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O casamento como relacionamento psíquico Como relacionamento psíquico o matrimônio é algo de complicado, sendo constituído por uma série de dados subjetivos e objetivos que em parte são de natureza muito heterogênea. (p. 168) Sempre que tratamos do relacionamento psíquico, pressupomos a consciência. Não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado inconsciente. (...)Na medida em que existirem tais inconsciências, também se reduz o relacionamento psíquico. (p. 168) Na criança a consciência emerge das profundezas da vida psíquica inconsciente, formando no começo como que ilhas isoladas, as quais aos poucos se reúnem em um "continente", para formar uma consciência coerente. O processo gradativo do desenvolvimento espiritual significa ampliações da consciência. Desde o momento em que aparece a consciência coerente, existe a possibilidade do relacionamento psíquico. Consciência, segundo nossa concepção, é sempre consciência do "eu". Para tornar-me consciente de mim mesmo, devo poder distinguir-me dos outros. (...)Quanto aos conteúdos inconscientes não é possível qualquer distinção; e, por isso, nesse campo não pode ser estabelecido nenhum re- lacionamento; nessa região reina ainda o estado inicial da identidade primitiva do "eu" com os outros, e assim ausência completa de relacionamento. (p. 168-169) o jovem tem um conhecimento incompleto tanto de si mesmo como do outro; por isso também conhece de modo insuficiente os motivos do outro como também os próprios. (...)Quanto maior for a

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Page 1: fichamento 5

O casamento como relacionamento psíquico

Como relacionamento psíquico o matrimônio é algo de complicado, sendo constituído por uma

série de dados subjetivos e objetivos que em parte são de natureza muito heterogênea. (p. 168)

Sempre que tratamos do relacionamento psíquico, pressupomos a consciência. Não existe

nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado

inconsciente. (...)Na medida em que existirem tais inconsciências, também se reduz o

relacionamento psíquico. (p. 168)

Na criança a consciência emerge das profundezas da vida psíquica inconsciente, formando no

começo como que ilhas isoladas, as quais aos poucos se reúnem em um "continente", para

formar uma consciência coerente. O processo gradativo do desenvolvimento espiritual significa

ampliações da consciência. Desde o momento em que aparece a consciência coerente, existe a

possibilidade do relacionamento psíquico. Consciência, segundo nossa concepção, é sempre

consciência do "eu". Para tornar-me consciente de mim mesmo, devo poder distinguir-me dos

outros. (...)Quanto aos conteúdos inconscientes não é possível qualquer distinção; e, por isso,

nesse campo não pode ser estabelecido nenhum relacionamento; nessa região reina ainda o

estado inicial da identidade primitiva do "eu" com os outros, e assim ausência completa de

relacionamento.

(p. 168-169)

o jovem tem um conhecimento incompleto tanto de si mesmo como do outro; por isso também

conhece de modo insuficiente os motivos do outro como também os próprios. (...)Quanto maior

for a extensão da inconsciência, tanto menor se tratará de uma escolha livre no casamento (p.

169)

Os motivos ainda inconscientes são de natureza tanto pessoal como geral. Primeiramente há os

motivos provenientes da influência dos pais. Nesse particular é decisivo para o rapaz o

relacionamento com a mãe, e para a moça o relacionamento com o pai. Em primeiro lugar é o

grau de ligação aos pais que influencia a escolha do consorte, favorecendo ou dificultando.

(...)Em regra, a vida que os pais podiam ter vivido, mas foi impedida por motivos artificiais, é

herdada pelos filhos, sob uma forma oposta. Isso significa que os filhos são forçados

inconscientemente a tomar um rumo na vida que compense o que os pais não realizaram na

própria vida. (p. 170)

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Se o indivíduo devesse ser considerado apenas sob a perspectiva da conservação da espécie,

certamente a melhor escolha seria a puramente instintiva. Como suas bases são inconscientes,

sobre elas apenas se pode estabelecer uma espécie de relacionamento impessoal. (...) (p. 170)

A escolha do parceiro normalmente se realiza por motivos inconscientes e instintivos (...).A

inconsciência produz falta de diferenciamento ou identidade inconsciente. A conseqüência

prática disso é que cada um pressupõe no outro estrutura psíquica semelhante. A sexualidade

normal, por ser uma vivência comum e aparentemente da mesma orientação, fortalece esse

sentimento de unidade e de identidade. Este estado é designado como harmonia completa e

apregoado como constituindo a grande felicidade ("Um só coração e uma só alma"). Há

certamente razão para esse julgamento, pois o retorno àquele estado inicial de inconsciência e

de unidade inconsciente seria como que uma volta à infância (daí os modos infantis dos

enamorados) e, mais ainda, como um retorno ao seio materno, a esse mar repleto de

pressentimentos acerca da exuberância criadora ainda inconsciente. Na verdade trata-se de uma

vivência genuína e inegável da divindade, cuja força dominadora apaga e absorve tudo o que é

individual. É a própria comunhão com a vida e com o destino impessoal. (p. 170-171)

O relacionamento se conserva dentro dos limites da finalidade biológica do instinto: a

conservação da espécie. Sendo esta finalidade de natureza coletiva, o relacionamento psíquico

dos esposos é também essencialmente coletivo e não pode, portanto, ser considerado relaciona-

mento pessoal em sentido psicológico. Somente poderemos falar em tal relacionamento quando

se tornar conhecida a natureza da motivação inconsciente e quando estiver suprimida em larga

escala a identidade inicial. (p. 171)

Geralmente a mudança começa com o início da segunda metade da vida. O meio da vida é um

tempo de suma importância psicológica. A criança começa sua vida psíquica em ambiente aca-

nhado, o ambiente de influência da mãe e da família. À medida em que prossegue a maturidade,

alarga-se o horizonte e também a esfera da própria influência. (...) O meio da vida é um tempo

de desenvolvimento máximo, quando a pessoa ainda está trabalhando e operando com toda a

sua força e todo o seu querer. (p. 171-172)

Como os escopos visados na segunda metade da vida diferem dos da anterior, pode surgir a

desunião da vontade, se alguém permanecer por demasiado tempo numa atitude juvenil. A

consciência impele para a frente, de acordo com a inércia que lhe é própria; o inconsciente

retém o avanço, porque se esgotaram a força e a vontade internas para uma ulterior expansão.

Essa desunião consigo mesmo gera descontentamento e, como a pessoa não está consciente

desse seu estado, procura geralmente projetar no outro cônjuge os motivos de tudo isso.

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Origina-se então uma atmosfera crítica, que é a condição indispensável para a tomada de

consciência. (p. 172)

Os fatores que causam dificuldade típica nesse momento crítico são, por um lado, a

desigualdade de tempo no desenvolvimento, e de outro, o alcance da personalidade espiritual.

(...) Todavia existe sempre desse modo tantas possibilidades de vivência, que a pessoa mais

simples se sente envolvida por elas ou até mesmo presa por elas; essa pessoa como que se

dissolve na personalidade mais ampla, não podendo enxergar nada além dela. Isso constitui uma

ocorrência quase geral (...). Poderia ser designado como o problema do envolvente e do

envolvido. (p. 173)

O envolvido se encontra totalmente dentro do matrimônio, no tocante ao essencial. Sem

nenhuma divisão, volta-se inteiramente para o outro, enquanto que em relação ao exterior não

existe nenhuma obrigação importante, nem interesse que o prenda. O aspecto desagradável

desse estado, aliás "ideal", é a dependência inquietante de uma personalidade muito vasta, que

por isso mesmo não pode merecer todo o crédito ou confiança. A vantagem é que ele mesmo

não está dividido — fator que não deve ser subestimado na economia psíquica! (p. 173)

O envolvente precisaria de modo especial, por causa de seus dotes até certo ponto dissociados,

conciliar-se consigo mesmo pelo amor indiviso à outra pessoa: mas nesse esforço, que lhe é

difícil por natureza, vê que a pessoa mais simples lhe toma a dianteira. (...)Quanto mais firme-

mente se apegar o envolvido, tanto mais se sentirá o envolvente impelido para fora. Por apegar-

se, consegue o envolvido penetrar ainda mais quanto mais penetrar, tanto menos permitirá ao

outro que faça o mesmo. O envolvente sempre procura espiar para fora da janela, no início

talvez inconscientemente. Ao atingir o meio da vida, desperta nele um desejo mais intenso de

tornar-se uno e indiviso, pois disso necessita especialmente por sua natureza dissociada; então

geralmente acontecem coisas que o tornam consciente do conflito. Torna-se consciente de que

procura aquilo que sempre lhe faltou, i. é, ser complementado, ser abrangido, ser indiviso. (p.

173-174)

É isso o que costuma acontecer nas épocas em que se atinge o meio da vida; (...)a na tureza se

torna cultura, e o impulso, espírito. (p. 175)

Deve-se ter cuidado de não interromper esse desenvolvimento necessário por meio de violências

morais, pois criar uma atitude espiritual por meio da divisão e supressão dos impulsos será uma

falsificação. (...) O caminho da transição é longo, e a maioria das pessoas fica retida a meio

caminho. (p. 175)

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A harmonia do casamento, que é própria da primeira metade da vida (se é que de fato se

realizou tal adaptação), se fundamenta sobretudo em projeções de certas imagens típicas (como

se evidencia na fase crítica). (p. 175)

Cada homem sempre, carregou dentro de si a imagem da mulher; não é a imagem desta

determinada mulher, mas a imagem de uma determinada mulher. Essa imagem, examinada a

fundo, é uma massa hereditária inconsciente, gravada no sistema vital e proveniente de eras

remotíssimas; é um "tipo" ("arquétipo") de todas as experiências que a série dos antepassados

teve com o ser feminino, é um precipitado que se formou de todas as impressões causadas pela

mulher, é um sistema de adaptação transmitido por hereditariedade (...) Visto esta imagem ser

inconsciente, será sempre projetada, inconscientemente, na pessoa amada; ela constitui uma das

razões importantes para a atração passional ou para a repulsa. A essa imagem denominei anima.

(...) A mulher não tem a anima, mas animus.* A anima é de índole erótica e emocional,

enquanto que o animus é de caráter raciocinador. (...) (p. 176)

Tanto a anima como o animus se caracterizam por uma versatilidade enorme. (...) (p. 177)

Tanto para o homem como para a mulher, se são os envolventes, a realização de tal imagem é

sempre um acontecimento cheio de conseqüências, pois há sempre a possibilidade de que a sua

própria complicação encontre resposta em uma multiplicidade de formas. (...)Assim como a

projeção do animus, por parte da mulher, é capaz de sentir pelo faro um homem importante,

desconhecido por parte da grande massa, e até mesmo ajudá-lo a atingir seu desígnio mediante o

apoio moral, do mesmo modo o homem, pela projeção da anima, também pode despertar para si

mesmo uma femme inspiratrice ("mulher inspiradora"). Mas muitas vezes talvez se trata apenas

de uma ilusão de efeito destruidor. (p. 177)

O livro "She", de RIDER HAGGARD, mostra mais ou menos como é o mundo curioso da

imaginação que constitui a projeção da anima. Trata-se principalmente de conteúdos espirituais,

muitas vezes em disfarce erótico, restos evidentes da mentalidade mitológica primitiva, que é

formada de arquétipos e em seu conjunto constitui o que se denomina inconsciente coletivo. De

acordo com isso, tal relacionamento é propriamente coletivo e não individual (BENOIT, que em

sua "Atlantide" criou uma figura de fantasia que coincide com a de "She" até nos pormenores, se

defende de haver plagiado Rider Haggard.) (p. 177-178)

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Se tal projeção ocorrer em um dos cônjuges, então um relacionamento coletivo espiritual

substitui o relacionamento coletivo biológico existente até então; o efeito resultante será aquela

dilaceração do envolvente descrita acima. Se este conseguir manter-se sem sucumbir, justa-

mente através desse conflito acabará por encontrar-se a si mesmo. (p. 178)

É quase impossível tratar do relacionamento psíquico no matrimônio sem ao menos mencionar a

natureza das transições críticas (...).É sabido que ninguém compreende alguma coisa do ponto

de vista psicológico se não a tiver experimentado em si mesmo. (...)A vida psíquica é um

desenvolvimento que pode estacionar nas etapas iniciais. É como se cada indivíduo tivesse um

peso específico próprio, e de acordo com ele subisse ou descesse, até encontrar o ponto de

equilíbrio onde encontrasse seu limite. Também os conhecimentos e as convicções do indivíduo

correspondem a esse estado. (p. 178)

Em todas essas etapas pode ocorrer estacionamento permanente, com inconsciência total do que

aconteceria na etapa seguinte. (p. 179)

A natureza não é apenas aristocrática, mas também esotérica. Nenhuma pessoa inteligente será

por isso levada a ocultar segredos, pois sabe perfeitamente que o segredo do desenvolvimento

psíquico jamais pode ser traído, simplesmente porque o desenvolvimento depende da

capacidade de cada um. (p. 179)