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FICHA TÉCNICA Título original: Berlusconi. e Epic Story of the Billionaire Who Took Over Italy Autor: Alan Friedman Copyright © 2015 Challian, Inc. Publicado por acordo com RCS Libri S.p.A., Milano Todos os direitos reservados Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015 Tradução: Pedro Bernardo Diretora de arte: Francesca Leoneschi Design da capa: Mauro De Toffol/theWorldofDOT Exceto onde assinalado, todas as fotografias pertencem ao arquivo privado de Silvio Berlusconi e são usadas com permissão Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, outubro, 2015 Depósito legal n. o 399 006/15 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.jacaranda.pt facebook.com/jacarandaeditora

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F ICHA TÉCNICA

Título original: Berlusconi. The Epic Story of the Billionaire Who Took Over ItalyAutor: Alan Friedman

Copyright © 2015 Challian, Inc.

Publicado por acordo com RCS Libri S.p.A., Milano

Todos os direitos reservados

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015

Tradução: Pedro Bernardo

Diretora de arte: Francesca Leoneschi

Design da capa: Mauro De Toffol/theWorldofDOT

Exceto onde assinalado, todas as fotografias pertencem ao arquivo privado

de Silvio Berlusconi e são usadas com permissão

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

1.a edição, Lisboa, outubro, 2015

Depósito legal n.o 399 006/15

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

Brilho das Letras

Uma empresa Editorial Presença

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

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Nota do Autor

Como jornalista americano que cresceu nos anos 70, sempre me fascinaram as entrevistas Frost‑Nixon, o célebre conjunto de

uma dúzia de entrevistas que o jornalista britânico David Frost fez ao presidente Richard Nixon na primavera de 1977, mais de dois anos depois da extraordinária demissão de Nixon.

Mesmo em miúdo, eu estava obcecado pelo Watergate, tal como os miúdos hoje em dia estão obcecados pelo Homem‑Aranha ou pelo Facebook. O drama. A intriga. As gravações das escutas da Casa Branca. O encobrimento. Os furos do Washington Post pelos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein. A humilhação do presidente dos Estados Unidos da América! A célebre frase de Nixon de que «as pessoas têm de saber se o presidente é ou não um escroque. Bem, eu não sou um escroque».

Eu não me fartava daquilo. Ansiava pelo próximo episódio da saga. Consumia‑a como se fossem rebuçados.

No verão de 1974, na nossa casa de férias no Norte do estado de Nova Iorque, obriguei a minha irmã mais velha, com 13 anos, a juntar‑se a mim para ver a cobertura diária, na televisão, das audiências de impugnação, que em agosto culminaram na extraor‑dinária demissão do presidente Nixon. Vimo‑lo demitir‑se e depois vimo-lo a despedir-se do pessoal da Casa Branca, com aquela continência bizarra, aquele seu aceno de desespero que ofereceu ao povo americano antes de entrar para o helicóptero no relvado da Casa Branca, para viajar até à base aérea de Andrews, para depois começar o seu longo voo de regresso à Califórnia, já caído em desgraça.

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Todas estas memórias me ocorreram no início de 2014, quando o meu editor italiano na Rizzoli, em Milão, me sugeriu que tentasse que Silvio Berlusconi, o dirigente mais pitoresco e controverso na moderna história política italiana, acedesse a contar‑me a his‑tória da sua vida. Já conhecia Berlusconi há trinta anos, desde os meus primeiros tempos como correspondente estrangeiro para o Financial Times, em Milão, na década de 80. Por vezes, fora um crítico feroz de Berlusconi, e mais tarde a sua história pessoal intrigou‑me, não só por causa das suas alegadas festas bunga bunga e os julgamentos por corrupção, mas por causa da pará‑bola extraordinária da sua vida, em especial os acontecimentos que rodearam a sua queda na política e a tragédia grega dos seus cada vez mais problemas com a justiça, depois de em agosto de 2013 ter sido condenado num caso de fraude fiscal e expulso do Senado italiano.

Quando lhe perguntei pela primeira vez se ele estava interes‑sado em cooperar neste livro, ao final de uma manhã em março de 2014, na sua residência vistosa em Roma, um segundo piso de um palácio do século xvii, resplandecente, com frescos no teto e as paredes cobertas de tapeçarias, eu tinha baixas expectativas. Mas Berlusconi, agora com 77 anos, pareceu gostar de mim, talvez por eu ser americano (e, por isso, não era um jornalista italiano com ideias preconcebidas), mas também porque se revia noutro livro que eu escrevera sobre a política italiana, uma consequência que não era realmente o meu objetivo de vida.

Informei Berlusconi de que decidira escrever um livro sobre a história da sua vida e propus-lhe que me desse toda a colaboração possível e acesso ilimitado aos seus arquivos, familiares, amigos, sócios e aliados políticos. Primeiro fitou-me longamente e depois disse que na última década recusara pelo menos quinze pedidos do género. Disse-lhe que isto não iria ser apenas um livro mas também uma série de doze entrevistas televisivas, com base nas célebres entrevistas Frost‑Nixon de 1977. Ele continuou a olhar‑-me fixamente, resmungou algo sobre hoje em dia «ter tudo de ser multimédia» e depois estendeu-me a mão. Apertámos as mãos e ele foi muito claro no que então disse: «Confio plenamente em si para

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contar a minha história de forma justa e franca.» Agradeci -lhe a confiança e  disse-lhe diretamente: «Isto não vai ser uma hagio-grafia. Não vou escrever a história de um santo ou de uma vítima, não serei hostil, mas também não lhe farei favores. Vou escrever a história de uma vida extraordinária, tal como a vejo, mas consigo a responder às minhas perguntas, em vídeo, sobre cada capítulo da sua vida.»

Silvio Berlusconi concordou com as minhas condições. Nesse dia, um dos seus assessores partilhou comigo a sua opinião quanto aos motivos de Berlusconi ter aceitado: «O mundo à sua volta está a ruir, e embora ele sonhe com mais um regresso político, vê isto como o seu legado, com o senhor como testemunha, como primeiro e último jornalista com quem ele irá partilhar a história da sua vida, nas suas próprias palavras.»

Nas semanas e meses que se seguiram, durante a primavera e o verão turbulentos de 2014, período de amargura e derrota para Berlusconi, um homem que até então se habituara a ganhar sempre, vi um psicodrama da vida real a desenrolar‑se perante os meus olhos.

Sempre que o entrevistava, fosse no palácio em Roma ou nos jardins da sua villa espetacular em Arcore, nos arredores de Milão, algo mau estava a acontecer. Muitas vezes, depois das entrevistas, ele pedia‑me para irmos falar em privado e desabafava, falando dos seus inimigos num tom irritado e confiando-me as suas preo‑cupações, e até o seu medo.

Nestas alturas, vi‑lhe sempre o desespero nos olhos, e contudo, quando nos sentávamos à frente da equipa de filmagens, com os microfones ligados e as câmaras a filmarem, em cada entrevista ele parecia de certa forma transportado, esquecendo-se de tudo o resto, para os seus dias de glória, até às aventuras da sua vida e da sua carreira — como menino-prodígio e magnata do imobi-liário,  como dono exigente da equipa de futebol do AC  Milan, como fundador de um novo partido político que dominou e con‑dicionou grande parte da vida italiana nos últimos vinte anos e como autoproclamada vítima de quase sessenta casos em tribunais cíveis e criminais.

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Disse sempre a Berlusconi que o meu modelo eram as entre‑vistas Frost-Nixon. Disse-o por várias vezes. Disse-o quando ele assinou a documentação a dar autorização para o livro e para o documentário, à minha frente e de mais três testemunhas, in-cluindo a sua namorada Francesca Pascale e a sua porta-voz Debo-rah Bergamini.

Quando ele assinou a documentação a dar autorização, neces‑sária para se avançar com o projeto, por qualquer razão lembrei‑‑me das palavras mais famosas proferidas pelo presidente Nixon a  David Frost nessas entrevistas lendárias: «Fui eu que provo‑quei a minha queda. Dei-lhes a espada e eles espetaram-na, e fize-ram-no com gosto...»

Pensei no que diria Silvio Berlusconi sobre o seu próprio papel na sua ascensão e queda. E à medida que se foram passando as semanas e os meses, eu não ficaria desiludido.

Lucca26 de agosto de 2015

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Prólogo

É um dia quente de verão, em finais de julho, em Moscovo. A Praça Vermelha parece tomada por um exército de turistas,

muitos deles chineses e japoneses. Põem‑se à frente da icónica Catedral de São Basílio e posam para tirar um autorretrato. O lugar favorito parece ser a alguma distância da catedral, um monumento tão mundialmente famoso como o Taj Mahal e um símbolo do poder e da história russos mandado construir por Ivan, o Terrível. O edifício tem a forma das chamas de uma fogueira e as suas cúpulas em forma de cebola sobem em direção ao céu num rol de cores e formas inigualáveis no mundo.

Os sons da tempestade e as nuvens negras desta manhã pare‑cem ter desaparecido, e agora, à direita da catedral, as mura‑lhas imponentes do Kremlin são banhadas por um sol esmaecido. Mas o vento sopra forte de ocidente e a previsão para a tarde é de aguaceiros fortes. O tempo em Moscovo é conhecido por ser instável.

Para chegar à Torre Spasskaya, onde nos aguarda a equipa do presidente Putin, temos de atravessar a enorme praça. Junto à muralha leste do Kremlin fica o mausoléu de Lenine, uma imensa estrutura de mármore negro que alberga o corpo do chefe do Partido Bolchevique. A estrutura tem um ar de ligeiro abandono, como se fosse uma relíquia do passado.

O relógio montado no cimo da Torre Spasskaya, também conhecido como relógio do Kremlin, marca 4h20 da tarde. No ar paira uma quietude estranha e, visto da torre, os turistas espalha‑dos pela Praça Vermelha parecem deslocar-se em câmara lenta.

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No topo do pináculo da torre brilha a estrela vermelha feita em vidro, com a foice e o martelo ao centro, o símbolo por excelên cia do poder soviético. Do lado de fora das muralhas de 2,235 metros de altura desta imensa fortaleza conhecida como Kremlin há turis‑tas por todo o lado.

O portão principal da Torre Spasskaya está protegido por dois membros da Guarda de Honra, e percebe-se que ambos estão a penar com o calor e a humidade quando levam ao ombro e mudam de posição a espingarda, de baioneta calada. Da torre sai uma bela jovem que trabalha para o porta-voz do presidente, e apresenta‑-se. Fazemos conversa de circunstância durante uns minutos, chegam depois o intérprete e a maquilhadora e entramos na parte do Kremlin fechada aos turistas. Ao entrarmos no Kremlin faz-se subitamente um estranho e profundo silêncio.

A equipa do presidente vai à nossa frente, sem dizer nada. Há seguranças por todo o lado e movimentam-se com o ar severo e a aura de secretismo e dedicação que são apanágio da sua pro‑fissão. Durante uns minutos caminhamos pelo recinto do Kremlin, junto a um grande edifício, até que chegamos a um enorme por‑tão negro que assinala a entrada para a administração presiden‑cial. Estamos prestes a entrar no Edifício Número Um, o palácio dentro  das muralhas do Kremlin onde viveram e governaram Lenine e Estaline, ambos ocupantes desta fortaleza algo sombria e ameaçadora.

Passamos agora pelo pátio do antigo edifício do Senado, uma estrutura neoclássica ocre branca e amarela que foi construída a pedido de Catarina, a Grande, no século xviii, e que se viria a tor-nar a primeira sede do governo soviético depois da Revolução Bolchevique de 1917. A história da Mãe Rússia está por todo o lado, rodeia-nos. No ar paira um certo pesadume, que é palpável.

Entramos no edifício por uma pequena porta lateral, a Porta 7, tão pequena que mal se vê. As nossas malas são inspecionadas num detetor de metais numa pequena sala sombria. Cinco minu‑tos depois, somos conduzidos por um longo corredor estreito, pintado de branco e com teto alto; parece um bunker elegante, parece claustrofóbico. A atmosfera parece a da Guerra Fria, ou

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pelo menos conforme o que esperaríamos num thriller sobre a Guerra Fria. Ao caminharmos por este corredor no piso térreo do Edifício Número Um do Kremlin quase podemos ouvir o sussurro de George Smiley, de Le Carré, ou uma piscadela de olho cínica de James Bond em 007 — Ordem para Matar. A realidade é mais real do que a ficção. Um simulacro. Agora estamos no Kremlin e tudo é terrivelmente real, tudo.

Continuamos, em silêncio, e chegamos a um elevador cuja parede de vidro dá para um pátio interno que parece abandonado. O elevador para no segundo piso. Chegámos. Estamos no centro nevrálgico do Kremlin, no santo dos santos, o coração do poder na Rússia de Vladimir Putin, o segundo piso do Edifício Número Um.

Esta ala do Kremlin é sumptuosa, uma série de salas de Estado magníficas renovadas em estilo neoclássico. Tudo tem um ar perfeitamente polido. Nas paredes, de um branco puro, há vários quadros com representações do Kremlin e da Praça Vermelha nos séculos passados. À direita, sucedem‑se as portas brancas lacadas e decoradas com um friso dourado. Todos os pormenores são meti‑culosos e requintados, incluindo os puxadores em ouro trabalhado. Volta e meia vemos um anacronismo, um telefone antigo bege, ao estilo soviético.

Estamos agora na Sala da Chaminé, o local escolhido para o encontro com Putin. Fica na secção nordeste do Kremlin, uma ala rigorosamente vedada ao cidadão comum. É aqui que Putin traba‑lha, é aqui que toma as decisões que irão determinar o destino do seu país e a geopolítica de meio planeta.

Só há quatro divisões a separar a Sala da Chaminé do gabinete de Putin, uma área inacessível à maioria das pessoas, como nos conta um membro da sua equipa. Trata-se da mesma suíte que albergou José Estaline, nos anos 40. A única diferença é que hoje em dia o estilo soviético austero foi substituído por um panorama mais ornamentado de ouro e estuque, mais neoclássico.

A sala adjacente ao gabinete de Putin é uma coisa imensa, elegante, e deve a sua forma oval alongada à cúpula que encima esta parte do Edifício Número Um. O chão está coberto com um parqué artístico e requintado, estilo século xviii, e embutido

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com madeiras claras e escuras que formam figuras geométricas e medalhões florais. O lustre de cristal é majestoso e os tetos com motivos em estuque fazem lembrar Versalhes. As cortinas festonadas são luxuosas, barrocas, e as tapeçarias preciosas. E a uns metros de distância, Putin está num Conselho de Ministros, que inclui Dmitry Medvedev, o seu alter ego e primeiro‑ministro da Rússia.

O gabinete de Putin fica logo depois de uma enorme porta branca dupla com embutidos dourados nos painéis. Daqui, o pre-sidente tem acesso direto à Sala da Cimeira, onde recebe gover-nantes estrangeiros e as suas comitivas. Numa das salas adjacentes, facilmente reconhecível porque tem o pano de fundo habitual das conferências de imprensa transmitidas na televisão durante os encontros com chefes de Estado estrangeiros, as paredes estão cobertas por uma tapeçaria vermelha que ostenta o emblema da presidência da Rússia, uma águia com duas cabeças, repetida infinitamente. Originalmente era o símbolo dos imperadores de Bizâncio e depois da dinastia dos Habsburgos e dos Romanov, e agora é o emblema da presidência da Rússia. Continuamos em direção a outra divisão, esta uma espécie de antecâmara com paredes em azul-claro e uma grande mesa branca. É aqui que paramos para uma chávena de chá e uma longa conversa com membros da equipa do presidente. A conversa é essencial‑mente sobre as respetivas hipóteses de Hillary Clinton, Donald Trump e  Jeb Bush na corrida para a Casa Branca. A perspetiva de Moscovo sobre as hipóteses de Donald Trump parece dema‑siado otimista.

Na mesa há várias travessas com um sortido de canapés, essen‑cialmente marisco. Há também pirožki, sanduíches pequeninas com recheio de couve ou maçã. Tudo segundo a tradição da cozi‑nha russa. Estamos agora a poucos metros do gabinete de Putin e passámos quase a tarde inteira com a sua equipa. Já desapareceu a sensação de intriga da Guerra Fria. Em vez disso, uma espera aparentemente infindável, durante a qual somos livres de percor‑rer a ala presidencial, tirar fotografias e admirar os quadros e o mobiliário. Os seguranças, de fato escuro e auriculares, observam

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todos os nossos movimentos, mas têm ar de quem está habituado a estar na presença dos convidados do presidente e em muitos aspetos fazem lembrar os Serviços Secretos em Washington.

Pouco antes das sete da tarde, a equipa avança para a Sala da Cha miné. Os operadores de câmara acabaram de montar o mate‑rial, os intérpretes testaram o seu equipamento e por isso nada mais há a fazer senão aguardar por Putin. Pela sala deambulam algumas figuras mais ou menos conhecidas. Um membro da equipa particularmente loquaz e que trabalha para o porta-voz do presidente, Dmitry Peskov, fala alegremente de política interna‑cional.  Vai tagarelando debaixo do olhar severo do retrato do general Aleksander Suvorov, um dos poucos militares russos da história que nunca perderam uma batalha, tendo saído invicto de mais de sessenta grandes batalhas. Suvorov foi o último generalíssimo do Império Russo e é conhecido também pelo seu manual militar A Ciência da Vitória. Agora, a equipa do presidente aguarda, em silêncio, manifestamente habituada aos ritmos dele.

Por volta das 19h45 surge o anúncio oficial de que o presidente está quase a chegar. Os elementos da equipa dirigem-se para os seus lugares na Sala da Chaminé, onde os operadores de câmara estão prontos a gravar. Os seguranças alinham-se, quase como um corpo especial, formando uma falange ao longo dos quarenta metros que Putin tem de atravessar para chegar à Sala da Chaminé.

Às oito em ponto, as duas portas do gabinete do presidente da Federação Russa abrem‑se e chega Vladimir Vladimirovich Putin. Atrás do presidente vêm Peskov, membros da sua equipa e mais seguranças. Uns segundos depois, Putin transpõe o limiar da Sala da Chaminé.

A chegada do presidente é como uma brisa siberiana. O seu rosto parece tenso e fatigado, mas o seu ritmo é determinado e metódico. A linguagem corporal impressiona, parece emanar poder e autoridade a cada passo que dá. Não custa imaginá-lo a percorrer aquelas salas em privado e a preparar-se para enfrentar as decisões difíceis que podem alterar o destino das nações. A sua chegada à Sala da Chaminé tem o seu quê de elétrico. Toda a gente está de pé, a prestar atenção. Lá fora, a escuridão engoliu o que

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restava do dia e uma chuva constante vai martelando os caixilhos das janelas enormes. Os operadores de câmara estão prontos a gravar, os microfones ligados.

Vladimir Putin cumprimenta o seu interlocutor com um sorriso e um aperto de mão e depois, em menos de dez segundos, senta-se no seu lugar, numa das duas cadeiras colocadas em frente à lareira, ao estilo tradicional das conversas com outros líderes. Só o clicar da máquina do fotógrafo oficial quebra o silêncio momentâneo enquanto fazemos conversa de circunstância com um dos homens mais poderosos do planeta.

O presidente veste um fato sóbrio azul-escuro, com uma camisa branca e uma gravata azul. Os sapatos de pele pretos estão engra‑xadíssimos. Está impecável, irrepreensível, intenso. A princípio, o seu olhar é impenetrável. Bush deve ter sido dotado de poderes sobrenaturais para dizer que olhou para os olhos de Putin e lhe leu a alma.

Então, quando abordamos o tema Silvio Berlusconi, algo acon‑tece. Numa questão de minutos, o homem com olhos frios como o gelo, o caçador de ursos, o especialista em artes marciais, o pre‑sidente da Federação Russa, subitamente muda a sua disposição. Torna-se descontraído, até brincalhão. Ouve atentamente quando recebe cumprimentos do seu amigo Berlusconi. Pelos auscul‑tadores, a princípio a voz do intérprete parece embargada com emoção. Mas quando Putin começa a falar do seu amigo, a voz como que se lhe suaviza. Putin diz várias vezes «Silvio» em vez de «Berlusconi». É assim que lhe chama. Agora, Putin parece à vontade e à medida que o tempo passa vai ficando mais animado. Enquanto fala, vai brincando com o fio do seu auricular e mexe os pés de forma controlada. Mas entre Silvio e Vladimir sente‑se a empatia. «Estabelecemos uma relação pessoal muito boa entre nós, muito amigável», diz Putin.

O presidente russo escolhe as suas palavras com muito cuidado, mas fala com uma convicção óbvia quando expressa a sua opinião sobre a vida de Silvio Berlusconi.

«Sabe», diz Putin, «a verdade é que Berlusconi foi o político que mais tempo esteve no poder na história da Itália do pós‑

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-guerra. Isso significa, primeiro, que ele não só conseguiu atrair a atenção dos italianos, mas também convencê-los de que as suas ações visavam assegurar os interesses do povo italiano. Segundo, é uma pessoa extraordinária, direta e muito interessante. Em con‑junto, tudo isto sugere que Silvio Berlusconi, como político e como homem, irá certamente assumir o lugar que merece na  histó-ria italiana.»

Assim diz Vladimir Putin.Mas quem é o verdadeiro Silvio Berlusconi? De onde veio ele?

Qual é a sua verdadeira história?

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capítulo primeiro

O Sedutor Nato

Silvio Berlusconi está em casa, sozinho. Passeia por um jardim no meio da sua propriedade de setenta hectares, não muito

longe das cavalariças e do heliporto.Estamos no pico do verão e ele vai caminhando, de mãos nos

bolsos, ao longo de um caminho ladeado de árvores que leva até à sua villa do século xviii, com setenta divisões. À medida que nos aproximamos da mansão enorme, as bermas do caminho têm sebes muito bem aparadas e vasos de terracota com gerânios. A avenida relvada passa sob um arco de pedra e depois dá para uma série de jardins com relvados meticulosamente aparados e canteiros com azáleas vermelhas, limoeiros e sebes, tudo imaculado.

Não muito longe da casa, o bilionário, de 79 anos, detém‑-se. Sorri, quase timidamente, com um encanto e uma cortesia de excessiva modéstia que tende a desarmar os convidados, em especial aqueles que estão à espera de encontrar um playboy vistoso. Ele sorri de orelha a orelha, com a empatia que o ajudou a guindar-se ao poder e que nos últimos vinte e cinco anos lhe permitiu transformar‑se de magnata dos média num dos homens mais ricos do mundo e no primeiro‑ministro há mais tempo no cargo em Itália e, sem dúvida, o mais controverso.

«Esta», diz o homem que tem dominado a vida italiana há décadas, «é a principal casa da minha vida.»

Apesar do calor, Berlusconi veste uma camisola azul, um bla-zer azul e umas calças de fato de treino  de  algodão. Ouve-se o ruído do cascalho pisado pelas suas botas de  ténis azuis Hogan, à medida que vai caminhando e falando na importância que esta

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propriedade tem para si, descrevendo‑a como um lugar onde tomou todas as decisões importantes da sua vida. Até onde a vista alcança, veem‑se estátuas neoclássicas em pedestais de mármore, que parecem olhar para os muros dos jardins.

De facto, estes jardins estão mais do que imaculados. Reinam a ordem e a perfeição, por todo o lado. Tudo é quase demasiado perfeito. Esta grande villa antiga fica no campo milanês, numa aldeia lombarda chamada Arcore. Chama‑se Villa San Martino e foi construída no início do século xviii sobre as fundações daquilo que a partir do século xii fora um mosteiro beneditino. Berlusconi comprou‑a nos anos 70 e mobilou‑a em grande estilo. Apetrechou-a com mais engenhocas do que um filme do James Bond, mais uma cavalariça cheia de cavalos de corrida, um heli‑porto para o seu helicóptero e até um campo de futebol privado. A casa está mobilada com gosto, ainda que com tapeçarias e qua‑dros dos velhos mestres em excesso. Cada canto é um pot ‑pourri de velho e novo, com uma estética dos anos 80, que à época permitia que a classe em ascensão dos novos bilionários de Itália pudesse sobrepor quadros renascentistas com outros da fase final do período moderno. Em resultado, nos anos 80 muitos arquitetos e decoradores de interiores da região de Milão enriqueceram bas‑tante, e bastante depressa.

Berlusconi passeia agora descontraidamente em direção à casa principal, descontraído e orgulhoso, convicto de que a apreciação mais requintada de uma grande villa italiana muitas vezes começa cá fora, com o jardim paisagístico.

«Esta é a principal casa da minha vida», repete um Silvio Ber-lusconi sorridente. E a vida, para Silvio Berlusconi, significa sem‑pre o público e o privado, e por vezes os dois fluem um no outro, sobrepondo-se de um modo que por vezes causa escândalos, mas que de certa forma implica sempre regressar a esta villa.

Agora, Berlusconi está a falar na primeira visita aqui de Mikhail Gorbachev em 1993, e da longa tarde e serão que passaram jun‑tos. «Foi um dia juntos muito agradável, muito estimulante», recorda Berlusconi. «Mikhail Gorbachev veio com a sua esposa, Raisa, e  ela esteve com a minha mulher, a Veronica. Ele queria

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conhecer um grande empresário italiano e falar de economia, da econo mia de mercado. Fez-me muitas perguntas, sobre econo‑mia e os mercados financeiros. Às cinco da tarde, sentámo-nos para tomar chá, e depois estava previsto que ele se fosse embora. Quando já nos encaminhávamos para a porta de saída, para nos despedirmos, ele disse‑me: “Mas, Silvio, não percebi uma coisa. Qual o ministro, ou a instituição, que fixa os preços de venda dos produtos?”

Pedi-lhe que repetisse a pergunta. E ele assim fez. “Que institui‑ção determina os preços?” E eu disse-lhe: “Mikhail, por favor, não se vá já embora. Fique para jantar. Temos de conversar mais um pouco.” E fartámo-nos de falar, com a ajuda de uns quantos copos de um ótimo Rosso di Montepulciano. Expliquei-lhe como é que no Ocidente é o mercado que determina os preços, não um organismo governamental. É a concorrência do mercado. Foi extremamente gratificante explicar ao Mikhail Gorbachev o funcionamento do capitalismo de mercado. Pelo menos ele pareceu apreciar o tempo que passámos juntos.»

Agora, Berlusconi está a descrever as visitas a Arcore do seu amigo Vladimir Putin, e indica-me o quarto onde Putin dormiu da última vez que cá esteve. Não se levará a mal que um visitante entretanto se interrogue em que quartos foram as alegadamente infames festas bunga bunga, que fizeram da Itália motivo de chacota e humilharam Berlusconi quando o escândalo reben‑tou, em  2010-2011, precisamente no meio da maior crise finan‑ceira europeia.

Arcore. Na vida de Silvio Berlusconi, esta villa italiana é mais do que um local visitado por Mikhail Gorbachev, Vladimir Putin ou a tristemente célebre Ruby Rouba-Corações. É a sua residência, o seu refúgio, o seu centro de comando, o seu quartel-general. Foi aqui que ele planeou e construiu o seu império no imobiliário, as cidades-satélites que ajudaram a fazer dele bilionário. Foi aqui que tomou decisões que o viriam a transformar num magnata dos média, com um império televisivo que abarca meia Europa. Foi aqui que inventou a televisão comercial em Itália e se tornou num  inovador no palco europeu nos anos 80. Foi aqui, nestas

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salas de estar e de jantar e nos salões barrocos algo luxuosos, que mantêm a traça original, que Berlusconi decidiu comprar o AC Milan. Foi aqui que ele decidiu pela primeira vez entrar para a política, inventar e lançar um novo partido político, passando de homem de negócios rico para o cargo de primeiro‑ministro em menos de noventa dias, no início de 1994.

Arcore tornou‑se uma versão italiana de Camp David. Mas anos mais tarde também se tornou um bunker, onde Berlusconi teria as suas intermináveis sessões noturnas com os advogados de defesa, com uma bateria de advogados de direito civil e penal, investi‑gadores e um exército de conselheiros que o ajudaram a enfrentar uma tempestade de mais de sessenta pronúncias por corrupção, suborno, fraude fiscal e até prostituição de menores.

Arcore foi a Rosebud de Berlusconi, a sua bússola, a sua pedra de toque. Na vida, nos negócios, na política e em assuntos amo‑rosos e de família. Foi aqui, em Arcore, que acabou o primeiro casamento de Berlusconi, foi aqui que aconteceram as alegadas festas bunga bunga, foi aqui que ele viveu durante um ano, meio em recolher obrigatório, meio preso, com o passaporte confiscado pelo tribunal, a fazer serviço comunitário em casa para doentes idosos com Alzheimer, depois de ter sido condenado por fraude fiscal. E foi aqui que planeou o seu mais recente regresso à política, em 2015. Foi aqui, na capela da família, que enterrou as cinzas dos seus pais e da irmã. É aqui que o seu filho, a nora e os netos ainda vivem. Foi aqui, aos 76 anos, que arranjou uma nova namo‑rada, cinquenta anos mais nova do que ele. Tudo aconteceu aqui. Em Arcore.

Lembro-me da primeira vez que fui visitar Berlusconi em Arcore, nos anos 80, quando Tina Brown me pediu para escrever um artigo para a Vanity Fair sobre os «novos príncipes» do capi‑talismo italiano que estavam a disputar o lugar ao «rei sem coroa de Itália», Gianni Agnelli. Estávamos nos loucos anos 80, com meio mundo inebriado numa era dourada de prosperidade recente, com os yuppies de Wall Street e os homens do dinheiro da City de Londres sempre em festa, com economias a crescer imenso e uma classe média em ascensão. Ronald Reagan e Margaret Thatcher

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governavam na América e na Grã-Bretanha. Em Itália, nos anos 80, Berlusconi era um homem feito a pulso, alguém que vinha de fora, um magnata em rápida ascensão, da indústria televisiva e do entretenimento, um novel bilionário, a caminho de se tornar um dos homens mais ricos do mundo. Na altura, Berlusconi causava algum incómodo entre as elites financeiras de Itália, porque o seu estilo informal de vendedor o tornara extremamente popular e a sua fortuna da televisão o fizera mais rico do que até o herdeiro de uma fortuna antiga como a da Fiat, Gianni Agnelli, um playboy educado e cosmopolita que se tornara um industrial.

Conhecer Silvio Berlusconi nos anos 80 na sua casa em Arcore era como visitar a Disneylândia de um homem rico. Tudo era controlado. Tudo tinha a ver com beleza, perfeição, ordem e, sim, hedonismo.

«Esta é a minha piscina interior», disse Berlusconi em 1989, enquanto mostrava a villa a um convidado. Naquela altura ele estava magro e em forma, com o seu habitual fato Brioni assertoado, sempre bronzeado e uma energia juvenil que era contagiante. Apontou para um ecrã de 1,8 metros suspenso sobre a  piscina. Porque está ali? «Assim», disse ele, «posso estar na piscina e ver os meus canais de televisão quando estou a nadar.»

Todo ele era orgulho ao mostrar a «zona de fitness e de lazer» perto da piscina e que incluía uma sauna, um jacuzzi, um banho turco, um ginásio e, a pièce de résistance, uma zona de estar em pinho nórdico brilhante, cheia de sofás luxuosos e com uma parede coberta por nada mais nada menos do que nove televisões, dispostas como se fosse o jogo do galo, cada qual a transmitir um dos três canais principais de Berlusconi. O meu anfitrião apontou depois para uma gaveta, com botões suficientes para controlar a música, a luz ambiente ou chamar o mordomo. Até a casa de banho tinha uma surpresa. Encastrados de cada lado do espelho havia pequenos ecrãs de televisão, de 5 cm, o que nos anos 80, antes do wi‑fi, dos LED e da Apple, era um feito em termos técni‑cos. Berlusconi explicou de bom grado: «Posso ver os meus canais enquanto faço a barba.»

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Hoje, não mudou muita coisa em Arcore, exceto o dono, que tem quase 80 anos. Viveu uma trajetória de vida que só se poderia descrever como excessiva, e hoje em dia, na sua Itália natal, é simul‑taneamente amado e odiado por milhões dos seus compatriotas.

«Esta tem sido a minha residência principal há mais de trinta anos», comenta ele, à medida que vai caminhando pela loggia com chão de pedra cinzento-claro, fazendo uma pausa perto do portão de entrada. Ali encontramos um medalhão esculpido no  muro. Parece um brasão, mas tem semelhanças com São Martinho, bispo de Tours no século iv, cujo santuário em França se tornou um ponto de paragem obrigatório para os peregrinos do Caminho de Santiago. Os primeiros monges beneditinos que chegaram a Arcore e aqui fundaram o seu primeiro mosteiro há quase mil anos deram‑lhe o nome do santo cristão. A capela da família Berlusconi é a única estrutura do século xii construída pela ordem beneditina que resta.

O baixo-relevo gravado na pedra que Berlusconi está a descre‑ver tem o bispo montado num cavalo e ele está a usar a espada para cortar o seu hábito em dois, dando metade a um pedinte que, em pleno inverno, veste apenas uns andrajos. De facto, segundo reza a lenda, quando foi recrutado para o exército romano, São  Martinho considerou que esse dever era incompatível com a fé cristã que adotara, tornando-se um dos primeiros objetores de consciência.

Enquanto conta a história de São Martinho, Berlusconi sorri com um sorriso de bilionário, sem ponta de ironia. A luz do verão vai agora empalidecendo no pátio de gravilha fronteiro à Villa San Martino. Mas Silvio Berlusconi é entusiasta, caloroso, infatigável. Entra numa das muitas divisões para arrumação para vasculhar um monte de recordações. Pega em bonecos de plástico a imitá‑lo, chama a atenção para retratos de família e para prateleiras reple‑tas de fotografias de Berlusconi com a mãe, Rosa, Berlusconi com Barack Obama, Berlusconi com George H. W. Bush, Berlusconi com George W. Bush, Berlusconi com Tony Blair, Berlusconi com Bill Clinton, Berlusconi com Hillary Clinton, Berlusconi com a rainha Isabel, Berlusconi com o papa Bento XVI.

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Numa parede repleta de prateleiras está uma fotografia de outros tempos, esbatida e amarelecida com o tempo, de um jovem Berlusconi vestido como cantor romântico de cruzeiros, um belo jovem com um casaco elegante, de gravata e com um chapéu de palhinha, a cantar para um microfone ao estilo de clube noturno dos anos 50.

«Sou eu!», diz um Berlusconi irreprimível, «é um retrato meu a cantar quando tinha 16 anos. Tal como a mamã dizia, eu era sem‑pre o rapaz mais bonito na praia.» E com isto passa rapidamente para outra divisão cheia de relíquias e troféus do seu passado.

Subitamente, o ar enche-se de nostalgia, aqui na Villa San Martino. Berlusconi é um guia sempre afável, que quer sempre agradar. Quer desesperadamente dar um bom espetáculo. É um artista incansável, um vendedor descarado, um vendedor de sonhos. Ao longo dos anos tem sido um Ronald Reagan italiano, com os seus rebuçados e a sua bonomia, e também um homem que se posicionou como o equivalente popular de Margaret Thatcher mas que nunca conseguiu realizar uma revolução liberal. Ele cativa os eleitores com o seu charme e carisma, prometendo baixar os impostos, prometendo‑lhes este mundo e o outro, dando pal‑madinhas nas costas e pegando em bebés, ele que em toda a sua vida e carreira política sempre foi um populista. «Queremos fazer felizes os nossos clientes!» Parece ser o seu lema. Mas ao longo dos anos também foi o dirigente político que mais tempo esteve no cargo e um homem que assistiu a uma série de acontecimentos globais cataclísmicos, do fim da Guerra Fria à guerra quente contra Saddam, da Primavera Árabe e da destruição de Muammar Kadhafi à crise financeira que abalou a Europa em 2011 e quase afundou a sua Itália natal. Por estranho que pareça, as suas opiniões contro‑versas sobre questões internacionais têm vindo a ser justificadas pela história recente.

Como o conseguiu? Como é que este homem que se fez a pulso, de um bairro milanês da classe operária, se tornou um bilionário europeu e um magnata dos média que foi eleito primeiro-ministro três vezes? Como é que este antigo cantor romântico de cruzeiros dominou os destinos da nação durante mais de vinte anos?

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Berlusconi não tem dificuldade em explicar o segredo do seu sucesso. Nenhuma.

«Sou», diz ele piscando o olho, e com um daqueles sorrisos que são a sua imagem de marca, «um sedutor nato.»

Silvio Berlusconi apresenta outra vez um sorriso rasgado. Sen-tado na sua sala favorita, com uma fonte de mármore branco por trás logo depois da janela de sacada, está a explicar‑me a sua estratégia de vida para conseguir o que quer.

«Quando os meus inimigos me acusam de ser um sedutor nato, julgam que isso é uma crítica», começa ele. «Mas estou sempre aberto aos outros. Tenho imenso respeito pelos outros e tento sempre imaginar-me na pele de outrem. Por isso, quando alguém é convexo, torno‑me côncavo, e se alguém é côncavo, então torno‑‑me convexo. Assim, consigo sempre estabelecer uma relação pes‑soal, um sentimento, uma química com a pessoa com quem estou a  lidar. Chamam-lhe empatia, mas amiúde é uma empatia que é uma ferramenta necessária que uso para atingir os meus objetivos, para atingir uma forma de colaboração amistosa e cordial.»

Este desejo de agradar, este prazer para tranquilizar o ego que advém de fazer os outros sorrir, parece profundamente enraizado no espírito de Berlusconi. Que tipo de infância produziu este jovem sedutor que procura o prazer? Talvez seja um mecanismo de defesa, talvez seja uma forma de progredir usando o seu encanto para conseguir um emprego, um acordo, um negócio, um império. Esta necessidade de agradar, de ser engenhoso e de recor‑rer ao seu charme para levar a sua avante é mais fácil de perceber se levarmos em conta o modo como Berlusconi subiu na vida, à antiga, de uma família da classe média baixa que nos primeiros anos vivia no meio das privações da Itália em guerra.

Ele nasceu a 29 de setembro de 1936, filho de um funcionário bancário chamado Luigi, que viria a ascender a cargos de topo, e de uma dona de casa chamada Rosa, que viria a trabalhar como secretária na Pirelli, uma empresa de pneus de Milão. A família de Berlusconi vivia num pequeno apartamento numa das zonas insalubres de Milão, alcunhada «A Ilha», uma espécie de terra de ninguém perto de uma ponte para peões por cima do caminho

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de ferro e encaixada entre a sujidade das duas maiores estações de caminho de ferro da cidade, uma delas a Porta Garibaldi e a outra a Stazione Centrale de Milão. A sua irmã, Antonietta, nasceu em 1943 e o irmão mais novo, Paolo, depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1949.

«O bairro era muito animado, com o seu quê de classe operá-ria, de classe média baixa e de zona difícil», recorda um dos amigos de infância de Berlusconi, Fedele Confalonieri. «Não era propria‑mente um bairro com crime organizado, mas havia muita gente a criar problemas. Era um bairro difícil. Lembro-me bem porque nasci na mesma rua que Berlusconi, na Via Volturno. É engraçado, lembro-me que o apartamento de Berlusconi era num prédio do outro lado da rua da sede local do Partido Comunista.»

Confalonieri recorda «uma espécie de pobreza generalizada à época» e em especial após 1940, quando Mussolini declarou guerra à França e à Grã-Bretanha, na sua qualidade de aliado firme da Alemanha de Adolf Hitler. Tanto Confalonieri como Berlusconi se lembram dos enormes bombardeamentos de Milão e de os Aliados bombardearem fábricas, igrejas, escolas, escritórios e edifícios residenciais, o que levou muitas famílias a fugirem da cidade e a procurarem refúgio no campo.

«Nunca me hei de esquecer», diz Berlusconi, «dos bombar‑deamentos aliados de Milão em 1943. Na altura tinha seis anos e meio e lembro-me de que um dia as bombas caíram na rua onde nós morávamos, a Via Volturno. Depois disso o meu pai e a minha mãe decidiram sair de Milão e levar-nos para uma pequena aldeia no campo, uma aldeia com menos de mil pessoas. Era a cerca de uma hora da cidade, não muito longe do lago Como, a caminho de Varese. Ali estávamos em segurança porque era uma região agrícola onde nunca havia bombardeamentos. A minha mãe tinha lá uns parentes, que nos acolheram e cederam dois quartos para dormirmos.»

Pouco depois de a família de Berlusconi ter sido retirada  de Milão, na primavera de 1943, Mussolini foi derrubado, os ameri‑canos chegaram à Sicília e a Itália assinou um armistício secreto com os Aliados, segundo o qual mudava de lado e abandonava

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Hitler. Em resposta, os alemães invadiram, ocuparam e rapida‑mente subjugaram a Itália. Continuou o bombardeamento aliado de Milão, agora controlada pelos alemães.

«Tudo isto aconteceu muito rapidamente em 1943», diz Ber-lusconi, «e como o meu pai era antifascista, foi aconselhado pelos amigos a sair de Itália e a escapulir‑se para a Suíça. Por isso, pas‑sou a fronteira a salto e nós ali ficámos naquela pequena aldeia, sozinhos no meio de nenhures, e sem o meu pai. E subitamente tudo recaiu aos ombros da minha mãe. Nessa altura a minha mãe ia e vinha trabalhar todos os dias para Milão, onde era secretá‑ria do diretor‑geral da Pirelli. Era perigoso estar em Milão por causa dos bombardeamentos e lembro‑me como se fosse ontem. Ela levantava-se todos os dias às cinco da manhã, fazia três quiló‑metros a pé até à paragem para apanhar um elétrico até à estação de caminho de ferro e depois apanhava o comboio para Milão, onde depois apanhava o elétrico para o trabalho. Terminava às cinco da tarde e regressava ao campo. Eu ia todos os dias esperá‑-la à paragem. Todos os dias ficava triste quando ela tinha de sair outra vez, e lembro-me que ela me dava sempre um beijo antes de partir.»

À medida que Silvio Berlusconi vai contando estas memórias, o seu pé esquerdo começa a bater nervosamente no chão.

Berlusconi lembra-se que não vivia sozinho com a mãe durante a guerra, quando ficaram numa aldeia lombarda, Oltrona San Mamette, a cerca de 35 quilómetros a noroeste da cidade. «Havia também dois dos meus avós, o pai da minha mãe e a mãe do meu pai. Por isso, no fundo a minha mãe acabou por sustentar cinco pessoas, e a comida não era muita.»

É evidente que viver três anos numa habitação improvisada, enquanto na cidade vizinha de Milão caem as bombas, foi uma experiência de formação para Berlusconi. Ele ainda não tinha 7 anos quando se deu a evacuação. O dinheiro era escasso. O pai passara a fronteira suíça a salto. Por isso, foi a mãe, que na altura acabara de dar à luz a sua irmã Antonietta, que se tornou não só o ganha‑pão mas também a única constante para o jovem Berlusconi numa existência de outro modo incerta.

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Tal como tantas outras crianças numa Itália dilacerada pela guerra, o jovem Silvio dava uma ajuda à família, a apanhar bata‑tas por uns trocos, depois da escola, assim como outros trabalhos esporádicos. Também trazia por vezes o jantar da família, que nesta região de Itália produtora de laticínios amiúde consistia em iogurte ou leite misturado com polenta ou nacos de pão.

«Na altura», recorda Berlusconi, «todas as tardes eu ia ajudar a ordenhar as vacas numa quinta ali perto. Fazia isto durante uma hora e meia, talvez duas, e como paga davam-me um baldinho de metal daquilo a que chamavam cajada, uma substância espessa tipo iogurte. Todas as noites, quando ia para casa, para me diver‑tir rodava o balde numa volta de 360º e por causa da gravidade o iogurte não caía. Mas lembro-me de uma vez em que encontrei uns amigos quando ia para casa e quis exibir-me com o balde e mostrar-lhes que o podia rodar sem que nada caísse. Mas alguém me agarrou no cotovelo e derramou-se tudo. Nessa noite, quando cheguei a casa, fiquei em apuros com a minha mãe, pois não tínha‑mos mais nada para jantar.»

À noite, e apesar de a aldeia estar a mais de 35 quilómetros de Milão, por entre campos e vales Berlusconi conseguia ver a cidade distante em chamas, com partes inteiras a arder após um bombar‑deamento, tudo isto visível a partir do campo.

Este perigo físico muito real explica porque toda a gente na família Berlusconi ficava com os nervos em franja com as deslo‑cações diárias de Rosa Berlusconi para o seu trabalho como secre‑tária numa Milão devastada pela guerra. Mas Rosa Berlusconi era uma mulher com um caráter inequivocamente forte, tão teimosa como o viria a ser o filho, e por vezes até corajosa. De facto, um episódio específico até foi contado no Knesset pelo primeiro‑‑ministro israelita Benjamin Netanyahu durante uma visita de Estado de Berlusconi a Israel em 2010.

Durante os últimos dois anos da guerra, com as tristemente célebres «Leis Raciais» de Mussolini, de 1938, ainda em vigor, e com os nazis agora a controlarem grande parte de Itália, milhares de judeus estavam a ser apanhados e enviados para campos de concentração na Alemanha.

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