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FERREIRA GULLAR TODA POESIA 21ª edição Revista e ampliada Rio de Janeiro 2015

Ferreira Gullar Toda Poesia - kbook.com.br · que de mim reste sob os meus escombros. 7 Neste leito de ausência em que me esqueço ... não mata quem é doutor. Não mata dono de

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Ferreira Gullar Toda Poesia

21ª edição Revista e ampliada

Rio de Janeiro2015

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A LUTA CORPORAL(1950‑1953)

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SETE PoEmAS PorTuGuESES (1950)

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Vagueio campos noturnosMuros soturnosparedes de solidãosufocam minha canção

A canção repousa o braçono meu ombro escasso:firmam-se no coraçãomeu passo e minha canção

Me perco em campos noturnosRios noturnoste afogam, desunião,entre meus pés e a canção

E na relva diuturna(que voz diurnacresce cresce do chão?)rola meu coração

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24 FErrEirA GULLAR

4

Nada vos ofertoalém destas mortesde que me alimento

Caminhos não háMas os pés na gramaos inventarão

Aqui se iniciauma viagem clarapara a encantação

Fonte, flor em fogo,que é que nos esperapor detrás da noite?

Nada vos sovino:com a minha incertezavos ilumino

5

Prometi-me possuí-la muito emboraela me redimisse ou me cegasse.Busquei-a nas catástrofes, da aurora,e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonorada água e do musgo, solitária nasce.Mas sempre que me acerco vai-se emboracomo se me temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.Se por detrás da tarde transparenteseus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis.Vocabulário e corpo — deuses frágeis —eu colho a ausência que me queima as mãos.

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A LuTA CorPorAL 25

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Calco sob os pés sórdidos o mitoque os céus segura — e sobre um caos me assento.Piso a manhã caída no cimentocomo flor violentada. Anjo maldito,

(pretendi devassar o nascimentoda terrível magia) agora hesito,e queimo — e tudo é o desmoronamentodo mistério que sofro e necessito.

Hesito, é certo, mas aguardo o assombrocom que verei descer de céus remotoso raio que me fenderá no ombro.

Vinda a paz, rosa-após dos terremotos,eu mesmo ajuntarei a estrela ou a pedraque de mim reste sob os meus escombros.

7

Neste leito de ausência em que me esqueçodesperta um longo rio solitário:se ele cresce de mim, se dele cresço,mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começonem foz, e o curso, que é constante, é vário.Vai nas águas levando, involuntário,luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:duplo espelho — o precário no precário.Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,passa o rio sem foz e sem começo.

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26 FErrEirA GULLAR

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Quatro muros de cal, pedra soturna,e o silêncio a medrar musgos, na internaface, põe ramas sobre a flor diuturna:tudo que é canto morre à face externa,que lá dentro só há frieza e furna.

Que lá dentro só há desertos nichos,ecos vazios, sombras insonorasde ausências: as imagens sob os lixosno chão profundo de osgas vis e aurorasonde os milagres são poeira e bichos;

e sobretudo um tão feroz sossego,em cujo manto ácido se escutao desprezo a oscilar, pêndulo cego;nada regula o tempo nessa lutade sais que ali se trava. Trava? Nego:

no recinto sem fuga — prumo e nível —som de fonte e de nuvens, jamais fluis!Nem vestígios de vida putrescível.Apenas a memória acende azuiscorolas na penumbra do impossível.

9

Fluo obscuro de mim, enquanto a rosase entrega ao mundo, estrela tranquila.Nada sei do que sofro. O mesmo tempoque em mim é frustração, nela cintila.

E este por sobre nós espelho, lento,bebe ódio em mim; nela, o vermelho.Morro o que sou nos dois. O mesmo ventoque impele a rosa é que nos move, espelho!

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O vIL mETAL(1954‑1960)

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o ViL mETAL 111

fOGOS DA fLORA

fru to lu to sedosa carne o lume desatado lu to o cheiro expõe seu avesso leproso pústula ar flora isconde ôr rostro dentro êr frô erf’olho cartrera ceca púcaro mofo SOLAR

ou CUJOS CAULES água e chama

ar fluora sipintia êr rostro furtre mecânicaespelho

rrortarções er coresingrenadas TERRA

MARTE SATURNO zzuada, dou- tores conversam, flores crescem das meias cloro astro darto

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112 FErrEirA GULLAR

AScabras AS orquídeastardes nupciais nas piscinas selvagenscacos d’água olho milho florflamaplanta irascível dias e meses cama e mesa mama e rezaO FACHO CONDUZIDO SOB O CHÃO, sombrados campos floridos dusolhosdestroçadosa pa go apa lúzni a pa g’lúmuniOS MORTOS O LEVAMas aranhas vazados púcaros primaverisabril avião soldado pólensurforcações cond’luzem fogo dos vasos UÊRVANIS ERVUS ÉRNADIS UERNADISDALESFLURDESVLÃ VLAPS VLAPS VLAPS

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o ViL mETAL 113

fORA DA LUZ

Derrubado em seu corpo na trevosaboca doce da carne que o engolecomo um sexo, dorme. E é lume o sonoque em vão se queima pelas torres jovens

Dorme fora da luz no velho esgotoonde as harpas. Outubro flamabrandoÀs suas portas de carne adormecidasa corneta do mar abandonamos

Resta o teu rosto solto a terra sacraas aranhas de sal tecendo um cuboTreme em teu lábio do dia assassinadoO sol o girassol a flama surda

Resta o facho de borco a flor perdidao homem mordendo a sombra desse fachoAs coroas da terra dissipandoseu escuro clamor na luz. E resta

de tal fogo tal facho trabalhadoàs portas desse homem a leste deleFogo poeira pó pólvora acesana epiderme comum. Bonjour, Madame!

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POEmAS CONCRETOS/NEOCONCRETOS

(1957‑1958)

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mar azul

mar azul marco azul

mar azul marco azul barco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

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verme olho

lacre maçã

vermelho

alarme boca

verde velho

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asa blusa

azul casa

casulo

azul casa

asa blusa

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mel laranja

lâmina mel

sol lâmina

laranja mel

sol laranja

lâmina sol

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ROmANCES DE CORDEL(1962‑1967)

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romANCES DE CorDEL 155

JOãO BOA-mORTE, CABRA mARCADO PRA mORRER

Vou contar para vocêsum caso que sucedeuna Paraíba do Nortecom um homem que se chamavaPedro João Boa-Morte,lavrador de Chapadinha:talvez tenha morte boaporque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíbamas é uma história banal em todo aquele Nordeste.Podia ser em Sergipe,Pernambuco ou Maranhão,que todo cabra da pesteali se chama JoãoBoa-Morte, vida não.

Morava João nas terrasde um coronel muito rico.Tinha mulher e seis filhos,um cão que chamava “Chico”,um facão de cortar mato,um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dianas terras do fazendeiro.Mal dormia, mal comia,mal recebia dinheiro;se recebia não davapra acender o candeeiro.João não sabia comofugir desse cativeiro.

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Olhava pras seis criançasde olhos cavados de fome,já consumindo a infânciana dura faina da roça.Sentia um nó na garganta.Quando uma delas almoça,as outras não; a que janta,no outro dia não almoça.

Olhava para Maria,sua mulher, que a tristezana luta de todo diatão depressa envelheceu.Perdera toda a alegria,perdera toda a belezae era tão bela no diaem que João a conheceu!

Que diabo tem nesta terra,neste Nordeste maldito,que mata como uma guerratudo o que é bom e bonito?Assim João perguntavapara si mesmo, e lembravaque a tal guerra não matavao Coronel Benedito!

Essa guerra do Nordestenão mata quem é doutor.Não mata dono de engenho,só mata cabra da peste,só mata o trabalhador.O dono de engenho engorda,vira logo senador.

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Não faz um ano que os homensque trabalham na fazendado Coronel Beneditotiveram com ele atritodevido ao preço da venda.O preço do ano passadojá era baixo e no entantoo coronel não quis daro novo preço ajustado.

João e seus companheirosnão gostaram da proeza:se o novo preço não davapara garantir a mesa, aceitar preço mais baixojá era muita fraqueza.“Não vamos voltar atrás.Precisamos de dinheiro.Se o coronel não der mais,vendemos nosso produtopara outro fazendeiro.”

Com o coronel foram ter.Mas quando comunicaramque a outro iam vendero cereal que plantaram,o coronel respondeu:“Ainda está pra nascerum cabra pra fazer isso.Aquele que se atreverpode rezar, vai morrer,vai tomar chá de sumiço.”

O pessoal se assustou.Sabiam que fazendeironão brinca com lavrador.Se quem obedece morrede fome, e de desespero,quem não obedece correou vira “cabra morredor”.

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Só um deles se atreveua vender seu cereal.Noutra fazenda vendeumas vendeu e se deu mal.Dormiu, não amanheceu.Foram encontrá-lo enforcadode manhã num pé de pau.Debaixo do morto estavaum “cabra” do coronelque dizia a quem passava:

“Este moleque malditopensou que desrespeitavao que o patrão tinha dito.Toda planta que aqui nasceé planta do coronel.Ele manda nesta terracomo Deus manda no céu.Quem estiver descontenteacho melhor não falarou fale e depois se aguenteque eu mesmo venho enforcar.”

João ficou revoltadocom aquele crime sem nome.Maria disse: “Cuidadonão te mete com esse homem.”João respondeu zangado:“Antes morrer enforcadodo que sucumbir de fome.”

Nisso pensando, Joãofalou com seus companheiros:“Lavradores, meus irmãos,esta nossa escravidãotem que ter um paradeiro.Não temos terra nem pão,vivemos num cativeiro.Livremos nosso sertãodo jugo do fazendeiro.”

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O Coronel Beneditoquando soube que Joãotais coisas havia dito,ficou brabo como o Cão.Armou dois “cabras” e disse:“João Boa-Morte não presta.Não quero nas minhas terrascaboclo metido a besta.

“Vou lhe dar uma lição.Ele quer terra, não é?Pois vai ganhar o sertão!Vai ter que andar a pédesde aqui ao Maranhão.Quando virar vagabundo,terá de baixar a crista.Vou avisar todo mundoque esse ‘cabra’ é comunista.Quem mexe com Beneditobem caro tem que pagar.Ninguém lhe dará um palmode terra pra trabalhar.”

Se assim disse assim fez.João foi mandado emborado seu casebre pacato.Disse a Maria: “Não chora,todo patrão é ingrato.”E saíram mundo afora.Ele, Maria, os seis filhose o facão de cortar mato.

Andaram o resto do diae quando a noite caíachegaram numa fazenda:“Seu doutor, tenho família,sou homem trabalhador.Me ceda um palmo de terrapra eu trabalhar pro senhor.”

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Ao que o doutor respondeu:“Terra aqui tenho sobrando,todo esse baixão é meu.Se planta e colhe num dia,pode ficar trabalhando.”

“Seu coronel, me desculpe,mas eu não sei fazer isso.Quem planta e colhe num dia,não planta, faz é feitiço.”“Nesse caso, não discuta,acho melhor ir andando.”

E lá se foi Boa-Mortecom a mulher e seis meninos.“Talvez eu tenha mais sortena fazenda dos Quintinos.”Andaram rumo do Norte,pra além da várzea dos Sinos:“Coronel, morro de fomecom seis filhos e a mulher.Me dê trabalho, sou homem para o que der e vier.”

E o coronel respondeu:“Trabalho tenho de sobra.E se é homem como dizquero que me faça agoraessa raiz virar cobrae depois virar raiz.Se isso não faz, vá-se embora.”

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João saiu com a famílianum desespero sem nome.Ele, os filhos e Mariaestavam mortos de fome.Que destino tomaria?Onde iria trabalhar?E à sua volta ele viaterra e mais terra vazia,milho e cana a verdejar.

O sol do sertão ardiasobre os oito a caminhar.Sem esperança de um diater um canto pra ficar,à sua volta ele viaterra e mais terra vazia,milho e cana a verdejar.

E assim, dia após dia,andaram os oito a vagar,com uma fome que doíafazendo os filhos chorar.Mas o que mais lhe doíaera, com fome e sem lar,ver tanta terra vazia,tanta cana a verdejar!

Era ver terra e ver gentedaquele mesmo lugar,amigos, quase parentes,que não podiam ajudar,que se lhes dessem pousadacaro tinham que pagar.O que o patrão ordenaé bom não contrariar.

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A muitas fazendas foram,sempre o mesmo resultado.Mundico, o filho mais moço,parecia condenado.Pra respirar era um esforço,só andava carregado.“Mundico, tu tá me ouvindo?”Mundico estava calado.

Mundico estava morrendo,coração quase parado.Deitaram o pobre no chão,no chão com todo o cuidado.Deitaram e ficaram vendomorrer o pobre coitado.

“Meu filho”, gritou João,se abraçando com o menino.Mas de Mundico restavasomente o corpo franzino.Corpo que não precisavamais nem de pai nem de pão,que precisava de chãoque dele não precisava.

Enquanto isso ali perto,detrás de uma ribanceira,três “cabras” com tiro certomatavam Pedro Teixeira,homem de dedicaçãoque lutara a vida inteiracontra aquela exploração.

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Pedro Teixeira lutaraao lado de Julião,falando aos caboclos paradar melhor compreensãoe uma Liga organizarapra lutar contra o patrão,pra acabar com o cativeiroque existe na região,que conduz ao desesperotoda uma população,onde só o fazendeirotem dinheiro e opinião.

Essa não foi a primeiramorte feita de encomendacontra líder camponês.Outros foram assassinadospelos donos da fazenda.Mas cada Pedro Teixeiraque morre, logo aparecemais um, mais quatro, mais seis— que a luta não esmorecee cresce mais cada mês.

Que a luta não esmoreceagora que o camponêscansado de fazer precee de votar em burguês,se ergue contra a pobrezae outra voz já não escuta,só a que o chama pra luta— voz da Liga Camponesa.

Mas João nada sabiano desespero que estava,andando aquele caminhoonde ninguém o queria.João Boa-Morte pensavaque se encontrava sozinhoque sozinho morreria.

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Sozinho com cinco filhose sua pobre Mariaem cujos olhos o brilhoda morte se refletia.Já não havia esperança,iam sucumbir de fome,ele, Maria e as crianças.

Naquela terra querida,que era sua e que não era,onde sonhara com a vidamas nunca viver pudera,ia morrer sem comidaaquele de cuja lidatanta comida nascera.

Aquele de cuja mão tanta semente brotaraque, filho daquele chão,aquele chão fecundara;e assim se fizera homem para agora, como um cão,morrer, com os filhos, de fome.

E assim foi que Boa-Morte,quando chegou a Sapê,desiludido da sorte,certo que naquele diaantes da aurora nasceros seus filhos matariae mataria a mulher,depois se suicidariapara acabar de sofrer.

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Tomada essa decisãosentiu que uma paz sofridabrotava em seu coração.Era uma planta perdida,uma flor de maldiçãonascendo de sua mão que sempre plantara a vida.

Seus olhos se encheram d’água.Nada podia fazer.Para quem vive na mágoa,mágoa menor é morrer.Que sentido tem a vidapra quem não pode viver?

Pra quem, plantando e colhendo,não tem direito a comer?Pra que ter filhos, se os filhosna miséria vão morrer?É preferível matá-losaquele que os fez nascer.

Chegando a um lugar deserto,pararam para dormir.Deitaram todos no chãosem nada pra se cobrir.Quando dormiam, Joãolevantou-se devagarpegando logo o facãocom que os ia degolar.

João se julgava sozinhoperdido na escuridãosem ter ninguém pra ajudá-lonaquela situação.Sem amigo e sem carinhoamolava o seu facãopara matar a famíliae varar seu coração.

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Mas como um louco atrás deleandava Chico Vaqueiroum lavrador como elecomo ele sem dinheiropara levá-lo pra Ligae lhe dar um paradeiropara que assim ele sigao caminho verdadeiro.

Para dizer-lhe que a lutasó agora vai começar,que ele não estava sozinho,não devia se matar.Devia se unir aos outrospara com os outros lutar.Em vez de matar o filho,devia era os libertardo jugo do fazendeiroque já começa a findar.

E antes que Boa-Morte,levado pela aflição,em seis peitos diferentesvarasse seu coração,Chico Vaqueiro chegou:“Compadre, não faça isso,não mate quem é inocente.O inimigo da gente— lhe disse Chico Vaqueiro —não são os nossos parentes,o inimigo da genteé o coronel fazendeiro.

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“O inimigo da genteé o latifundiárioque submete nós todosa esse cruel calvário.Pense um pouco, meu amigo,não vá seus filhos matar.É contra aquele inimigoque nós devemos lutar.Que culpa têm os seus filhos?Culpa de tanto penar?Vamos mudar o sertãopra vida deles mudar.”

Enquanto Chico falava,no rosto magro de Joãouma luz nova chegava.E já a aurora, do chãode Sapê, se levantava.

E assim se acaba uma parteda história de João.A outra parte da históriavai tendo continuaçãonão neste palco de ruamas no palco do sertão.Os personagens são muitose muita a sua aflição.Já vão todos compreendendo,como compreendeu João,que o camponês vencerápela força da união.Que é entrando para as Ligasque ele derrota o patrão,que o caminho da vitóriaestá na revolução.

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DENTRO DA NOITE vELOZ(1962‑1974)

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DENTro DA NoiTE VELoZ 201

mEU POvO, mEU POEmA

Meu povo e meu poema crescem juntoscomo cresce no frutoa árvore nova

No povo meu poema vai nascendocomo no canavialnasce verde o açúcar

No povo meu poema está madurocomo o solna garganta do futuro

Meu povo em meu poemase refletecomo a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvomenos como quem cantado que planta

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202 FErrEirA GULLAR

A BOmBA SUJA

Introduzo na poesiaa palavra diarreia.Não pela palavra friamas pelo que ela semeia.

Quem fala em flor não diz tudo.Quem me fala em dor diz demais.O poeta se torna mudosem as palavras reais.

No dicionário a palavraé mera ideia abstrata.Mais que palavra, diarreiaé arma que fere e mata.

Que mata mais do que faca,mais que bala de fuzil,homem, mulher e criançano interior do Brasil.

Por exemplo, a diarreia,no Rio Grande do Norte,de cem crianças que nascem,setenta e seis leva à morte.

É como uma bomba Dque explode dentro do homemquando se dispara, lenta,a espoleta da fome.

É uma bomba-relógio(e relógio é o coração)que enquanto o homem trabalhavai preparando a explosão.

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DENTro DA NoiTE VELoZ 203

Bomba colocada nelemuito antes dele nascer;que quando a vida despertanele, começa a bater.

Bomba colocada nelepelos séculos de fomee que explode em diarreiano corpo de quem não come.

Não é uma bomba limpa:é uma bomba suja e mansaque elimina sem barulhovários milhões de crianças.

Sobretudo no nordestemas não apenas ali,que a fome do Piauíse espalha de leste a oeste.

Cabe agora perguntarquem é que faz essa fome,quem foi que ligou a bombaao coração desse homem.

Quem é que rouba a esse homemo cereal que ele planta,quem come o arroz que ele colhese ele o colhe e não janta.

Quem faz café virar dólare faz arroz virar fomeé o mesmo que põe a bombasuja no corpo do homem.

Mas precisamos agoradesarmar com nossas mãosa espoleta da fomeque mata nossos irmãos.

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204 FErrEirA GULLAR

Mas precisamos agoradeter o sabotadorque instala a bomba da fomedentro do trabalhador.

E sobretudo é precisotrabalhar com segurançapra dentro de cada homemtrocar a arma da fomepela arma da esperança.

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POEmA SUJO(1975)

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PoEmA SuJo 283

turvo turvoa turvamão do soprocontra o muroescuromenos menosmenos que escuro

menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furoescuromais que escuro:claro

como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa algumae tudo(ou quase)

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhasazulera o gatoazulera o galoazulo cavaloazulteu cu

tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma entrada para

eu não sabia tunão sabiasfazer girar a vida

com seu montão de estrelas e oceanoentrando-nos em ti

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284 FErrEirA GULLAR

bela belamais que belamas como era o nome dela?Não era Helena nem Veranem Nara nem Gabrielanem Tereza nem MariaSeu nome seu nome era...Perdeu-se na carne fria

perdeu-se na confusão de tanta noite e tanto diaperdeu-se na profusão das coisas acontecidas

constelações de alfabetonoites escritas a gizpastilhas de aniversáriodomingos de futebolenterros corsos comíciosroleta bilhar baralho

mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casae de tempo: mas está comigo está

perdido comigoteu nomeem alguma gaveta

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do Mara-nhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos e pais dentro de um enigma?

mas que importa um nomedebaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entrecadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante degarfos e facas e pratos de louça que se quebraram já

um prato de louça ordinária não dura tantoe as facas se perdem e os garfosse perdem pela vida caempelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos

e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-[cidreira

e as grossas orelhas de hortelãquanta coisa se perdenesta vida

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PoEmA SuJo 285

Como se perdeu o que eles falavam alimastigandomisturando feijão com farinha e nacos de carne assada

e diziam coisas tão reais como a toalha bordadaou a tosse da tia no quartoe o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa janela

tão reais quese apagaram para sempre

Ou não?

Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigemque me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gáse mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,

ou dentro de um ônibusou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico

acima do arco-írisperfeitamente forado rigor cronológicosonhando

Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastasbalcões de quitanda pedras da rua da Alegria beirais de casas cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa dojantar,

voais comigosobre continentes e mares

E também rastejais comigopelos túneis das noites clandestinassob o céu constelado do paísentre fulgor e lepra

debaixo de lençóis de lama e de terrorvos esgueirais comigo, mesas velhas,

armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,dobrais comigo as esquinas do sustoe esperais esperais

que o dia venha

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E depois de tantoque importa um nome?

Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:te chamo aurorate chamo água

te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinemanas aparições do sonho

— E esta mulher a tossir dentro de casa!Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,o perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas dedentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)E todos buscavam

num sorriso num gestonas conversas da esquinano coito em pé na calçada escura do Quartelno adultériono rouboa decifração do enigma

— Que faço entre coisas?— De que me defendo?

Num cofo no quintal na terra preta cresciam plantas e rosas(como pode o perfumenascer assim?)

Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciampés de tomateNos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins

mais verdes que a esperança(ou o fogode teus olhos)

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Era a vida a explodir por todas as fendas da cidadesob

as sombras da guerra:a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg catalinas

torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os comunistas o repórter esso a discussão na quitanda o querosene o sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as montanhas de metais velhos o italiano assassinado na praça João Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,

pelo meu carneiro mansopor minha cidade azulpelo Brasil salve salve,

Stalingrado resiste.A cada nova manhãnas janelas nas esquinas na manchete dos jornais

Mas a poesia não existia ainda.Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas.Olhos. Braços. Seios. Bocas.Vidraça verde, jasmim.Bicicleta no domingo.Papagaios de papel.Retreta na praça.Luto.Homem morto no mercadosangue humano nos legumes.Mundo sem voz, coisa opaca.

Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz degente, barulho escuro do corpo, entrecortado de relâmpagos

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Do corpo. Mas que é o corpo?Meu corpo feito de carne e de osso.

Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,flexível armação que me sustenta no espaço

que não me deixa desabar como um sacovazio

que guarda as vísceras todasfuncionando

como retortas e tubosfazendo o sangue que faz a carne e o pensamento

e as palavrase as mentiras

e os carinhos mais doces mais sacanasmais sentidos

para explodir como uma galáxiade leiteno centro de tuas coxas no fundode tua noite ávida

cheiros de umbigo e de vaginagraves cheiros indecifráveiscomo símbolosdo corpo

do teu corpo do meu corpocorpoque pode um sabre rasgar

um caco de vidrouma navalha

meu corpo cheio de sangueque o irriga como a um continenteou um jardimcirculando por meus braçospor meus dedosenquanto discuto caminholembro relembro

meu sangue feito de gases que aspirodos céus da cidade estrangeiracom a ajuda dos plátanos

e que pode — por um descuido — esvair-se por meu

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pulso aberto

Meu corpoque deitado na cama vejocomo um objeto no espaço

que mede 1,70me que sou eu: essa coisadeitadabarriga pernas péscom cinco dedos cada um (por quenão seis?)joelhos e tornozelospara mover-sesentar-selevantar-se

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundomeu corpo feito de águae cinza

que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrioe me sentir misturado

a toda essa massa de hidrogênio e hélioque se desintegra e reintegrasem se saber pra quê

Corpo meu corpo corpoque tem um nariz assim uma boca

dois olhose um certo jeito de sorrirde falar

que minha mãe identifica como sendo de seu filhoque meu filho identificacomo sendo de seu pai

corpo que se para de funcionar provocaum grave acontecimento na família:sem ele não há José de Ribamar Ferreiranão há Ferreira Gullar

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e muitas pequenas coisas acontecidas no planetaestarão esquecidas para sempre

corpo-facho corpo-fátuo corpo-fato

atravessado de cheiros de galinheiros e ratona quitanda ninho

de ratococô de gato

sal azinhavre sapatobrilhantina anel barato

língua no cu na boceta cavalo-de-crista chatonos pentelhos

corpo meu corpo-faloinsondável incompreendido

meu cão doméstico meu donocheio de flor e de sono

meu corpo-galáxia aberto a tudo cheiode tudo como um monturo

de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfoniassambas e frevos azuisde Fra Angelico verdesde Cézannematéria-sonho de Volpi

Mas sobretudo meucorponordestino

mais que issomaranhense

mais que issosão-luisense

mais que issoferreirensenewtoniensealzirense

meu corpo nascido numa porta e janela da rua dos Prazeresao lado de uma padariasob o signo de Virgo

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sob as balas do 24º BCna revolução de 30

e que desde então segue pulsando como um relógionum tique-taque que não se ouve

(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)tique-taque tique-taque

enquanto vou entre automóveis e ônibusentre vitrinas de roupasnas livrariasnos barestique-taque tique-taque

pulsando há 45 anosesse coração oculto

pulsando no meio da noite, da neve, da chuvadebaixo da capa, do paletó, da camisadebaixo da pele, da carne

combatente clandestino aliado da classe operáriameu coração de menino

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NA vERTIGEm DO DIA(1975‑1980)

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NA VErTiGEm Do DiA 345

mINHA mEDIDA

Meu espaço é o dia de braços abertostocando a fímbria de uma e outra noiteo diaque giracolado ao planetae que sustenta numa das mãos a aurorae na outraum crepúsculo de Buenos Aires

Meu espaço, cara, é o dia terrestrequer o conduzam os pássaros do marou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil o diamedido mais pelo meu pulsodo quepelo meu relógio de pulso

Meu espaço — desmedido — é o pessoal aí, é nossa gente,de braços abertos tocando a fímbriade uma e outra fome, o povo, cara,que numa das mãos sustenta a festae na outra uma bomba de tempo

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346 FErrEirA GULLAR

TRADUZIR-SE

Uma parte de mimé todo mundo;outra parte é ninguém:fundo sem fundo.

Uma parte de mimé multidão;outra parte estranhezae solidão.

Uma parte de mimpesa, pondera;outra partedelira.

Uma parte de mimalmoça e janta;outra partese espanta.

Uma parte de mimé permanente;outra partese sabe de repente.

Uma parte de mimé só vertigem;outra parte,linguagem.

Traduzir uma partena outra parte— que é uma questão

de vida ou morte —será arte?

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BARULHOS(1980‑1987)

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BAruLHoS 391

TANGA

Havia o que se viae o que não se via:

a manhã luminosaencobria a trevaabissal e velha dos espaços.

O mar batiaem frente à Farme de Amoedo e ali

na areiaa gente mal o ouvia se o ouvia.

E era então que ela súbito surgiarindo entre os cabelosa raquete na mão

e se moviaah, como se movia!

E nessa translação nos descobriasuas fases solares:

o ombroo dorsoa bunda

lunar?estelar?

a bundaque (sob uma pétalade azul)

celeste me sorria.

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392 FErrEirA GULLAR

ExERCíCIO DE RELAx

Pé direito, meu velho, relaxa,esquece a inflação,

quero contigo iniciaresta lenta descida no sono...

Mergulha nele, pernaminha, até o joelho... assim...

e agora,pé esquerdo,

você também, que nunca fez um gol na vida,que só topadas deu,

adormece,afrouxa esse feixe de tendões e ossos e te abre

à paz.Joelhos meus, pensemnos oitizeirosda Avenida Silva Maiae durmam,

e que as águas do sono subam pelos músculos da coxaadductor longus, quadriceps femorise pelo fêmure pelo ânuse pelo pênise me cinjam a cintura.

Deitado, já metade de mim desceu na sombra. A outrametadesofre ainda a crise do petróleo.

Relaxa, abdômen, que está tudo sob controle, músculosdo peito e dos braços,

abandonem-se,para que a paz escorra até a palma da mão:

a esquerda anônima, a direitatão conhecida de mim quanto meu rostoe que, como ele, mais disfarçao que eu somos

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BAruLHoS 393

o que eu sonosmas quem, dentre as hostes celestes, me reconheceria

pelo caralho?

Cala-te, boca,silencia, maxilar arcaico,apaga-te, arco voltaicodo que o verso não diz.

E agora, tu, cabeça,dura cabeça nordestina,

dorme,dorme, revolta,sociedade futura pátria igual,poema que iluminaria a cidade,dorme

onde me sonho(caixa de flores)e donde espio o mundopor duas órbitas

e duas pálpebrasque finalmentese fechamsobre mim.

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mUITAS vOZES(1989‑1999)

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muiTAS VoZES 455

OUvINDO APENAS

e gato e passarinho e gatoe passarinho (na manhãveloz e azul de ventania e ar vores voando) e cãolatindo e gato e passarinho (só rumoresde cãoe gatoe passarinho ouço deitado no quartoàs dez da manhã de um novembro no Brasil)

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456 FErrEirA GULLAR

ELECTRA II

Qualquer coisaeu esperariaver no céuda rua Paula Matosnaquele dia por voltadas dez da manhã menosum Electra IIda Varig (entreos ramos quaseao alcancedas mãos) num susto!

ii

Foi um sustovê-lo: vastopássaro metálico azul parado (umsegundo) entreos ramos renteaos velhos telhados àquela horada manhã,de dentro de meu carro.

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iii

Electra II épara mim ponte-aéreaRio–S. Paulo é cartãode embarquena mão e ventonos cabelos ésubir a escadae voar Electra IIpara mimé a cidadedo alto a pontee a salgadabaía e a IlhaFiscalantes de pousar

e sentir depoiso odordo queroseneardente

Natural poisencontrá-lono aeroportoSantos Dumont

mas nuncana rua Paula Matosainda que acima da minha

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458 Ferreira Gullar

cabeça (edas casas) espiandoentre os ramos

como se me buscassepela cidade

iV

Os moradoresda rua ignoramque naqueleinstante um poematenha talvez nascido

não escutaramseu estampido conversavam na sala na cozinha ou preparando o almoço e no quintal alguém ergue um girau para plantas

Se fosse um assaltocom tiros um crimede morte na esquinatodos saberiam masna rua havia

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muiTAS VoZES 459

àquela hora muito barulho: de cão de moto e do próprio aviãoque gerou o poema:

são vozes do diaque ninguémestranha: comoo trepidar do tempoque escorreda torneira

por isso se um poema nasce ali não se percebe

e mesmo senaquele momentofizesse total

silênciona ruaainda assimninguém ouviriadetonaro poema

porque seu estampido(como certosgritos)por alto demaisnão pode ser ouvido

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Talvez que um gatoouum cão

e quem sabe ocanário

— de melhor ouvido —tenham escutadoa detonação.

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Em ALGUmA PARTE ALGUmA

(2000‑2010)

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Em ALGumA PArTE ALGumA 553

fICA O NãO DITO POR DITO

o poema antes de escritonão é em mim mais que um aflito silêncioante a página em branco

ou melhorum rumorbranco ou um gritoque estanco já queo poeta que grita errae como se sabe bom poeta (ou cabrito) não berra

o poema antes de escritoantes de ser é a possibilidade do que não foi dito do que está por dizere que por não ter sido ditonão tem sernão é senãopossibilidade de dizer

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554 FErrEirA GULLAR

mas dizer o quê?dizer olor de frutacheiro de jasmim?

mas como dizê-lose a fala não tem cheiro?

por isso é que dizê-lo é não dizê-loembora o diga de algum modopois não calo

por isso que embora sem dizê-lo falo:falo do cheiro da fruta do cheiro do cabelo do andar do galo no quintale os digo sem dizê-los bem ou mal

se a frutanão cheira no poemanem do galoneleo cantar se ouvepode o leitor ouvir

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Em ALGumA PArTE ALGumA 555

(e ouve)outro galo cantarnoutro quintal que houve

(e que se eu não dissesse não ouviriajá que o poeta diz o que o leitor — se delirasse — diria)

mas é que antes de dizê-lonão se sabeuma vez que o que é dito não existiae o que diz pode ser que não diria

ese dito não fossejamais se saberia

por issoé correto dizerque o poetanão revela o oculto:inventa criao que é dito (o poemaque por um triz não nasceria)

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556 FErrEirA GULLAR

mas porque o que ele dissenão existia antes de dizê-lo não o sabia

então ele disse o que dissesem saber o que dizia?então ele o sabia sem sabê-lo?então só soube ao dizê-lo?ou porque se já o soubesse não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim o poeta inventa o que dizere que só ao dizê-lo vai sabero que precisava dizerou poderia pelo que o acaso ditee a vida provisoriamente permite

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