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FICHA TÉCNICA Título original: e ality of Silence Autora: Rosamund Lupton Copyright © Rosamund Lupton, 2015 Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016 Tradução: Ana Figueira Design da capa: Ceara Elliot – LBBG Imagens da capa © Shuerstock e Gei Images Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 402 670/15 1. a edição, Lisboa, fevereiro, 2016 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para Portugal à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 eluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.jacaranda.pt facebook.com/jacarandaeditora Esta é uma obra de ficção. Todas as personagens e os acontecimentos, exeto aqueles que são claramente do domínio público, são fictícios e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

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F ICHA TÉCNICA

Título original: The Quality of Silence Autora: Rosamund Lupton

Copyright © Rosamund Lupton, 2015

Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2016

Tradução: Ana Figueira

Design da capa: Ceara Elliot – LBBG

Imagens da capa © Shutterstock e Getti Images

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

Depósito legal n.o 402 670/15

1.a edição, Lisboa, fevereiro, 2016

Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras

Reservados todos os direitos

para Portugal àBrilho das LetrasUma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730‑132 [email protected]/jacarandaeditora

Esta é uma obra de ficção. Todas as personagens e os acontecimentos, exeto aqueles que são claramente do domínio público, são fictícios e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

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O meu nome é uma forma, não um som. Sou um polegar e dedos; não uma língua e lábios. Tenho dez anos em dedos levantados: sou uma menina feita de letras.

R ‑u ‑b ‑y

E esta é a minha voz.

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Capítulo 1

@Palavras _Sem_Sons650 seguidoresENTUSIASMO: Sabe a poeira interestelar efervescente; parece o solavanco de um avião a aterrar; é como o capuz felpudo da parca inupiaq do meu pai.

Está um frio de rachar; como se o ar fosse feito de estilhaços de vidro. O nosso frio inglês está recheado de bonecos de neve

rechonchudos e de: «Oba ‑oba! É um dia de neve!»; é um tipo de frio amistoso e casual. Mas este frio é cruel. O pai disse que havia duas coisas essenciais sobre o Alasca:

Em primeiro lugar: é mesmo muito frio e Em segundo lugar: é muito silencioso, porque há milhares de qui‑

lómetros de neve e quase nenhumas pessoas. Devia estar a referir ‑se ao Norte do Alasca, e não aqui ao aeroporto de Fairbanks, com os pneus dos carros a vibrarem na estrada, pes‑soas com as rodas das malas a ressoarem no passeio e um avião a cortar o céu. O pai é um grande apreciador do silêncio. Diz que não sou surda, que apenas ouço o silêncio.

A mãe mantém ‑se perto de mim, como se pudesse envolver ‑me noutra camada quente de si própria, e eu encosto ‑me a ela. Pensa que a moto de neve do pai se avariou, e por isso é que ele perdeu

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o táxi aéreo. Diz que o telefone por satélite do pai deve ter ficado sem bateria, de contrário, decerto que nos teria telefonado.

O pai devia encontrar ‑se connosco no aeroporto. Em vez dele, havia uma agente da polícia que se desculpou por não poder adiantar ‑nos nada. Agora, avança à nossa frente como se estivés‑semos numa visita de estudo com o museu prestes a encerrar e o grupo das raparigas a clamar atrás dela: «Cinco minutos na loja, professora!» Mas quando uma mulher anda daquela maneira, é certo que não irá abrandar.

uso óculos e uma máscara de proteção. O pai foi inflexível em relação àquilo que tínhamos de trazer: «Acessórios adequados para o Ártico, Puggle.» E agora, com este ar que parece estilhaços de vidro, estou contente por tê ‑los trazido. nunca choro, pelo menos quando há pessoas a ver, porque, se enveredamos por esse caminho traiçoeiro, podemos acabar vestidos com um tutu cor ‑de‑‑rosa. Mas chorar com óculos protetores postos não é o mesmo que chorar em público, uma vez que não me parece que alguém consiga perceber. O pai diz que no norte do Alasca as lágrimas podem gelar.

De mão dada com a filha, Yasmin parou de caminhar em direção ao edifício da polícia no aeroporto, fazendo a jovem agente franzir o sobrolho, mas, por breves instantes, ela conseguiu suspender o que estava a acontecer. Em redor, por todo o lado, a neve tinha caído, neve sobre neve, cobrindo o que antes existia com a sua cor e textura monótonas; um cenário feito de gesso. Viu a seus pés as pegadas delicadas de uma ave na neve e apercebeu ‑se de que estava a olhar para baixo. Forçou ‑se a erguer os olhos, por ruby, e surpreendeu ‑se com a claridade que a rodeava. A neve deixara de cair, e o ar estava resplandecente, luminoso e cristalino, com uma luz espantosa; se rodássemos o botão do painel para obtermos ainda mais luminosidade, poderíamos ver com nitidez cada átomo de ar à nossa volta. Era como se o cenário pairasse, demasiado nítido para ser real.

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* * *

A agente tirou um jornal de cima da mesa, como se eu fosse uma criança pequena a quem não é permitido ler jornais, por isso levantei os dedos todos, para mostrar ‑lhe que tenho dez anos, mas ela não percebe.

— Em breve, um oficial superior virá fazer ‑vos o desenho da situação — diz à mãe.

— Ela acha que sou um caderno de esboços — diz ‑me a mãe em língua gestual. As pessoas muitas vezes não se apercebem de que a mãe é engraçada, como se alguém que se parece com uma estrela de cinema não pudesse dizer piadas também, e isso é muito injusto. É raro falar comigo em língua gestual, quer sempre que eu lhe leia os lábios, por isso retribuo ‑lhe o sorriso, mas os nossos sorrisos são apenas invólucros; no nosso interior, não nos sentimos sorridentes.

A mãe diz ‑me que não demora e para eu a chamar se precisar de alguma coisa. Faço o sinal de OK erguendo os polegares. É um gesto que também é utilizado pelas pessoas que não são surdas, e deve ser por isso que a mãe não me diz: «usa as tuas palavras, ruby.»

Quando digo «eu disse», quero dizer que fiz o sinal, que é em língua gestual, ou que fiz os sinais relativos às letras, que é outro tipo de língua gestual. Por vezes utilizo um sinal americano que é o equivalente a quando as pessoas utilizam uma palavra americana ao falarem com a boca.

Aqui há rede 3G, mas já verifiquei e não recebi nenhum e ‑mail do pai. Foi uma estupidez ter tido esperança de receber algum, visto que:

Em primeiro lugar: o portátil dele avariou ‑se há duas semanas, eEm segundo lugar: ainda que tivesse usado o de um amigo, não há

rede móvel nem Wi ‑Fi no norte, que é onde ele deve estar, porque a sua moto de neve se ava‑riou; teria de usar o terminal de satélite para me enviar um e ‑mail, e isso é mesmo mui‑to difícil de conseguir quando está tanto frio.

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«Puggle» é o nome que se dá a um ornitorrinco bebé. O pai filma documentários sobre a vida selvagem e adora ornitorrincos. Mas um orni‑torrinco, em particular um ornitorrinco bebé, não sobreviveria nem dois minutos no Alasca. Temos de ter uma pelagem especial que man‑tenha o calor, como a das raposas ‑do ‑ártico, e patas que não se afundem na neve, como as de uma lebre ‑americana, ou sermos como um boi ‑almiscarado, com grandes cascos que con‑seguem quebrar o gelo, para podermos obter comida e água. E, se formos uma pessoa, pre‑cisamos de óculos de proteção, luvas de prote‑ção, roupas especiais e um saco ‑cama polar, e o pai tem todas essas coisas; portanto, mesmo que esteja retido no norte, onde as lágrimas po‑dem gelar, ele vai ficar bem, como a raposa ‑do‑‑ártico, o boi ‑almiscarado e a lebre ‑americana.

Acredito absolutamente nisso.E ele virá ter connosco. Sei que sim.no avião que veio de Inglaterra, que demorou horas e horas,

pus‑me várias vezes a imaginar o que o pai estaria a fazer. Pensava: o pai está a sair da aldeia agora; o pai está na moto de neve agora; o pai está a chegar à pista de aterragem.

— No meio do nada, Puggle, e o meio do nada é um lugar muito bonito e vazio, porque muito pouca gente consegue lá chegar.

O pai está à espera do táxi aéreo agora.— Como uma carta que levamos aos correios, temos de chegar a

horas, ou não somos recolhidos.Dormi durante imenso tempo e, quando acordei, pensei: O

pai está no aeroporto de Fairbanks agora, à nossa espera! E escrevi aquele tweet sobre o entusiasmo ser o capuz felpudo da parca inupiaq do pai e o solavanco do avião a aterrar. Apesar de ainda não termos aterrado, achei que era a sensação mais superfixe de sempre: o solavanco da aterragem e o pai estar tão perto.

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Então, a assistente de bordo dirigiu ‑se a mim com um ar muito atarefado, e eu percebi que vinha dizer ‑me para desligar o portátil, o  que teria deixado a mãe satisfeita, porque ela detesta aquele‑‑maldito ‑portátil. Pedi à mãe que lhe dissesse que eu ia pôr o por‑tátil em modo de voo. não tinha a certeza se a mãe o faria, uma vez que ela teria ficado radiante se eu tivesse de o desligar; mas a assistente de bordo viu ‑me falar com a mãe em língua gestual, percebeu que eu era surda e fez aquilo que as pessoas costumam fazer nesses casos, que é ficarem todas lamechas. O pai acha que é a combinação da mãe linda com a sua filhinha surda (eu!) que os faz ficar assim, como se estivéssemos num filme de domingo à tarde. Depois disso, a assistente de bordo lamecha nem sequer verificou se eu estava em modo de voo, e ofereceu ‑me um Twix. Espero que não haja meninas surdas de dez anos, que sejam ter‑roristas, porque decerto irão oferecer ‑lhes doces.

não sou nada parecida com as meninas desses filmes, e a mãe também não é como uma estrela de cinema, é demasiado divertida e esperta, mas o pai parece ‑se muito com o Harrison Ford. Sabem como é, o género de pessoa capaz de desarmar um terrorista se for preciso, mas que ainda assim nos conta uma história quando vamos para a cama. Ele acha muita graça quando lhe digo isto. E, embora nunca tenha tido de desarmar um ter‑rorista, obviamente, conta ‑me sempre uma história quando está em casa, mesmo agora que já tenho dez anos e meio, e eu adoro adormecer com os dedos dele a formarem palavras em frente das minhas pálpebras.

Então, aterrámos: o solavanco das rodas, e eu superentusias‑mada. Liguei ‑me ao Wi ‑Fi gratuito, publiquei o meu tweet, retirámos a nossa bagagem do tapete rolante para as malas, com as pernas um pouco estranhas por estarmos tanto tempo num avião, e apressámo‑‑nos na direção da zona das chegadas. Mas, em vez do pai, estava uma agente da polícia à nossa espera, que se desculpou por não poder adiantar ‑nos nada e nos trouxe para este local.

Como o oficial superior estava atrasado, Yasmin foi ver como estava ruby. Ela e ruby vinham passar o natal com Matt apenas

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dali a quatro semanas, mas, depois de ter falado com ele ao tele‑fone oito dias antes, precisava imediatamente de o ver; tão de imediato quanto possível para quem tem uma criança na escola, um cão e um gato que precisavam de alguém que tome conta deles e roupa especial para o Ártico para comprar. Estava preocupada por ruby ter de faltar à escola, mas, desde a morte do pai de Matt, não havia ninguém com quem ruby gostasse de ficar.

Olhou para ruby através do vidro da porta, vendo o cabelo lustroso cortado ao acaso cair ‑lhe para o rosto ao debruçar ‑se sobre o portátil. Fora a própria ruby que o cortara na última quarta ‑feira à noite, num momento à Maggie Tulliver de inde‑pendência em cortes de cabelo. Em casa, Yasmin pedir ‑lhe ‑ia que desligasse o portátil e entrasse no mundo real, mas por agora ia deixá ‑la estar.

Por vezes, quando Yasmin olhava para a filha, o tempo parecia embater num obstáculo e parar, enquanto o tempo do resto das pessoas avançava sem ela. Já perdera conversas inteiras. Era como se as contrações que surgiram como dores durante o trabalho de parto tivessem continuado, transformando ‑se posteriormente numa outra coisa, igualmente forte, e pensou se aquele parto teria fim. Ainda sentiria o mesmo quando ruby tivesse vinte anos? Quando estivesse na meia ‑idade? Será que a mãe dela sentia isso em relação a si? Pensou em quanto tempo se poderia aguentar a falta de se ser amado pela mãe.

A jovem agente da polícia aproximou ‑se a passos largos (a mulher nunca ia a lado nenhum devagar) e disse ‑lhe que o tenente reeve as aguardava e que as malas delas estavam em segurança num gabinete, como se a logística da bagagem tivesse uma impor‑tância equivalente ao assunto que o tenente tinha para lhes falar.

Acompanhou ‑a ao gabinete do tenente reeve.Ele levantou ‑se para cumprimentá ‑la, estendendo a mão. Ela

não a apertou.— O que aconteceu ao Matt? Onde está ele?Parecia zangada, como se culpasse Matt por não aparecer.

Estava tão zangada com ele que a sua voz ainda não se sintonizava com a nova situação; qualquer que ela fosse.

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— Gostaria que me confirmasse algumas coisas — disse o tenente reeve. — Temos o registo dos cidadãos estrangeiros que estão a trabalhar no Alasca.

Desde que ruby fora diagnosticada com surdez total (muito raro, disseram, como se a surdez da sua bebé fosse uma espécie de orquídea), Yasmin via o som como ondas. Com formação em física, já devia tê ‑lo feito antes, mas só com ruby é que ela compreen‑deu a verdade de que o som é uma coisa física. Por vezes, quando não queria ouvir o que uma pessoa estava a dizer (especialistas em patologia audiovestibular, amigos irrefletidos), imaginava que surfava por cima das palavras deles, ou mergulhava através delas, em vez de deixar que as ondas lhe chegassem aos tímpanos e se transformassem em palavras decifráveis. Mas tinha de ouvir. Estava ciente disso. Era inevitável.

— Segundo estes registos — prosseguiu o tenente Reeve —, o seu marido estava alojado em Anaktue. Apesar de inicialmente ter estado em Kanati.

— Sim, esteve lá durante oito semanas no verão, numa estação de investigação do Ártico, a fazer um filme sobre vida selvagem. Conheceu dois habitantes de Anaktue, que o convidaram a ficar alojado na sua aldeia. regressou ao Alasca em outubro, para fi car com eles.

Uma resposta desnecessariamente detalhada, procrastinadora, mas o tenente Reeve não se apressou a falar, como se também não quisesse que a conversa fosse mais longe.

— Infelizmente houve, um incêndio catastrófico em Anak‑ tue — disse.

Catastrófico. uma palavra para devastação imensa, para vulcões, terramotos e queda de meteoritos, não para a pequena aldeia de Anaktue, mais um casario do que uma aldeia.

O mais estúpido é que ela tinha vindo para discutir com ele, para fazer ultimatos que tencionava cumprir. Percorrera meio mundo para lhe dizer que ele tinha de voltar para casa de imediato, que ela não acreditava que não fosse acontecer mais nada com aquela mulher inupiaq e que não ia ficar do outro lado do mundo enquanto a tal mulher lhe destruía a família. Mas isso fizera Matt

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parecer tão fraco e hesitante, com a outra mulher e ela a decidi‑rem as lealdades e o futuro dele, e ela ficara ainda mais zangada, de maneira que não havia nada na sua mala nem da de ruby que tivesse sido dobrado, mas sim amachucado e atirado para o inte‑rior, as malas prestes a rebentar quando fossem abertas no Alasca, num frenesim de penas e Gore ‑Tex.

— Pensamos que as botijas de gás de um aquecedor ou fogão explodiram numa das casas — disse o tenente reeve. — E o fogo alastrou para uma reserva de combustível das motos de neve e de gasóleo para os geradores, o que provocou outra explosão muito maior e um incêndio intenso e devastador. ninguém sobreviveu em Anaktue. Lamento.

Sentiu ‑se trespassada pelo amor; sem fôlego devido à sua agu‑deza. A sensação era estranhamente familiar; uma versão mais intensa da dor que sentira nos primeiros tempos, muito antes do casamento e do nascimento da filha, antes de haver alguma garantia tangível de que ele ainda estivesse junto dela no dia seguinte. E o tempo já não se alongava linearmente, dobrava ‑se sobre si próprio e quebrava ‑se em fragmentos, e o jovem que ela amara tão apaixonadamente era recordado de forma tão vívida e estava tão presente como o marido com quem discutira oito dias antes.

Lembrava ‑se do sol baixo de inverno a entrar na oblíqua pelas janelas, da voz lenta e calma do professor de filosofia, das paredes espessas do auditório que abafavam o grasnar das aves no exte‑rior. Mais tarde, ele dir ‑lhe ‑ia que eram estor ninhos e ferreirinhas. Havia alguns lugares vazios entre eles. Vira ‑o duas vezes antes e gostara da sua angularidade; da forma como caminhava depressa e pensativo, como se a mente lhe ditasse o ritmo dos passos; as arestas aguçadas do rosto dele. Quando as agulhas de tricô dela tilintaram, ele lançou ‑lhe um olhar, e os olhos de ambos foram atingidos por um reconhecimento irracional. Depois, ele desviou os olhos, como se olhar durante mais tempo fosse uma censura ao tilintar. Quando a aula terminou, aproximou ‑se dela, enquanto ela guardava o tricô, perplexa.

— Isso é um cachecol para uma cobra?

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— Para uma barreira de proteção.Mais tarde, disse ‑lhe que a achara excêntrica, mas queria dar‑

‑lhe oportunidade de se defender.— És completamente doida, não és?Era essa a tua ideia de me dares oportunidade de me defender?— Sou astrofísica — disse ela.Ele pensou que ela estava a brincar, depois viu o rosto dela.— uma astrofísica a fazer tricô numa aula de filosofia?— Estou a aprender sobre a componente metafísica da física.

Em Oxford podemos fazer uma licenciatura conjunta. E tu?— Zoologia.— Então, o que estás a fazer numa aula de filosofia? Além de

perguntas sobre o meu tricô?— A filosofia é importante.— Para os animais?— Para a forma como pensamos sobre os animais. Sobre nós

próprios. Sobre o ambiente e o nosso lugar nele. — Caiu em si e ficou embaraçado. — normalmente não sou assim tão sério. Pelo menos não tão depressa.

— Já percorri um longo caminho e posso ser séria depressa.A escola dela fora brutalmente insuficiente. Sobrevivera ficando

escondida e anónima; felizmente, as suas maçãs do rosto altas e os seus seios pequenos não tinham grande sucesso junto dos rapazes adolescentes. Guardara o segredo bem guardado da sua inteligên‑cia, tirando resultados deliberadamente abaixo das suas capacida‑des nos exames, até aos exames finais, quando tirou quatro vintes reluzentes de um saco que toda a gente achava que estivesse cheio de dez baços. Teve de esconder as suas capacidades durante anos, e agora estava a celebrá ‑las.

Guardou a malha longa e estreita.— Às oito horas. À porta da biblioteca. Eu mostro ‑te.

O tenente reeve inclinou ‑se na direção dela, e ela apercebeu ‑se de que estavam ambos sentados a uma mesa, de frente um para o outro; não se lembrava de se ter sentado. Ele estava a dar ‑lhe qualquer coisa.

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— Um agente da polícia estadual de Prudhoe encontrou ‑a no local. Trouxe ‑a para lhe mostrar. Pelas iniciais no interior, pensa‑mos que talvez seja do Matthew.

Ela afagou o metal maciço da aliança de casamento, gasto pelo uso. Do lado de dentro estavam as suas iniciais e as de Matt; metade de um voto. Sentiu a segunda metade do voto sob a sua aliança, gravada no lado inferior do dedo.

— Sim, é dele — disse.Tirou a sua aliança e substituiu ‑a pela de Matt, que era dema‑

siado grande para o seu dedo. Voltou a colocar a sua, mantendo assim a de Matt em segurança, porque talvez um dia ele quisesse voltar a usá ‑la. Era impossível que estivesse morto, não com aquela faca a trespassá ‑la; não com ruby sentada na sala ao lado. Ela não podia acreditar; não acreditava.

reparou que o tenente reeve olhava para as suas mãos.— Ele costuma tirar a aliança de casamento quando está a tra‑

balhar. Guarda ‑a num sítio seguro.A explicação que Matt lhe dera, algumas semanas antes, quando

ela vira o dedo sem aliança numa fotografia que ele enviara a ruby por e ‑mail. Felizmente, ruby não tinha reparado.

não disse ao tenente reeve que não acreditava na desculpa de Matt.

Algumas horas depois da aula de filosofia, já depois de escu re cer, afastaram ‑se da parte histórica da cidade, habitada por estudantes e turistas, para chegarem a uma zona comercial junto a uma urbani‑zação com asfalto e betão impessoais e sombras ameaçadoras. Ele viu que havia tubos de malha à volta dos sinais, das barreiras de proteção e de um suporte para bicicletas. não fora seduzido apenas por uns olhos luminosos, membros esguios e um sorriso generoso, mas por lã macia à volta do duro metal, os fios a colorirem o alu‑mínio e o aço, cobrindo ‑os de riscas e padrões.

Contou ‑lhe que fazia parte de um grupo de guerrilha de jar‑dineiros, que, a meio da noite, transformavam furtivamente as rotundas de betão em pequenos prados cobertos de flores, mas que já não o fazia há algum tempo.

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— Já não há mais rotundas? — perguntou ele.— não estamos na época de plantar — respondeu. — E não pode‑

mos fazer jardinagem durante as aulas.— Então, esta é a tua paixão secreta? — perguntou ele.— Tricotar cachecóis para as barreiras de proteção? Felizmente,

não.— Então?Mas ela ainda não confiava nele o suficiente para lhe mostrar.

O tenente reeve não sabia se devia pôr a mão sobre a dela para a confortar, mas sentiu ‑se pouco à vontade quando fez o gesto. Ela estava a comportar ‑se de forma tão digna, sem a histeria que ele tinha previsto. É injusto, isso da histeria; queria dizer as emoções com as quais ele não saberia lidar; o desgosto.

— Um avião avistou o incêndio ontem à tarde — disse ‑lhe, pen ‑sando que ela queria saber os pormenores. Se estivesse no lugar dela, era o que ele desejaria. — O piloto sobrevoou Anaktue mesmo antes da tempestade. Os agentes da polícia estadual de north Slope Borough e os agentes de segurança pública montaram uma opera‑ção de resgate, apesar da tempestade e das terríveis condições de voo. E prosseguiram as buscas até hoje de manhã, mas, infelizmente, não encontraram sobreviventes.

— Ontem à tarde? — perguntou ela.— Sim. Lamento, mas não tenho mais pormenores. Os agentes

da polícia estadual e os agentes de segurança pública é que esta‑vam no terreno.

— Ele telefonou ‑me ontem. O Matt telefonou ‑me. Às cinco da tarde, hora do Alasca.

Soubera ‑o desde o início, mas agora tinha a prova. Enquanto o polícia fazia uma chamada telefónica, ela recordou ‑se de frag‑mentos da conversa deles, à medida que recuavam para o tempo em que estudavam juntos na universidade e sobre como havia outra conversa a acontecer em simultâneo, na forma como ele se aproximava dela, na forma como ela acertava subconscientemente o passo com o dele; reparou no colarinho gasto da camisa aos

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quadrados junto do pescoço dele, com a maçã de Adão saliente, como se ainda estivesse em formação, este rapaz ‑homem.

Ele viu as luzes cruas da cidade incidirem na fronte, nas faces e na boca dela, viu a mulher que ela seria dez anos depois, e não foi preciso mais nada, disse ‑lhe ele mais tarde.

— Bam! um truque de magia. um milagre. A mulher com quem eu queria estar.

Ela tivera menos confiança no futuro imaginado dele. Porém, ao caminhar ao seu lado, sentiu que a solidão da sua vida anterior, em que ela era aquela que destoava, a única pessoa da família, da escola e da sua classe social a frequentar a universidade, recuava um pouco atrás de si.

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Capítulo 2

Na remota comunidade nortenha de Prudhoe Bay, o capitão David Grayling estava sozinho no seu gabinete, comple‑

tamente esgotado. As luzes elétricas incidiam fortemente, e ele ansiava pela suavidade da luz do dia. Ainda faltavam dois meses para romper a manhã naquele local. Desgastava a alma de um homem. Estava a pensar em Timothy. Seria por causa de Timothy que ele agia de forma paternal para com os agentes mais jovens a seu cargo, como todos pensavam? Ele sempre se considerou mais como condutor de uma equipa de jovens huskies entusiásticos, a segurar as rédeas para os guiar na direção certa, com um saco de lona para transporte de cães no caso de algum deles ficar ferido e precisar de ser transportado em segurança.

Mas, em Anaktue, não agira como a figura paternal, nem como con dutor de cães. Os homens viram ‑no vomitar, uma e outra vez, horrorizado com a visão dos cadáveres. A tempestade abatera‑‑se sobre a aldeia enegrecida, o helicóptero deles mal conseguiu aterrar, o vento gelado mordia ‑lhes o rosto como um animal es‑fomeado. «Soprem os ventos, inflando as bochechas.»1 Instalaram os holofotes ofuscantes, fazendo incidir a luz sobre as casas em ruínas, iluminando os restos mortais quase irreconhecíveis de ho‑mens, mulheres e crianças. Para o capitão Grayling, a escuridão que rodeava as luzes deles parecia infinita.

1 «Blow winds and crack your cheeks.», citação de Rei Lear, William Shakes‑peare. (NT)

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Trabalharam em silêncio, uma equipa de homens, na maioria apenas rapazes para Grayling, sem falar nem dizer piadas; sem gracejos que os protegessem enquanto guardavam as provas em sacos, fotografando e documentando. «Clarões sulfurosos velo zes como o pensamento.»2 As palavras de Lear vinham ‑lhe à cabeça, mas um terreno devastado era uma opção suave quando compa‑rado com Anaktue, e os clarões velozes como o pensamento só o foram para aqueles que morreram. Os que tiveram de examinar os restos carbonizados pensavam demasiado.

Há alguns anos, no início da sua vida profissional, Grayling desejou frequentar a universidade e estudar literatura. Mas o pai queria que ele fizesse qualquer coisa, e não que andasse a «escrever versos». A crítica atingira o seu objetivo. Pensou que, já que ia fazer qualquer coisa, então seria algo que beneficiasse o seu muito esti‑mado Alasca. Por um breve período de tempo pensou em estudar medicina, mas não conseguiu adquirir as competências necessárias em química, por isso decidiu ser agente da polícia estadual. Ele era o único no curso de formação para quem aquela tinha sido uma segunda escolha. Passadas três semanas, descobriu que não tinha o cérebro adequado para ser um agente da polícia estadual, estava cheio de todo o tipo de informação e ideias irrelevantes. Então, fez uma limpeza, livrando ‑se daquilo de que já não precisava (se é que alguma vez teria precisado). Por isso não pensou no terreno devas‑tado durante anos. Mas Anaktue era diferente. Anaktue penetrou numa parte profunda do seu ser que não podia ser limpa.

Quando se aperceberam da dimensão da tragédia, e quando a tempestade acalmou o suficiente, vieram mais agentes da polícia estadual e de segurança pública juntar ‑se à sua equipa. O próprio Grayling liderara o grupo de batedores à procura de sobreviven‑tes. utilizando um holofote de busca no helicóptero, traçaram um perímetro em volta da aldeia, afastando ‑se cada vez mais, mas não encontraram ninguém. Grayling fora informado de que estavam vinte e três pessoas na aldeia. Só interrompeu as buscas quando

2 «You sulphurous and thought ‑executing fires.», citação de Rei Lear, Wil‑liam Shakespeare. (NT)

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os agentes contaram vinte e quatro corpos. Grayling teria de des‑cobrir a identidade da vigésima quarta vítima.

Por fim, todo aquele trabalho repugnante terminara. Foi o último a abandonar o local, levando os holofotes no helicóptero. Atrás de si, Anaktue tornou ‑se invisível na escuridão.

Mais tarde no mesmo dia teve de dar mais algumas entrevistas aos jornalistas, nos seus estúdios de televisão e rádio sobreaque‑cidos, jornalistas que dormiriam sem pesadelos.

O telefone tocou, e a chamada foi passada ao tenente reeve de Fairbanks. Era sobre Matthew Alfredson, a vigésima quarta vítima, que fora identificada através dos registos informatizados de vistos; o realizador de documentários sobre vida selvagem, cuja aliança de casamento Grayling encontrara reluzindo entre os destroços. Tudo o resto ficara destruído, o metal retorcido em formas feias, mas aquela aliança permaneceu um círculo eterno perfeito. Devido à sua breve incursão na química, Grayling sabia que a platina con‑seguia suportar temperaturas muito elevadas, mas aquela aliança intacta parecia quase o produto de um milagre. não fora encon‑trada perto de nenhum dos cadáveres, por isso, apesar de o metal permanecer um círculo intacto, Grayling presumiu que o próprio casamento não fosse tão resiliente, e esperava ter razão, porque isso talvez mitigasse a dor da perda.

Mas às cinco horas do dia anterior, enquanto examinavam os restos carbonizados de Anaktue, este homem telefonou à mulher. Como poderia ser possível? Meu Deus, este homem ainda estaria algures por ali, vivo? Tinha de falar com a mulher dele.

Para Yasmin, o capitão Grayling parecia o arquétipo do agente da polícia estadual, com uma voz grave e confiante. Imaginou ‑o de ombros largos e rosto forte a condizer com a voz.

— O seu marido disse ‑lhe onde estava? — perguntou o capitão Grayling.

— não. Mas acho que estava na pista de aterragem, à espera de um táxi aéreo. O tenente reeve disse que houve uma tempestade ontem à tarde, com péssimas condições de voo, portanto, o táxi aéreo não deve ter ido. Talvez ainda lá esteja.

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— Fizemos buscas numa área bastante alargada, que incluía a pista de aterragem.

— Mas decerto que estava escuro, e depois havia a tempestade. Será que é possível não o terem visto?

Ouviu a esperança na sua voz, a agarrar ‑se a um desfecho dife‑rente, e sentiu uma compaixão pungente por ela.

— A pista de aterragem é plana e bastante visível — afiançou. — Tínhamos holofotes potentes e fizemos uma busca cuidadosa.

não lhe disse que ele próprio sobrevoara o local meia dúzia de vezes, verificando bem e voltando a verificar.

— Ele costuma utilizar uma moto de neve? — perguntou.Anaktue situava ‑se a quilómetros de distância de qualquer

outro local, rodeada por terrenos quase intransponíveis, pelo que era sem dúvida a única opção, mas tinha de ter a certeza.

— Sim.Pedira à sua equipa que recompusesse os fragmentos amoleci‑

dos pelo calor das motos de neve. Agora esses fragmentos estariam gelados e sólidos.

Yasmin lembrava ‑se de Matt lhes ter dito, a ela e a ruby, que comprara uma moto de neve a um habitante da aldeia que preten‑dia adquirir uma melhor. Pensara que era curioso que os homens inupiaqs caçassem caribus utilizando motos de neve, mas Matt não achara estranho.

— Sabe quantas motos de neve havia na aldeia? — perguntou o capitão Grayling.

— Três — respondeu ela. — Havia a do Matt, a nova, de um modelo mais recente, e a que pertencia a um habitante da aldeia que trabalhava nos poços em Prudhoe Bay.

Ela e Matt falaram sobre isso; um assunto seguro e neutro na presença de ruby.

Esperou que o capitão Grayling dissesse alguma coisa e, perante o silêncio, soube que tinham encontrado três, os restos de três, na aldeia. Então, ele não se deslocava na sua moto de neve, vivo e de boa saúde, naquele preciso momento quase a chegar a Fairbanks,

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prestes a entrar de rompante com os braços estendidos para abra‑çar ruby, e ela podia dizer ‑lhe que o amava. Mas também era absurdo pensar que ele podia chegar a Fairbanks na moto de neve. Estava tão impaciente por vê ‑lo.

— Podia estar a viajar num trenó puxado por cães — disse ela.Algumas semanas antes, enviara um e ‑mail a ruby em que

referia que ia sair com um homem inupiaq num trenó puxado por huskies. Ela duvidara do seu entusiasmo, sem perceber porque é que alguém quereria viajar de trenó face à temperatura do Ártico, mas talvez o tom entusiástico dele fosse genuíno.

— Os canis também foram destruídos pelo incêndio — disse o capitão Grayling.

— Podia estar longe, em filmagens, quando deflagrou o incên‑dio, e ter levado os cães.

— A filmar em pleno inverno? — perguntou o capitão Grayling. — no escuro?

— Está a fazer um filme sobre a vida selvagem no Alasca durante o inverno. Anaktue é apenas a base.

não disse o quanto se sentiu cética em relação ao motivo que Matt apresentara para ficar em Anaktue; nem que não o tinha confrontado. Mas ele podia ter ‑lhe dito a verdade.

— Mesmo que tivesse viajado para filmar — disse o capitão Grayling —, decerto que teria regressado a Anaktue, ou à pista de aterragem, a tempo de chegar a Fairbanks para ir ter consigo.

— Deve ter acontecido qualquer coisa ao trenó ou a algum dos cães — comentou ela.

— Disse que o seu marido não lhe indicou onde estava quando lhe telefonou?

— não.— Tem alguma pista relativamente a onde ele estava?— não.— Posso perguntar ‑lhe o que ele lhe disse?— não falámos.— Desculpe?— A ligação caiu antes que ele pudesse dizer alguma coisa.— Ele não disse absolutamente nada?

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— não. Como eu estava a falar...— Então, como sabe que era ele?— Eram duas da manhã em Inglaterra, e ele é a única pessoa

que me telefona a essa hora. Muitas vezes, perdemos a ligação. Ele tem um telefone por satélite e precisa de espaço aberto para apontar sem obstáculos para o céu. Ou talvez o telefone tenha ficado sem bateria. Como não voltou a telefonar, penso que é o mais provável.

— Podia ter sido outra pessoa a telefonar ‑lhe. Talvez um engano?

— não. Era ele.não disse ao capitão Grayling como ficara surpreendida por

Matt lhe ter telefonado. Além daquela chamada horrível oito dias antes, deixara praticamente de lhe telefonar, apesar de enviar regularmente e ‑mails a ruby. Durante um dos raros telefonemas entre ambos um mês antes, ela acusara ‑o de já não se esforçar, e ele disse ‑lhe que não podia telefonar de Anaktue, tinha de per‑correr mais de três quilómetros e escalar uma crista de gelo para obter uma ligação por satélite. Oh, e também era inverno, pelo que estava completamente escuro quando percorria o caminho, e naquele momento em que falava com ela estavam vinte e sete graus negativos. Ela não referira que ele fazia o mesmo percurso sempre que enviava um e ‑mail a ruby, o que acontecia com fre‑quência; ela sentia ‑se contente por isso. Houvera uma tempestade no dia anterior. Teria sido uma viagem ainda mais difícil.

Ela desejava poder acreditar numa reviravolta na relação deles, desconhecida por ela, que o fizesse percorrer mais de três quiló‑metros no frio e na escuridão do Ártico para falar com ela, mas sabia que isso não era verdade. não sabia por que razão lhe tinha telefonado, sobretudo quando faltavam poucas horas para entrar num avião com ruby, e ele poderia vê ‑la pessoalmente.

— Qual é a empresa de telefone por satélite que o seu marido utiliza? — perguntou o capitão Grayling.

Ele pretendia então verificar o que ela lhe dissera junto da empresa telefónica de Matt. Deu ‑lhe o nome da empresa e esperou que isso não atrasasse as buscas.

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Tinha esperança de sentir algum alívio, mas isso não aconteceu. Depois de toda aquela ansiedade, talvez ela precisasse mesmo de tocar nele para sentir alívio.

Ainda não perguntara ao tenente Reeve nem ao capitão Gray‑ling se Corazon fora uma das vítimas do incêndio. não queria dizer o nome dela.

@Palavras _Sem_Sons650 seguidoresANSIEDADE: Parece um tabuleiro de xadrez com os quadrados a moverem ‑se depressa de um lado para o outro; transpira e tem tre‑meliques; sabe a gelado com cristais que picam.

Não costumo dar ‑me muito bem com terapeutas da fala, mas houve um homem, era muito jovem, acho que ainda estava a aprender a ser médico, que me perguntou se eu via as palavras, visto que era evidente que não conseguia ouvi ‑las. A mãe não gosta que eu diga: «A sério, Sherlock», mas o pai acha engraçado. E aquele jovem mais ‑ou ‑menos ‑médico também. nunca tinha dito isto a ninguém, mas é verdade que vejo as palavras e também lhes toco e sinto o seu gosto. Sei que é estranho, mas aquele jovem mais ‑ou ‑menos ‑médico não foi da mesma opinião. Pensou que eu devia publicar tweets sobre isso, e eu respondi: «Excelente plano, Batman!» (porque sabia que ele gostava de incluir personagens de livros nas nossas conversas). Foi o meu primeiro seguidor, e agora tenho centenas deles, o que é estranho (estranho: Parece psicadélico; sabe a sorvete efervescente).

Aquele tweet que publiquei sobre «Entusiasmo», em que pensei que o pai estava à nossa espera nas «Chegadas»? É engraçado, porque disse que a palavra «Entusiasmo» parecia um capuz fel‑pudo da parca inupiaq dele, mas em outubro, quando partiu para o Alasca e twittei «Tristeza», Tristeza também parecia o capuz felpudo da parca dele. Por isso acho que a forma como vemos uma palavra, tal como o seu significado na frase, está relacionada com o contexto e o tempo. na escola não utilizaria uma palavra como «contexto», porque as pessoas acham que é tão estranho estar

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no programa dos «Dotes e Talentos» como no das «necessidades Especiais»; estar em ambos é superestranho, e não de uma forma engraçada de sorvete e rebuçados efervescentes.

Publicar um tweet sobre uma palavra para exprimir uma emo‑ção costuma ajudar

Mas não ajudou.

A agente verificava os contactos de Yasmin quando o tenente reeve entrou. Disse ‑lhe que o capitão Grayling estava à espera para falar com ela no telefone do seu gabinete. Ela acom panhou ‑o e atendeu o telefone.

— Peço desculpa — disse o capitão Grayling. — Cometemos um erro terrível.

Falou com delicadeza. Ela imaginou o rosto dele mais suave, a sua constituição menos pesada.

— um dos membros mais jovens da equipa de buscas encon‑trou um telefone por satélite junto a uma das casas carboniza‑das. Ligou para o último número marcado. Tinha esperança de localizar alguém que ainda estivesse vivo, possivelmente uma vítima.

— não compreendo.— Foi um agente de segurança pública que lhe telefonou, não

foi o seu marido. Conseguiu obter ligação por um ou dois segun‑dos. Lamento. Era um cenário confuso, e ele é jovem e inexpe‑riente. Devia ter ‑me comunicado isto de imediato. Está a sofrer uma sanção disciplinar, claro; nunca devia tê ‑lo feito.

— O Matt está vivo — disse ela ao capitão Grayling. — Quer me tenha telefonado ou não.

— Senhora Alfredson...— Deve ter deixado cair o telefone quando fugiu do incêndio.— Mas ele não estava lá quando procurámos.— Deve ter ido pedir ajuda. Era isso que o Matt faria. Teria

tentado ajudar e, se não conseguisse, ia procurar ajuda. E deixou cair o telefone sem se aperceber disso. Tem de andar quilómetros para obter sinal e...

— Lamento, senhora Alfredson, mas...

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— Ou estava fora a filmar — disse ela —, como lhe disse, e dei‑xou cair o telefone antes de partir e...

O capitão Grayling interrompeu ‑a. Meu Deus, como detestava fazer aquilo.

— Foram recuperados vinte e quatro cadáveres no local. A aldeia tinha vinte e três habitantes na altura do incêndio. recebi esta informação ontem, e hoje voltei a confirmá ‑la.

— não pode ter a certeza do número de pessoas que lá esta‑vam — disse ela. E ouviu o desespero urgente na sua voz, a certeza ponderada na voz dele.

— Havia planos para se instalarem geradores novos em Anak‑tue, pelo que foi realizado um estudo pormenorizado de cada habitação. Foi também feito um estudo sobre a possibilidade de haver uma nova escola inupiaq. Foi muito específico em rela‑ção ao número de pessoas que lá viviam nas diferentes alturas do ano.

O capitão Grayling parecia tão razoável e compreensivo. Viu o tenente Reeve observá ‑la; devia ter falado com o capitão Grayling antes. Tinha um copo de água para ela. O capitão Grayling prosse‑guia; as ondas sonoras atingiam ‑lhe os tímpanos implacavelmente, transformando ‑se em palavras.

— Dos vinte e sete habitantes, quatro homens inupiaqs mais jovens estão fora, a trabalhar nos poços em Prudhoe Bay, como acontece em todos os invernos, o que significa que restaram vinte e três habitantes. E, como disse, foram recuperados vinte e quatro cadáveres.

— Mas não identificaram o Matt, pois não? — disse ela.— Disse ao tenente reeve que a aliança de casamento era dele.— Mas ele não estava a usá ‑la, pois não? E não fizeram os exa‑

mes forenses adequados, não podem tê ‑los feito. Ter ‑me ‑iam dito.Grayling sentiu ‑se invadido por um sentimento de compaixão

por aquela mulher que ameaçava soltar o peso morto do desgosto sempre presente nele num equilíbrio tão precário. Desejou que houvesse uma forma de lhe dizer que não fosse brutal.

— O incêndio foi muito intenso — disse. Deixou alguns dos cadáveres quase impossíveis de identificar como sendo humanos,

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quanto mais como uma pessoa com um nome e uma família. Era improvável que conseguissem sequer identificar alguns através dos registos dentários. — Quem me dera não ter de ser eu a dizer‑‑lhe isto, mas o seu marido está morto. Lamento muito. Sei que o tenente reeve vai cuidar de si.

Desligou o telefone.

O telefonema de Matt fora apenas uma prova tangível daquilo que Yasmin já sabia, transportado na ponta de uma faca e agora no seu íntimo: que ele estava vivo.

na verdade, não ficara surpreendida ao saber que não fora ele a telefonar, a surpresa fora pensar que ele lhe tinha telefonado. Desejava que o tivesse feito não por ser um sinal de um amor reavivado, mas porque assim a polícia teria de acreditar nela, e não estaria no edifício da polícia do Alasca, junto ao aeroporto, sem ideia nenhuma do que deveria fazer.

A mãe acabou de entrar. Está agachada, com o rosto perto de mim, e consigo ler ‑lhe os lábios com facilidade. Diz ‑me que o pai está bem. Houve um engano, mas ela vai resolver tudo. Parece demasiado tensa, como quando não acertamos numa Swing‑ball e o fio se enrola todo à volta do poste. Finjo não reparar e sorrio ‑lhe.

Diz ‑me que o pai deixou cair o telefone, e é por isso que não pode telefonar nem enviar mensagens. um polícia mais velho entra e pede à mãe que o acompanhe. Ela diz que voltará num instante. Quando saem, o polícia mais velho estende ‑lhe o braço, e depois volta a deixá ‑lo cair sem lhe tocar. Muita gente não sabe como se comportar em relação à mãe, o facto de ela ser tão bonita afasta as pessoas, mas é evidente que precisa de alguém que ponha um braço à volta dela.

no seu gabinete, o tenente reeve tentou fazer Yasmin sentar ‑se numa cadeira, mas ela não quis.

— O Matt não está morto — disse ela. — O agente da Polícia Estadual do norte, o capitão Grayling, tem de ir à procura dele.

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O tenente reeve lera algures que o luto tem quatro fases, sendo a primeira a negação.

— Lamento, ele pensa que não há razões para isso.— Então limita ‑se a desistir? Será assim tão difícil procurar

alguém?Ele receava que a voz dela se transformasse num grito ou num

pranto, e manteve ‑se calmo e firme.— Se o capitão Grayling achasse que havia a mais remota pos‑

sibilidade, iria. Ele próprio pilotou um helicóptero até Anaktue, apesar da tempestade. não estava de serviço, mas fez a viagem, ainda assim. E foi o último a abandonar o local; passou quase doze horas, com uma temperatura de trinta e quatro graus negativos, a procurar.

O homem era um aventureiro pelos padrões de Fairbanks, coman dava as operações no Norte, como se fosse tudo dele, muitas vezes descurando as regras. Mas esforçava ‑se sempre ao máximo, nunca abandonava uma missão de resgate enquanto restasse alguma esperança. Dizia ‑se que ficara assim após a morte do filho no Iraque.

Yasmin ficou em silêncio. Sem dizer nada, levantou ‑se e saiu do gabinete.

A minha pulseira está a vibrar, o que significa que há um ruído forte. É como um acessório do James Bond para pessoas sur das, para saber se alguém está a dar ‑me um tiro (o senhor da loja especial disse isto, e eu achei muito engraçado). É para saber quando vem um carro, no caso de me esquecer de olhar para os dois lados.

A mãe entra com as nossas malas; deve ter sido a porta a fechar ‑se com força atrás dela que fez a minha pulseira vibrar. não sorri. Sorri sempre que me vê, mesmo se a tiver visto cinco minutos antes; como se, de cada vez que me visse, sorrisse por ficar muito contente por voltar a ver ‑me. Algumas pessoas acham que ela é distante. Já lhes li isso nos lábios. As palavras más são mais fáceis de ler do que as suaves e calorosas. Penso que, se não fosse tão bonita, vê ‑la ‑iam melhor.

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Diz ‑me que o pai está bem, mas houve um incêndio terrível em Anaktue. Diz que os polícias estavam a ser idiotas e lentos, e que temos de ser nós a ir procurá ‑lo.

Saíram da esquadra da polícia, arrastando as malas por cima da neve compactada. Agora o frio era mais cortante. Ela e ruby tinham luvas de proteção com forro; as máscaras estavam puxadas para cima.

Onde estaria ele?Tinha de pensar bem, com calma, racionalmente, como a cien‑

tista que outrora estudara para ser.O capitão Grayling fizera uma busca meticulosa na pista de

aterragem, que em princípio seria uma área plana e desimpe dida, pelo que devia ser relativamente fácil localizar uma pessoa. Era provável que o capitão Grayling tivesse razão, e Matt não esti‑vesse lá.

Então, onde estaria ele? Precisava de pensar. Logicamente. Tinha de esquecer o frio e o rosto de ruby a olhar para ela. Concentrar ‑se.

Se Matt estivesse em Anaktue quando deflagrou o incêndio, o que faria ele? Tentaria ajudar e, quando percebesse que não conseguia fazê‑lo, iria procurar ajuda. Imaginou o telefone a cair‑‑lhe do bolso, com a pressa, e a aterrar silenciosamente na neve. Portanto, sem reparar, ele percorreu mais de três quilómetros no meio da tempestade e depois escalou a crista de gelo para obter uma ligação por satélite. E o que teria acontecido a seguir? Apal‑pou o bolso à procura do telefone por satélite, e este não estava lá. Talvez voltasse para trás, à procura dele, sem saber que o dei‑xara cair na aldeia. Quanto tempo teria estado à procura? Talvez tivesse tentado andar para pedir ajuda. Devia estar desesperado. Havia crianças na aldeia. Corazon. Se caminhasse demasiado depressa, transpiraria, e a transpiração congelaria junto à pele causando hipotermia. Porém, ele conhecia o perigo da hipotermia. A preocupação dela não ia ajudá ‑lo. Tinha de concentrar ‑se. Mas viu os olhos dele ao aperceber ‑se de que já não havia cidade, nem aldeia, nem casa para onde se dirigir, não havia ajuda num raio

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de cento e sessenta quilómetros, mas, apesar disso, continuou a andar, como se pudesse alterar esse facto, antes de reconhecer que era inútil. Ela queria encostar a sua palma da mão quente ao rosto dele. Tinha de concentrar ‑se. E entretanto a polícia realizava bus‑cas em Anaktue e na pista de aterragem, estava escuro, no meio da tempestade, e os holofotes deles não o localizaram, porque ele não estava lá. Quanto tempo terá demorado a regressar a Anaktue, para perceber que esta se encontrava deserta e que os polícias tinham ido embora?

ruby dava ‑lhe palmadinhas no braço; a mala dela ficara presa na lama gelada, à beira do passeio. Yasmin ajudou ‑a a soltá ‑la.

Havia uma explicação melhor. Ele ausentara‑se para filmar, tal como ela dissera ao capitão Grayling. na verdade, havia todos os tipos de animais para filmar, as zonas selvagens do Alasca no inverno estavam repletas deles. Tinha feito mal em duvidar de Matt. Então, houve algo que o atrasou: um cão ferido ou um dano no trenó. Era irrelevante. A questão é que estava muito longe de Anaktue na altura do incêndio. E, igualmente importante, teria o kit de emergência consigo. E o telefone? Ao partir com os huskies, deixara ‑o cair sem reparar; mais uma vez, a neve silenciadora: os objetos perdidos que caem sobre ela não emitem nenhum ruído. Se estava num trenó, seria difícil, talvez as rédeas dos cães tives‑sem ficado presas umas nas outras; há muito em que pensar para que não reparasse no telefone a cair. E depois? regressou à aldeia após o incêndio, após as buscas da polícia, talvez na noite ante‑rior, talvez até naquela mesma manhã, encontrando ‑a totalmente carbonizada e deserta.

Como estudara física e astrofísica, e não medicina, não sabia quanto tempo ele poderia sobreviver.

Não ia aceitar a prova da contagem de cadáveres do capitão Grayling, não estava comprovada, não fora verificada. Era incor‑reta. Tinha de ser incorreta. E havia a base ilógica sobre a qual construíra o resto das suas hipóteses convincentes: ele tinha de estar vivo, porque ela amava ‑o; uma verdade emocional tão intensa e absoluta, que não podia ser afetada por argumentos racionais.

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Depois de ajudar Ruby com a mala, dirigiram ‑se para o edifí‑cio do aeroporto. Ia entrar com ruby num avião para o norte do Alasca, e elas iam encontrá ‑lo.

Quando chegaram ao terminal, percebeu que a luz estava muito mais fraca do que quando tinham saído do avião, o intervalo de claridade deslumbrante tinha terminado. Sabia que ali havia palavras cuidadosamente calibradas para designar «crepúsculo» e «anoitecer». Ela e Matt tinham falado sobre o assunto ao telefone na primeira vez que ele veio ao Alasca; um telefonema agradável, um entre muito poucos. Esta luz era designada por «crepúsculo náutico», estando o Sol entre seis a doze graus acima da linha do horizonte. Em breve, o Sol mergulharia para entre os doze e os dezoito graus abaixo do horizonte, e isso seria o «crepúsculo astronómico». E depois seria apenas escuridão.

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