21
FICHA TÉCNICA Título original: e Bastard of Istanbul Autor do texto: Elif Shafak Copyright © Elif Shafak, 2007 Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015 Tradução: Maria João Freire de Andrade Composição, impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 384 347/14 1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730-132 Barcarena Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos são produto da imaginação do autor ou usados ficticiamente. alquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, eventos ou locais é mera coincidência.

FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

  • Upload
    vudang

  • View
    258

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

F ICHA TÉCNICA

Título original: The Bastard of IstanbulAutor do texto: Elif ShafakCopyright © Elif Shafak, 2007

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015

Tradução: Maria João Freire de AndradeComposição, impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 384 347/14

1.ª edição, Lisboa, janeiro, 2015

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

Brilho das Letras

Uma empresa Editorial Presença

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730-132 Barcarena

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos são produto da

imaginação do autor ou usados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas reais,

vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, eventos ou locais é mera coincidência.

ABastarda-PDF_imac.indd 6 11/28/14 5:21 PM

Page 2: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

Era uma vez, e não era uma vez. As criaturas de Deus eram tão abundantes como grãos, e falar demasiado era um pecado...

— Preâmbulo de um conto turco...e de um arménio

ABastarda‑PDF_imac.indd 9 11/25/14 3:55 PM

Page 3: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

UM

Canela

O que quer que caia do céu, não o deveis amaldiçoar. Isso inclui a chuva.

Não interessa aquilo que possa cair, não interessa quão pesado é o aguaceiro ou quão gelado é o granizo, nunca deveis proferir profanidades contra o que quer que os céus possam guardar para nós. Todos o sabem. E isso incluía Zeliha.

No entanto, ali estava ela naquela primeira sexta ‑feira de julho, a caminhar por um passeio que fluía junto do tráfego irremedia-velmente entupido; a apressar ‑se para uma consulta para a qual já estava atrasada, a praguejar como um soldado, a sibilar uma profanidade atrás de outra contra as pedras partidas do pavi-mento; a vociferar contra os seus saltos altos, contra o homem que a seguia, contra todos e cada um dos condutores que buzinavam freneticamente, quando era um facto urbano que aquele barulho não surtia qualquer efeito para descongestionar o trânsito, contra toda a dinastia otomana por outrora ter conquistado a cidade de Constantinopla, e depois ter ‑se mantido fiel ao seu erro, e sim, também contra a chuva... Aquela maldita chuva estival.

A chuva ali é uma agonia. Noutras partes do mundo, é muito possível que uma enxurrada chegue como uma dádiva para quase tudo e quase todos — boa para as colheitas, boa para a fauna e para a flora e, com alguns salpicos extra de romantismo, boa para os amantes. Contudo, não é isso que se passa em Istambul. A chuva, para nós, não é necessariamente acerca de se ficar molhado. Nem sequer é acerca de se ficar sujo. Quando muito, é acerca de se ficar zangado. É lama e caos e fúria, como se já não os tivéssemos

ABastarda‑PDF_imac.indd 11 11/25/14 3:55 PM

Page 4: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

12 ♦ E l I f S h A f A k

em doses suficientes. E luta. É sempre acerca da contenda. Como gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam ‑se para uma luta fútil contra os pingos. Não se pode dizer que estão completamente sozinhos nessa escaramuça, pois também as ruas fazem parte dela, com os seus nomes antediluvianos pintados em letreiros de lata; as pedras tumulares de tantos santos, espalhadas por todas as direções; as pilhas de lixo, que aguardam em quase todas as esquinas; os hediondamente enormes fossos de construção, que em breve serão transformados em edifícios modernos e reluzentes; e as gaivotas... Enfurece ‑nos a todos, quando o céu se abre e nos cospe na cabeça.

Mas então, quando as últimas gotas atingem o chão e muitas mais se empoleiram instáveis nas folhas agora sem pó, nesse momento desprotegido, quando não se tem bem a certeza se acabou finalmente de chover, e nem a própria chuva tem essa certeza, nesse intervalo exato, tudo se torna sereno. Durante um longo momento, o céu parece desculpar ‑se pela confusão em que nos deixou. E nós, com pingos ainda no cabelo, lama aquosa nas bainhas das calças e tristeza no olhar, voltamos os olhos para o céu, agora com uma tonalidade cerúlea mais clara e mais translú-cida do que nunca. Olhamos para cima e não conseguimos evitar sorrir, em resposta. Perdoamos ‑lhe; fazemo ‑lo sempre.

Contudo, naquele momento, ainda chovia, e Zeliha tinha pouco — se é que algum — perdão no coração. Não tinha um guarda ‑chuva, pois prometera a si mesma que, se era uma imbe‑cil  suficientemente grande para atirar um monte de dinheiro a outro vendedor de rua por outro guarda -chuva, apenas para se esquecer dele aqui ou ali assim que o sol regressasse, então bem merecia ficar ensopada até aos ossos. Além disso, já era dema-siado tarde. Já estava completamente encharcada. Essa era a única coisa acerca da chuva que a assemelhava à dor: dávamos o nosso melhor para nos mantermos intocados, seguros e secos, mas, se e quando falhávamos, chegávamos a um ponto em que começá-vamos a ver o problema não em termos de gotas mas mais como um jorrar incessante, e assim decidíamos que bem podíamos ficar encharcados.

ABastarda‑PDF_imac.indd 12 11/25/14 3:55 PM

Page 5: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 13

A chuva pingava dos seus caracóis escuros sobre os ombros largos. Como todas as mulheres da família kazancı, Zeliha nascera com cabelo crespo, asa de corvo, mas, ao contrário das outras, gostava de o manter daquela maneira. De tempos a tempos, os seus olhos, verde -jade, normalmente escancarados e cheios de uma inteligência feroz, semicerravam ‑se em duas linhas de uma indiferença imaculada, inerente apenas a três grupos de pessoas: os irremediavelmente ingénuos, os irremediavelmente reserva-dos e os irremediavelmente esperançosos. Como não pertencia a nenhum desses grupos, era difícil perceber aquela indiferença, mesmo sendo uma indiferença tão fugaz. Num instante estava ali, a cobrir -lhe a alma de uma insensibilidade entorpecida; no ins tante seguinte tinha desaparecido, deixando ‑a sozinha no seu corpo.

Assim, naquela primeira sexta ‑feira de julho, ela sentia ‑se des-sensibilizada como se anestesiada, uma disposição poderosamente corrosiva para alguém tão entusiasta como ela. Seria por isso que, naquele dia, não sentira qualquer interesse em combater a cidade, nem mesmo a chuva? Enquanto a indiferença ioiô subia e descia com um ritmo próprio, o pêndulo da sua disposição oscilava entre dois polos opostos: de gelada a fumegante.

Enquanto Zeliha passava apressada, os vendedores de rua que vendiam guarda -chuvas, impermeáveis e lenços de plástico de cores berrantes olhavam -na espantados. Ela conseguia ignorar o seu olhar, tal como conseguia ignorar o olhar de todos os homens que olhavam famintos para o seu corpo. Os vendedores também olhavam desaprovadores para a sua reluzente argola de nariz, como se se encontrasse ali o indício para o seu desvio da modéstia, e assim o símbolo da sua luxúria. Zeliha sentia ‑se particularmente orgulhosa do seu piercing, porque fora ela mesma a fazê ‑lo. Doera, mas o piercing estava ali para ficar, tal como o seu estilo. fosse o assédio dos homens ou a reprovação das outras mulheres, a impossibilidade de andar sobre as pedras do passeio partidas ou saltar para ferries, e até as censuras constantes da mãe... a verdade é que não havia nenhum poder à superfície da Terra que pudesse fazer com que Zeliha, mais alta do que a maior parte das mulheres

ABastarda‑PDF_imac.indd 13 11/25/14 3:55 PM

Page 6: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

14 ♦ E l I f S h A f A k

daquela cidade, deixasse de usar minissaias de cores ofuscantes, blusas justas que exibiam o seu peito amplo, collants de náilon acetinado e, sim, aqueles saltos altíssimos.

Agora, enquanto pisava outra pedra solta do passeio, e obser-vava a poça de lama por baixo da pedra a lançar nódoas es curas sobre a sua saia lavanda, Zeliha soltou outra longa fiada de impre‑cações. Era a única mulher em toda a família — e uma das pou-cas entre todas as mulheres da Turquia — que usava linguagem obscena, de um modo tão aberto, clamoroso e conhecedor; assim, sempre que começava a praguejar, continuava a fazê ‑lo como se para compensar tudo o resto. Daquela vez não era diferente. Enquanto corria, Zeliha praguejou contra a administração muni-cipal, passada e presente, porque desde criança não se passara um único dia chuvoso em que aquelas pedras de passeio estivessem fixas e encaixadas. Contudo, antes de acabar de praguejar, deteve‑‑se abruptamente, levantou o queixo como se desconfiasse que alguém a chamara pelo nome, mas em vez de olhar em volta à procura de alguém conhecido, olhou a fazer beicinho para o céu nebuloso. Semicerrou os olhos, soltou um suspiro conflituoso e depois proferiu outra profanidade, daquela vez contra a chuva. Ora, segundo as regras inquebráveis e não escritas da Petite ‑Ma, a sua avó, aquilo era pura blasfémia. Podia não se gostar de chuva, era certo que não tinha de se gostar, mas sob nenhuma circuns-tância se devia amaldiçoar qualquer coisa que caísse dos céus, porque nada caía sozinho e atrás de tudo aquilo encontrava ‑se Alá, o Todo -Poderoso.

Decerto que Zeliha conhecia as regras inquebráveis e não escri tas da Petite ‑Ma, mas naquela primeira sexta ‑feira de julho sentia ‑se suficientemente mimada para não se importar. Além disso, o que quer que fora proferido fora proferido, tal como o que quer que fora feito fora feito, e estava agora desaparecido. Zeliha não tinha tempo para arrependimentos. Estava atrasada para a sua consulta com o ginecologista. Não era na verdade um risco significativo, já que, no momento em que reparamos que estamos atrasados para uma consulta com o ginecologista, podemos decidir nem sequer ir.

ABastarda‑PDF_imac.indd 14 11/25/14 3:55 PM

Page 7: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 15

Um táxi amarelo com autocolantes a cobrirem todo o para -cho-ques traseiro parou de repente. O condutor, um homem mo reno de aparência grosseira com um bigode à Zapata e um incisivo de ouro, que bem podia ser um violador fora de serviço, baixara todas as janelas e, do interior, ouvia -se uma estação de rock local a berrar «like a Virgin», de Madonna. havia uma discordância gritante entre a aparência tradicional do homem e as suas preferências musicais inconvencionais. O homem travou bruscamente, enfiou a cabeça fora da janela e, depois de assobiar a Zeliha, ladrou: «Quero um pouco disso!» As palavras que se seguiram foram abafadas por Zeliha.

— O que é que se passa contigo, pervertido? Nesta cidade, uma mulher não pode andar em paz?

— Mas porquê andar quando te posso dar boleia? — perguntou o motorista. — Não queres que esse corpo sexy fique molhado, pois não?

Enquanto Madonna gritava em fundo «My fear is fading fast, been saving it all for you», Zeliha começou a praguejar, quebrando assim outra regra inquebrável e não escrita, daquela vez não da Petite ‑Ma, mas da Prudência feminina. Nunca se pragueja contra quem nos assedia.

Regra de Ouro da Prudência para Uma Mulher de Istam bul: Quando assediada na rua, nunca responder, já que uma mulher que responde, e muito mais uma que pra gueja contra quem a assedia, apenas irá fazer aumentar o entusiasmo deste último!

Zeliha conhecia aquela regra e sabia que não a devia violar, mas aquela primeira sexta ‑feira de julho não era igual a nenhuma outra, e havia agora outro eu à solta no seu íntimo, um eu muito mais descuidado e audacioso, e assustadoramente furioso. Era essa outra Zeliha que habitava a maior parte do seu espaço interior e que controlava agora as coisas, tomando decisões em nome de ambas. Devia ser por isso que continuava a praguejar, a plenos pulmões. Enquanto afogava a voz de Madonna, os transeuntes e vendedores de guarda ‑chuvas juntaram ‑se para ver que tipo de sarilho estava agora a fermentar. No meio da confusão, o homem

ABastarda‑PDF_imac.indd 15 11/25/14 3:55 PM

Page 8: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

16 ♦ E l I f S h A f A k

que a seguia recuou, sabendo bem que não se devia meter com uma louca. Mas o motorista de táxi não era tão prudente nem tão tímido, já que acolheu com um sorriso todo aquele burburi-nho. Zeliha reparou no quão surpreendentemente brancos e sem falhas eram os dentes do homem, e não conseguiu evitar pensar se seriam coroas de porcelana. A pouco e pouco, voltou a sentir aquela vaga de adrenalina a crescer ‑lhe na barriga, a revolver ‑lhe o estômago, a acelerar ‑lhe a pulsação, fazendo ‑a sentir que ela, e não qualquer outra mulher em toda a sua família, poderia um dia matar um homem.

felizmente para Zeliha, foi nesse momento que o condutor do Toyota atrás do táxi perdeu a paciência e buzinou. Como se tivesse despertado de um pesadelo, Zeliha recuperou o bom senso e estre-meceu devido àquela situação desagradável. Como sempre, a sua tendência para a violência assustava -a. Calou -se num instante e desviou -se para o lado, tentando abrir caminho por entre a mul-tidão. No entanto, na sua pressa, o salto direito prendeu ‑se numa pedra solta da calçada. furiosa, puxou o pé para fora da poça que se formara por baixo da pedra. Quando o seu pé e sapato se solta-ram, o salto partiu ‑se, recordando ‑a assim de uma regra específica que nunca devia ter ignorado.

Regra de Prata da Prudência para Uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, não perder a calma, já que uma mulher que perde a calma perante quem a assedia, e assim reage de forma exagerada, só irá piorar as coisas para si mesma!

O motorista de táxi riu ‑se, a buzina do Toyota atrás dele voltou a soar, a chuva caiu com maior intensidade, e vários transeuntes soltaram em uníssono um som baixo e reprovador — embora fosse difícil perceber exatamente o que é que estavam a censurar. Entre o tumulto, Zeliha vislumbrou um autocolante iridescente no para ‑choques traseiro do táxi: não me chame desgraçado!, declarava. os desgraçados também têm coração. Enquanto permanecia ali parada, olhando apática para aquelas palavras, sentiu ‑se subitamente exausta — tão cansada e surpreendida

ABastarda‑PDF_imac.indd 16 11/25/14 3:55 PM

Page 9: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 17

que se poderia pensar que nem sequer se estava a debater com os problemas quotidianos de um habitante de Istambul. Parecia mais ser uma espécie de código críptico que uma mente distante tinha criado especificamente para que fosse ela a decifrá ‑la, e na sua mortalidade Zeliha nunca a conseguira descodificar. Passado pouco, o táxi e o Toyota afastaram -se e os transeuntes seguiram caminhos diferentes, deixando ali Zeliha a segurar no salto par-tido do sapato, tão terna e melancólica como se estivesse a car-regar um pássaro morto.

Ora, entre as coisas existentes no universo caótico de Zeliha podia haver pássaros mortos, mas decerto que não existia nem ter-nura nem melancolia. Ela não iria aceitar nada disso. Endireitou -se e esforçou -se por caminhar o melhor possível, só com um salto. Em breve, apressava -se entre a multidão de guarda -chuvas, expondo as suas pernas espantosas, coxeando enquanto andava como uma nota desafinada. Era um fio de lavanda, uma tonalidade indecorosa caída numa tapeçaria de castanhos, cinzentos, e mais castanhos e cinzentos. Embora a sua fosse uma cor discordante, a multidão era suficientemente cavernosa para engolir a sua desarmonia e fazê ‑la reentrar na sua cadência. A multidão não era um conglomerado de centenas de corpos doridos que respiravam, suavam, mas uma transpiração única, uma exalação única, um único corpo dorido debaixo de chuva. Sol ou chuva fazia pouca diferença. Andar em Istambul significava atrelar ‑se à multidão.

Enquanto Zeliha passava por dúzias de pescadores de aparên-cia grosseira silenciosamente parados ao lado uns dos outros ao longo da antiga Ponte Gálata, cada um segurando um guarda--chuva numa mão e uma cana de pesca na outra, ela invejou -lhes a sua capacidade para a imobilidade, aquela capacidade para esperar durante horas por peixe que não existia; ou se existia era tão minúsculo que, no fim, só podiam ser utilizados como isco para outros peixes que nunca seriam apanhados. Que espantosa aquela capacidade para conseguir tanto conseguindo tão pouco, para voltar para casa no final do dia de mãos vazias e, no entanto, satisfeitos! Naquele mundo, a serenidade gerava sorte e a sorte gerava felicidade, ou Zeliha desconfiava disso. Desconfiar era

ABastarda‑PDF_imac.indd 17 11/25/14 3:55 PM

Page 10: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

18 ♦ E l I f S h A f A k

a única coisa que podia fazer naquele momento específico, já que nunca sentira anteriormente aquela espécie de serenidade, e achava que nunca a conseguiria sentir. Pelo menos, não naquele dia. Definitivamente, não naquele dia.

Apesar da sua pressa, enquanto serpenteava através do Grand Bazaar, Zeliha abrandou. Não tinha tempo para fazer compras, mas iria entrar apenas para um olhar rápido, garantiu a si mesma, enquanto observava as montras das lojas. Acendeu um cigarro e, enquanto o fumo se soltava da sua boca, sentiu ‑se melhor, quase descontraída. Uma mulher que fumava na rua era algo não muito bem ‑visto em Istambul, mas quem se ralava? Zeliha encolheu os ombros. Não tinha já declarado guerra contra toda a sociedade? Pensando nisso, avançou para a parte mais antiga do bazar.

havia ali vendedores que a conheciam pelo primeiro nome, em especial os joalheiros. Zeliha tinha um ponto fraco por acessórios brilhantes, de todos os géneros. Ganchos de cristal, alfinetes de peito de pedrarias, brincos brilhantes, botões perlados, cachecóis com padrões de zebra, sacolas de cetim, xailes de chiffon, pompons de seda e sapatos, sempre de salto alto. Não se passava um dia sem que ela atravessasse aquele bazar sem se enfiar, pelo menos, nalgumas lojas, pechinchando com os vendedores, e acabando por pagar menos do que a quantia proposta, por coisas que nem sequer planeara comprar. Mas naquele dia limitou ‑se a passar por algumas bancas e espreitou para algumas montras. Apenas isso.

Demorou -se em frente de uma banca com frascos, potes e jar ros cheios de ervas e especiarias de todas as cores e feitios. Recordou-‑se que, naquela manhã, uma das suas três irmãs lhe pedira para comprar canela, embora não se lembrasse qual delas é que lhe pedira. Era a mais nova de quatro raparigas, que não conseguiam concordar em nada, mas que retinham a convicção idêntica de terem sempre razão e sentiam que não tinham nada a aprender com as outras, mas muito a ensinar. Era tão mau como perder a lotaria só por um número: qualquer que fosse a maneira como se tentasse considerar a situação, não nos conseguíamos livrar de nos sentirmos dominados por uma injustiça impossível de corri-gir. Apesar disso, Zeliha comprou canela, não em pó mas em pau.

ABastarda‑PDF_imac.indd 18 11/25/14 3:55 PM

Page 11: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 19

O  vendedor ofereceu ‑lhe chá, um cigarro e uma conversa, e ela não rejeitou nada. Enquanto estava ali sentada a conversar, os seus olhos despreocupados varreram as prateleiras, até se fixarem num serviço de chá de vidro. Também aquilo se encontrava entre a lista de coisas que não conseguia resistir a comprar: copos de chá com estrelas douradas, colheres finas e delicadas, e pires frágeis com ris-cos dourados à volta do rebordo. Já devia haver pelo menos trinta serviços de chá diferentes em casa, todos comprados por ela. Mas não fazia mal nenhum comprar mais um, já que se partiam com tanta facilidade.

— Tão irritantemente frágeis... — murmurou Zeliha, em voz baixa.

Era a única entre as mulheres kazancı capaz de se enfurecer com copos de chá quando eles se partiam. Entretanto, pelo seu lado, a Petite -Ma, de setenta e sete anos, desenvolvera uma abor-dagem totalmente diferente.

— lá se vai outro mau ‑olhado! — exclamava a Petite ‑Ma de cada vez que um copo de chá se estilhaçava e partia. — Ouviste aquele som agoirento? Crack! Oh, como ecoou no meu coração! Aquele era mau ‑olhado de alguém, tão invejoso e malicioso. Que Alá nos proteja a todos!

Sempre que um copo se partia ou um espelho se estilhaçava, a Petite ‑Ma soltava um suspiro de alívio. Afinal, dado o facto de não se conseguir varrer por completo todas as pessoas maléficas da superfície deste mundo enlouquecidamente rodopiante, era muito melhor fazer com que o seu mau ‑olhado embatesse contra uma fronteira de vidro do que penetrar profundamente no interior das almas inocentes de Deus e arruinar as suas vidas.

Vinte minutos depois, quando Zeliha se apressou a entrar num consultório elegante situado num dos melhores bairros da cidade, levava um salto partido numa mão e um serviço de copos de chá de vidro na outra. Assim que entrou, sentiu ‑se desanimada ao lembrar ‑se que deixara os paus de canela já embrulhados no Grand Bazaar.

* * *

ABastarda‑PDF_imac.indd 19 11/25/14 3:55 PM

Page 12: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

20 ♦ E l I f S h A f A k

Na sala de espera encontravam ‑se três mulheres, cada uma delas com um cabelo horrível, e um homem quase sem cabelo nenhum. Dada a maneira como estavam sentados, Zeliha reparou de imediato e deduziu cinicamente que a mais nova era a menos preocupada de todas, folheando languidamente as páginas de uma revista feminina, demasiado preguiçosa para ler os artigos, provavelmente ali para renovar a sua receita de pílulas anticoncecionais; a loira gorducha, junto da janela, que parecia estar no início da casa dos trinta e cujas raízes pretas suplicavam serem pintadas, oscilava nervosa sobre os pés, a sua mente aparentemente noutro sítio, talvez ali presente para um check ‑up de rotina e o seu Papanicolau anual. A terceira, que usava um véu e estava acompanhada pelo marido, parecia ser a menos composta das três, os cantos da sua boca virados para baixo, as sobrancelhas franzidas. Zeliha calculou que estava a ter dificuldade em engravidar. Ora aquilo, presumiu Zeliha, podia ser perturbador, dependendo das perspetivas. Ela pessoalmente não via a infertilidade como a pior coisa que podia acontecer a uma mulher.

— Olááááá! — chilreou a rececionista, forçando ‑se a esboçar um sorriso falso e pateta, tão bem ensaiado que não parecia nem falso nem pateta. — Está aqui para a consulta das três?

A rececionista parecia ter dificuldade em pronunciar a letra r, e como se para compensar esse facto dava -se a um trabalho extraor-dinário e erguia a voz para acentuar o som; e a acrescentar a tudo aquilo, voltava a sorrir sempre que a língua chocava com aquela maldita letra. Para lhe poupar aquele fardo, Zeliha assentiu de imediato e talvez com demasiado entusiasmo.

— E qual o motivo exato por que se encontra aqui, Miss Con‑sulta das Três horas?

Zeliha conseguiu ignorar o absurdo da pergunta. Sabia demasiado bem que era precisamente aquela alegria feminina incondicional e abrangente que lhe fazia grande falta na vida. Algumas mulheres eram sorridentes devotadas; sorriam com um sentido de dever espar-tano. Como é que alguém aprendia a dizer tão naturalmente algo tão pouco natural, perguntou ‑se Zeliha. Mas pondo de lado a pergunta que se insinuara nos confins da sua mente, respondeu:

— Um aborto.

ABastarda‑PDF_imac.indd 20 11/25/14 3:55 PM

Page 13: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 21

A palavra pairou no ar, e todos esperaram que ela fosse absor-vida. Os olhos da rececionista tornaram ‑se pequenos, depois grandes, enquanto o sorriso lhe desaparecia do rosto. Zeliha não conseguiu evitar sentir ‑se aliviada. Afinal, a alegria feminina incondicional e abrangente fizera surgir um vestígio vingativo.

— Tenho uma consulta... — disse Zeliha, enfiando um caracol atrás da orelha enquanto deixava o resto do cabelo cair ‑lhe à volta do rosto e sobre os ombros, como uma burca densa e preta. levantou o queixo, acentuando assim o nariz aquilino, e sentiu a necessidade de repetir, um pouco mais alto do que tencionara, ou talvez não. — Porque preciso de fazer um aborto.

Dividida entre registar imparcialmente a nova paciente e lançar um olhar reprovador a tal temeridade, a rececionista manteve -se imóvel, um caderno enorme forrado a cabedal aberto à sua frente. Passaram ‑se mais alguns instantes antes de começar, finalmente, a rabiscar. Entretanto, Zeliha murmurou:

— lamento estar atrasada. — O relógio na parede indicava que estava quarenta e seis minutos atrasada, e enquanto o seu olhar pousava nele, durante um segundo, ela pareceu distanciar -se. — foi por causa da chuva...

Aquilo era um pouco injusto para a chuva, já que o trânsito, as pedras soltas do passeio, a câmara municipal, o perseguidor, o moto-rista de táxi, já para não falar da paragem para compras, também tinham de ser tomados em consideração pelo seu atraso, mas Zeliha decidiu não falar daquilo. Podia ter violado a Regra de Ouro da Prudência para Uma Mulher de Istambul, podia também ter violado a Regra de Prata da Prudência para Uma Mulher de Istambul, mas manteve o seu terreno ao reger -se pela Regra de Cobre.

Regra de Cobre da Prudência para Uma Mulher de Istambul: Quando assediada na rua, é melhor esquecer o incidente assim que regressar ao seu caminho, já que recordar o incidente durante todo o dia só lhe dará mais cabo dos nervos!

Zeliha era suficientemente inteligente para saber que, mesmo que tivesse falado do assédio, outras mulheres, longe de se mos-

ABastarda‑PDF_imac.indd 21 11/25/14 3:55 PM

Page 14: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

22 ♦ E l I f S h A f A k

trarem compreensivas, teriam a tendência para julgarem a irmã assediada em casos como aquele. Por isso, manteve a sua resposta curta e a chuva permaneceu a única coisa a culpar.

— A sua idade, menina? — quis saber a rececionista.Ora aquela era uma pergunta irritante, e completamente desne-

cessária. Zeliha semicerrou os olhos à rececionista, como se ela fosse uma espécie de penumbra à qual era necessário os olhos habituarem‑-se para se conseguir ver. De repente, lembrara -se de uma triste verdade a seu respeito: a sua idade. Como demasiadas mulheres habituadas a agir acima e para lá da sua idade, sentia -se perturbada pelo facto de que, afinal, era muito mais nova do que gostaria de ser.

— Tenho dezanove anos — confessou.Assim que as palavras lhe saíram da boca, corou como se

tivesse sido apanhada nua em frente de todas aquelas pessoas.— Claro que vamos precisar do consentimento do seu marido —

prosseguiu a rececionista, já não num tom de voz chilreado, e sem perder tempo continuou para a pergunta seguinte, desconfiando de qual seria a resposta. — Posso perguntar ‑lhe, menina, se é casada?

Pelo canto do olho, Zeliha reparou na loira gorducha à sua direita e na mulher de véu à sua esquerda, a contorcerem ‑se pouco à von-tade. Enquanto o olhar inquiridor de todas as pessoas na sala se tor-nava mais pesado sobre ela, o esgar de Zeliha evoluiu até um sorriso beatífico. Não que estivesse a apreciar aquele momento tortuoso, mas a sua indiferença profundamente enraizada acabara de lhe sussurrar para não se importar com as opiniões das outras pessoas, já que no fim elas não tinham qualquer importância. Nos últimos tempos, Zeliha decidira purgar certas palavras do seu vocabulário, e agora que se lembrara dessa decisão, porque não começar com a palavra vergonha. Apesar disso, não tinha coragem para proferir em voz alta aquilo que agora já todas as pessoas na sala tinham percebido. Não havia nenhum marido para dar o seu consentimento àquele aborto. Não havia pai. Em vez de um Ba ‑ba*, havia apenas um Va ‑zio.

felizmente para Zeliha, o facto de não haver marido acabou por ser uma vantagem em relação às formalidades. Aparentemente

* Pai, em turco.

ABastarda‑PDF_imac.indd 22 11/25/14 3:55 PM

Page 15: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 23

não precisava da aprovação escrita de ninguém. Os regulamentos burocráticos estavam menos ansiosos por salvarem bebés nascidos fora do casamento do que aqueles nascidos de casais. Um bebé sem pai em Istambul era apenas outro bastardo e um bastardo apenas outro dente a abanar, pronto para cair a qualquer momento do maxilar da cidade.

— O seu lugar de nascimento? — continuou a rececionista, lugu‑bremente.

— Istambul!— Istambul?Zeliha encolheu os ombros como se a dizer: Onde mais poderia

ser? Em que outro sítio à superfície da Terra, senão aqui? Ela per-tencia àquela cidade! Não era aquilo visível no seu rosto? Afinal, Zeliha considerava ‑se uma verdadeira habitante de Istambul, e como se a repreender a rececionista por não conseguir ver um facto tão óbvio, virou -lhe as costas sobre o salto partido e instalou ‑se na cadeira ao lado da mulher do véu. foi só nesse momento que reparou no marido da última, que estava sentado imóvel, quase paralisado pelo embaraço. Em vez de julgar Zeliha, o homem parecia estar a chafurdar no desconforto de ser ali o único macho, numa zona tão flagrantemente feminina. Por um instante, Zeliha sentiu pena dele. Ocorreu ‑lhe pedir ao homem para ir até à varanda e fumar um cigarro com ela, já que tinha a certeza de que ele fumava. Mas isso podia ser mal interpretado. Uma mulher sol-teira não podia fazer tais convites a homens casados, e um homem casado iria mostrar hostilidade em relação a qualquer mulher estando ao lado da sua. Porque é que era difícil travar amizade com homens? Porque tinha de ser sempre assim? Porque é que não nos limitávamos a ir até à varanda, fumar um cigarro, trocar algumas palavras, e depois seguir por caminhos diferentes? Zeliha permaneceu sentada em silêncio durante um longo momento, não porque estivesse exausta (que estava) ou porque estivesse farta de tanta atenção (que também estava), mas porque queria estar junto da janela aberta; estava faminta dos sons da rua. A voz roufenha de um vendedor de rua infiltrou ‑se na sala:

— Tangerinas... Tangerinas frescas e cheirosas...

ABastarda‑PDF_imac.indd 23 11/25/14 3:55 PM

Page 16: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

24 ♦ E l I f S h A f A k

— Ótimo, continua a gritar — murmurou Zeliha para si mesma.Não gostava do silêncio. Na verdade, odiava o silêncio. Tudo

bem se as pessoas a olhassem na rua, no bazar, na sala de espera do médico, aqui e ali, dia e noite; não fazia mal que a observassem boquiabertas, e que a estudassem prolongadamente como se a vissem pela primeira vez. De uma maneira ou de outra, ela podia sempre combater o seu olhar. Aquilo com que não conseguia lutar era contra o seu silêncio.

— Tangerinista... Tangerinista... Quanto custa um quilo? — gri‑tou uma mulher de uma janela aberta, no piso superior de um pré-dio, do outro lado da rua.

Zeliha sempre se sentira espantada por ver o quão facilmente, quase sem esforço, os habitantes daquela cidade eram capazes de inventar nomes improváveis para profissões vulgares. Podia acrescentar -se um ‑ista a quase qualquer coisa que se vendesse no mercado e logo a seguir tinha -se outro nome para ser incluído na lista alongada de profissões urbanas. Assim, dependendo daquilo que estivesse à venda, podia ‑se facilmente ser chamado um «tan-gerinista», um «aguista», um «pãozista» ou... «abortacionista».

Agora, Zeliha já não tinha dúvidas. Não que precisasse que alguém soubesse aquilo de que já tinha a certeza, mas também fizera um teste na clínica que abrira recentemente no seu bairro. No dia da «grande abertura», o pessoal da clínica tinha dado uma receção exibicionista para um grupo de convidados selecionados e tinha colocado todos os bouquets e grinaldas no exterior junto da entrada, de modo que todas as pessoas que passassem na rua também pudessem ser informadas da ocasião. Quando no dia seguinte Zeliha visitara a clínica, a maior parte das flores já tinha murchado, mas os folhetos continuavam coloridos. teste de gra‑videz gratuito com cada teste de glicemia!, diziam em letras fluorescentes. A ligação entre ambos era desconhecida para Zeliha, mas apesar disso fizera o teste. Quando os resultados chegaram, o seu nível de glicemia era normal mas estava grávida.

— Menina, pode entrar agora! — chamou a rececionista, parada na soleira da porta, a lutar com outro r, daquela vez um que era difícil evitar na sua profissão. — O doutor... está à sua espera.

ABastarda‑PDF_imac.indd 24 11/25/14 3:55 PM

Page 17: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 25

Pegando na caixa de copos de chá e no salto partido, Zeliha levantou -se rapidamente. Sentiu todas as cabeças na sala a virarem--se na sua direção, registando todos os seus gestos. Em circunstân-cias normais, teria avançado o mais depressa possível. Contudo, naquele momento, os seus movimentos eram visivelmente lentos, quase lânguidos. Quando estava prestes a sair da sala, deteve ‑se, e como se impelida por um botão, virou -se, sabendo exatamente para quem olhar. Ali, no centro do seu olhar, encontrava ‑se um rosto muito amargurado. A mulher do véu esboçava um esgar, os olhos castanhos obscurecidos pelo ressentimento, os lábios movendo ‑se e amaldiçoando o médico e aquela jovem de dezanove anos prestes a abortar a criança que Alá lhe devia ter concedido a ela e não a uma rapariga leviana como aquela.

O médico era um homem corpulento, que transmitia força através da sua postura direita. Ao contrário da rececionista, não havia qualquer crítica no seu olhar, nenhuma pergunta insensata na ponta da sua língua. Pareceu acolher Zeliha com agrado. fê ‑la assinar alguns papéis, e depois mais papéis, para o caso de alguma coisa correr mal durante ou depois da operação. Junto dele, Zeliha sentiu os nervos a afrouxarem e a pele a tornar ‑se mais fina, o que era mau porque, sempre que os seus nervos afrouxavam e a sua pele se tornava mais fina, sentia ‑se tão frágil como um copo de chá, e sempre que se sentia tão frágil como um copo de chá, não o conseguia evitar mas ficava sempre perto das lágrimas. E aquilo era uma coisa que odiava verdadeiramente. Albergando desde criança um desprezo profundo por mulheres choronas, Zeliha pro-metera a si mesma nunca se transformar numa daquelas lamúrias andantes, que espalhavam lágrimas e queixas insignificantes por todo o lado onde iam, e das quais havia demasiadas à sua volta. Proibira ‑se de chorar. Até àquele dia, tinha conseguido em grande parte manter ‑se fiel à sua promessa. Assim, naquela primeira sexta ‑feira de julho, voltou a fazer o que fazia sempre para conter as lágrimas: respirou fundo e levantou o queixo, numa indicação de força. Contudo, daquela vez, algo correu terrivelmente mal e a exalação que estivera a conter saiu como um suspiro.

ABastarda‑PDF_imac.indd 25 11/25/14 3:55 PM

Page 18: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

26 ♦ E l I f S h A f A k

O médico não pareceu surpreendido. Estava habituado àquilo. As mulheres choravam sempre.

— Pronto, pronto — disse ele, tentando consolar Zeliha enquanto calçava um par de luvas cirúrgicas. — Vai correr tudo bem, não se preocupe. É apenas sonolência. Vai dormir, vai sonhar, e antes de acabar o seu sonho vamos acordá -la e irá para casa. Depois disso, não se vai lembrar de nada.

Quando Zeliha chorava daquela maneira, todas as suas expres-sões se tornavam discerníveis e as suas faces afundavam ‑se, acen-tuando assim a mais reveladora das suas feições: o nariz! Aquele seu nariz notavelmente aquilino que ela, tal como as irmãs, her-dara do pai; o seu, ao contrário do das irmãs, era mais afilado na ponta e alongava -se um pouco mais dos lados.

O médico deu -lhe uma palmadinha no ombro, estendeu -lhe um lenço de papel e depois entregou -lhe a caixa. Tinha sempre uma caixa de lenços de papel a mais, em cima da secretária. As empresas farmacêuticas distribuíam gratuitamente aquelas caixas. Juntamente com canetas, blocos e outras coisas que exibiam os nomes das suas empresas, fabricavam lenços de papel para pacien-tes femininas que não conseguiam parar de chorar.

— figos... figos deliciosos... figos maduros!Seria o mesmo vendedor ou outro? O que é que os seus clientes

lhe chamavam...? Figuista...?!, pensou Zeliha, enquanto se deitava numa marquesa numa sala branca e imaculada. Nem os instru-mentos nem sequer as facas a assustavam tanto como aquela brancura absoluta. havia algo na cor branca que se assemelhava ao silêncio. Eram ambos desprovidos de vida.

Na sua tentativa para se afastar da cor do silêncio, Zeliha dis‑traiu ‑se com uma mancha preta no teto. Quanto mais a fixava, mais a mancha se parecia com uma aranha preta. De início estava imóvel, depois começou a rastejar. A aranha tornou -se cada vez maior, enquanto o líquido da injeção começava a espalhar ‑se pelas veias de Zeliha. Em poucos segundos, estava tão pesada que nem conseguia mover um dedo. Enquanto tentava resis‑tir a ser arrastada para uma sonolência anestesiada, recomeçou a soluçar.

ABastarda‑PDF_imac.indd 26 11/25/14 3:55 PM

Page 19: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 27

— Tem a certeza de que é isto que quer? Talvez gostasse de pensar melhor no assunto — disse o médico, num tom de voz aveludado, como se Zeliha fosse um monte de poeira e ele tivesse medo de a varrer com o vento das suas palavras, se falasse um pouco mais alto. — Se desejar reconsiderar esta decisão, ainda não é demasiado tarde.

Mas era. Zeliha sabia que tinha de ser feito agora, naquela pri-meira sexta -feira de julho. Ou hoje ou nunca.

— Não há nada a considerar. Não a posso ter — ouviu ‑se proferir.O médico assentiu. Como se à espera daquele gesto, de repente

a oração de sexta ‑feira derramou ‑se na sala, vinda da mesquita próxima. Em segundos, outra mesquita juntou ‑se e depois outra e mais outra. O rosto de Zeliha contorceu ‑se, desconfortável. Ela odiava quando uma oração originalmente concebida para ser proferida com a pureza da voz humana era desumanizada por um rugido eletrovocal sobre a cidade, vinda de microfones e de colu-nas amplificadas. Passado pouco, o clamor era tão ensurdecedor que desconfiou que se passava algo de errado com o sistema de som e com todas as mesquitas da vizinhança. Ou isso ou os seus ouvidos tinham -se tornado extremamente sensíveis.

— Estará tudo acabado dentro de um instante... Não se preocupe.Era o médico a falar. Zeliha olhou para ele, intrigada. Estaria

o desprezo pela oração eletrónica tão patente no seu rosto? Não que ela se importasse. Entre todas as mulheres kazancı, era a única que era abertamente não religiosa. Quando criança costu-mava agradar ‑lhe imaginar Alá como o seu melhor amigo, o que claro não era uma coisa má, só que a sua outra melhor amiga era uma miúda loquaz, sardenta, que começara a fumar aos oito anos. A miúda era filha da senhora das limpezas, uma mulher curda e gorducha, com um bigode que nem sempre se dava ao trabalho de rapar. Naqueles tempos, a senhora das limpezas costumava ir à casa delas duas vezes por semana, levando sempre a filha. Passado algum tempo, Zeliha e a miúda tornaram ‑se boas amigas, tendo até cortado os indicadores para misturarem o seu sangue e tornarem -se irmãs de sangue para a vida. Durante uma semana, as duas crianças andaram com ligaduras ensanguentadas enroladas

ABastarda‑PDF_imac.indd 27 11/25/14 3:55 PM

Page 20: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

28 ♦ E l I f S h A f A k

à volta dos dedos, como símbolo da sua irmandade. Naqueles tem-pos, sempre que Zeliha rezava era naquela ligadura ensanguentada que pensava — se Alá também se pudesse tornar numa irmã de sangue... na sua irmã de sangue...

Desculpa, desculpava -se ela de imediato, e depois voltava a repe ti ‑lo uma e outra vez, porque sempre que nos desculpá va‑mos  a Alá tínhamos de o fazer três vezes: Desculpa, desculpa, des culpa.

Ela sabia que aquilo estava errado. Alá não podia nem devia ser personificado. Alá não tinha dedos nem sequer sangue. Tínhamos de evitar atribuir ‑lhe características humanas — quer dizer, atri‑buir ‑lhe —, o que não era simples, já que todos os seus — ou seja, Seus — noventa e nove nomes eram características atribuíveis aos seres humanos. Ele podia ver tudo, mas não tinha olhos; Ele podia ouvir tudo, mas não tinha orelhas; Ele podia chegar a todo o lado, mas não tinha mãos... De toda esta informação, uma Zeliha de oito anos chegara à conclusão de que Alá se poderia assemelhar aos seres humanos, mas que eles não se podiam assemelhar a Ele. Ou seria ao contrário? De qualquer maneira, tinha de se aprender a pensar nele — ou seja, Nele — sem se pensar Nele como ele.

A verdade é que ela não se teria importado muito com isso, se numa tarde não tivesse visto uma ligadura ensanguentada à volta do indicador de feride, a sua irmã mais velha. Aparentemente, a miúda curda também fizera dela uma irmã de sangue. Zeliha sen‑tiu ‑se traída. Só nesse momento é que percebeu que a sua verda-deira objeção a Alá não era o facto de ele — quer dizer, Ele — não ter sangue, mas antes o facto de ter demasiadas irmãs de sangue, demasiadas com as quais se preocupar, de modo que no fim aca-bava por não se ralar com ninguém.

Depois disso, o episódio da amizade não durara muito. Sendo o konak* tão grande e decrépito, e a sua mãe tão resmungona e obstinada, a senhora das limpezas despedira ‑se passado algum tempo, levando consigo a filha. Tendo sido abandonada sem uma melhor amiga, cuja amizade fora, na verdade, bastante duvidosa,

* Casa, em turco. (NT)

ABastarda‑PDF_imac.indd 28 11/25/14 3:55 PM

Page 21: FICHA TÉCNICA - static.fnac-static.com · gatinhos atirados para um balde cheio de água, os dez milhões de habitantes de Istambul armam‑se para uma luta fútil contra os pingos

A B A S T A R D A D E I S T A M B U l ♦ 29

Zeliha sentira um ressentimento subtil, mas não soubera bem em relação a quem — à senhora das limpezas, por se ter despedido; à  sua mãe, por a ter feito despedir ‑se; à sua melhor amiga, por jogar de dois lados; à sua irmã mais velha, por lhe roubar a sua irmã de sangue; ou a Alá. Estando as outras completamente fora do seu alcance, decidiu mostrar -se ressentida com Alá. Sentindo -se como uma infiel numa idade tão infantil, não viu qualquer motivo para não o continuar a ser como adulta.

Outro chamamento à oração de outra mesquita juntou ‑se aos chamamentos anteriores. As orações multiplicavam ‑se em ecos, como se criando círculos dentro de círculos. Estranhamente, na -quele momento no consultório do médico, sentiu ‑se preocupada por poder estar atrasada para o jantar. Perguntou ‑se o que é que iria ser servido à mesa naquela noite e qual das três irmãs teria cozinhado. Cada uma das suas irmãs era boa numa receita em particular, portanto, dependendo da cozinheira do dia, ela rezava por um prato diferente. Apeteceu -lhe pimentos -verdes rechea-dos — um prato particularmente complicado, já que cada uma das suas irmãs o fazia de uma maneira diferente. Pimentos... verdes... recheados... A sua respiração abrandou, enquanto a aranha come-çava a descer. Ainda a tentar fixar o teto, Zeliha sentiu que ela e a pessoa na sala não estavam a ocupar o mesmo espaço. Entrara no reino de Morfeu.

Também ali era tudo demasiado brilhante, quase lustroso. lenta e cautelosamente, avançou ao longo de uma ponte que fervilhava de carros e peões, e pescadores imóveis com minhocas a contorcerem ‑se nas pontas das canas de pesca. Enquanto navegava entre eles, todas as pedras do passeio que pisava estavam soltas e, para seu grande espanto, só existia o vazio por baixo delas. Passado pouco percebeu, horrorizada, que aquilo que estava por baixo também estava por cima, e que choviam pedras dos céus azuis. Quando uma pedra caía do céu, uma pedra soltava -se do passeio por baixo dela. Por cima do céu e debaixo da terra, havia apenas a mesma coisa: va ‑zio.

Enquanto as pedras choviam de cima, aumentando ainda mais a cavidade por baixo delas, Zeliha entrou em pânico, receando ser engolida pelo abismo faminto.

ABastarda‑PDF_imac.indd 29 11/25/14 3:55 PM