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02. Historicidade da ficção 1: Mímesis, diégesis e póiesis na antiguidade Helmut Galle [email protected]

FICCIONALIDADE

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02. Historicidade da ficção 1: Mímesis, diégesis e póiesis na

antiguidade

Helmut [email protected]

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Teses sobre o surgimento da consciência da ficcionalidade

1. Desenvolvimento da ficcionalidade no processo da modernidade a partir do renascimento

2. Descobrimento da ficcionalidade na antiguidade (Aristóteles) e uma segunda vez na modernidade >> Rösler (1980)

Distinção de ficção (parábolas, fábulas) da ficcionalidade

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O processo histórico segundo Rösler (1980)desenvolvimento de um conceito de ficção entre

Homero e Aristóteles (800 – 400)1. acontece paralelamente ao estabelecimento da

cultura da escrita e suas consequências: 2. crescimento dos registros de material da tradição3. deslocamento da recepção da audição coletiva

para a leitura individual4. evidência de versões antagônicas nas diferentes

tradições provoca a crítica5. contra o antigo princípio da autoridade da tradição

estabelece-se o princípio da verdade

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Homero

„Musa narra-me as aventuras do herói engenhoso que …“ (Od. I,1)

„Canta, oh deusa, a cólera do Pelida Aquiles …“ (Il. I, 1)

„Dizei-me agora, Musas, que tendes as moradas olímpias, pois vós sois deusas, presenciais, vistes tudo,mas nós a fama só ouvimos e não vimos nada: quem eram os comandantes e os soberanos dos dânaos;“

(Il. II, 484-487; Trad. Francisco Murari Pires)

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Hesíodo

Esta palavra primeiro disseram-me as DeusasMusas olimpíades, virgens de Zeus porta-égide:"Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatose sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações".Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas,por cetro deram-me um ramo, a um loureiro viçosocolhendo-o admirável, e inspiraram-me um cantodivino para que eu glorie o futuro e o passado,

Teogonia (24-33)

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Hecateu de Mileto (560 – 480 a.C.)

„Escrevo isto como me parece verdadeiro. Porque são muitos os discursos dos gregos e ridículos, como me parece.“

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• Na época homérica (?750-650 a.C.?) não existe distinção entre ficção e realidade: a epopeia é considerada verdade

• Xenófanes (570-500 a.C.): crítica da representação dos deuses pelos poetas: eles praticam tudo que seria vergonha entre os homens: roubo, traição, adultério.

• Heráclito (520-460): base da compreensão é a racionalidade do autor (e do seu texto) não a abrangência do seu conhecimento

• Heráclito cita versos isolados de Homero (sem contexto) e contesta a verdade: A exclamação de Aquiles que lamenta a briga entre os homens e entre os deuses é criticada porque a briga a condição da harmonia dos antagonismos (Rösler 1980: 287 s.)

• historiografia e a lírica pós-homérica não colocam em questão a verdade da poesia ou que a poesia deve ser julgada pelo princípio da verdade

• Teágenes (séc. VI a.C.): interpretação alegórica de Homero: um filósofo natural

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Rösler (1980: 306): 4 fases na avaliação da verdade da poesia:

1. poesia é verdadeira a princípio2. poetas podem cometer erros por não serem

abençoados pelas musas (Hesíodo)3. poetas mentem por falta de responsabilidade

(Píndaro)4. poetas preferem, às vezes, um efeito maior à

verdade (função do prazer domina o “docere”)

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Platão (438-348 a.C.): Politeia (A república)

• (II, 17, 377d) os poetas (Homero e Hesíodo) são vistos como instrutores que formam as ideias dos jovens (particularmente os futuros guerreiros); na medida em que apresentam deuses imorais, não devem ser admitidos: os maus exemplos da poesia corrompem o caráter dos homens.

• (III, 3) Os vícios de heróis e deuses não podem corresponder à verdade porque heróis e deuses são prudentes, valentes e justos. As descrições dos poetas não são confiáveis, são mentiras

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(III, 6) Distinção de três tipos de representação poética:

• dihégesis: o poeta fala com sua própria voz, narrando os acontecimentos (narração simples; sem discurso direto)

• mímesis: o poeta não fala com a própria voz mas deixa falar exclusivamente as personagens; o poeta „imita“ as vozes de pessoas >>> tragédia

• o tipo misto: o poeta fala às vezes com a própria voz, às vezes imita a voz de outros (narração com discurso direto) >>> epopeia homérica

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Poeta como o artesão: cria coisas (poiésis / poiein) que servem a um certo objetivo

• (X, 4) o poeta não tem conhecimento verdadeiro das coisas, porque ele somente imita (como o pintor não compreende o fazer do sapateiro quando pinta o sapateiro); a poesia, portanto não é um acesso à verdade das coisas

• (X, 2) as coisas da realidade (os produtos do artesanato) são por sua vez imitações das ideias e por isso a a poesia é imitação da imitação

• (onde Platão aprecia o discurso do poeta, trata-se da fala entusiástica, da inspiração divina e portanto da sua participação do império das ideias, não de mímesis; Ion 532e-535a)

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• (X, 5-7) a mímesis / a imitação de ações indecentes e pouco virtuosas habitua a pessoa a vícios e corrompe o caráter

• (X, 8) o que se admite no estado ideal é somente a poesia do tipo misto (com narração dominante) que apresenta homens virtuosos

Platão não coloca em questão que a diferenciação entre verdade / falso seja adequada para a poesia; para ele a poesia é, a princípio, mais falsa do que verdadeira porque os poetas não têm o mesmo acesso a verdade como os homens que se utilizam da sua racionalidade

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Aristóteles (384-322 a.C)

Aristóteles atribui uma outra forma de conhecimento à poesia, distinguindo o poeta e o historiador (Poética 9, 1452)

• inversão: a verdade da poesia é maior do que a da historiografia

• inversão do conceito mímesis: é positiva por • apelar ao prazer do ser humano • não necessariamente refere ao mundo real (?)• permite prazer em assuntos negativos / horrosos

(função purgativa, cátarsis)

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A posição de Aristóteles foi preparada por Gorgias

„Mas a tragédia floresceu e ficou famosa, porque virou uma emocionante experiência auditiva e visual dos homens daquela época e criou através de histórias e afetos um engano do tipo que Gorgias comenta dessa maneira: quem engana é mais justo do que aquele que não engana e o enganado é mais sábio do que aquele que não se deixou enganar. Pois quem engana é mais justo porque ele o fez após anunciá-lo antes; o enganado é mais sabio porque a capacidade sensitiva pode ser enganada facilmente pelo prazer nos discursos.“ (Gorgias citado por Plutarco, De gloria Atheniensium 5, 348)

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Encaminhamento pela ascensão da tragédia

• rapsodo, por presença física pode convencer seu público da verdade do seu discurso

• um ator (masculino) que incorpora uma outra pessoa (feminina) provoca a consciência do engano / da ilusão.

• para Aristóteles – a tragédia é a forma superior da poesia – a tragédia pode ser lida para exercer sua função

a Poética é a primeira teoria da recepção

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Posições divergentesKüpper:• conexão da mímesis com a dança e a música

instrumental exclui um entendimento como „ilusão“

• conexão com as artes plásticas (e seus produtos) exclui um entendimento como „performance“

• conexão com a aprendizagem exclui a referência a um modelo

• nem ficção, nem representação podem ser sinônimos adequados para a mímesis

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• definição negativa: uma praxe que não está no mesmo nível como a praxe geral; algo que difere da „coisa em si“

• fenômenos secundários cuja secundariedade fica consciente espontaneamente e instantaneamente para cada um que os percebe (41)

• mímesis não corresponde a imitatio naturae como na interpretação do renascimento

• os afetos trágicos resultam da consequência do caráter e das ações do herói que entram em conflito com a irrupção da contingência (um acontecimento inesperado)

• phobos e eleos (terror e piedade) são afetos não desejados nos jovens guerreiros da sociedade grega, por isso é necessário „purgar-se“ deles

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Kablitz• imitação de pessoas que atuam (prattontas) e

de mythos (ações) – não de objetos Schmitt• conceitos centrais de Aristóteles são pouco

explicados no texto – é necessário apoiar-se nos outros escritos

• a mímesis – o homem que atua – o universal – a necessidade – a verossimilhança – o possível – a catársis

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• Aristóteles não postulou a imitatio naturae (diferença dos historiadores)

• o verossímil e o possível não se refere ao verossímil em geral

• mito não se refere ao mito como histórias tradicionais de deuses e heróis mas a histórias com uma lógica interna (cap. 6)

• ênfase na unidade, necessidade do desenvolvimento, composição rigorosa

• imitação de ações / de homens que atuam

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• ação / mito não seria qualquer sequência de acontecimentos biográficos

• ação e atuação dos homens na tragédia não é qualquer movimento

• atuar somente pode um ser adulto e livre com caráter desenvolvido e inclinações “fixas”

• ação é somente que surge como decisão livre de um caráter determinado

• o poeta compõe a trama a partir de um caráter determinado e de ações motivadas pelo caráter

• essas ações estão expostas à contingência e resultam em felicidade / infelicidade

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• mímesis seria a capacidade do poeta de selecionar / imaginar / imitar as ações coerentes com um determinado caráter

• essa imaginação não coincide necessariamente com acontecimentos reais ou míticos

• o “universal” encontrado pelo poeta é a lógica de um certo comportamente humano em interação com a realidade contingente

• esse universal difere do pensamente abstrato do filósofo e constitui uma fonte cognitiva sui generis entre percepção imediata do real e conceito abstrato

• mímesis permanece vinculada à realidade, não é criação livre do poeta, tampouco a imitação da natureza

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Bibliografia

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