside no fato de que, segundo alguns estudiosos da área6, o termo ‘paradigma’,

empregado pelo autor, pode ter até vinte e um sentidos diferentes, sendo que a nossa escolha

se baseia no sentido mais comum empregado por Kuhn. Conscientes do risco de estarmos

transpondo os conceitos da área da filosofia da ciência para a musicologia sem critérios muito

rigorosos, salientamos que o objetivo desse estudo visa não mais que uma ilustração

panorâmica de fatos da história da música que se encaixam de modo muito conveniente ao

6 cf.: MASTERMAN, Margaret (1979). “A Natureza de um Paradigma”. In: LAKATOS, Imre e MUSGRAVE, Alan. A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix, pp. 72-108.

25

aparato teórico de Kuhn. Já que o próprio autor construiu a sua teoria partindo principalmente

das áreas de ciências humanas, como a sociologia e a psicologia, acreditamos que o nível

dessas transposições não seja tão rígido assim.

De acordo com Kuhn, os paradigmas são aqueles exemplos aceitos na

prática científica real — a ciência normal — e que proporcionam “modelos dos quais brotam

as tradições coerentes e específicas da pesquisa científica” (KUHN, 1998:30). Em música

podemos entender os paradigmas como sendo aquelas suposições teóricas gerais, com suas

leis e técnicas adotadas por uma “comunidade de compositores”7 específicos, e que

determinam os diversos períodos da história da música. Neste sentido é que podemos nos

referir aos “paradigmas” do contraponto modal, que desde o nascimento do organum

medieval, atinge seu ápice no século XVI com Palestrina e Orlando di Lasso num longo

trajeto de evolução. A partir de Monteverdi, passando por Bach até chegar em Haydn e

Mozart, surge um novo paradigma: o sistema tonal. As novas técnicas, regras e leis da

harmonia estão apresentadas no tratado de Rameau, de 1722.

Segundo Juan Carlos Paz (in: EIMERT, 1973), já nos primórdios da música

tonal é possível detectar alguns dos elementos que refutam a teoria harmônica, como nas

resoluções inesperadas das obras do compositor renascentista Carlo Gesualdo. Em Bach e

Schütz, compositores do barroco, também é possível verificar elementos estranhos ao sistema,

assim como no breve período clássico de Haydn e Mozart. Mas foi com os compositores do

período romântico que as “anomalias” do paradigma tonal se manifestaram com maior

intensidade.

Paz cita os compositores Weber, Beethoven e Schubert como os precursores

do movimento romântico. Logo em seguida, com Liszt, Brahms, Frank, Reger, Wagner,

7 Kuhn utiliza o termo ‘comunidade científica’ para identificar aquele grupo de pesquisadores que fazem parte da “ciência normal” e que compartilham de um mesmo paradigma.

26

Mahler e R. Strauss, o sistema tonal atinge os seus limites e chegamos então às fronteiras da

tonalidade, na qual em alguns casos esta só é tomada como referência para o ponto de partida

e de chegada. Arnold Schoenberg (1874-1951), em sua primeira fase composicional (1896-

1907), contribui significativamente com essa estética pós-romântica. Em obras como

Verklärte Nacht (1899), Pelleas und Melisande (1903), Gurre-lieder (1901-11) e o quarteto

de cordas Op.7 (1905), encontramos as mesmas características das obras de Brahms, Wagner

e Mahler, que contribuíram para levar ao extremo a crise do diatonismo: a modulação

cromática e enarmônica, a modulação perpétua e o uso intenso de harmonias “flutuantes” ou

“errantes”, ou seja, acordes de tensão e função ambígüas que anulam os centros de atração, ou

resolução.

A crise do sistema tonal pode ser considerada uma “anomalia” dentro do

sistema e conduziria não só Schoenberg, como vários outros compositores da época, a um

novo conjunto de compromissos subvertendo a tradição da prática vigente até aquele

momento. Kuhn define uma ‘anomalia’ da seguinte forma: quando na presença de um

“problema comum, que deveria ser resolvido por meio de regras e procedimentos conhecidos,

[este] resiste ao ataque violento e reiterado dos membros mais hábeis do grupo em cuja área

de competência ele ocorre” (1998:24). Seria o exemplo do famoso “acorde do Tristão”,

símbolo da crise da teoria harmônica romântica. Tendo em vista o grande impasse para se

analisar este acorde dentro das regras e dos conceitos da teoria tonal tradicional, Martin Vogel

chegará à seguinte conclusão após examinar as dezenas de análises na tentativa de classificá-

lo: “A situação crítica da teoria musical exige uma crítica sistemática dos seus métodos e

conceitos” (VOGEL, apud NATTIEZ, 1984). E para Kuhn, a identificação das anomalias —

isto é, de fenômenos para os quais “o paradigma não preparava o investigador” — é

fundamental para as descobertas científicas, para a percepção de novidades, levando os

membros da comunidade às investigações extraordinárias (cf.: KUHN, 1998:25 e 84).

27

São tais investigações que, por exemplo, irão conduzir Schoenberg a

sistematizar seu novo método de compor com doze sons relacionados entre si8, ou seja, o

dodecafonismo. É o surgimento de um novo paradigma, com novas regras, leis e conceitos

que serão compartilhados por diversos compositores. A conseqüência dessas descobertas será

de extrema importância para o desenvolvimento do serialismo integral dos anos 50 e 60, ao

qual é comumente atribuído um alto grau de complexidade. Sendo assim, a violação radical

com o antigo sistema iniciada por Schoenberg poderia ser considerada como um indício do

período pré-paradigmático da complexidade, pois os princípios do atonalismo e do serialismo

serão levados ao extremo por Ferneyhough na constituição de uma nova complexidade.

Vejamos agora em que sentido a música de Schoenberg é complexa

apontando a partir de então para a complexidade de Ferneyhough.

* * *

1.3. Schoenberg: complexidade e inteligibilidade

A progressão evolutiva das pesquisas de Schoenberg, que o levou ao

dodecafonismo, parte de um vocabulário pós-wagneriano para chegar a uma suspensão da

linguagem tonal, ou, utilizando a classificação corrente, na sua fase “atonal”9 (1908-1915). As

suas três peças para piano, op.11 (1908), marcam definitivamente o desaparecimento dos

axiomas da teoria tonal na escrita de Schoenberg. Ela é caracterizada por um “cromatismo

8 cf.: SCHOENBERG, 1975:218. 9 Schoenberg não concordava com este termo, pois o conceito ‘atonal’ pode ser literalmente traduzido como “privado de som”. Ele prefere utilizar a expressão “tonalidade suspensa”, ou “pantonal” (cf.: WEBERN, 1984:113). Para uma discussão mais pormenorizada ver: MENEZES, 2002:93-99.

28

absoluto” (PAZ, in: EIMERT, 1973:14) que libera as notas dos princípios unificadores das

leis da tonalidade. O compositor é então impulsionado a se guiar por normas intuitivas de

ordem psicológica, a uma intervalística empregada de maneira quase arbitrária e a uma

temática extremamente fragmentada, da qual são geradas as harmonias e as derivações

melódicas subseqüentes. Prolifera-se o uso de um conteúdo intervalar de maior tensão, ou, no

termo cunhado por Boulez, dos “intervalos anárquicos” (cf.: BOULEZ, 1995:240), como as

2ªs e as 9ªs menores, as 4ªs e as 5ªs aumentadas e as 7ªs maiores, sendo considerados como

“notas não cordais” todos os intervalos consonantes. De acordo com Paz (loc. cit.) há uma

inversão total dos axiomas tradicionais.

Este momento é de crucial importância para compreendermos os aspectos da

complexidade originada na obra de Schoenberg: com a emancipação da dissonância, as notas

ganham autonomia e independência em relação às zonas polares de atração da harmonia

funcional, se desprendendo da obrigação de resolução num único centro tonal. A música

perde a sua identidade em relação a um ponto fixo de referência situado fora dela, ou seja,

entre um conteúdo pré-estabelecido e a estrutura concreta atualizada. Assim, a emancipação

da dissonância opera na música “pantonal” de Schoenberg, o que Adorno chama de

“emancipação dos meios de representação” (ADORNO, 1998:161), numa tentativa de

“purificar a música de elementos previamente concebidos” (id. ibid.:156).

O exemplo mais audacioso deste empreendimento está consumado na

terceira de suas três peças para piano, op.11 [figura 1]. Esta peça “indomada”, assim

denominada por Adorno, atinge um grau de complexidade a tal ponto que o próprio

compositor não repetirá mais em suas obras posteriores. Como mostram os argumentos de

Adorno, mesmo em seu monodrama Erwartung, nas peças orquestrais op.16, ou no Pierrot

lunaire, Schoenberg busca outros pontos de referência apelando ora para os textos, ora para as

fórmulas do contraponto imitativo, ora para o trabalho de desenvolvimento temático.

29

figura 1: início da terceira peça do op.11, de Schoenberg

Quando escutamos esta peça pela primeira vez, a profusão constante de

idéias inusitadas provoca um desequilíbrio na percepção em termos de identificação de

estruturas reconhecíveis (em relação aos elementos de articulação da música tonal,

30

principalmente os harmônicos e fraseológicos). A complexidade pode ser atribuída então,

neste caso, à dificuldade de compreensão ou entendimento de uma música, que, para

Schoenberg, implica numa de suas principais preocupações: o problema da inteligibilidade10

na música.

Num artigo intitulado “My Evolution”, Schoenberg diz que as “notas

dissonantes introduzidas nas melodias, ou seja, notas com uma relação mais afastada do

centro tonal do momento, causam dificuldades de compreensão. Tais relações são igualmente

um obstáculo para a inteligibilidade”11 (SCHOENBERG, 1975:87). Em um outro artigo

(“New Music: My Music”) ele analisa mais a fundo essa questão, associando a inteligibilidade

com o problema da repetição na música: quanto mais repetições, mais fácil de compreender a

música; quanto menos repetições, mais difícil (complexo) de entendê-la (id. ibid.:102-103).

No entanto, Schoenberg sempre buscou em toda a sua obra a

inteligibilidade, ou, a coerência e coesão formal. Ao analisar uma de suas peças “pantonais”,

seu op.22, ele questiona a possibilidade de se alcançar uma coerência lógico-formal sem as

referências da harmonia funcional (1972:26-27). A fim de garantir a inteligibilidade de uma

música que evita a todo momento a repetição no nível concreto da superfície da estrutura

musical, Schoenberg realiza um grande marco no processo evolutivo da música. Segundo

Adorno, “um veredito histórico objetivo” (1998:153): a libertação da estrutura latente e o

10 Utilizamos aqui a tradução corrente do termo em inglês ‘intelligibility’. No entanto, uma tradução mais precisa do termo original em alemão ‘fasslichkeit’ pode ser ‘apreensibilidade’, significando a “possibilidade de conhecimento mais imediato através do julgamento ou da percepção” (cf.: KATER, apud WEBERN, 1984:47). [Esta observação nos foi apontada por Flo Menezes durante a qualificação] 11 Segundo Nattiez (1984a:346), há por trás dessas considerações uma “teoria da comunicação musical”, já que para Schoenberg a inteligibilidade está atrelada ao “estilo tonal”. Se a música tonal é inteligível e de fácil compreensão, é porque existem modos claros de articulação que unificam os elementos isolados graças a um único pólo atrativo onde os sons tendem a convergir ou divergir (o centro tonal). Assim, Schoenberg concebe dois papéis essenciais da tonalidade: “Por um lado, ela reúne, une, por outro, ela articula, separa, individualiza. As vantagens que disso resultam para o compositor e para os seus auditores são as seguintes: através da unidade que se estabelece por via das afinidades entre os sons, o auditor dotado de uma certa inteligência musical não pode deixar de sentir que a obra foi concebida como um todo. Por outro lado, a sua memória é ajudada pela função de articulação, que aclara a maneira como os elementos estão ligados entre eles e ao todo, facilitando assim a compreensão de certos momentos fugitivos” (SCHOENBERG, apud NATTIEZ, loc. cit.).

31

abandono da manifesta12, através do princípio da variação progressiva, ou desenvolvimento

por variação. Um processo de desterritorialização das hierarquias das leis e regras do sistema

harmônico tonal para uma lógica processual e construtivista de engendramento de figuras

musicais: fragmentos motívicos livres das amarras do tonalismo, e estruturados e conectados

por uma lógica interna de seus constituintes intervalares e rítmicos, por variações do gênero

tradicional – transposições, inversões, retrogradações, condensações, expansões,

interpolações, justaposições, etc.

Por trás das aparências dos “gestos” já desgastados de referencialidade em

relação a uma teoria que se tornara obsoleta, Schoenberg faz emergir a essência da “pura

elaboração de pensamentos musicais” ( as “idéias” e “figuras”) de modo mais evidente e

exposto. “Aquilo que ele chama de “subcutâneo”, a estrutura dos eventos musicais individuais

enquanto momentos indispensáveis de uma totalidade consistente em si mesma, rompe a

superfície, torna-se visível e se afirma independentemente de qualquer forma estereotipada. O

interior exterioriza-se. O fenômeno musical é reduzido a elementos de seus nexos estruturais.

As categorias ordenadoras que facilitam a audição em detrimento da pura elaboração da forma

são abandonadas. Essa ausência de todas as mediações introduzidas na obra a partir de fora

faz com que o decurso musical, quanto mais for organizado em si mesmo, apareça ao ingênuo

ouvinte não-ingênuo como sendo abrupto e fragmentado” (ADORNO, 1998:150-151).

E é exatamente isso que caracteriza o “expressionismo” para Schoenberg:

“uma peça musical não cria sua aparência formal fora da lógica de seu próprio material, mas,

12 De acordo com Adorno, a música de Schoenberg “exerce uma crítica produtiva ao material sonoro manifesto do classicismo e do romantismo, aos acordes tonais e suas relações normatizadas e às linhas melódicas equilibradas entre as tríades e os intervalos de segunda [diatonismo], em suma, ela critica toda a fachada da música dos últimos duzentos anos. Na grande música da tradição, porém, esses elementos não eram importantes em si mesmos, mas apenas na medida em que assumiam uma função precisa na representação do conteúdo especificamente musical, naquilo que era composto. Sob a fachada havia, latente, uma segunda estrutura. Ela era determinada em vários aspectos pela fachada, mas ao mesmo tempo gerava e justificava novamente, a partir de si mesma, a própria fachada, constantemente problematizada. Compreender a música tradicional [tonal] sempre significou ter em mente, além da estrutura da fachada, aquela segunda estrutura, percebendo a relação entre ambas” (ADORNO, 1998:153).

32

guiado por um sentimento para os processos internos e externos [o sentimento da forma], e

trazendo-o para a expressão, ela sustenta-se em sua própria lógica e se estrutura a partir de si

mesma” (SCHOENBERG, 1972:27).

Não só a emancipação da dissonância, mas também a sua conseqüência

inevitável, ou seja, a emancipação da estrutura latente de uma obra musical, eqüivalem, dentro

do contexto do nosso objeto de estudo, à emancipação da complexidade. Se foi dada uma

atenção mais pormenorizada em relação à música de Schoenberg, é porque essa música

preserva até hoje ainda uma certa dose de novidade. Além disso, a transgressão efetuada pelos

vienenses em relação a um sistema (“paradigma”) que funcionou como referência por mais de

dois séculos na história da música ocidental (e que funciona hoje ainda para a música das

mídias como o padrão de demarcação entre o que é música ou não), torna a complexidade

dessa música talvez maior que a de Boulez ou até mesmo que a de Ferneyhough, se

compararmos o contexto entre eles. Quem não compreender Schoenberg (e também Webern e

Berg), não compreenderá Boulez, Stockhausen ou Ferneyhough.

* * *

33

Capítulo II

“Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. Mas a resposta que mais me agradaria dar é outra: quem nos dera fosse possível uma obra concebida fora do self, uma obra que nos permitisse sair da perspectiva limitada do eu individual, não só para entrar em outros eus semelhantes ao nosso, mas para fazer falar o que não tem palavra, o pássaro que pousa no beiral, a árvore na primavera e a árvore no outono, a pedra, o cimento, o plástico...”.

(Italo Calvino (1923-1985) - Seis propostas para o próximo milênio (1985): “Multiplicidade”)

34

2. Complexidade, Multiplicidade e Semiótica:

Ferneyhough e a escuta das complexidades

2.1. Complexidade e “New Complexity”

A atitude de Ferneyhough em direção a uma música complexa e informal

representa um balanço crítico face à composição contemporânea, apontando alternativas

estéticas na tentativa de uma reconfiguração do Sujeito e do “estilo individual” que, desde o

advento do projeto Modernista, pode ser considerado como um dos problemas sintomáticos da

música atual. A proposta de uma “nova complexidade”, neste sentido, ultrapassa os limites de

um mero rótulo estilístico para projetar o que de fato se entende pelo termo ‘novo’, ou seja,

tudo aquilo que beira os limiares do inesperado, do desconhecido.

A designação ‘new complexity’, formulada por Richard Toop em meados da

década de 80 para se referir aos compositores da chamada “escola britânica” (Brian

Ferneyhough, James Dillon, Chris Dench, Michael Finnissy e Richard Barrett13), pode ser

considerada apenas como um rótulo de “conveniência jornalística” em contraposição explícita

ao new simplicity e ao new romanticism (TOOP, 1993:54). Neste sentido, é apenas mais um

termo para designar uma tendência estilística em contraposição a outra, como o minimalismo

foi em relação ao serialismo. Erik Ulman (1994:202-203) critica esse tipo de designação

enfatizando que reduzir um grupo de compositores num só conceito obscureceria as distinções

essenciais entre eles, pois, se considerarmos certas características da música destes

compositores como o modelo de uma música complexa, como chamaríamos então a música

13 cf.: TOOP, R. (1988). “Four Facets of the New Complexity”, In: Contact, no. 32.

35

de Feldman, Cage, Bussoti, Kagel, entre tantos outros, sendo que também apresentam

características análogas? Não seria errôneo então utilizar tal rótulo para classificar só as

músicas de um ou outro compositor específico?

Parece haver um mal entendido nessas discussões. O fato de considerar um

grupo de compositores pertencentes a uma certa escola estilística sob o rótulo ‘new

complexity’, ou ‘new simplicity’, não determina necessariamente que uma música seja

complexa — ao contrário de uma música simples —, e vice-versa. Por exemplo, numa textura

densa de uma obra de Ferneyhough o resultado pode aparentar relativamente simples; e a

simplicidade das nuanças da música de Wolfgang Rihm pode às vezes resultar numa música

mais complexa. Que estes rótulos, então, não sirvam de referência para a determinação de

uma música simples ou complexa.

Sem querer justificar que a complexidade é sempre relativa de acordo com o

contexto ou ponto de vista de cada observador, nos limitaremos agora ao exame da

complexidade concebida pelo próprio Ferneyhough de modo a ilustrar que, para o compositor,

este conceito envolve não apenas um modo de encarar a própria vida, mas um “modelo para a

representação do mundo” atual (MALT, 1999:82-83). Segundo Malt, não se trata mais da

visão determinista do universo, mas de um “sistema em evolução contínua”, instável,

imprevisível e aberto à criação, onde interagem uma multiplicidade de forças: 1) forças

musicais (a sintaxe do objeto em si), 2) forças estéticas (a psico-personalidade do Sujeito) e

3) forças sociais (as circunstâncias socio-politico-culturais determinadas num tempo e espaço

específicos) (id. ibid.).

Focalizando o pensamento composicional de Brian Ferneyhough, no que diz

respeito principalmente às forças musicais que regem a sua obra, poderemos observar como

se dá a articulação entre as suas especulações teóricas e seus procedimentos composicionais,

de acordo com os ideais estéticos de uma nova música complexa.

36

2.2. Complexidade e Multiplicidade:

A escuta das complexidades I

Para Ferneyhough, o que caracteriza a complexidade não depende

exclusivamente do tipo ou da quantidade14 de elementos que determinam certos espaços

sonoros, mas de “situações de relacionamento das interconexões entre certos estados ou

tendências” capazes de serem percebidas em vários níveis graduais de transmutações,

encorajando uma “contraposição ativa de modelos formais hipotéticos sob a base de

informações incompletas e momentâneas” (FERNEYHOUGH, 1995b:66). É o que

Ferneyhough chama de “qualidade de perspectiva”: dado um material inicial (por exemplo,

um simples gesto direcional de notas ascendentes), os seus componentes internos (atividade

figural) serão simplesmente apresentados em várias facetas e aspectos (ora identificando, ora

deformando aquele gesto), tanto no tempo e espaço quanto em “redes flexíveis de interação

mútua” (id. ibid.:67).

James Boros sintetiza este aspecto com o conceito de “multifacetagem”, ou

seja, a “coexistência de múltiplos pontos de vista, implicando a presença de um alto grau de

ambigüidade a respeito de sua “verdadeira” identidade, em termos da suscetibilidade da

imposição de hierarquias fixas e delimitadas” (BOROS, 1994:91).

14 Sengudo Boros (1994:91), o complexo não corresponde necessariamente com a quantidade de informações presentes num dado evento, mas principalmente com as relações contextuais e a qualidade cognitiva derivada do fenômeno pela percepção. Assim, de acordo com os psicofísicos, a alta mobilidade de eventos — “sucessões extremamente rápidas de muitas notas” — pode ser percebida como uma simples agitação contínua, e a alta densidade de eventos — “uma textura densa” — pode resultar numa massa amorfa (ibid). Ambos os casos tendem a reduzir a riqueza das “interconexões sonoras” entre os eventos para a percepção, ou seja, redução da complexidade. Então, o que aparentemente poderia ser caracterizado como complexo num primeiro momento, pode ter um resultado simples (e vice-versa). Boros exemplifica este caso comparando a música de Xenakis com a de Feldman. A quantidade excessiva de eventos nas texturas de Xenakis resultam mais simples que os desdobramentos imprevisíveis dos contrastes de Feldman. Isto porque Xenakis está preocupado mais com os “efeitos macroscópicos” da obra, e Feldman com as relações entre os “micro-detalhes”.

37

Ferneyhough aponta como uma das principais características de uma obra

complexa essa ambigüidade que, atuando como um articulador flexível entre as diversas

possibilidades de categorias perceptivas, força o ouvinte a uma escuta constantemente ativa e

auto-crítica, considerando a ausência de modelos e/ou normas interpretativas aceitas

universalmente. Isso vem de encontro com a sua necessidade de ampliar os “limites da

tolerância crítica em relação à ambigüidade”, exigindo uma “certa cota de energia por parte de

todos que participam na transmissão do fenômeno estético” (FERNEYHOUGH, 1992:7).

Tal ambigüidade que caracteriza a complexidade está ligada a um outro

fator, aquele que se refere à natureza das condições extremas, dos “fenômenos limites que se

estabelecem através da interconexão de processos do tipo predominantemente linear, expostos

a turbulências muito próximas do caos” (ibid.:6). São tipos de “perturbações geradas pelo

impingimento (confluência / divergência; interseção / colisão) de tendências vetoriais

relativamente simples — ‘linhas de força’ — que por sua vez estão presos sob o controle de

redes mais gerais de restrições formais” (FERNEYHOUGH, 1995b:67).

Esta noção de complexidade se aproxima muito da metamorfose conceitual

da ciência contemporânea descrita por Ilya Prigogine e Isabelle Stengers no livro A Nova

Aliança: Metamorfose da Ciência. De acordo com estes autores, a função e o objetivo da

ciência clássica ou moderna, desde Newton, passa a ser a exploração das aparências

complexas e da diversidade dos processos naturais a um conjunto de efeitos reduzidos a leis

matemáticas simples e universais, concebidas sob o modelo geral das leis dinâmicas que

descrevem o mundo em termos de trajetórias deterministas e reversíveis; a atenção se volta

para os fenômenos imutáveis, para as situações estáveis e para as permanências. Entretanto,

um novo espaço teórico se abre com as leis da termodinâmica, com a biologia molecular, a

mecânica quântica e a relatividade:

38

“As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais. Descobrimos que o diálogo racional com a natureza [constitui] a exploração sempre local e eletiva, duma natureza complexa e múltipla.(...) Não são mais as situações estáveis e as permanências que nos interessam antes de tudo, mas as evoluções, as crises e as instabilidades” (PRIGOGINE E STENGERS, 1991:5).

Diversos são os conceitos que os autores abordam durante todo o texto a fim

de caracterizar o que seria essa nova “Ciência do Complexo”: instabilidade, indeterminação,

irregularidade, acaso e caráter aleatório, imprevisibilidade, raciocínio estatístico, cálculos

probabilísticos, caos, ordem e desordem, auto-organização espontânea e estruturas

dissipativas, irreversibilidade e entropia, flutuações e rupturas de simetria, bifurcações,

misturas e multiplicidades. E uma das conclusões de Prigogine em relação ao fenômeno da

complexidade é a da multiplicidade dos tempos: “cada ser complexo é constituído por uma

pluralidade de tempos, ramificados uns nos outros segundo articulações sutis e múltiplas”

(ibid.:211).

Se todas estas noções ressoam de um modo ou de outro no pensamento

artístico atual, é muito provável que os artistas estejam também preocupados com a

metamorfose sensitiva das artes e com o problema da complexidade. Em síntese, parece que

um dos pontos de convergência a respeito do que caracterizaria um fenômeno musical

complexo é o das multiplicidades.

Tendo em vista essas questões, é possível determinar um ponto crucial no

modo como Ferneyhough associa a complexidade em relação à Forma, não mais no sentido

de garantir a unidade formal, mas de embaralhá-la de modo a assegurar uma multiplicidade

informal. Esta idéia da complexidade associada à multiplicidade é tratada de maneira peculiar

por Ferraz (1998, cap. II), ao abordar o conceito de ‘multiplicidade’ apoiado nas concepções

do filósofo francês Gilles Deleuze. Assim, do mesmo modo que a complexidade é menos

relativa à quantidade de informações do que às possibilidades de inter-conexões entre os

39

elementos, a multiplicidade é também menos relativa à quantidade de partes do que aquilo

que pode ser “dobrado” ou “misturado” de diversas maneiras.

Por exemplo, um pensamento preocupado em dividir a composição por

partes relativamente homogêneas que se remetem todas a um único ponto de origem, tentando

assim garantir a “unidade” da obra, estaria submetendo o múltiplo das partes ao uno da

unidade. Todas as partes e divisões da estrutura global podem ser identificadas coerentemente

com um único e mesmo ponto de origem, como é o caso do motivo temático na música tonal,

ou da série dodecafônica. A série representaria a unidade ou a essência da composição. Já um

pensamento preocupado simplesmente em permutar um elemento, combinando, deformando e

sobrepondo de diversas maneiras, em diversos níveis e graus de conectividade — onde os

elementos remetem-se aos outros por ressonância, não sendo possível identificar um ponto

fixo de referência —, o múltiplo não pode ser seccionado em partes e muito menos submetido

a um único ponto de origem, pois a composição se sujeita muito mais a uma “função

operatória”, ou princípios geradores, do que a uma “essência” ou princípio unificador. Tal é a

multiplicidade que se origina da própria multiplicidade, sem se subordinar a um ponto único e

fixo de referência, “resultante de uma trama de linhas que conduzem a uma trama

inidentificável de pontos de origem” (FERRAZ, ibid.:106).

O pensamento composicional de Ferneyhough condiz muito mais com este

tipo de pensamento, no qual a multiplicidade não se reduz à dualidade entre o múltiplo e o

uno. E talvez neste aspecto possamos encontrar um tipo de complexidade que também não se

submeta à dualidade entre o simples e o complexo15, pois não existe uma trama a ser

15 É interessante observar como que essas idéias são expressas de forma análoga por um dos pensadores que atualmente mais escreve a respeito da complexidade, o epistemólogo e sociólogo Edgar Morin : “A complexidade não é uma noção quantitativa, é uma noção lógica, é a confrontação do uno e do múltiplo, é a autonomia que é, ao mesmo tempo, dependente sem deixar de ser autonomia; é, de certo modo, a necessidade de ampliar os nossos instrumentos conceituais e renunciar a um princípio unificador mestre e supremo” (MORIN, 1986:131). E em relação ao confronto entre complexidade versus simplicidade, o autor defende a tese de que o simples não existe, mas apenas o simplificado: “A complexidade conduz à eliminação da simplicidade. (...) Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais

40

desvendada, simplificando o que de antemão havia sido complicado, e muito menos não há

como se deixar levar numa escuta passiva com referências já fixadas por um hábito ou por

uma escuta familiar: cada escuta é um novo labirinto a ser construído, assim como a cada

composição o próprio compositor se vê diante de um novo labirinto a ser traçado.

Um outro problema que parece confundir a noção de complexidade é a sua

associação ao termo ‘complicado’. Uma música complexa talvez seja também complicada,

mas nem sempre uma música complicada reflete realmente uma complexidade. O fato é que o

complicado diz respeito a uma estrutura intricada, aparentemente cheia de detalhes e

aparentemente de difícil execução, ou seja, são afirmações mais objetivas sobre o conteúdo, o

material, a feitura da obra (cf.: TOOP, 1993:44-45). São aspectos que podem ser consentidos

por todos, e de fato uma partitura de Ferneyhough é muito mais complicada que a de Rihm.

Acreditamos que disso ninguém discordaria. Mas se dissermos que a música de Ferneyhough

é mais complexa que a de Rihm, talvez não seja improvável que alguém não concorde, e

muito plausivelmente.

Outro exemplo: alguém pode dizer que a peça Structures 1a de Boulez é

muito mais complexa que qualquer música do compositor italiano Giacinto Scelsi. Mas se

considerar que a proposta do serialismo integral é a de uma escuta estrutural, onde há um

roteiro altamente elaborado e intricado, fixado e pré-estabelecido pelo próprio compositor e

que se impõe ao ouvinte, então pode-se dizer que ela é muito mais complicada — no sentido

de se tentar desvendar a trama ou seguir o “fio da meada” — do que complexa. Agora,

considerando como complexo a informalidade dos eventos em relação a qualquer estrutura

pré-fixada, onde a única referência são os próprios eventos uns em relação aos outros, e não

possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as conseqüências mutiladoras, redutoras, unidimensionais e, finalmente, ilusórias de uma simplificação que se toma pelo reflexo do que há de real na realidade” (MORIN, 1990:9).

41

uma única série, então qualquer música de Scelsi é mais complexa do que qualquer outra do

serialismo integral.

Essa idéia de contrapor uma escuta complexa a uma escuta complicada, ou

escuta dirigida é também abordada por Silvio Ferraz (1998:100). Para Ferraz, a idéia de

complexidade associada a essa “escuta das complexidades” tal qual vemos aflorar na música

mais recente, é uma decorrência da noção de complexidade implicada no pensamento

científico atual, como nos sistemas complexos mencionado pelo físico Mitchell Waldrop:

esses sistemas “processam um tipo de dinamismo que os torna qualitativamente diferentes dos objetos estáticos, definidos como complicados e não complexos; (...) são mais espontâneos e desordenados do que os estáticos, seus componentes vivem

em estado de turbulência oscilando entre estágios caóticos e ordenações

complexas; um constante estado transitório em que os componentes do sistema nunca estão completamente fixos, sem que no entanto se dissolvam na turbulência” (ibid.:100-101).

E Ferraz aponta o compositor Brian Ferneyhough como atuante na proposta

de uma escuta complexa. O interesse de Ferneyhough reside na produção de uma música que

não seja facilmente assimilada numa escuta passiva — a dos minimalistas —, e nem guiada

por uma escuta dirigida — a dos serialistas —, mas uma música que encoraje o ouvido a se

lançar num labirinto de múltiplas conexões, onde o sujeito deve se ariscar a todo momento a

selecionar instantaneamente um dos caminhos possíveis durante a audição, não fixando

nenhum padrão de escuta (ibid.:101, 104; e também cf.: FERNEYHOUGH, 1990:10).

Ao se pensar numa música que permita uma escuta de múltiplas conexões (e

da instantaneidade na opção dos caminhos a serem seguidos em sincronicidade com a

velocidade em que os eventos vão aparecendo), o problema com o processo cognitivo ou

perceptivo se evidencia pelo fato de que certas características contidas no próprio objeto são

determinantes para que um tal resultado seja atingido com maior eficácia sobre o sujeito,

42

mesmo que o limite desta determinação não possa ser demarcado de forma generalizada16.

Pois se existe de fato uma tendência a buscar um objeto que seja realmente complexo para a

percepção, como é o caso de Ferneyhough17 e outros compositores, parece que esse objeto é o

próprio resultado do processo composicional e das intenções de cada compositor.

Focalizando as intenções de Ferneyhough e os seus procedimentos

composicionais, podemos verificar uma noção de complexidade própria de um pensamento

composicional e que consequentemente resulta numa música não apenas complexa, nestes

mesmos termos, mas também mais propícia a uma escuta das complexidades, tal como foi

colocado anteriormente.

Ao instaurar em seu discurso musical um tipo de sucessividade e

simultaneidade de possíveis planos ou séries heterogêneas que seguem paralelamente e

independentemente no fluxo do tempo, gerando uma infinidade virtual de conexões entre os

eventos, podemos associar novamente essa complexidade ao pensamento de Deleuze, ao

abordar a sua “Teoria das Multiplicidades” em seu livro Bergsonismo (DELEUZE, 1999:68).

O filósofo distingue dois tipos de multiplicidades: uma é a multiplicidade externa, numérica,

espacial, atual, descontínua, de discriminação quantitativa; a outra é a multiplicidade interna,

irredutível ao número, temporal, virtual e contínua (ibid.:28, 62). No primeiro caso “o espaço

é percorrido pelo móvel”, dividindo-se e formando uma multiplicidade atual de partes reais ou

possíveis, e no segundo temos “o movimento puro, que é alteração, multiplicidade virtual

qualitativa” que muda de natureza toda vez que se divide (ibid.:36).

16 Toop observa ainda que a complexidade é um fenômeno essencialmente subjetivo e perceptivo — e não algo que possa ser definido objetivamente sobre o material ou conteúdo (TOOP, 1993:48). 17 Ferneyhough está preocupado em “manter o ouvinte constantemente consciente de que a complexidade é um dado do qual não se pode escapar. Numa boa performance, pelo menos, não é possível refugiar-se numa impressão global indiferenciada: ao invés disto, o ouvido é constantemente surpreendido por diversos níveis de atividade — ora ásperos, ora granulares —, ou mesmo empenhado na transição de um nível a outro” (FERNEYHOUGH, apud FERRAZ, 1998:240).

43

O modo como Ferneyhough incorpora a complexidade em suas músicas,

conforme vimos, reflete bem essa forma de libertar o tempo de um “espaço que é percorrido

pelo móvel”, deixando transparente o próprio “movimento puro” no espaço entre os objetos,

nas passagens rápidas de um domínio a outro, das “frases instáveis e demasiadamente curtas

que respiram intensamente vista a quantidade de elementos que o instrumentista e o ouvinte

devem articular” (FERRAZ, 1998:243). Esse é o interesse do compositor em conceber

“situações nas quais as alterações no fluxo do tempo, através e em torno dos objetos, se fazem

sensivelmente (conscientemente) palpáveis”, no que ele denomina a “tactilidade do tempo”,

isto é, “a sensação concreta de sua presença” (FERNEYHOUGH, 1993b:20-21). Atribuir uma

sensação concreta da presença do tempo ao sujeito que experiencia tal fenômeno é o mesmo

que suspender esse tempo. Na percepção do movimento puro, da qualidade pura, das

alterações puras ou “linhas de força” que operam entre os objetos, não há prontidão capaz de

abarcar todos os eventos e relacioná-los ao que já passou ou de criar expectativas para o que

virá. E como coloca Ferraz (1997:73), o ouvinte fica atônito frente à complexidade dos

eventos, não conseguindo nem mesmo refazer a textura imaginariamente: “não há como

relacionar os objetos, visto a densidade de frases e timbres e a velocidade com que os eventos

se dão, resultando que o ouvinte não tem como opor presente e passado, conceitos dos quais

depende a idéia de tempo que passa”.

E se não há mais passado, presente ou futuro, qualquer ponto da suposta

linha do tempo pode conectar-se a qualquer outro. Como um lenço que se amarrota de

maneiras distintas unindo pontos distantes ou afastando dois pontos vizinhos18. Como se dois

18 Uma situação análoga talvez seja a da “transformação do padeiro” descrita no livro de Prigogine, onde numa série de repetições de uma simples operação, a superfície da massa é sempre fragmentada e redistribuída; e também no exemplo da representação da evolução de um sistema de mistura, onde o volume é conservado mas se deforma e se estende por todo o espaço. Em ambos os casos a descrição da evolução de toda a região tem um caráter estatístico e indeterminado (cf.: PRIGOGINE E STENGERS, op. cit., pp. 186-187).

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momentos distanciados nessa música coexistissem, fazendo “fluir a multiplicidade decorrente

do cruzamento das múltiplas séries, dos “universos paralelos” que permeiam a percepção —

ora interrelacionados de modo ordenado, ora sofrendo altos índices de turbulência e

desordem” (FERRAZ, 1998:104).

Assim, a complexidade concebida por Ferneyhough supera o problema da

unidade formal na tentativa de estabelecer um elemento unificador que garanta a coerência da

macroforma em relação aos seus constituintes internos. Esta unidade teria por objetivo

garantir o equilíbrio entre um sistema fixo de referência pré-determinado e os graus de desvio

permitidos pelas distribuições atuais dos detalhes constituintes da composição, permitindo a

confirmação do sistema ou não. Ferneyhough está interessado justamente no inverso, ou seja:

como reagiria a nossa faculdade perceptiva na tentativa de se orientar diante de situações que

geram a todo instante zonas de instabilidade e incerteza em relação àquilo que determinaria

ou não a forma e seus detalhes19, situações onde os “modos lineares de classificação dos

estímulos recebidos são suspendidos em favor de saltos súbitos, rupturas, ou distorções de

foco” (FERNEYHOUGH, 1994:115).

Focalizando o tratamento localizado nos jogos de diferenciação entre cada

pequeno evento e evitando os traços de linearidade e os pontos fixos de referência,

Ferneyhough faz com que sua música se torne altamente instável e imprevisível: um labirinto

de conexões. A maneira de “evitar a imediaticidade do gesto”, enfatizando o “potencial

19 A aproximação desse interesse de Ferneyhough e as estruturas dissipativas de alguns fenômenos biológicos abordados por Prigogine é curiosa: quando Ferneyhough cria zonas de instabilidade buscando um afastamento do equilíbrio, da estabilidade e da linearidade macroformais, talvez isso seja uma tentativa de dissipação das unidades estruturais da forma musical para garantir o caos e a complexidade do sistema. E de modo análogo Prigogine salienta que “próximo ao equilíbrio, o sistema mantém-se espacialmente homogêneo; a difusão dos reagentes através do sistema conduz, longe do equilíbrio, à possibilidade de novos tipos de instabilidade e de uma ampliação de flutuações destruidoras da simetria espacial inicial. (...) Quando o sistema é a sede de reações que correspondem a uma cinética não-linear, o valor relativo da dispersão não obedece mais a uma fórmula geral e o destino das flutuações torna-se então específico; (...) as velocidades das reações que aí se produzem regulam-se umas pelas outras, os acontecimentos locais repercutem-se, portanto, através de todo o sistema num estado onde as pequenas diferenças se sucedem e propagam sem cessar” — complexidade enquanto caos criador, fecundo, “do qual podem sair estruturas diferentes” (cf.: PRIGOGINE e STENGERS, op. cit., pp.121 e 131).

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energético e transformacional das subcomponentes que constituem este gesto”, assegura o

desequilíbrio da percepção no sentido de propor uma escuta atirada “simultaneamente para os

gestos intensivos resultantes a cada momento dos choques entre eventos e acontecimentos,

para a textura que se manifesta como nuança em cada “molécula” sonora e ao mesmo tempo

para a figura intensiva” (Ferraz, 1998:105).

* * *

2.3. Complexidade, Semiótica e Percepção:

A escuta das complexidades II

A noção de complexidade concebida pelo compositor Brian Ferneyhough,

conforme vimos, envolve diretamente o aspecto da criação e percepção de uma obra musical

no sentido em que esta proporcione ao ouvinte uma escuta mais enriquecida, ou seja, que não

se prenda aos valores já pré-concebidos por uma experiência habitual. Vamos investigar agora

como funciona essa operação perceptiva com relação à audição de uma obra musical

complexa, articulando-a com a teoria semiótica e a semiose da percepção de Charles S.

Peirce.

* * *

A teoria dos signos de Peirce, ou semiótica, está irredutivelmente fundada

em sua doutrina das categorias fenomenológicas, e funciona como um aparato lógico e

abstrato que nos permite compreender a multiplicidade de todos os fenômenos existentes

46

possíveis, assim como elucidar as distinções mais sutis das linguagens nas quais estamos

todos indubitavelmente inseridos. A fenomenologia de Peirce é, além de um método de

investigação que observa e descreve as categorias dos fenômenos, também uma ciência

normativa que afirma como devem ser os “elementos logicamente indecomponíveis” de toda

experiência fenomênica “aplicáveis ao ser” (cf.: PEIRCE, 1980:85,97). Após reduzir estes

modos de ser da experiência em não mais do que três categorias universais, Peirce as

considerará como os axiomas irredutíveis e suficientes de toda a natureza e todo pensamento,

construindo a partir deles a sua teoria dos signos.

Peirce ensaiou diversos exemplos e argumentos para as suas três categorias.

De acordo com Santaella (1995:17-18), encontramos nesses ensaios diversas denominações

que Peirce deu a elas devido ao aspecto da variedade material que cada elemento do

fenômeno assume de acordo com as suas diversas naturezas. Por isso, ao extrair destas

análises apenas o substrato lógico-formal dos elementos que permanecem em todos os casos

possíveis, Peirce generalizou as três categorias em conceitos abstratos e despidos de qualquer

materialidade, mantendo no entanto a sua ordenação lógica de: Primeiridade, Secundidade e

Terceiridade.

1. Primeiridade: Corresponde a todo fenômeno que está imediatamente na

sua mente no instante presente, sem referência a qualquer outro fenômeno, a não ser ele em si

mesmo. É a categoria mais difícil de ser definida, pois antecede qualquer tipo de

interpretação, fato concreto ou ocorrência, ou seja, não se faz nenhum tipo de inferência,

julgamento ou raciocínio sobre ela; resumindo, são os fenômenos que nos aparecem

independentemente do domínio do pensamento e da discriminação. Trata-se de “uma espécie

de consciência, ou ato de sentir, sem nenhum “eu”; (...) as partes desse ato de sentir não

poderiam ser sintetizadas e, portanto, não haveria partes reconhecíveis. Não poderia nem

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mesmo haver um grau de nitidez desse sentir, pois tal grau é o montante comparativo de

distúrbio da consciência geral por um sentimento” (PEIRCE, 1995:24).

2. Secundidade: Corresponde a todo fenômeno que se apresenta para nós num fato

concreto, singular, existente e real. Sei que um dado fenômeno da experiência existe e é real

porque ele insiste e persiste na nossa consciência, e ele nos força a reconhecer a cada instante

uma distinção e uma relação entre os outros fenômenos. Antes mesmo de qualquer

pensamento, a nossa reação é imediata e espontânea diante destes fenômenos, mas que agora

já se apresentam como um evento particular num dado momento do tempo e num dado lugar

no espaço. A secundidade acontece quando um fenômeno de primeiridade (uma qualidade-de-

sensação) aparece atualizado em um objeto ou corpo, tornando-se um fato.

É a consciência da discriminação, da comparação, da relação, do conflito

entre dois fenômenos existentes coagindo num certo sentido. Uma binariedade de forças,

como por exemplo, a idéia de esforço e resistência:

“Você tem este tipo de consciência de uma maneira pura, com alguma aproximação, quando coloca seu ombro contra uma porta e tenta forçá-la a se abrir. Você tem um sentimento de resistência e, ao mesmo tempo, um sentido de esforço. Não pode haver resistência sem esforço; não pode existir esforço sem resistência. Eles são apenas dois modos de descrever a mesma experiência. É uma dupla consciência” (PEIRCE, apud IBRI, 1992:7).

É a minha força interna (o esforço) que se opõe a uma outra força (a

resistência), neste caso externa a mim, a da porta. A esta experiência direta de uma ação

mútua entre duas coisas sem considerar qualquer outro fenômeno, ou qualquer tipo de

terceiro, Peirce denomina de força bruta: “a brutalidade consistirá na ausência de qualquer

razão, regularidade ou norma que poderia tomar parte na ação como elemento terceiro ou

mediador” (1995:23).

3. Terceiridade: Corresponde a todo fenômeno que, ligando ou mediando

um primeiro a um segundo, cria um terceiro em forma de uma regra geral, uma generalização,

48

uma lei, um pensamento racional com um significado específico que tende a influenciar uma

determinada ação no futuro. Peirce afirma que somente através de uma relação triádica

genuína é possível qualquer tipo de significação ou ação que seja conduzida pela razão, ou

por uma intenção. Entre qualquer outra relação diádica poderá ocorrer apenas ações

puramente mecânicas, ou seja, força bruta. E esta intenção que é a ação da mente, nos traz à

consciência a idéia do ser in futuro: “o ser in futuro aparece em formas mentais, intenções e

expectativas” (1995:25).

Note-se que a idéia de “significado” surge na terceira categoria de Peirce

como elemento mediador entre o passado vivido (a memória dos fenômenos experienciados) e

a ação futura: “consiste em conceder uma qualidade às reações no futuro”(1980:94).

Observamos os fatos brutos, as ocorrências particulares com todas as suas qualidades;

traduzimos estes fenômenos, estes objetos da percepção em julgamentos de percepção,

introduzindo neste processo uma camada interpretativa entre a consciência e o que é

percebido; finalmente, através deste processo que aproxima um primeiro e um segundo numa

síntese intelectual, cognitiva, formulamos regras gerais que necessitam ser experienciadas

para que aqueles fenômenos anteriormente observados adquiram uma garantia de significação

em nossa conduta. Esta tradução, esta interpretação, esta significação, podem ser

considerados os elementos responsáveis pela nossa aquisição do conhecimento, pela nossa

aprendizagem, que é a consciência de síntese ou elaboração cognitiva; resumindo, é a nossa

compreensão do mundo:

“Todo nosso conhecimento das leis da natureza é análogo ao conhecimento do futuro, na medida em que não há nenhum modo direto pela qual as leis tornam-se por nós conhecidas. Procedemos, aqui, por experimentação. Isto é, advinhamos quais sejam as leis pedaço por pedaço. Perguntamos: E se variássemos um pouco nosso procedimento? O resultado seria o mesmo? Tentamos fazê-lo. Se estamos no caminho errado, uma negativa enfática é logo colocada sobre a conjectura inicial, e desta forma nossas concepções tornam-se, gradualmente, cada vez mais corretas”

(PEIRCE, 1995:25).

49

Ao examinar os modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como

fenômeno de produção de significado e sentido, estamos investigando a natureza do elemento

da representação dos fenômenos. Para Peirce a representação é sinônima de terceiridade, ou

seja, “a idéia daquilo que é tal qual é por ser um Terceiro ou Meio entre um Segundo e seu

Primeiro” (apud IBRI, 1992:15). E é neste sentido que identificamos uma primeira idéia de

Signo em Peirce, como “um veículo que comunica à mente algo do exterior”, ou seja, que

“representa algo para a idéia que provoca ou modifica” (1980:93). E representar é “estar no

lugar de”, isto é, “estar numa tal relação com um outro que, para certos propósitos, é

considerado por alguma mente como se fosse esse outro” (1995:61).

* * *

Citaremos uma dentre as várias definições de signo concebidas por Peirce:

“Um signo intenta representar, em parte, pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto pode ser chamada de interpretante” (PEIRCE, apud SANTAELLA, 2001:42-43). Trata-se de uma concepção dinâmica do signo (1), envolvendo uma

estrutura lógica de determinação e representação entre três correlatos — (1.1) o fundamento

do signo, (1.2) o objeto e (1.3) o interpretante — que caracterizam mais propriamente a ação

do signo, ou semiose: princípio lógico-estrutural dos processos dialéticos de continuidade e

crescimento; ação de (auto-)gerar, produzir e desenvolver, cedo ou tarde, novos signos

interpretantes ad infinitum (SANTAELLA, 1995:18-19).

O fundamento do signo (1.1) é tudo aquilo que nos aparece através da

experiência ordinária e positiva: os mais variados aspectos e caracteres dos fenômenos que os

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habilitam a funcionar como signo ou quase-signo, desde uma qualidade desencarnada (uma

cor ou um cheiro), um existente singular (este texto), ou uma lei geral (os conceitos utilizados

para expressar as idéias deste texto). Neste sentido tudo pode (e deve) ser um signo, pois basta

estarmos vivos (acordados, dormindo ou em estado de loucura alucinada) para que os

fenômenos se apresentem à nossa experiência já habilitados a operarem como signos.

Mas nenhum signo (1) pode funcionar sem um objeto (1.2) que o determine,

ou seja, o signo “está enraizado num vastíssimo mundo de relações com outros signos, com

tudo aquilo que muito amplamente chamamos de realidade” (id., 2001:45). O signo intenta

então representar essa realidade, ou melhor, uma das múltiplas facetas dessa realidade, pois

esta é infinitamente inabarcável pela nossa observação. Por isso Peirce faz a distinção entre

(1.2.1) objeto imediato (objeto interno ao signo) e (1.2.2) objeto dinâmico (objeto externo ao

signo). Assim, “todo o contexto dinâmico particular, a “realidade” que circunda o signo se

constitui em seu objeto dinâmico; (...) o objeto imediato funciona como um indicador do

recorte que o intérprete faz ou deve fazer no contexto, objeto dinâmico, que determina o

signo” (ibid.). Veremos mais adiante que isso se dá pelo fato de possuirmos órgãos sensoriais

que funcionam como espécies de “filtros” que delimitam o nosso campo perceptivo.

E finalmente o papel do interpretante (1.3) como o terceiro elemento da

cadeia semiótica, que se subdivide em três níveis: (1.3.1) interpretante imediato, (1.3.2)

interpretante dinâmico e (1.3.3) interpretante final. O interpretante imediato “é aquilo que o

signo está apto a produzir como efeito” (ibid.:47), um potencial objetivo do signo para

significar algo independente de uma mente interpretadora, e por isso ele é interno ao signo

assim como o objeto imediato. Já o interpretante dinâmico é o efeito que o signo efetivamente

produz numa mente interpretadora singular e particular, e portanto ele é externo ao signo,

como o objeto dinâmico. E o interpretante final “é o efeito que o signo produziria em qualquer

51

mente, se a semiose fosse levada suficientemente longe, isto é, se fosse possível que o signo

pudesse produzir todos os interpretantes dinâmicos de modo exaustivo e final” (ibid.:49).

Em suma, é importante distinguir duas ordens lógicas da semiose: 1. o signo

(1º.) tem primazia lógica como o primeiro elemento da representação, funcionando como um

mediador entre o objeto (2º.) e o interpretante (3º.); 2. mas o objeto (A) tem primazia real

como o primeiro elemento da semiose a determinar o signo (B) e o interpretante (C). Isto é, a

existência do signo depende do objeto, mas a aparência do objeto depende da mediação do

signo: [figura 2 – as flechas indicam a ordem das determinações]

figura 2: signo

Vejamos um exemplo da audição de uma música: a música é um signo que

representa uma série de funções fixadas pelas inter-relações dos seus constituintes internos,

sendo estes constituintes (as qualidades paramétricas do som, a textura, as variações de

densidades, etc) os fundamentos que habilitam este fenômeno a funcionar como um signo. A

causa ou determinante dessa sintaxe corresponde ao objeto dinâmico do signo, ou seja, as

idéias e intenções do compositor constituindo todo o seu processo de elaboração

composicional. O objeto imediato corresponde apenas aos aspectos que o ouvido é capaz de

captar durante a audição em tempo real dessa música, sendo que a cada nova audição um

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novo objeto imediato pode ser configurado dependendo do foco a ser investido e direcionado

a cada detalhe durante a ocorrência dos eventos sonoros.

Independentemente de quem escute essa música, ela guarda dentro de si —

no fundamento do signo — uma significância latente, que é o seu interpretante imediato. Por

isso, a música é uma forma de linguagem apta a ser interpretada como tal tão logo encontre

um intérprete particular. E é nesta fase do processo que as coisas se complicam, quando o

significado latente do signo atinge um ouvinte particular, nível do interpretante dinâmico.

Pois se até aqui a objetividade própria do interpretante imediato estava resguardada, no nível

do ouvinte particular a subjetividade de cada um abrirá margens a múltiplas interpretações,

podendo naturalmente representar o signo falsamente, substituindo o objeto dinâmico por

outros. Isto acontece pelo fato do interpretante dinâmico de um signo ser sempre múltiplo e

plural, capacitando um mesmo signo a produzir diversos efeitos em uma única mente

interpretadora (SANTAELLA, 2001:48). Além disso, podemos ter tido várias experiências

anteriores — que Peirce chama de experiência colateral — numa relação direta ou indireta

com aquele signo, produzindo semioses paralelas em relação ao objeto desse signo.

Para entendermos melhor essa questão precisamos penetrar nas subdivisões

do interpretante dinâmico (1.3.2) a fim de evidenciar quais são os três níveis de efeitos que

um signo pode efetuar na mente de um intérprete particular: (1.3.2.1) emocional, (1.3.2.2)

energético e (1.3.2.3) lógico. Santaella (ibid.:81-84) faz ainda uma outra subdivisão destes

três níveis, desdobrando-os em nove modos de ouvir, e que esboçaremos a seguir:

1.3.2.1. interpretante emocional:

1.3.2.1.1. qualidade de sentir – imagine que o ouvinte está num concerto e num certo

momento ele começa a sentir sono; nesse estado de sonolência os sons são captados como

meras qualidades de sentimento num todo indiscernível, onde a consciência fica desarmada,

aberta e passiva, sem discriminar e muito menos julgar.

53

1.3.2.1.2. comoção – de repente, um súbito sforzando nos metais junto com as

percussões fazem o coração desse ouvinte acelerar, e ele fica tenso com os músculos rígidos,

sem saber direito aquilo que o atingiu.

1.3.2.1.3. emoção – logo em seguida a música se acalma, as cordas entram suavemente

e a flauta toca uma melodia com notas longas; o ouvinte cutuca o amigo na poltrona ao lado e

diz: “que lindo, me dá uma sensação de paz”... Essa emoção pode ser compartilhada, já que se

trata de hábitos ou convenções culturais.

1.3.2.2. interpretante energético:

1.3.2.2.1. corpo tomado – é a música que sai do próprio corpo, como nos rituais

indígenas onde os movimentos do corpo e a música se fundem.

1.3.2.2.2. contigüidade entre a música e o corpo – é a música que estimula o corpo a

se movimentar, quando um ouvinte começa a marcar a pulsação da música, com os pés ou a

cabeça.

1.3.2.2.3. dança coreografada – é a música servindo como um modelo para certos

tipos de dança, como se os movimentos corporais traduzissem os ritmos em realidade plástica

e visual.

1.3.2.3. interpretante lógico:

Esta modalidade visa “a apreensão intelectual do significado de um signo” (PEIRCE,

apud SANTAELLA, 1995:107). É uma escuta que busca as marcas deixadas pelo compositor

por meios de uma minuciosa elaboração. A revelação dos propósitos do autor e dos processos

envolvidos na construção da obra exige do ouvinte um conhecimento prévio das regras

interpretativas, uma familiaridade com as várias facetas do objeto dinâmico do signo, ou seja,

experiências colaterais que habilitam o intérprete a decodificar nas inscrições do fundamento

desse signo (nas texturas, contrastes de intensidades, mudanças de timbres, etc) um sistema de

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leis subjacente aos limites circunscritos em seu objeto imediato, que é o que ele consegue

apreender durante a audição num determinado contexto.

1.3.2.3.1. hipotético – trata-se de “composições que romperam com quaisquer sistemas

de referência preestabelecidos e, desse modo, na experimentação com os materiais sonoros

encontram formas inusitadas, (...) formas que se desmancham antes de chegarem a se

instaurar. Isso coloca o ouvinte em uma situação de incerteza, imprevisibilidade e contínuas

conjecturas quanto ao desenvolvimento da música” (SANTAELLA, 2001:84). É nesta

modalidade do interpretante lógico que ocorre de modo mais efetivo o tipo de escuta proposta

por Ferneyhough diante de uma obra complexa.

1.3.2.3.2. relacional – trata-se da escuta atenta aos mínimos detalhes dos

acontecimentos sonoros, “capaz de transformar o ouvido em mil olhos que visualizam as

estruturas e formas da música” (ibid.). Escuta das causas e efeitos, das associações, do

estabelecimento de relações funcionais.

1.3.2.3.3. especializada – essa é a escuta que julga e avalia a música como forma de

pensamento através dos sistemas de referência já estabelecidos, historicamente ou nos

manuais. É aquela escuta que consegue perceber tanto o estilo de determinada época ou de

determinado compositor, quanto as formas preestabelecidas: sonata, rondó, valsa, fuga, etc.

Esses três últimos modos de escuta delimitam qual o universo perceptivo

mais adequado àqueles que desejam compreender de modo mais objetivo o significado latente

inscrito no interpretante imediato da música de Ferneyhough. Mais especificamente as duas

primeiras correspondem exatamente aos propósitos do compositor para uma escuta de

atividade intensa, labiríntica e “laboríntica”; trata-se de “encorajar o ouvinte a mover-se

rapidamente, e como resultado, encontrar-se constantemente suspenso pela contraintuitiva

viscosidade da apresentação de informações” (FERNEYHOUGH, apud FERRAZ, 1998:243).

55

Agora vamos analisar como ocorre o processo da semiose na percepção. Da mesma

forma que se dá na ação do signo uma correlação entre três elementos, a percepção em Peirce

também vai operar triadicamente, superando a oposição binária entre o mundo externo e a

representação interna com a introdução de um terceiro elemento funcionando como mediador

entre eles: o signo.

Aquilo que corresponderia ao mundo real, aos estímulos, Peirce chama de

percepto, tomando a posição do objeto dinâmico. A partir do momento em que o percepto é

convertido em um fato da consciência, entra em jogo o julgamento perceptivo, que traduz o

percepto em percipuum. É o objeto dinâmico filtrado pelo nosso sistema sensorial fisiológico

e neurológico que possui limitações bastante peculiares de acordo com cada indivíduo: desde

a capacidade de captação do aparelho receptivo até os modos de eleger, sintetizar e reelaborar

os elementos percebidos. O percipuum corresponde então ao objeto imediato do signo, ou

seja, um recorte limitado dos perceptos. E o julgamento perceptivo corresponde ao próprio

signo, o elemento mediador entre aquilo que dispara e determina a percepção, o percepto, e

aquilo que percebemos já como um produto mental, o percipuum. É uma propriedade inata

que possuímos, espécie de esquema conceitual e geral de interpretação que permite a

identificação e o reconhecimento dos fenômenos externos: os perceptos (cf.: SANTAELLA,

1993). Assim, tudo o que percebemos como sendo a “realidade” já são signos filtrados por um

juízo perceptivo, “um ato da consciência no qual reconhecemos uma crença, um ato

inteligente segundo o qual devemos agir quando se der a ocasião” (PEIRCE, apud FERRAZ,

1997:70). Tendo a natureza de uma inferência abdutiva, ela é “a adoção provisória de uma

hipótese especulativa” (ibid.).

56

Se o percepto corresponde ao objeto dinâmico; o percipuum ao objeto

imediato; e o julgamento perceptivo ao signo; aonde se encaixaria nesse esquema a posição

do interpretante? De acordo com Santaella (1993:101-102) o interpretante corresponde a uma

interpretação do juízo perceptivo que se dá na forma de sentenças expressivas do tipo: “Este

carro parece vermelho”, tendo em vista que “os perceptos são tão imediatamente traduzidos

em julgamentos que, na sua instantaneidade, não podem equivaler a sentenças” (ibid.).

Sintetizando, teríamos o seguinte esquema: [figura 3]

figura 3: esquema perceptivo

Quando Ferneyhough propõe uma espécie de “suspensão” de nossas faculdades

perceptivas, em relação aos fenômenos limites, isso corresponderia a uma suspensão dos

nossos julgamentos perceptivos. Neste sentido é possível associar uma complexidade no

processo perceptivo quando nos deparamos com perceptos que não se encaixam em nenhum

esquema conceitual apto a convertê-los em percipuuns reconhecíveis. Os juízos perceptivos

são forçados então a lançar hipóteses momentâneas ad hoc. Trata-se de tipos de signos

ambíguos que tendem a deslocar a todo instante a natureza de sua identidade, sempre nos

limiares daquilo que podemos reconhecer logicamente.

57

Veremos no próximo capítulo que Ferneyhough distingue três categorias

perceptivas em relação à estrutura musical: (1) textura, (2) figura e (3) gesto. Numa leitura

bastante pertinente, Ferraz (1997) traça uma articulação minuciosa entre estas três categorias

de Ferneyhough e as três categorias fenomenológicas de Peirce: Primeiridade (textura),

Secundidade (figura) e Terceiridade (gesto). Dessa leitura podemos inferir consequentemente

uma relação análoga, mas associando agora as categorias de Ferneyhough aos aspectos

icônicos (textura), indiciais (figura) e simbólicos (gesto) do julgamento perceptivo, primeiro

elemento lógico da semiose da percepção (cf.: SANTAELLA, 1993:107-110).

A textura atuando no nível do julgamento perceptivo icônico, a escuta só

poderá atuar de forma hipotética (1.3.2.3.1); a figura atuando no nível do julgamento

perceptivo indicial, a escuta será relacional (1.3.2.3.2); e o gesto atuando no nível do

julgamento perceptivo simbólico, a escuta será especializada (1.3.2.3.3).

Trata-se então de uma complexidade que pode ser caracterizada através de

uma elaboração multifacetada de um percepto que ora se comporta como textura

(primeiridade), ora como figura (secundidade) e ora como gesto (terceiridade).

Consequentemente os nossos julgamentos perceptivos não se acomodam a uma audição

unilateral e guiada pelos esquemas conceituais já enraizados numa experiência habitual,

prontas para converterem os percipuuns numa rede de classes fixas e identificáveis. Ao

contrário disso, cada ouvinte deve construir conjecturalmente seus próprios pontos de

referência forçando a cada momento uma flexibilidade de opções ora icônicas, ora indiciais e

ora simbólicas, jogando com uma cadeia de signos ambíguos próprios de uma escuta das

complexidades.

* * *

58

Capítulo III

Paradoxes and Oxymorons

This poem is concerned with language on a very plain level.

Look at it talking to you. You look out a window

Or pretend to fidget. You have it but you don’t have it.

You miss it, it misses you. You miss each other.

The poem is sad because it wants to be yours, and cannot.

What’s a plain level? It is that and other things,

Bringing a system of them into play. Play?

Well, actually, yes, but I consider play to be

A deeper outside thing, a dreamed role-pattern,

As in the division of grace these long August days

Without proof. Open-ended. And before you know

It gets lost in the stream and chatter of typewriters.

It has been played once more. I think you exist only

To tease me into doing it, on your level, and then you aren’t there

Or have adopted a different attitude. And the poem

Has set me softly down beside you. The poem is you.

(John Ashbery, 1927-) Paradoxos e Oxímoros Este poema se ocupa da linguagem num nível muito simples. Observe-o falando com você. Você observa além de uma janela Ou finge se inquietar. Você o entende. Você o entende mas você não o entende. Você o perde, ele perde você. Vocês se perdem um do outro. O poema é triste porque ele quer ser seu. E não pode. O que é um nível simples? É aquele e outras coisas mais, Pondo um sistema deles em jogo. Jogo? Bem, na verdade, sim, mas eu considero jogo como sendo Uma coisa exterior mais intensa, um fantasioso papel-padrão, Como na divisão de virtudes destes longos dias de agosto Sem garantias. Ilimitado. E antes que você o perceba Ele se perde no vapor e tique-taque das máquinas de escrever. O jogo foi feito mais uma vez. Acho que você só existe Pra me fazer querer jogá-lo, no seu nível, e depois nem ligar Ou ter adotado uma atitude diferente. E o poema Me registrou suavemente a seu lado. O poema é você.

(tradução de DONY ANTUNES. In.: CONCAGH, Viviana Bosi. John Ashbery: um módulo para o vento. São Paulo: Edusp, 1999. pp.13-14)

59

3. Complexidade e Composição:

A dialética entre a escrita automática e a música informal

3.1. Complexidade e a música figural

Ferneyhough distingue três áreas fundamentais e não excludentes de

categorias perceptivas das quais podemos entender as atividades do funcionamento interno de

uma estrutura musical: (1) textura, (2) gesto e (3) figura.

A textura pode ser caracterizada como uma forma de atividade global

reconhecível por uma consistência de elementos equivalentes e correspondentes que são

tomados como um todo. É possível identificar categorias de textura através de certas

configurações típicas ou tendências análogas de transformações processuais

(FERNEYHOUGH, 1990:23). Por exemplo, na parte final de seu 2º quarteto de cordas

(1980), onde se configura uma heterofonia de glissandos e harmônicos [figura 4]. Enfim,

trata-se perceptivamente do “substrato estocástico irredutível da música; é a precondição

mínima para que haja qualquer potencial posterior de diferenciação relevante” (ibid.; e

FERRAZ, 1997:63-64).

60

figura 4: final do Quarteto de cordas nº 2

O gesto é um objeto musical com um delineamento global que pertence a

“classes particulares de objetos em virtude de seus membros se referirem a um domínio

semântico particular, um significado estabelecido convencionalmente” (ibid). Muitas vezes

associa-se essa semanticidade com certos estados evocados emocionalmente, num tipo de

função “expressiva”. Por exemplo, um gesto de dor e angústia: [figura 5]

figura 5: gesto de dor e angústia

Este gesto é tratado como uma mônada expressiva através de suas

características gerais (natureza harmônica e perfil cromático descendente) e funciona como

61

uma espécie de veículo de comunicação (um vocábulo) para denotar significados emotivos.

Havendo um consenso de hábitos de escuta estabelecido culturalmente e historicamente, basta

utilizar-se dessas características gerais para que haja uma relação de “identidade” ou

envolvimento recíproco entre a obra e o ouvinte. Mas segundo Ferneyhough, este tratamento

do objeto musical recorre a gestos que já foram usados no passado, e por isso já desgastados,

fora de contexto. Apoiando-se em “falsas imediaticidades”, certas tendências da música atual

(como a nova simplicidade ou mesmo o minimalismo de P. Glass) apostam ainda no jogo

dramático de outras épocas como garantia de serem “compreendidas”. Supõe-se que haja já

um sentido inato dentro da obra, as “expressões” do compositor, e que para o ouvinte basta

simplesmente se deixar levar numa escuta passiva e confortável. Assim, quanto mais um gesto

“comunica” algo, menos o ouvinte é forçado a participar de uma interação ativa na construção

do sentido da obra.

A postura de Ferneyhough é outra. Ele busca um ouvinte crítico e disposto a

vivenciar o seu próprio tempo: o tempo das complexidades. É por isso que ele vai propor uma

outra forma de tratar o gesto, não mais como uma entidade que se remeta a uma

referencialidade externa a seus próprios constituintes; mas tomando estes mesmos elementos

como uma potência criativa para gerar infinitamente novos gestos e novas expressões,

fazendo-os vivenciarem também, cada subcomponente individual, o seu próprio tempo: “o

tempo das figuras”.

Ferneyhough distingue a figura do gesto no que diz respeito ao potencial

interno que compõe cada objeto musical; são aqueles elementos que criam os gestos e as

texturas: as linhas de forças paramétricas, ou seja, certas tendências direcionais do contorno

das notas, da estrutura rítmica, dos níveis dinâmicos, dos contrastes timbrísticos, das relações

de simetria, irregularidade, diferenciação, etc. Se o gesto significa algo em função de

“referências a hierarquias específicas de convenções simbólicas” estabelecidas

62

arbitrariamente, a figura será o “elemento da significação musical composto inteiramente de

detalhes definidos por sua disposição num determinado contexto” (FERNEYHOUGH,

1993a:11-12; e FERRAZ, 1997:63).

Por exemplo, no primeiro compasso de Lemma-Icon-Epigram (1981) [figura

6] um conjunto de notas (uma “célula gerativa”) é posto arbitrariamente sem nenhuma

preocupação formal, ou plano pré-concebido. A partir disso, esse material básico (que poderia

ser qualquer outro possível) vai se transformando sistematicamente, num processo de

“deformação”, partindo de seu interior para fora em “sucessões vertiginosas de perspectivas

sobre um mesmo material” (cf.: TOOP, 1990:55-58).

figura 6: primeiro compasso de Lemma-icon-epigram

Diferentemente da técnica de variação tradicional, Ferneyhough utiliza o

que ele chama de “intensificação figural”: consiste num processo em que uma simples figura

periódica adquire um novo perfil pela ruptura dessa periodicidade, onde cada linha

paramétrica é tratada individualmente por uma série de transformações (cf.: TOOP, 1990):

[figura 7]

63

figura 7: intensificação figural

a) altura: deslocamento do registro (oitavas e segundas) de certas notas; b) ritmo: acelerações e retardações momentâneas, mais inserções de pausas; c) dinâmica: contrastes súbitos de intensidade; d) articulação: jogos de modos de ataque (legattos, sttacatos, martelattos).

Trata-se então de atitudes composicionais que tendem a enfatizar o

significado, a atividade, o aspecto ou a energia figural de determinados objetos ou eventos

sonoros concretos através do emprego consciente de categorias perceptuais, visando a “vida

futura” dos gestos, na medida em que seus elementos paramétrico-estruturais vão se

desdobrando, se recombinando e se “solidificando” em outros gestos, no que Ferneyhough

chama de “energia formal”: “energia segundo a qual os sons se temporalizam, se unem,

continuando ou interrompendo-se uns aos outros” em densas confrontações de tendências e

processos (linhas de força) de orientação linear que ora se chocam, ora se fundem, se

sobrepõem, etc (FERNEYHOUGH, 1992:5-6). Através desse pensamento construtivista,

tendo a figura como a instância mediadora da escritura composicional — num constante jogo

de derivação e transformação de acontecimentos e processos que transitam entre um e outro

64

—, Ferneyhough configura um tipo de discurso temporal que explora cada momento

particular (o presente). Tornando visível o próprio movimento de um ponto ao outro, através

da sobrecarga de energia figural que se desprende na passagem entre os acontecimentos, a

percepção do tempo imanente à obra permanece em tensa relação ao tempo original que

ocorre.

Por isso que, à primeira “vista” (escuta), a sua obra se caracteriza pela alta

densidade e dinamismo de informações que se apresentam num curto espaço de tempo, sendo

que a velocidade com que as mudanças entre essas informações ocorrem é extremamente

rápida; por isso a diversidade e variedade de materiais que sobem à superfície, ora se

configurando, ora se desfigurando insistentemente numa instabilidade frenética de pontos de

referência que não se deixam capturar, cujo único referencial é a própria imprevisibilidade

dos fenômenos. Segundo o compositor, esse aspecto da “rapidez em demasia” dos fenômenos

num espaço de tempo incomum, é uma das estratégias postas conscientemente para

“animar o ouvinte a um tipo de compreensão diferente do que seja a ‘velocidade’, posto que o ouvido perceberá idealmente essa distância temporal entre um evento e a sua reflexão posterior como um motivo para refletir a partir da contemplação da obra sob uma lupa, quase como parte integral da obra. (...) É óbvio que este processo deve ser acompanhado por um ouvinte ativo, tanto para as diferenças dinâmicas quanto para a reconstrução da matéria apresentada” (FERNEYHOUGH, 1992:9-10).

* * *

65

3.2. Complexidade e os “cárceres da invenção”:

O ritmo, o cálculo e as operações seriais

“É importante lembrar que meu principal interesse sempre esteve no domínio do ritmo e, mais especialmente, como a manipulação rítmica e a organização formal podem ser vistas como mutualmente interdependentes” (FERNEYHOUGH, apud MALT, 1999:66).

Observando esta citação de Ferneyhough, como ele opera esse tratamento

do ritmo em conexão mútua e interdependente em relação à organização formal? Segundo

Malt (1999:104), o tempo e o ritmo são concebidos por Ferneyhough de acordo com as

seguintes características:

� como um espaço discreto e finito (um espaço de durações), formalizado a partir de

manipulações simbólicas através de subdivisões e multiplicações discretas das unidades

de tempo (“encapsulações”);

� os compassos são utilizados enquanto segmentos temporais de diversos tamanhos, como

forma de controlar a evolução da densidade dos eventos (“cartuchos”ou “casulos”);

� esta noção de ‘densidade’ está associada a uma relação entre as subdivisões por unidades

de tempo: das quantidades de impulsos discretos num dado espaço-temporal;

� os esquemas rítmicos se fundam em certas relações de proporções originadas sob um

esquema fundamental por diversas operações combinatórias: permutações, interpolações,

incrustrações, sobreposições, filtros, etc.

Ferneyhough estabelece inter-relações entre a estrutura métrica (unidades de

tempos) e ritmos iterativos (densidade de impulsos) através de relações de proporções as mais

diversas possíveis a fim de operacionalizar uma série de níveis de compressão, distorção,

convergência ou interferência mútua calculáveis a partir do grau em que a sensação do tempo

manifesto é mantido ou subvertido pela específica tactilidade dos pulsos de um espaço

66

métrico particular (FERNEYHOUGH, 1995a:50-51). A integração e contextualização

cuidadosa entre as várias camadas de informações que se abrem a partir destes princípios

podem garantir um sentido claro de inter-referências formais e estruturais, afirma o

compositor.

Por exemplo, de uma simples sobreposição de dois “ciclos de recorrência”

de valores desiguais entre metro e densidade de impulsos, é possível extrair uma série de

conseqüências macro e micro-formais:

a) ciclo de 4 fórmulas de compasso (3/8-4/8-2/8-5/8): [figura 8]

figura 8: ciclo de 4 compassos (“casulos”)

b) ciclo de 3 grupos de densidades de impulsos (2-5-3). Através desse processo de

defasagem (4x3) entre essas duas instâncias pode-se obter, segundo Ferneyhough,

resultados interessantes de “curvatura do espaço perceptual”: [figura 9]

figura 9: sobreposição de 2 ciclos de recorrência desiguais

Após o reencontro dos dois ciclos (total: 12 compassos) é possível demarcar

um “período”, enfatizando certas correspondências de estruturas formais: níveis de hierarquia,

relações de aceleração e retardamento, simetrias, retrogradações, etc.

67

Pode-se ainda acrescentar um outro nível de subdivisão dos impulsos sobre

o exemplo acima, utilizando o ciclo (2-4-3) para determinar o lugar das subdivisões e o ciclo

(3-4-2-5) para determinar o número de subdivisões: [figura 10]

figura 10: subdivisão dos impulsos (espécie de relação quase-canônica, já que ocorre uma “imitação” das mesmas proporções numéricas [3-4-2-5] entre o metro a as subdivisões num nível mais rápido)

Essa estrutura rítmica pode servir apenas como uma “armadura temporal”,

um “esqueleto de coordenação e orientação” para processar novos ciclos de recorrência dos

outros diversos parâmetros, como as alturas, o registro, intervalos, intensidades, tablatura

instrumental, etc. Isso caracteriza a tendência do compositor à manipulação de objetos

discretos, passíveis de parametrização20, ou seja: uma manipulação de um index abstrato (uma

série de números) que permita representar o espaço musical com possibilidades ilimitadas de

aplicação aos mais diversos materiais musicais (linhas de força paramétrico-figurais) (cf.:

MALT, 1999).

Após a formalização desse espaço rítmico, um dos vários procedimentos

utilizados por Ferneyhough é uma espécie de polifonia simulada sobre uma linha melódica

(técnica de escritura usada já desde Bach até Bério), gerada através da superposição de várias

camadas paralelas de alturas. Imagine-se um quadro de linhas horizontais que vai sendo

cruzado em zig-zag (cf.: NICOLAS, 1987:59). Dando continuidade ao exemplo anterior, os

próximos passos poderiam ser ilustrados da seguinte maneira:

20 Ferneyhough amplia aquilo que se entende tradicionalmente por “parâmetros musicais”, considerando um parâmetro tudo aquilo que: a) “pode ser quantificado de forma suficientemente consistente para permitir modulações graduais e discretas”, e b) “é um componente suficientemente claro da gestalt que o contém para garantir sua adequada percepção em contextos posteriores” (cf.: FERNEYHOUGH, 1990:24).

68

a) definição de 4 séries partindo da permutação entre os números21 (2-3-4-5):

1. 3-4-2-5-2-4-3 2. 4-5-3-2-3-5-4 3. 2-3-5-4-5-3-2 4. 5-2-4-3-4-2-5

b) definição de 4 registros para cada série acima (textura pontilhista):

1. grave 2. médio-grave 3. médio-agudo 4. agudo

c) cada série determinará não só a entrada de cada nota, mas também as próprias notas (cf.:

nota 21) sobre a armadura temporal, seguindo este esquema: [figura 11]

figura 11: superposição de 4 camadas de alturas em 4 registros diferentes

d) o resultado final destes 4 compassos ficaria assim: [figura 12]

figura 12: resultado final (onde houver mais de uma nota ocorrendo ao mesmo tempo, sempre a mais aguda será transformada em apojatura)

21 As séries ou conjuntos de números servem como referência para a determinação de diversas aplicações: fórmula de compasso, quantidade de impulsos, posição ou ordenação dentro de um espaço, etc. Em relação às notas e intervalos, eles podem estar associados de acordo com a teoria pós-tonal dos conjuntos: 0=C; 1=C# ou um semitom; 2=D ou dois semitons; 3=Eb ou três semitons; 4=E ou quatro semitons; etc (cf.: FORTE, A. (1973). The structure of atonal music. London: Yale University Press).

69

É interessante observar como Ferneyhough atinge um resultado complexo

através da acumulação de vários níveis de subdivisão, filtragem e sobreposição de diversos

processos lineares relativamente simples. As seções 3 e 5 da peça Superscriptio (1981) para

piccolo solo foram elaboradas com base em princípios semelhantes ao exemplo exposto (cf.:

TOOP, 1995). Mas aqui não levamos em consideração os outros parâmetros (como as

articulações, as dinâmicas, o dedilhado, etc), o que intensificaria significativamente o nível

das inter-relações (complexidade) entre as camadas paramétricas. Além disso, Ferneyhough

opera com séries mais extensas de números.

Por isso, devido ao tempo despendido para realizar os cálculos e à

dificuldade de se manipular séries com muitos números, desde a década de 90 Ferneyhough

começou a trabalhar com o auxílio do computador22, utilizando os recursos do programa

Patchwork. Especificamente em relação ao tratamento do ritmo, a representação interna do

Patchwork opera de modo análogo ao pensamento de Ferneyhough. A configuração das

estruturas rítmicas é representada por uma lista de números colocados entre parênteses

(“encapsulados”) indicando os diversos níveis em relação ao metro e às subdivisões dos

tempos. Por exemplo, a representação da estrutura dos compassos no exemplo anterior [figura

8], seria assim: ( (3 (1 1 1)) (4 (1 1 1 1)) (2 (1 1)) (5 (1 1 1 1 1)) ). Para modificar a densidade

dos impulsos [figura 9], basta alterar a quantidade do número 1 nos parênteses de dentro: ( (3

(1 1)) (4 (1 1 1 1 1)) (2 (1 1 1)) (5 (1 1)) ). E para subdividir esses impulsos [figura 10], abre-

se um novo nível entre parênteses para os impulsos que serão subdividos, assim: ( (3 (1 (1 (1

1 1)))) (4 (1 1 1 (1 (1 1 1 1)) 1)) (2 (1 (1 (1 1)) 1)) (5 ((1 (1 1 1 1 1)) 1)) ).

22 Malt denomina esta atividade por EMAO: écriture musicale assistée par ordinateur (escritura musical assistida por computador), ou seja: “todo o conjunto de processos que auxiliam o compositor na determinação das posições dos diversos objetos no espaço musical” (MALT, 1999: 62-63).

70

Além de gerar ritmos complexos, o Patchwork funciona como uma espécie

de super-calculadora que permite realizar uma infinidade de operações, desde a simples

transposição e inversão de intervalos até algoritmos complexos de diversos modelos

estocásticos. Assim, uma série de patches (módulos gráficos) pode ser criada com funções

determinadas, de acordo com as operações desejadas pelo compositor. A série dos módulos

denominados MUZAK (da biblioteca Combine, desenvolvidos conjuntamente por

Ferneyhough e Malt de 1993 a 1996) calculam espécies de transposições, intercalações e os

famosos “filtros”.

Vejamos alguns exemplos desses procedimentos (cf.: MALT, 1999:65-72):

� MUZAK 2: este módulo calcula um tipo especial de transposição onde uma série inicial

(A) é transposta de acordo com uma outra série (B) de intervalos após um certo número de

notas determinado por uma terceira série de valores (C). [figura 13]

figura 13: MUZAK 2

71

� MUZAK 3: este módulo calcula um tipo de intercalação23 entre duas séries distintas.

Define-se uma série (A) e uma outra série contrastante (B); para cada série define-se um

conjunto de valores diferenciados — série (A1) e série (B1); a série (A) será intercalada

pela série (B) de acordo com um número específico de notas determinadas pelas

respectivas séries (A1) e (B1). [figura 14]

figura 14: MUZAK 3

� MUZAK 4: este módulo calcula um tipo de intercalação e transposição simultaneamente.

Define-se uma série inicial (A). Após cada elemento desta série, intercalar com o mesmo

elemento transposto de acordo com outra série (B) de intervalos. [figura 15]

23 Esta técnica foi desenvolvida por Klaus Huber (interlocking), professor de composição de Ferneyhough (cf.: MENEZES, 2002:422).

72

figura 15: MUZAK 4

� MUZAK 7: este módulo calcula um tipo de “filtro”, procedimento muito usado por

Ferneyhough24. Esse processo é semelhante aos filtros utilizados na síntese de sons

manipulados eletronicamente: ele “deixa passar” apenas os elementos determinados pelo

filtro. Por exemplo, dada uma série inicial (A), define-se uma série-filtro (B) contendo os

elementos que você deseja manter ou acrescentar na série inicial (já que se um elemento

de (A) pertencer a (B), ele permanece exatamente onde está; e se um elemento de (A) não

pertencer a (B), ele é substituído por um de (B) seguindo a ordem original da série-filtro).

Assim, a nova série filtrada deve conter apenas os elementos determinados pela série-filtro

(B), mas numa nova ordenação determinada pela série inicial (A). [figura 16]

24 Pierre Boulez menciona em A música hoje, de 1963, esse processo de “filtragem” das freqüências enquanto um “processo mecânico” para gerar as “séries defectivas”: “segundo certas leis, uma nota, ou um grupo de notas, será modificada em outras notas ou grupos de notas; ela — ou ele — será, eventualmente, omitida: o que imprimirá em baixo-relevo, por assim dizer, a estrutura assim desaparecida. Esta filtragem se aplica também às relações numéricas; ela prestará um grande serviço para fornecer, durante certo tempo, estruturas negativas, até o momento em que elas reaparecerão positivas, com uma força bem maior” (BOULEZ, 1986:80-81). Menezes chama a atenção para o fato de o compositor Bruno Maderna ter utilizado esse tipo de procedimento em sua obra Serenata nº 2, já por volta de 1953 (cf.: MENEZES, 2002:426).

73

figura 16: MUZAK 7 (filtro)

* * *

Enfim, o Patchwork não é um programa de composição: ele não cria nada;

apenas se adequa satisfatoriamente enquanto suporte para a escritura composicional,

auxiliando no preparo e manipulação de uma série ilimitada de operações e procedimentos.

Todo esse formalismo abstrato faz de Ferneyhough um herdeiro direto do

serialismo da décaca de 50 e 60. No entanto, é um formalismo “informal”. Seu pensamento

paramétrico não parte de uma determinação hierárquica a priori de toda a estrutura da obra.

Pelo menos, não no sentido de estabelecer desde o início a posição exata de cada elemento de

acordo com um princípio unificador. Muitas vezes ele parte de uma grade pré-composicional,

um tipo de plano geral ou mapa dos acontecimentos que servirá apenas como um guia de

estratégias de restrições (constraints) contínuas, como um impulso para forçar a “massa

amorfa de volição criativa” a se subdividir para passar (cf.: FERNEYHOUGH, apud TOOP,

1995:7).

74

Assim, se um objeto musical (a tercina no primeiro compasso da figura 10,

por exemplo) for o resultado de evidências de processos já preestabelecidos, ou “mortos”,

tem-se aquilo que Ferneyhough denomina como escrita automática. Mas a cada passo o

compositor pode ir alterando, modificando e intensificando figuralmente a estrutura de acordo

com o contexto local, com critérios mais espontâneos (por exemplo, a tercina da figura 6, no

primeiro compasso de Lemma-icon-epigram). É o tratamento informal sobre o material, que

ocorre no ímpeto do momento, no ato da criação. Ferneyhough caracteriza essa dinâmica que

oscila constantemente de um extremo ao outro de “dialética entre o automático e o informal”

(cf.: FERNEYHOUGH, 1987 e 1999; e FERRAZ, 1998:222).

A complexidade de sua obra poderia estar associada muito propriamente à

sua escrita automática derivada do pensamento serial. Entretanto, vimos que não são os

procedimentos em si que garantem tal complexidade, e sim o modo labiríntico com que

Ferneyhough os articula: por acumulação e sobreposição de diversos planos ou camadas de

séries paralelas, de diversos níveis paramétricos totalmente heterogêneos uns dos outros e que

posteriormente são costurados, recortados, reassociados e recombinados de acordo com

critérios formais ou informais, onde qualquer ponto dos planos, das séries, conectam-se a

qualquer outros pontos de qualquer outra série, sem se remeter a um único ponto de origem.

Neste sentido, a sua música transcende a complexidade de um serialismo “ortodoxo”,

inaugurando de fato, com uma música informal e plurifuncional, uma “nova complexidade”.

75

Capítulo IV

“As características tidas como analíticas são, em si, pouco passíveis de análise. Nós as apreciamos em seus efeitos. Delas sabemos que, entre outras coisas, são sempre para quem as possui em alto grau uma fonte do maior prazer. Como o homem forte exulta em sua habilidade física, deleitando-se com exercícios que façam seus músculos agirem, também o analista se glorifica naquela atividade moral que desenreda. Ele deriva prazer até das mais triviais ocupações que possam trazer seus talentos à tona. Gosta de enigmas, de advinhações, de hieróglifos; exibindo em cada uma das soluções um grau de acumen que parece, às mentes comuns, sobrenatural. Seus resultados, trazidos pela alma e essência do método, têm, na verdade, todo um ar de intuição.”

(Edgar Allan Poe (1809-1849) - Os assassinatos da rua Morgue)

76

4. Complexidade e Análise Musical:

Por uma análise da complexidade em “La chute d’icare”

Um problema aparece logo de início na tentativa de uma análise da obra de

Ferneyhough: como analisar a sua música sem o auxílio de seus esboços e manuscritos?

Sendo assim, uma advertência faz-se necessária antes da apresentação da análise

propriamente dita. Segundo Menezes (2002:425), “a alta complexidade de Ferneyhough é em

grande parte inacessível à análise pelo fato de escamotear, nos meandros da especulação

estrutural, os caminhos trilhados pelo compositor em sua partitura”. Os pouquíssimos

exemplos descritos no capítulo anterior, em relação aos procedimentos composicionais de

Ferneyhough, já são suficientes para nos certificarmos desta problemática.

O processo composicional de Ferneyhough não parte de um ponto pré-

determinado, mas de caminhos simultâneos. É comum ele iniciar várias peças ao mesmo

tempo, transitando alternadamente entre elas (cf.: TOOP, 1994) e acumulando um número

significativamente grande de anotações, esboços e manuscritos de caráter híbrido. E além das

inúmeras “grades”, ou “constraints” (restrições) impostas passo a passo durante a elaboração

das obras — que podem variar desde o nível global, o da macro-forma, até os mínimos

detalhes locais — , para Ferneyhough os “erros” também podem ser justificados, dependendo

da maneira em que esse “erro” será utilizado posteriormente, mudando totalmente a

pespectiva direcional daquele trecho. É o espaço aberto para o acaso, o imprevisível e o

indeterminado em seu processo, que caracteriza a sua espontaneíssima escrita informal.

Considerando esses fatores, essa análise não pretende priorizar as sutilezas

técnicas dos procedimentos e dos materiais utilizados pelo compositor numa tentativa de

descrever minuciosamente as diversas etapas de sua construção (se é que isso é possível). Um

77

ou outro processo mais evidente pode ser identificado; mas o principal foco será dado aos

aspectos mais perceptivos tendo em vista as diversas fases de transformações e

direcionalidades entre um evento e outro.

Se a escrita de Ferneyhough parte da noção de ‘figura’ como o principal

elemento de articulação da composição, isso não quer dizer que ele ignora o ‘gesto’ e a

‘textura’. Muito pelo contrário, é justamente através da ‘figura’ que ele consegue

potencializar ainda mais tanto o ‘gesto’ (enquanto elemento intermediário de referências

múltiplas e ambígüas), quanto a ‘textura’ (enquanto elemento de consistência macro-formal,

unindo a diversidade e heterogeneidade das micro-partículas num todo coerente).

Todo o racionalismo estrutural de sua escrita figural é um recurso

estratégico para atingir um resultado múltiplo, ambígüo, complexo e altamente orgânico para

a percepção. Se à “primeira escuta” um certo ouvinte não consegue perceber mais do que uma

série de sons desordenados, sem nexo, espalhados ao acaso num espaço monótono,

redundante e indiferenciado, as razões podem ser a seguintes: 1ª) não existe uma “primeira

escuta” suficiente que consiga dar conta da riqueza de conexões e relações presentes na obra

(e que na verdade são quase inesgotáveis) — as interconexões vão sendo construídas

(trilhadas, mapeadas) e acumuladas para cada ouvinte numa soma de muitas e muitas escutas;

2ª) exige-se do ouvinte uma concentração hiper-ativa (num segundo de desvio perdem-se

muitas relações), além de uma capacidade de atenção dividida (simultânea) incomum, ou seja:

um desafio perceptivo beirando os limiares da apreensão auditiva.

Como diz Jonathan Harvey (1979), a obra de Ferneyhough possui uma

espécie de “profundidade de perspectiva” gerada pela sobreposição de diversas camadas

diferenciadas, configurando um tipo muito peculiar de “polifonia paramétrica”. Ele diz ainda:

78

“Por mais acurada que seja a escuta dos detalhes dessas obras lá há uma estrutura com quase o mesmo grau de sofisticação das que se projetam nos eventos de larga-escala. Você pode fechar e ampliar o foco de sua percepção à vontade. Todos os focos vão estar contidos com grande familiaridade em uma percepção integral. É tudo isso acima que distingue Ferneyhough da maioria dos seus contemporâneos: a ocorrência de uma profundidade estrutural significativamente maior” (HARVEY, 1979.:725).

Partindo de uma classificação geral sobre as texturas e divisões macro-

formais, e de uma classificação dos diversos gestos que compõem essas texturas, será possível

identificar as diversas fases (e facetas) perceptivas da obra, assim como as suas formas de

inter-relacionamento. É interessante observar que para o compositor a noção de PROCESSOS

é mais importante que o problema da FORMA (cf.: TOOP, 1994:156). Vemos “ressoar” aqui

de modo bastante significativo a influência do pensamento filosófico de Deleuze —

comentando a respeito da pintura de Francis Bacon — numa das citações prediletas de

Ferneyhough: “En art, et en peinture comme dans la musique, il ne s’agit pas de reproduire ou

d’inventer des formes, mais de capter des forces”25 (DELEUZE, in: TOOP, op.cit.).

* * *

Inicialmente faremos uma breve contextualização da obra intitulada “La

chute d’icare”, iniciada em 1987 e concluída em 1988. Este título se remete ao quadro

“Paisagem sobre a queda de Icarus” [anexo 1], do pintor renascentista Pieter Brueghel

(1525?-1569). Desde a década de 70 Ferneyhough começou a interessar-se pelas diversas

formas de interação entre a sua experiência composicional e os aspectos extra-musicais, como

a pintura, a literatura, a filosofia e a ciência. Não se trata de tentar reproduzir em termos

25 “Em arte, tanto na pintura quanto na música, não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas sim de captar as suas forças” (in: FERRAZ, 1998:215).

79

sonoros as sensações visuais, verbais e abstratas, mas de estimular através do conflito entre

essas diversas disciplinas espirituais uma espécie de “alquimia” de qualidades de sensações:

fonte de fertilizações de formas hipotéticas ou modelos de processos formais concretos.

Observando a pintura de Breughel, Ferneyhough obteve o insigh inicial que

o levou à concepção geral da obra:

“(1) O material musical da abertura explode em algo completamente já formado, seu processo geracional ainda por vir, autobiografia fictícia. (2) A erosão gradual dessa substância repetitiva e claramente delineada leva a uma série de tableaux que são apenas revelados através dos saltos no material inicial cada vez mais adiado” (cf.: FERNEYHOUGH, 1989: Etcetera records [encarte do CD]).

Esta fase do processo composicional é de suma importância para

Ferneyhough. Ele afirma que “o momento chave é sempre aquele no qual você consegue

formalizar (a idéia da peça) verbalmente” (apud TOOP, 1994:156). E de fato essas referências

gerais são fundamentais para uma apreensão generalizada da obra.

Num primeiro nível, atentamos para este panorama global da peça guiados

principalmente pelas referências texturais. Mas, penetrando nas micro-nuanças dos

constituintes locais, a escuta é forçada a se bifurcar continuamente nas múltiplas ramificações

dos detalhes que se apresentam numa instantaneidade frenética. São os gestos dos mais

variados tipos que ora se formam, ora se deformam.

A fim de ilustrar a descrição dos componentes texturais e gestuais que se

apresentam no decorrer da peça, montamos uma espécie de “grade” analítica [anexo 2]

delineando toda a sua estrutura macro-formal. Apesar da alusão explícita à “grade pré-

composicional” de Ferneyhough, a nossa “grade” não corresponde a um suposto esboço

utilizado pelo compositor para a elaboração da obra. Ela nos servirá como um grande mapa

geral para coordenar e guiar a análise, como se fosse uma transcrição da partitura em forma de

uma tabela de sinais e indicações referenciais.

80

A instrumentação da peça é para clarinete solo e conjunto de câmara (flauta,

piccolo ou flauta contralto, oboé ou corne inglês, violino, cello, contrabaixo, piano e

percussão — incluindo um vibrafone e uma marimba). Em nossa grade, há uma letra para

cada instrumento na seguinte ordem:

� A/a – clarinete

� B/b – flauta/piccolo/flauta contralto

� C/c – oboé/corne inglês

� D/d – vibrafone/marimba/percussão

� E/e – piano

� F/f – violino

� G/g – cello

� H/h – contrabaixo

A indicação das letras em maiúsculas ou minúsculas serve para destacar

determinados pontos onde ocorrem certos processos ou eventos que consideramos mais

significativos dentro de cada contexto específico, e que estaremos descrevendo mais

detalhadamente durante a análise.

Os diversos gestos da peça foram classificados de acordo com as suas

características mais gerais, de modo que, independentemente do seu conteúdo específico, eles

possam ser reconhecidos e identificados (perceptivamente e visualmente) sempre como sendo

da mesma “família”. Apesar de não pretendermos inventariar uma ‘tipologia’ dos objetos

sonoros em La chute d’icare, consideramos conveniente denominá-los por ‘objetos’ aludindo

a algumas idéias de Schaeffer (Tratado dos objetos musicais), já que a perspectiva dessa

análise busca evidenciar principalmente a relação entre a música e a escuta.

Conscientes de que algumas dessas classificações são muito generalizadas,

ambígüas, ou até mesmo forçadas — e por isso mesmo sujeitas a revisões e modificações

mais precisas —, essa foi a maneira mais “palpável” que encontramos para descrever os

acontecimentos sonoros dentro de um contexto referencial intermediário, ou seja, o da

superfície dos gestos.

81

Por exemplo, o ‘objeto envelope dinâmico’ [figura 17a] consiste

simplesmente em uma nota prolongada com variações de intensidade; se essa nota tiver um

ataque mais forte e logo em seguida diminuir em intensidade, classificamos de ‘objeto ataque-

ressonância’; se esses ataques ocorrerem várias vezes num curto intervalo de tempo sempre

nas mesmas notas, será um ‘objeto nota-rebatida’ [figura 17b]; mas se forem vários ataques e

espaçados por contrastes de registro, então será um ‘objeto pontual’ [figura 17c] (em alusão

ao estilo pontual de Webern/Stockhausen); enfim, conforme o tipo de configuração

determinando um perfil homogêneo (‘objeto onda-senoidal’, ‘objeto linha-melódica’), ou

simplesmente um tipo de articulação (‘objeto glissando’, ‘objeto trêmulo’, ‘objeto trinado’),

cada ‘gesto-objeto’ levará uma “etiqueta” correspondente.

figura 17a: objeto envelope dinâmico

82

figura 17b: objeto nota-rebatida

figura 17c: objeto pontual

Observando a divisão da macro-forma26, dividimos as grandes seções da

peça em 7 partes:

1. Parte A (compassos 1-29)

2. Parte B (compassos 30-50)

3. Parte C (compassos 51-72)

4. Parte D (compassos 73-102)

5. Parte E (compassos 103-130)

6. Parte F (compassos 131-145)

7. Parte G (compassos 146-171)

A Parte A está subdividida em três subseções: a1 - a2 - a3. Partindo de uma

textura relativamente homogênea — classificada grosseiramente por “linha melódica

acompanhada” —, notamos que aos poucos ela vai se “desgastando”, ou, utilizando as

26 Sugerimos ao leitor verificar simultaneamente a “grade”analítica em anexo, pois nela todas as indicações estão sintetizadas de modo a facilitar o acompanhamento da análise.

83

palavras do próprio Ferneyhough, vai gradualmente sofrendo um processo de “erosão”,

conforme a citação prévia.

As evidências em relação aos procedimentos empregados nesta parte inicial

parecem bastante claras. Tudo parece ter originado de uma simples seqüência de 17 notas

expostas pelo clarinete, delineando um perfil estável em movimento descendente (9 notas) e

ascendente (8 notas) — um objeto onda-senoidal [figura 18]:

figura 18: objeto onda senoidal (material inicial básico)

Toda a parte A (compassos 1-29) está estruturada a partir de um processo de

fragmentação desse objeto inicial homogêneo, gerando uma direcionalidade que parte da

ordem ao caos. Pode-se destacar três fases distintas nesse processo:

� a1 (compassos 1-7): o compositor opera com uma série de “intensificações figurais”27,

apresentando as notas na mesma ordem e no mesmo registro sempre numa perspectiva

diferenciada (através de acelerações e retardações abruptas, perfis dinâmicos

contrastantes, pausas deslocadas, além de omissões ocasionais de notas a partir da quarta

repetição da “série” e de “infiltrações” de objetos nota-rebatida);

27 Exatamente análogo ao início de Lemma-icon-epigram, como já vimos no capítulo anterior.

84

� a2 (compassos 8-17): as omissões de notas passam a ser mais sistemáticas e em maior

quantidade, gerando saltos mais bruscos (“fendas”) e desequilibrando a regularidade

rítmica. O perfil ondular se torna mais “fraturado” e menos homogêneo;

� a3 (compassos 18-29): sobre a onda já fraturada, começam a ser acrescentados os

microtons e uma série de ornamentos, como se o objeto estivesse sendo “corroído” em

micro-partículas.

A essa “linha melódica” do clarinete é contraposto um segundo plano pelos

outros instrumentos, uma espécie de acompanhamento “caleidoscópico” de objetos totalmente

heterogêneos. E é justamente essa sobreposição e simultaneidade de gestos disparatados que

torna a textura mais estática e impermeável, embora numa escuta microscópica seja possível

penetrar nas nuanças mais sutis e fugazes.

O interessante é que o material básico de todos os outros instrumentos é

exatamente o mesmo do clarinete, ou seja, as mesmas 17 notas, embora numa configuração

distinta. Cada instrumento apresenta a série de notas numa velocidade diferente, como se

fossem ressonâncias ou espectros da “onda”, resultantes de um processo de defasagem e

deslocamento em vários níveis temporais. [figura 19]

Parte A (a1) (a2) (a3) Compasso 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12....17 18 Cl F F# D G# G C B A# E F C# G A F# B D# A#...etc (+ rápido: 8 notas só no 1º tempo do 1º compasso) Fl F F# D G# G...etc Ob F F# D G# G...etc Vb F (+ lento: 8 notas em 8 compassos) F# G# G C B A# E F C# G A... A# F F# Pf F F# D G# G...etc Vl F F# D G# G...etc Vc F F# D G# G...etc

figura 19: processo de defasagem temporal

Se observarmos a linha do vibrafone, veremos que ela delineia dois tipos de

objetos: 1) objeto ataque-ressonância; 2) objeto nota-rebatida. Ignorando os objetos nota-

85

rebatida e considerando apenas os objetos ataque-ressonância, encontramos um processo

‘automático’ utilizado por Ferneyhough como estratégia para a delimitação da estrutura

formal desta parte A. Em cada compasso é atacada uma nota da série sempre no 1º tempo

(como se fosse o “click track” do metrônomo marcando as unidades de compasso) e, a partir

de a3, são atacadas duas notas dividindo o compasso exatamente ao meio. A única nota

omitida é a nota Ré, justamente a nota que também começa a ser omitida no clarinete a partir

da quarta repetição da série (e é a nota que finaliza a peça no ornamento cadencial do

clarinete).

No nível temporal mais rápido (micro-formal), o Lá# finaliza o grupo de

oito semifusas que constituem o 1º tempo do primeiro compasso do clarinete, e finaliza

também a última nota da série das 17 notas. E é exatamente o Lá# (ou Sib) que vai finalizar

no nível temporal mais lento (macro-formal), do vibrafone, as sub-seções da parte A: no

compasso 7 o fim de a1, e no compasso 17 o fim de a2. Uma coerência estrutural latente em

meio a uma fachada aparentemente disparatada, unindo o micro ao macro e garantindo a

coesão de toda esta primeira parte.

Os objetos nota-rebatida do vibrafone, que ignoramos logo acima,

funcionam como se fossem um “vírus” contagioso, que vão “infectando” ocasionalmente os

outros instrumentos e se proliferando gradativamente. Pouco a pouco, vão aumentando

também a reincidência dos objetos trêmulos nas cordas, assim como os objetos de maior

mobilidade rítmica na flauta e no oboé e os objetos pontuais no piano. Todos esses objetos

possuem uma característica mais “granular” e tendem a modificar gradativamente a textura.

Esse processo de transformação textural atinge um estágio de maior dinamismo e

instabilidade, uma nova textura que classificamos de modo bastante genérico por “heterofonia

complexa”.

86

Apesar de não haver um grande corte estrutural na passagem de uma

textura à outra — pois percebemos como se uma fosse a conseqüência natural da outra, num

longo continuum —, verificamos uma série de fatores que nos autoriza a divisão dessa nova

seção (parte B). O clarinete se mistura agora com a flauta e o oboé numa rede intrincada de

‘objetos complexos’, ou seja: tipos de configurações que variam de natureza num espaço de

tempo muito curto [figura 20]. Utilizando diversos “tipos de textura” (texture types)28 numa

mobilidade intensa, a fim de explorar novas “técnicas instrumentais expandidas” (extended

techniques) — que aliás é uma das características mais marcantes da escrita de Ferneyhough

—, não é possível reconhecer auditivamente um ponto de referência estável. Tudo muda a

todo instante, e o único “ser viável” é a própria transitoriedade dos eventos sonoros.

figura 20: objeto complexo

Sob esse emaranhado de objetos complexos nos sopros, o vibrafone e a

marimba configuram um tipo de ‘objeto polirrítmico’ [figura 21a], e nas cordas uma

homofonia de objetos trêmulos/harmônicos/glissandos [figura 21b]. Os objetos envelope-

dinâmico desaparecem e o piano pára de tocar. Todo esse trecho corresponde a uma sub-seção

b1 (compassos 30-36) dentro da parte B.

28 Termo cunhado por Ferneyhough. Segundo Toop (1994:163), são espécies de figurações determinadas por fatores mais “comportamentais”, como articulações abruptas, timbres inusitados, níveis de atividade ou agitação que o instrumentista deve executar, densidades, expressividade, etc. De certa forma, todos os tipos de gestos/objetos que classificamos podem corresponder a um exemplo de texture type.

87

figura 21a: objeto polirrítmico

figura 21b: objeto trêmulo+harmônico+glissando

A seguir, em outras duas sub-seções de B (b2 – compassos 37-43 e b3 –

compassos 44-50) a textura vai se alterando de novo, num processo gradual de

“desintegração” através de mudanças súbitas de configurações: os objetos complexos dos

sopros são “liqüidados”, resultando em simples objetos trinados (clarinete) e objetos

envelope-dinâmico (flauta/oboé); a polifonia do vibrafone e da marimba é convertida numa

única linha pontual (só a marimba); entra o piano abruptamente numa atividade intensa de

objetos nota-rebatida (intercalado por blocos e objetos pontuais), como se fossem os “resíduos

88

granulares” da densa trama caótica anterior. E na medida em que param de tocar a flauta e o

oboé, entram as cordas com objetos pizzicato/ponto.

Em b3 a textura já está quase completamente dissolvida, com resíduos

melódicos nos sopros e resíduos de pizzicato e pontos nas cordas. Um objeto bloco/ataque-

ressonância (cordas+piano e vibrafone) no compasso 49 finaliza esta seção e, ao mesmo

tempo, funciona como elemento conectivo para a próxima parte. Sintetizando esta parte B,

verificamos um direcionamento que parte do caos, subitamente se torna granulado e pouco a

pouco se dissolve em pontos.

Somando-se as partes A e B, observamos um processo de grande

transformação textural, sendo a parte A um enorme monólito constituído de objetos mais

“sustentados” (cf.: SCHAEFFER, 1993) — devido à predominância dos objetos envelope-

dinâmico, glissando e ataque-ressonância —, e a parte B um complexo de objetos mais

“iterados”, já que predominam os objetos trinado, nota-rebatida, pizzicato e ponto. Em

resumo, um grande arco direcional que parte dos sons mais sustentados para os sons mais

iterados.

A parte C inicia um proceso análogo de transformação textural, partindo de

uma textura mais estática (um grande objeto envelope-dinâmico) até culminar em uma

“heterofonia hiper-complexa”. Observe como o objeto nota-rebatida continua “contagiando” a

textura enquanto repercussões de notas tocadas pelo clarinete (ver as flechas verticais na

partitura). [anexo 3]

Na parte D o clarinete retoma o perfil ondular, intercalado por objetos

pontuais. Se o objeto onda-senoidal do início da peça está estruturado a partir da reiteração de

17 notas com variações nos outros parâmetros (evidenciando as diferenciações principalmente

rítmicas) — um perfil que posteriormente vai se desconfigurando a partir de omissões de

notas e inserções de microtons e ornamentos —, agora o procedimento é outro. Como afirma

89

o compositor, o processo de variação tradicional consiste em manter a mesma estrutura de

base enquanto modificam-se os gestos da fachada. Já as técnicas de variação que

Ferneyhough prefere utilizar são mais “subcutâneas”, ou seja, ele mantém basicamente a

mesma estrutura da superfície modificando as técnicas generativas. Diz ele: “Estou

interessado mais na idéia de variação da técnica ao invés de variar o objeto”

(FERNEYHOUGH, apud TOOP, 1990:55).

A técnica adotada por Ferneyhough para gerar o objeto-senoidal do

clarienete nesta parte é bastante evidente: um tipo especial de permutação chamado random

funnelling (“afunilamento aleatório”, cf.: MENEZES, 2002:407). Este procedimento consiste

numa permutação quase aleatória de um dado conjunto de valores abstratos/numéricos

(podendo ser aplicado então aos diversos parâmetros sonoros), onde é determinada

inicialmente uma ordem específica para se atingir progressivamente uma nova ordem desses

mesmos valores (cf.: MALT, 1999:72-74). Dissemos “quase” aleatório por não se tratar de

um processo no qual o compositor joga com o acaso; ao determinar o ponto de partida e o

ponto de chegada (desde a quantidade de valores até a natureza das ordenações) já se tem um

vetor de coordenadas limitando as probabilidades do número de permutações. Em último

caso, o próprio compositor é quem vai escolher se o trajeto deverá ser mais extenso ou mais

curto (com ou sem repetições/omissões de valores) de acordo com as necessidades de cada

contexto.

Neste sentido é que Malt (loc. cit.) define também este procedimento por

permutação dinâmica, justificando uma utilização “dinâmica” dos processos de tratamento

mais estatísticos dos parâmetros abstratos — como por exemplo no caso de fenômenos que

partem de objetos mais ordenados para os desordenados, ou vice-versa. Isso implica num

resultado onde o compositor controla no nível da superfície um tipo de evolução específica,

ou ainda, uma direcionalidade nítida, que supera alguns dos impasses do serialismo integral

90

do início dos anos 50, potencializando sobre o pensamento paramétrico uma nova

discursividade linear29.

Vamos ver então como Ferneyhough utilizou esta técnica. São quatro

objetos onda-senoidal intercalados por objetos pontual, de acordo com o seguinte quadro:

compassos 73-78 79 80-86 87-88 89-95 96-101 102-103 total 6 1 7 2 7 5 2

objetos onda 1 pontual onda 2 pontual onda 3 pontual onda 4

Para cada “onda” será determinada uma série de cinco valores (notas),

sendo que o alvo a ser atingido é uma ordenação aonde as notas devem estar dispostas numa

seqüência ascendente, indo da nota mais grave para a mais aguda (com exceção da última

onda [4], em que a ordem é invertida, ou seja, numa seqüência descendente). A essa seqüência

daremos a numeração correspondente de 1-2-3-4-5 (ou 5-4-3-2-1 para a onda 4). Assim, o

ponto de partida deve ser uma ordenação diferenciada que, através da permutação

progressiva, buscará alcançar a ordem pré-estabelecida. Trata-se de uma direcionalidade da

desordem para a ordem — exatamente contrária à direcionalidade da onda inicial, que partia

da ordem em direção à desordem (mas através de outros procedimentos, como vimos).

A figura abaixo [figura 22] ilustra o material básico (cinco notas) das quatro

ondas já na ordem pré-determinada (o ponto de chegada). Observe que essas quatro séries não

são entidades isoladas; existe uma relação de direcionalidade global entre elas. Ao mesmo

tempo em que o âmbito intervalar de cada série vai se ampliando da primeira para a segunda e

desta para a terceira (da terceira para a quarta ele diminui radicalmente, contrastando com a

tendência anterior — o contraste é reforçado também pela inversão da ordem e pelo registro),

há uma evolução que parte do grave para o agudo.

29 Segundo Toop (1994:164), Ferneyhough opera com os diversos parâmetros quase sempre como parte de uma unidade orgânica numa interação mútua, dando ênfase principalmente ao caráter processual e transformacional, e não como “mônadas” independentes, simples variáveis estatísticas.

91

A próxima tabela [figura 23] mostra todas as permutações de cada série,

representadas pelos números correspondentes. Essas seqüências são as próprias notas que

formam as “ondas”, de acordo com a partitura. E para garantir o perfil ondular desses gestos,

o ritmo se mantém relativamente estável, regular e homogêneo.

figura 22: material básico de cinco notas

PERMUTAÇÕES (random funnilling) Onda desordem ---------------------------------------------------------------------------------------→ ordem

1 35421 25341 42513 23154 32541 24135 42531 42135 32514 42513 12435 12345 2 25341 23145 32514 25341 21345 12345

3 52341 14253 523144 532441 35251324 24135 523241 12453 12354 12345 4 14325 35421 34521 54321

Observações: � os números em negrito evidenciam que a ordem vai sendo fixada à medida que se aproxima do final; � os números em sobescrito são supostas notas que estão faltando na série; � os números sublinhados são notas repetidas dentro da série; � o número 5 em itálico na segunda permutação da onda 1 deveria ser um 4, já que não há um acidente

indicando que o ré seja bequadro. Mas pela lógica do processo, acreditamos que o compositor tenha esquecido do bequadro por “acidente”.

figura 23: permutação dinâmica, ou afunilamento aleatório

A essa linha do clarinete é sobreposta uma série de eventos contrastantes e

heterogêneos. Chamamos essa textura de “bifonia contrastante” em relação ao conflito gerado

pelo choque entre uma monodia mais regular e estável e uma heterofonia caótica. Seguindo a

92

dinamicidade do clarinete, os instrumentos vão se afunilando até sobrar apenas o piano —

reforçando a tendência evolutiva do clarinete em direção ao registro mais agudo.

Essa evolução atinge um ápice e percebemos um grande corte após a “onda”

de inflexões microtonais do clarinete no registro agudo e em fortissíssimo. A textura seguinte

(Parte E) é a relativamente mais “estagnada” da peça. Classificamos como “massa rasurada”

pelos seguintes critérios: cada instrumento toca uma nota prolongada gerando uma série de

agregados harmônicos, e não há muitas variações de intensidade — esta gira em torno do

pppp ao pp; ocorrem variações muito sutis do timbre através de alternâncias de articulações,

inflexões microtonais, glissandos, trinados e harmônicos, sugerindo uma idéia de “melodia de

timbres”; sobre essa “massa” flutuante de nuanças timbrísticas, objetos extremamente

contrastantes são “atirados” contra a sua superfície provocando uma série de “rasuras”; a

massa torna-se mais e mais agitada num processo crescente de mobilidade e profusão de

objetos heterogêneos.

Segue-se então o solo do clarinete (Parte F). Partindo de objetos complexos

(explorando diverso tipos de texture types e extended techniques, numa “monodia hiper-

ativa”), o ritmo vai se tornando gradualmente mais regular até culminar no ‘objeto

homorrítmico’ dos compassos 146-147. E surpreendentemente surge o inesperado: uma

“fuga”! (ao estilo de Ferneyhough). Antes de o clarinete terminar a enunciação deste objeto,

entra o piccolo com um outro objeto homorrítmico (compasso 147); depois entra o violino

(compasso 152), o glockenspiel (compasso 154), o cello (compasso 162), o piano (compasso

163) e o oboé (compasso 164). Claro que estamos abstraindo apenas a essência do

contraponto imitativo, no sentido de uma mesma idéia se apresentar sucessivamente em outras

vozes (com ou sem variação). Neste caso específico, o que torna evidente a repetição

(imitação) de uma mesma idéia para a percepção são esses objetos homorrítmicos, cuja

93

configuração tende a anular toda a diferenciação em relação à variação rítmica — demarcando

um espaço estriado com pontos fixos de referência.

Se dissemos “inesperado”, é porque pela primeira vez escutamos algo que é

“transparente” à audição (se comparado com as texturas anteriores), tanto na superfície quanto

no processo empregado. Mas essa relativa transparência é efêmera, já que enquanto um objeto

homorrítmico é apresentado num instrumento (espécie de “sujeito” da fuga), os outros

instrumentos desenvolvem outros objetos contrastantes (espécie de “contra-sujeito”) gerando

uma “polifonia hiper-ativa” (Parte G). À medida que os instrumentos vão se acumulando, a

textura vai densificando até atingir um tutti onde todos os instrumentos se homogeneízam

num grande ‘objeto mordente’ (compassos 165-167). E subtamente irrompem num grande

objeto complexo (compassos 168-170), chegando enfim à conclusão da obra: uma “cadência”

efetuada pelos bongos e timbales e por uma escala microtonal ascendente do clarinete.

* * *

Através dessa análise, algums aspectos podem ser pontuados na tentativa de

sintetizar as características gerais da obra como um todo:

� a forma é mais um resultado dos modos de operação visando um determinado processo

(como certas transformações e direcionamentos texturais ou deformações gestuais) do que

a busca de um sistema onde toda a organização da estrutura partiria de mecanismos de

deduções sobre um princípio unificador;

� apesar desse caráter processual, os mecanismos de engendramento dos gestos e das

texturas não são obtidos através de cálculos puramente estatísticos; há um alto rigor de

elaboração estrutural no nível “subcutâneo”, ou diríamos até nas diversas camadas

94

“subterrâneas”, garantindo conseqüentemente uma “permeabilidade” multifocal (no nível

da textura, do gesto e da figura);

� a exploração dos jogos de oposições e contrastes (diferenciações) entre o mais variados

tipos de materiais (parâmetros) e entre os diversos níveis dos elementos estruturais (gestos

e texturas) gera um tipo especial de dinamismo, como se fosse um organismo em

atividade incessante: uma forma de discurssividade linear que não se dissolve num todo

indiferenciado e nunca se deixa capturar;

� sintetizando tudo em um único conceito: a própria ‘complexidade’ inerente ao pensamento

de Ferneyhough. Todos os aspectos especulativos que discutimos nos capítulos 2 e 3 só

podem ser compreendidos após um estudo minucioso da sua obra (o que tentamos realizar

parcialmente neste capítulo). Entre a escuta, a partitura, os vários textos de referência, e a

especulação analítica, buscamos trilhar um dos caminhos possíveis dentro do labirinto que

é a obra de Ferneyhough.

Cometemos um verdadeiro crime aprisionando a complexidade dos

fenômenos sonoros (literalmente) dentro de uma “grade” conceitual, na tentativa aflita de

agarrá-la, de apreendê-la. Mas a cada nova audição da obra, percebemos uma infinidade de

fenômenos ainda “livres” das amarras do nosso sistema de representação (ou mesmo

fenômenos representados falsamente). A falta de inteligibilidade gera uma série de

perturbações no espírito, emudecendo-nos diante do incompreensível ou encorajando-nos a

buscar novas formas de compreensão, de comunicação. Talvez esta seja a principal

característica de uma obra complexa: uma obra que se renova constantemente por meios ainda

não explorados, inesperados e desconhecidos. Neste sentido, “complexidade” é sinônimo de

“música nova” — ou como preferem outros: música que não é música, música que não

comunica nada (música que nem cura, nem dá prazer, nem vende).

95

Conclusão

“não depende da vontade.

é ele subitamente: agora (antes de começar a escrever; a razão de ter começado a escrever) ou ontem, amanhã, não há nenhuma indicação prévia, ele está ou não está; nem sequer posso dizer que vem, não existe chegada nem partida; ele é como um simples presente que se manifesta ou não neste presente sujo, cheio de ecos de passado e obrigações de futuro

A você que me lê, não lhe terá acontecido aquilo que começa num sonho e volta em muitos sonhos mas não é isso, não é somente um sonho? Alguma coisa que está aí, mas onde, como; alguma coisa que acontece sonhando, é claro, simples sonho mas depois também aí, de outra maneira porque mole e cheio de buracos mas aí enquanto você escova os dentes, no fundo da pia você continua vendo-o enquanto cospe dentifrício ou enfia a cara na água fria, e já emagrecendo mas preso ainda ao pijama, à raíz da língua enquanto esquenta o café, aí, mas onde, como, grudado à manhã, com seu silêncio em que já entram os ruídos do dia, o noticiário do rádio que ligamos porque estamos acordados e levantados e o mundo continua andando. Porra, porra, como pode ser, que é isso que foi, que fomos num sonho mas é outra coisa, volta de quando em quando e está aí, mas onde, como, está aí e onde é aí?”

(Julio Cortázar (1914-1984) - Octaedro: Aí, mas onde, como)

96

Considerações finais

O principal objetivo dessa pesquisa foi abordar a idéia da complexidade no

pensamento composicional de Brian Ferneyhough a fim de delinear os traços de uma sintaxe

complexa resultante do embate entre o plano conceitual-especulativo e os seus modos de ação

(processos composicionais). Buscando identificar inicialmente o porquê de uma “nova”

complexidade em sua obra, inserimos o compositor dentro do contexto histórico da música de

vanguarda do século XX vinculando a complexidade ao pensamento paramétrico-serial —

tendo em vista a enorme influência deste pensamento na obra de Ferneyhough.

Ultrapassando as bordas de um mero rótulo estilístico, a “nova

complexidade” de Ferneyhough constitui uma nova etapa da evolução desse pensamento, ou

então, uma renovação do serialismo. Um dos principais fatores dessa renovação está no modo

como ele articula os dados paramétricos não mais em função de princípios unificadores

situados fora de um determinado contexto particular (os valores seriais enquanto estruturas

“fora-do-tempo”); mas enquanto “linhas de força paramétricas”, embutidas funcionalmente

dentro de um contexto gestual concreto (cf.: FERNEYHOUGH, 1990:24)30.

Analogamente a Schoenberg — em seu período “pantonal” —,

Ferneyhough busca uma nova forma de “purificação” da música em relação aos conteúdos

previamente concebidos, emancipando os parâmetros sonoros dos pontos de referência

externos à sua existência atualizada. Neste sentido podemos chamar a sua música de

30 “Eu invariavelmente imagino um evento sonoro flutuando entre dois pólos especulativos — isto é, sua imediata e identificável gestalt gestual, e seu papel como ponto de partida para o subsequente estabelecimento das trajetórias lineares independentes das características constituintes da gestalt. O aspecto especificamente figural de um evento é portanto o grau no qual esses quanta paramétricos fazem a si mesmos obviamente abertos a tais separações, extensões, e re-combinações em constelações futuras” (FERNEYHOUGH, id.).

97

“panserial”, pois ele não nega a série, mas faz proliferar através da figura uma infinidade de

operações e processos tipicamente seriais (permutações, transposições, retrogradações,

inversões, etc).

Por outro lado, a complexidade não é uma exclusividade da música serial,

ou da música de Ferneyhough. Muitos compositores contemporâneos estão preocupados em

escrever uma música complexa, uma música nova, inaudita. “Désordre”, de Ligeti,

“Attracteurs étranges”, do compositor espectral Tristan Murail, são alguns títulos ilustrativos

que reportam-se aos conceitos da ciência contemporânea, principalmente no que diz respeito à

complexidade dos fenômenos naturais.

Mas nenhum outro compositor incorporou o próprio conceito de

‘complexidade’ em seu pensamento especulativo-composicional como Ferneyhough. A

diferença é que a complexidade em sua obra ganha mais consistência; o compositor traça todo

um “plano de composição”31 em torno deste conceito: figura-gesto-textura, linhas de força,

grade pré-composicional, casulos ou cartuchos, filtros, texture-types, automático/informal,

random funnilling, parody-techniques, etc.

E essa é uma diferença crucial, que de certa forma despertou o interesse pelo

tema desta pesquisa e delimitou o nosso objeto de estudo: 1º- a complexidade, 2º- em Brian

Ferneyhough. Salientamos que o nosso intuito não foi o de analisar as várias abordagens que

possam existir sobre a concepção da complexidade na música. O que tentamos examinar

foram alguns dos conceitos e procedimentos que caracterizam especificamente a

complexidade da obra de Ferneyhough.

Os resultados dessa música “panserial” não podem ser ainda avaliados como

um todo. Consideramos este trabalho como uma introdução à música de Ferneyhough abrindo

perspectivas futuras para um estudo mais pormenorizado de suas demais composições. Só

31 cf.: DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix (1992). O que é a filosofia?. Editora 34: Rio de Janeiro.

98

assim poderíamos olhar para o conjunto de seu trabalho e realizar um balanço crítico mais

íntegro e correto.

* * *

99

Anexo I

Paisagem sobre a queda de Ícaro

(Pieter Brueghel – 1525-1569)

100

101

Anexo II

“GRADE”

ANALÍTICA

102

“GRADE” Analítica de LA CHUTE D’ICARE (BRIAN FERNEYHOUGH)

Parte A andamento e =56 (a1) e =61,5 (a2) (a3) “casulos” 5/8 3/8 4/8 5/8 4/8 3/8 5/8 2/8 3/16 1/8 6/8 3/8 2/8 9/8 4/8 4/8 7/8 7/8 5/8 3/8 3/8 5/8 5/8 7/8 1/8 3/8 4/8 1/8 1/8 nº. comp. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 Clarinete A - objeto onda senoidal A - onda “fraturada” (omissão de notas gerando fendas) A - onda “corroída” (inserção de ornamentos e microtons) Flauta

Oboe

b - objeto envelope dinâmico c - objeto envelope dinâmico

b - inserção de microtons e acúmulo gradativo da recorrência de objetos com maior mobilidade rítmica c - inserção de microtons e acúmulo gradativo da recorrência de objetos com maior mobilidade rítmica

Vibr/Mar d - objeto ataque-ressonância+objeto nota-rebatida (1 ataque por compasso) [“click track”] d - (2 ataques por compasso) Piano e - objeto ataque-ressonância+objeto pontual Violino

Cello

f - objeto glissando/harmônico/trêmulo g - objeto glissando/harmônico/trêmulo

f - inserção de microtons e acúmulo gradativo da recorrência de objetos trêmulos g - inserção de microtons e acúmulo gradativo da recorrência de objetos trêmulos

Baixo ------------------------------------------------ h - objeto pizzicatto+objeto trêmulo/harmônico

textura

I – “linha melódica acompanhada” (direcionalidades: a) ordem/estabilidade→caos/instabilidade) 1º. plano: solo do clarinete em “ondas” (âmbito de 3 oitavas e um trítono – mi2-lá#5) 2º. plano: acompanhamento “caleidoscópico”- espectros da onda nos outros instrumentos em vários níveis de defasagem e deslocamento no tempo

Parte B andamento e =56 (tipo 1º) (b1) e =54 (b2) e =67 (b3)

“casulos” 3/8 5/8 4/8 3/8 4/8 5/8 3/8 7/16 5/8 7/16 7/16 7/16 5/8 7/16 3/16 3/16 7/16 7/16 3/16 7/8 5/8 nº. comp. 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 Clarinete a a a A a a A - objeto trinado+ornamento A - objeto linha melódica Flauta

A B b b b b b ---------------------------------------------- B - objeto linha melódica

Oboe

B C c c c C c c

b-ob.env-din. c-ob.env-din. ---------------------------------------------- ------- C - objeto ponto

Vibr/Mar D - objeto polirrítmico D - objeto pontual ---------------------------------------------- Piano ----------------------------------------------------------------- E - objeto nota-rebatida+bloco+pontual ----------------------------------------------

d-obj.ataq-res e-obj.ataq-res.

Violino

Cello

Baixo

F - obj. trêmulo+gliss/harm. G - obj. trêmulo+gliss/harm. H - obj. trêmulo+gliss/harm.

------- ------- -------

F G H

------- ------- -------

------- ------- -------

------- ------- -------

------- ------- -------

------- ------- -------

------- ------- -------

F - objeto pizzicato/ponto G - objeto pizzicato/ponto H - objeto pizzicato/ponto

------- ------- -------

gestos sopros: objetos complexos (ornamento+glissando+trinado+linha fragmentada) [“extended technique”]

textura

II – “heterofonia complexa” (direcionalidade: caos→granulação→pontos) (os planos convergem para blocos timbrísticos mais homogêneos, mas fragmentados. Aumento da instabilidade e irregularidade em relação à textura inicial)

103

Parte C andamento e =60 e =56 e =67 e =56

“casulos” 5/8 7/16 7/16 5/8 7/8 7/8 7/16 7/16 9/8 2/8 7/16 6/8 2/8 7/16 7/16 3/8 4/8 5/8 6/8 4/8 3/8 5/8 nº. comp. 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 Clarinete A - objeto linha melódica+mordente “suspensão melódica” A - objeto complexo ---------------------------------- Flauta Oboe

b - objeto envelope dinâmico+trinado c - objeto envelope dinâmico+trinado

b - aumento da mobilidade rítmica c - aumento da mobilidade rítmica

B - objeto complexo C - objeto complexo

b-objeto envelope dinâmico c-objeto envelope dinâmico

Vibr/Mar

------ ------ ------ ----------------------------------

Piano ----------------------------------------------

d - objeto nota rebatida+bloco e - objeto nota rebatida+bloco ob.nr

d - objeto nota rebatida+bloco e - objeto nota rebatida+bloco

D - obj.bloco+pontual E - obj.bloco+pontual E - objeto polirrítmico

Violino Cello

f - objeto envelope dinâmico+trinado g - objeto envelope dinâmico+trinado

f-obj.linha mel./harm. g-obj.linha mel./harm.

Baixo ----------------------- h - objeto envelope dinâmico+trin.

------ ------ ------

f - aumento da mobilidade rítmica g - aumento da mobilidade rítmica h - aumento da mobilidade rítmica -------------------------

F - objeto linha agitada G - objeto linha agitada H - objeto linha agitada

textura

III – “linha melódica acompanhada” (direcionalidade: densidade estática→densidade dinâmica) 1º. plano: clarinete “cantando” 2º. plano: grande objeto envelope-dinâmico, com “interferências” de objetos nota-rebatida

IV – “heterofonia hiper-complexa” (caos→caos)

Parte D

e =70 e =66

5/16 3/16 3/16 2/8 1/16 7/16 5/16 3/16 1/8 5/16 3/16 7/16 3/16 11/16 3/16 1/8 5/16 3/16 9/16 1/16 2/8 3/16 1/8 5/16 1/16 9/16 1/16 4/8 5/16 1/16 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 A- objeto onda senoidal (4ªJ) →* A- objeto onda senoidal (9ªm) →* A- objeto onda senoidal (14ª M↑) →* objeto pontual (explosivo) ** B- objeto ponto/ornamento (abrupto) C- objeto ponto/ornamento (abrupto)

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- -------------------------------------------------------------------------------------------------- E- objeto polirrítmico complexo (nota rebatida+pontual→pontual→trinado→pontual) F- objeto complexo -------------------------- G- objeto complexo ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- ------------------------------------------------------- H- objeto nota rebatida (furioso) ----------------------------------------------------------------------------- V – “bifonia contrastante” = monodia estável (clarinete) X heterofonia caótica (outros instrumentos) direcionalidades múltiplas: a)grave→agudo (clarinete e piano); b) oposição caótica→afunilamento timbrístico; c)âmbito do clarinete:4ªJ→9ªm→14ªM↑→microtons; d)perfil do clarinete:onda→*pontual→**onda microtonal)

104

Parte E and. e =44 e =48 F

cas. 3/8 5/16 5/16 6/8 5/16 5/16 9/8 4/8 2/8 1/8 7/16 3/16 2/8 1/16 5/16 4/8 2/8 5/16 1/16 5/16 5/16 1/8 3/16 5/16 1/16 5/16 5/8 5/8 3/8 cp. 103 104 105 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 122 123 124 125 126 127 128 129 130 131 Cl. A a A a a a A a A A A a a A A A a a A A a A a a a A A A A Bf. b b B b b b B B B b B b b b b B b b b b B B b b b B B b ----- Ca. c c C c c c C C c c C c c c C C c c c c c C c c C C C c ----- Vb. d D D D d d D D D D D d d D D d D D D d ----- D D d D D D D ----- Pf. ----- ----- ----- ----- ----- ----- E E ----- E E ----- E E E E ----- ----- E E E E E e E E E E ----- Vl. ----- ----- ----- ----- ----- ----- F f f F f f f F F F f F f F F f f f f f F f ----- Vc. g G G E e e G g G g g g g G g G G G G g g G g g g g G g ----- Db. ----- ----- ----- ----- ----- ----- H h H h h h h H h H H H H h h H h h h h H h -----

tex.

VI – “massa rasurada” (direcionalidade: massa estagnada→massa agitada) a)grande objeto bloco-sustentado com mudanças timbrística sutis (espécie de objeto “klangfabernmelodie”) b)subitamente sobem à superfície objetos diferenciados, e que gradativamente vão “rasurando” a “massa” homogênea

solo (iní- cio)

andamento e =52 e =56 accel.------------------- e =90 e =77,5

“casulos” 4/8 5/8 4/8 3/8 5/8 3/8 3/8 2/8 5/8 3/8 2/8 nº. comp. 132 133 134 135 136 137 138 139 140 141 142 Clarinete A – objeto complexo (ornamentos, trinados, nota rebatida, glissando, etc) linha+pontual+ornamento objeto pontual (sem ornam.) c/ornamento nota rebatida textura VII – “monodia hiper-ativa” and. e =56 Parte G e =60 e =52 e =90 e =77,5 e =66 e =43 e =48 e =41

cas. 4/8 1/8 2/8 1/16 5/16 5/16 2/8 1/8 5/8 4/8 3/8 3/8 2/8 1/16 5/16 2/8 1/8 3/8 3/8 5/8 2/8 3/8 1/8 3/16 5/16 2/8 1/8 3/8 5/16 cp. 143 144 145 146 147 148 149 150 151 152 153 154 155 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 167 168 169 170 171 Cl. A-pontual/orn/lin A* pont trin. lin trin. pont trin. homorrit. objeto trinado objeto pontual A

Pic. ---- B* lin lin.mel.+nota reb homorrit. objeto complexo objeto linha melódica b Ob. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- C* c Gl. ---------------------------------------------------------- D* D Pf. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ E* e Vl. ------------------------------------------ F* objeto linha melódica objeto complexo f Vc. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- G* g Db.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

a b c d e f g h*

A B C D E F G H

h

tex.

parte final do solo

VIII – “polifonia hiper-ativa” (em formato de “fuga”) (*) - “sujeito”: objeto homorrítmico “contra-sujeito”: objetos heterogêneos (ornamento, trinado, linha angular, linha melódica, complexo, pontual)

grande objeto mordente

grande objeto complexo

“ca- dência”

105

Anexo III

La Chute D’Icare

Solo Clarinet and Chamber Ensemble

Brian Ferneyhough

(partitura)

[*escreva para: [email protected][email protected][email protected]]

106

Anexo IV

La Chute D’Icare

Solo Clarinet and Chamber Ensemble

Brian Ferneyhough

(gravação)

Versão A – Nieuw Ensemble – Ed Spanjaard [10:20]

Versão B – Ensemble Contrechamps – Giorgio Bernasconi [09:43]

[*escreva para: [email protected][email protected][email protected]]

107

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