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Filosofia em Tempos Difíceis JORGE NUNES BARBOSA

Filo So Fos Dose Culo Xx

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Filosofia em Tempos Difíceis

J O R G E N U N E S B A R B O S A

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Índice

“Necessitamos, pois, de corrigir o ponto de partida da filosofia. O dado radical do Universo não é simplesmente: o pensamento existe, ou eu, pensante, existo; mas que se existe o pensamento existem, ipso facto, eu que penso e o mundo em que penso, e existe um com o outro, sem separação possível. Mas nem eu sou um ser substancial, nem o mundo tão-pouco - ambos somos em ativa correlação; eu sou o que vê o mundo, e o mundo é o que é visto por mim. Eu sou para o mundo, e o mundo é para mim. Se não há coisas que ver, pensar e imaginar, eu não veria, pensaria ou imaginaria - isto é, não seria.” (…)

Ortega y Gasset

Explicação Prévia

Introdução

Capítulo I - O Círculo de Viena e a Escola de Frankfurt

Círculo de Viena

Escola de Frankfurt

Conceitos e Objetos (Frege) - Texto

Os Sentidos não Mentem (Nietzsche) - Texto

Enunciados Destituídos de Sentido (Carnap) - Texto

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Capítulo II - Bertrand Russell

Bertrand Russell

O Significado e a Verdade

O Significado como Conhecimento Direto ou Familiar

A Ontologia de Russell

A Forma de uma Proposição Verdadeira pode ser Mostrada?(Russell) - Texto

Capítulo III - Ludwig Wittgenstein

Introdução

O Tractatus Logico-Philosophicus

As Investigações Filosóficas

Uma Espécie de Mitologia (Wittgenstein) - Texto

Capítulo IV - Martin Heidegger

Heidegger: Os Mal-Entendidos

Síntese

Superar a Metafísica (Heidegger) - Texto

Capítulo V - Ortega y Gasset

A Razão Vital

A Questão do Nosso Tempo

Eu Sou Eu e a Minha Circunstância

Síntese

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Capítulo VI - Jurgen Habermas

O Debate Livre

O Conceito de Racionalidade Comunicacional (Habermas) - Texto

Capítulo VII - Karl Popper

A Abertura do Pensamento

Não Há Indução (Popper) - Texto

Capítulo VIII - Thomas Kuhn

Revoluções Científicas

Como se Produzem as Revoluções Científicas (Kuhn) - Texto

Capítulo IX - John Rawls

O que á a Justiça?

A Justiça como Equidade (Rawls) - Texto

Capítulo X - Outros Temas

Husserl e a Fenomenologia

Paul Ricoeur

Explicar e Compreender (Paul Ricoeur) - Texto

O Outro

Existencialismo

Utopia

Razão

O Absurdo

Bibliografia

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Explicação Prévia

Este documento é composto por textos dispersos, a respeito de alguns filósofos do século XX.

Corresponde de algum modo a uma espécie de esboço do que poderá vir a ser uma publicação mais estruturada e mais refletida. Destina-se, nesta oportunidade, a servir como documento orientador dos meus alunos, e como forma de me obri-gar a organizar um conjunto de apontamentos, até agora, mal organizados e em formatos diversos.

As ligações, no interior do documento, não são mantidas no formato PDF; es-sas ligações só são funcionais no formato ePub, disponível gratuitamente na iBooksto-re (para iPad). Essa gratuitidade não tem origem em nenhuma espécie de generosi-dade, mas tão só no reconhecimento de que este conjunto de textos não tem qual-quer valor comercial. Pode, portanto, ser usado livremente por quem quer que te-nha acesso a ele.

Porto, 30 de Outubro de 2012.

Jorge Barbosa

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Introdução

A filosofia contemporânea é partilhada por várias correntes: por um lado, a filoso-fia analítica de língua inglesa que não se reduz, como se pensa muitas vezes, ao po-sitivismo lógico, mas que lhe dá origem; por outro lado, uma filosofia continental de língua alemã e francesa, que se refere a Nietzsche, a Heidegger, a Freud. Duran-te muito tempo, estas duas correntes não foram verdadeiramente contemporâneas, no sentido em que se mantiveram estranhas uma à outra, em que não eram lidas em conjunto. Um exemplo desta incompreensão radical pode ser encontrado nas atas de um colóquio sobre a “filosofia analítica”, que reuniu em 1962, na Abadia de Royaumont filósofos anglo-saxónicos de primeiro plano (Quine, Strawson, Aus-tin, Ryle) e representantes igualmente distintos da fenomenologia e da filosofia francesa (Merleau-Ponty, Jean Wahl, etc.). Este período de incompreensão radical, que não autorizava que se falasse seriamente de filosofias contemporâneas, e que nos obrigava a contentar-nos com uma cronologia muito exterior, com uma sim-ples justaposição, estará porventura a desvanecer-se, em parte, porque a filosofia analítica evoluiu e descobriu, engenhosamente, uma história para ela própria... Es-boçam-se, então, debates que não se desenvolvem exclusivamente no seio de uma única tradição, numa única língua. Estas trocas têm, naturalmente, a duração e a qualidade próprias dos debates filosóficos: caracterizam-se sempre por alguns re-cuos, alguns diferendos, múltiplos mal-entendidos, mas existem.

Nestas condições, que ponto de partida devemos escolher para apresentar a filo-sofia contemporânea do século XX? Seria tentador escolher os primeiros traba-lhos de Frege e os de Moore, cuja Refutação do Idealismo de 1903 inaugura a filosofia analítica. Seria igualmente tentador, numa outra perspectiva, tomar como referên-cia a obra de Nietzsche, como primeiro exemplo de desconstrução da metafísica, da “genealogia”. A obra do primeiro, nas margens da filosofia, aproxima-se da ma-temática, e a obra do segundo, nas margens também ela, aproxima-se da literatura pelos aforismos, da poesia e do mito pela figura de Zarathustra. No entanto, se ti-

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vermos em conta o que veio a acontecer às doutrinas destes dois pensadores, desco-briremos uma curiosa afinidade. Qual é, então, o ponto comum entre a corrente que parte de Frege, com Russell, Wittgenstein, Carnap, Austin, Quine, e aquela que parte de Nietzsche, com Heidegger, Foucault, Derrida? Apesar de diferenças muito importantes, poderemos encontrar uma preocupação comum: a crítica da metafísica como “discurso” e, portanto, uma crítica da linguagem.

A filosofia clássica (em três nomes: Descartes, Hume, Kant) tinha colocado a questão do conhecimento, isto é, da relação entre o pensamento e as coisas, no centro das suas preocupações. Assiste-se com Frege e Nietzsche, e também com C-S. Peirce, fundador do pragmatismo, a uma viragem do texto (Rorty chamou-lhe viragem linguística), que coloca o problema da linguagem, do significado, do senti-do no lugar da questão tradicional do conhecimento. A questão da linguagem nun-ca esteve ausente da filosofia, em particular na Grécia antiga, mas adquire uma im-portância muito particular na filosofia contemporânea.

A crítica da linguagem pode ter duas dimensões. Pode incidir sobre a lingua-gem como instrumento de conhecimento, nas ciências, e em procurar definir as su-as possibilidades e os seus limites, em mostrar os erros e as ilusões que ela provoca. Sonhar-se-á, então, com uma linguagem pura, ideal, cujo modelo será procurado na lógica, na física, se não nos contentarmos em explorar o funcionamento, de si já bem complexo, da linguagem “comum”. No entanto, a linguagem não é só um instrumento de conhecimento. É também um instrumento de comunicação social e, nesta perspetiva, a crítica da linguagem não incidirá sobre a linguagem das ciên-cias, mas sobre a degradação da linguagem como sinal de uma perversão das rela-ções humanas, como sintoma de uma relação de dominação e de opressão.

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Surgem então duas grandes tendências:

A questão que se coloca é, então, a de saber como podemos conceber a relação entre estes dois tipos de crítica da linguagem. Que relação pode haver entre a ques-tão do funcionamento da linguagem na descrição verdadeira do mundo e a do seu papel na comunicação social? Para responder a esta questão, temos de caminhar com cuidado, passo a passo. Comecemos, então, por apresentar uma síntese de en-quadramento destas duas grande tendências da filosofia contemporânea

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☛ A do círculo de Viena que assume a crítica da linguagem como Kulturkritik, como crítica da civilização ou da cultura.

☛ E, numa perspectiva muito diferente e até contraditória, Nietzsche, Adorno e a escola de Frankfurt, Derrida, Foucault, Habermas que propõem a crítica da linguagem como instrumento de comunicação e de dominação social.

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Círculo de Viena e Escola de Frankfurt

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☛ Se aplicarmos à própria filosofia tradicional esta sintaxe lógica, descobriremos uma série de pseudoproposições ou proposições desprovidas de sentido, quer porque elas estão logicamente mal construídas, quer porque são impossíveis de verificar.

☛Assim, o conceito de liberdade serviria para justificar a livre iniciativa, quer dizer, acrescentam os teóricos da Escola de Frankfurt, a livre exploração do trabalho.

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Círculo de Viena

Em 1922, um certo número de filósofos e de cientistas reúnem-se em comunidade de trabalho, nomeadamente à volta de Moritz Schlick (1882-1936), que tinha aca-bado de ser nomeado professor da Universidade de Viena, de Rudolf Carnap (1891-1970) e de Otto Neurath (1882-1945). O Círculo de Viena, que está em liga-ção com a Sociedade de Filosofia Empirista de Berlim, dirigida por Hans Rei-chenbach, e com Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein, anima uma série de pu-blicações, organiza colóquios internacionais em Viena, Paris, Copenhague, etc.

Entre as duas guerras, a sua influência estende-se aos Estados Unidos, para onde a maior parte dos seus fundadores irá ensinar. De todos estes trabalhos des-prende-se uma doutrina a que se chamou empirismo lógico e que se inscreve na suces-são do empirismo inglês e do positivismo francês.

A estas variedades de empirismo, o empirismo lógico junta uma crítica da no-ção de significado e uma análise da linguagem. Nesta perspetiva, o conhecimento não deriva de uma experiência pessoal, nem da descrição de um dado imediato. Passa pela mediação de um sistema de sinais, e o problema que se coloca aos ani-madores do Círculo de Viena é o da natureza das proposições lógicas. Enquanto, para os lógicos clássicos, as proposições lógicas são normas do verdadeiro pensa-mento, os empiristas lógicos, na esteira de Wittgenstein, consideram que estas pro-posições não nos dizem nada sobre o que realmente é (cf. Cap. 3).

Procedendo à análise lógica da linguagem, os discípulos do Círculo de Viena estabelecem que nem todas as proposições, cujas palavras têm um sentido, são ne-cessariamente proposições dotadas de sentido. Bertrand Russell (cf. Cap. 2), com a sua teoria dos tipos, definiu um certo número de condições permitindo excluir as combinações de palavras que conduzem a proposições contraditórias ou não escla-recíveis.

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Rudolf Carnap vai mais longe ao formular uma sintaxe lógica que enuncia as regras de formação e de transformação das proposições suscetíveis de serem verifi-cadas. Ele julga construir assim uma linguagem que seria uma verdadeira lógica da ciência. A análise lógica dos conceitos das proposições científicas é, a seus olhos, a verdadeira tarefa da filosofia.

Se aplicarmos à própria filosofia tradicional esta sintaxe lógica, descobriremos uma série de pseudoproposições ou proposições desprovidas de sentido, quer por-que elas estão logicamente mal construídas, quer porque são impossíveis de verifi-car.

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Escola de Frankfurt

Em 1924, fundou-se em Frankfurt um Instituto de Pesquisas Sociais. Esse Instituto reuniu progressivamente um certo número de investigadores, dos quais os mais co-nhecidos são os filósofos Herbert Marcuse, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Jurgen Habermas (cf. Cap. 8). O seu programa comporta a crítica radical da socio-logia e da psicologia do seu tempo, isto é, a crítica do positivismo aplicado aos fac-tos sociais. São recusadas, nomeadamente, as conceções de Max Weber. Estes jo-vens teóricos julgam que há uma relação estreita entre o saber universitário e as ne-cessidades ideológicas das classes dominantes nos países capitalistas avançados.

O ambiente histórico, no qual nasce esta escola, é o da Alemanha entre as duas guerras mundiais. Está marcado pela primeira grande crise económica mundial e pela ascensão do nacional-socialismo. Os filósofos de Frankfurt não consideram o fanatismo como uma exceção, mas como um fenómeno que revela o caráter funda-mentalmente autoritário do sistema de lucro, que caracteriza o capitalismo. O tri-unfo do nazismo, que vai dispersar os teóricos da Escola de Frankfurt, os quais na sua maior parte vão continuar a sua atividade nos Estados Unidos, confirma as su-as análises.

Tinham partido do marxismo e admitiam a necessidade de uma revolução to-tal para resolver os problemas sociais e chegar a um sistema novo de relações entre os homens sem poder autoritário nem hierarquia. Depressa, avaliam a União Sovi-ética de modo crítico. Vêem nela a construção de uma estrutura estatal de caráter totalitário, contraditório com os fins e os procedimentos do socialismo.

As obras dos teóricos da Escola de Frankfurt aparecem também muito frequen-temente como uma crítica da razão. Horkheimer escreve “Eclipse da Razão”, Ha-bermas “A Técnica e a Ciência como Ideologia”, Horkheimer e Adorno “A Dialéti-ca da Razão”. Todas estas obras constituem problematizações da racionalidade tal como ela funciona nas sociedades modernas. A própria razão é aí descrita como

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um instrumento ligado a uma estrutura económica, social, política que se chama capitalismo.

Entretanto, estes filósofos julgam que, no passado, a razão desempenhou um pa-pel diferente. Elaborou ideais de justiça, de liberdade, de democracia que foram pervertidos pela dominação da burguesia. Este domínio provocou uma verdadeira decomposição da razão. Os conceitos que forjou serviram e servem ainda para mascarar a sua falsificação no plano das realidades sociopolíticas. Assim, o concei-to de liberdade estaria a ser usado para justificar a livre iniciativa, quer dizer, acres-centam os teóricos da Escola de Frankfurt, a livre exploração do trabalho. No caso dos Estados socialistas, assistir-se-ia a um desvio simétrico dos conceitos racionais do marxismo.

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Textos

Conceitos e Objetos

Frege, G. (1969) Les Fondements de l’arithmétique, Trad. do alemão para francês por C. Imbert, Paris, Le Seuil, p. 119

Que não se tome a descrição da origem de uma representação por uma definição. E que não se tomem as condições psicológicas e corporais da consciência de uma proposição por uma prova, que não se confunda a consciência de uma proposição com a sua verdade. Não devemos nunca esquecer que uma proposição não deixa de ser verdadeira quando não pensamos nela, que o Sol não se apaga quando fechamos os olhos. Se não, seríamos obrigados a ter em consideração o teor de fósforo do cérebro na demonstração do teorema de Pitágoras. (...) O método histórico, que pretende surpreender a génese das coisas e conhecer a essência pela génese, tem sem dúvida uma vasta jurisdição; tem também os seus limites. Se, no fluxo perpétuo que tudo leva, nada fosse fixo nem conservasse eternamente o seu ser, o mundo deixaria de ser conhecível e tudo se perderia na confusão. Parece que acreditamos que os conceitos crescem na alma individual como as folhas crescem nas árvores, e pensamos conhecer a sua essência examinando a sua génese, procurando definir o seu ser por vias psicológicas, a partir da natureza da alma humana. Ora, esta conceção empurra tudo para a subjetividade, e, se a levarmos ao limite, suprime a verdade. Aquilo a que se chama história dos conceitos, é na realidade ou a história do nosso conhecimento dos conceitos ou a história do significado das palavras. Por vezes foi necessário um imenso trabalho intelectual, que perdurou durante séculos, antes de sermos capazes de conhecer um conceito em toda a sua pureza, de libertá-lo de todos os envelopes que o afastavam do olhar do intelecto. Que dizer, quando, em lugar de prosseguir nesse trabalho uma vez que tudo parece ainda inacabado, o desprezamos, na altura de frequentar o jardim de infância, de estudar as mais antigas etapas da evolução da humanidade, para descobrir, como John Stuart Mill, uma aritmética de (..) de calhaus?

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Os Sentidos não Mentem

Nietzsche, F. (1970) Le Crépuscule des Idoles, Trad. do alemão para francês por H. Albert, Paris, Mercure de France, p. 103

Coloco à parte com um profundo respeito o nome de Heraclito. Se o conjunto dos outros filósofos rejeitava o testemunho dos sentidos porque os sentidos são múltiplos e variáveis, ele rejeitava o seu testemunho porque eles apresentam as coisas como se tivessem duração e unidade. Heraclito, também ele, errou no que diz respeito aos sentidos. Estes não mentem, nem à maneira como imaginavam os Eleatas (Parménides, Zenão), nem como ele imaginava - em geral, não mentem. É aquilo que fazemos do seu testemunho que coloca neles a mentira, por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da realidade, da substância, da duração... Se falseamos o testemunho dos sentidos, é por culpa da “razão”. Os sentidos não mentem, pelo menos enquanto se limitam a mostrar o devir, o desaparecimento, a mudança... Mas na sua afirmação de que o ser é uma ficção, Heraclito merece que lhe seja atribuída a razão eterna. O “mundo das aparências” é o único real: o “mundo-verdade” é simplesmente acrescentado pela mentira...

(...)

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Enunciados Destituídos de Sentido

Carnap, R. (1985) Le Dépassement de la métaphysique, Trad. do alemão para francês por A. Soulez, Paris, PUF, p. 172

Podemos dividir os enunciados (dotados de sentido) da maneira seguinte: em primeiro lugar, aqueles que são verdadeiros em virtude exclusivamente da sua forma (ou “tautologias” segundo Wittgenstein. Correspondem, mais ou menos, aos “juízos analíticos” de Kant). Não dizem nada sobre o real. A esta espécie pertencem as fórmulas da lógica e da matemática; elas não são enunciados sobre o real, mas servem para o transformar. Em segundo lugar, vêm as negações dos primeiros (ou contradições) que são contraditórias, isto é, falsas em virtude da sua forma. Para decidir da verdade ou falsidade de todos os outros enunciados, temos de recorrer a enunciados protocolares, os quais (verdadeiros ou falsos) são por isso mesmo enunciados de experiência e têm a ver com a ciência empírica. Se quisermos construir um enunciado que não pertença a nenhuma destas espécies, esse enunciado será automaticamente destituído de sentido.

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Bertrand Russell

cap2

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Tal como outros filósofos da corrente, genericamente denominada de filosofia analítica, Russell estava convencido de que a característica comum que alimenta os problemas filosóficos é o facto de eles consistirem em confusões conceptuais, resultantes do mau uso da linguagem comum.

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B. Russell

A lógica de Russell é basicamente uma proposta realis-ta. No entanto, ao longo do seu longo percurso filosófi-co, Russell atenuou e chegou mesmo a negar parcial-mente o seu realismo. Verificam-se, com efeito, diferen-ças claras logo entre os Princípios de Matemática, obra de 1903, e os Principia Mathematica, de 1910. Na primeira obra, as classes são realidades objetivas, tão reais como os indivíduos que as compõem; pelo contrário, na se-gunda, são consideradas como “convenções simbóli-cas” ou “linguísticas”, mas não “objetos autênticos”. Na primeira, afirmava que “termo é qualquer entidade que possa ser objeto de pensamento e que possa encon-

trar-se numa proposição verdadeira ou falsa”, e que todo o termo tem uma existên-cia, isto é, que “de algum modo existe”. Nos Principia Mathematica, admite que todo o vocábulo contribui para o significado da locução em que se encontra, mas que não tem significado em todos os casos. Esta atenuação do realismo é acompanha-da por uma atribuição cada vez maior de importância à linguagem e à natureza linguística de muitos termos ou constructos lógicos. Apesar de tudo, a própria teo-ria da linguagem de Russell é essencialmente de natureza realista.

Tal como outros filósofos da corrente, genericamente denominada, de filosofia analítica, Russell estava convencido de que a característica comum que alimenta os problemas filosóficos é o facto de eles consistirem em confusões conceptuais, re-sultantes do mau uso da linguagem comum. A solução seria, então, a clarificação do sentido dos enunciados a serem aplicados às áreas da ciência, da metafísica, da religião, da ética, da arte, etc.. No geral, os autores que seguem estas tendências en-

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Bertrand Russell

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tendem que a filosofia é uma atividade – para uns, terapêutica, para outros, clarifi-cadora -, cujo objeto é esclarecer o significado dos enunciados.

Nas palavras de Habermas, com esta corrente analítica, produz-se uma “mu-dança de paradigma” (como diria Kuhn), ao passar-se de uma filosofia da consci-ência (como a cartesiana ou a kantiana) ou de uma epistemologia – onde o que in-teressa são as relações entre sujeito e objeto -, para uma filosofia da linguagem, onde o que interessa são as relações entre o enunciado e mundo, isto é, uma teoria do significado. Uma questão tão clássica como, por exemplo, a que pode formu-lar-se numa teoria do conhecimento acerca de “o que é conhecer?”, é reformulada e reinterpretada como uma questão sobre o significado: “o que é que se quer dizer quando se diz que conhecemos algo?”

A atividade clarificadora dos enunciados, característica fundamental do movi-mento analítico, inicia-se sobretudo com as tarefas de fundamentação lógica, leva-das a cabo por Russell e Whitehead com a publicação da obra conjunta Principia Mathematica (1910 – 1913), que, na sequência dos estudos iniciais de G. Frege, fun-damenta a linguagem rigorosa da lógica, para evitar as ambiguidades e confusões do uso da linguagem comum.

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O Significado e a Verdade

A teoria da linguagem de Russell encontra-se no texto sobre denotação de 1905, cujos resultados serão posteriormente incluídos nos Principia Mathematica, e na Filo-sofia do atomismo lógico de 1918. Nessa teoria se baseia a Investigação sobre o signifi-cado e a verdade. Os fundamentos desta teoria podem ser expressos do seguinte modo, em quatro condições:

Uma linguagem logicamente perfeita basear-se-ia nos três primeiros fundamen-tos: nessa linguagem, não haveria mais do que uma palavra e só uma, para cada objeto simples, e cada coisa que não fosse simples seria expressa por uma combina-ção de palavras, cada uma das quais estaria em lugar de um componente simples. Uma linguagem desta natureza seria completamente analítica e mostraria, à vista desarmada, a estrutura lógica dos factos afirmados ou negados.

Segundo Russell, a linguagem dos Principia Mathematica procurava ser uma lin-guagem desta natureza, mas onde só havia sintaxe e nenhum vocabulário. Com a adição do vocabulário, converter-se-ia numa linguagem logicamente perfeita.

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☛ A linguagem é constituída por proposições;

☛ Os elementos constitutivos das proposições, isto é, os símbolos significam os constituintes dos factos que tornam as proposições verdadeiras ou falsas; por outras palavras, os factos correspondem a esses constituintes;

☛ É preciso ter conhecimento direto dos constituintes dos factos, para que seja possível captar o significado dos símbolos;

☛ O conhecimento direto é distinto de indivíduo para indivíduo.

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No entanto, o quarto dos fundamentos enumerados torna irrealizável este ide-al. Como pessoas diferentes têm um diferente conhecimento direto dos objetos, e se cada palavra não tem mais do que um significado - o correspondente ao objeto experienciado diretamente pela pessoa que fala -, então ninguém teria condições para comunicar com os outros. Ora, paradoxalmente, segundo Russell, a lingua-gem só pode exercer a sua função comunicativa graças à sua imperfeição e ambi-guidade; deste modo, a linguagem é tão mais útil à comunicação, quanto mais im-perfeita, vaga e equívoca for.

Deste ponto de vista, é absolutamente indispensável, para a linguagem, que existam os objetos que constituem os componentes dos factos e os significados dos símbolos. Só uma perspectiva realista, como esta, é compatível simultaneamente com uma linguagem logicamente perfeita e a possibilidade de comunicação entre os humanos. Mas o problema é que, nas proposições da linguagem, não existem só nomes, símbolos de objetos particulares, mas também verbos, que exprimem rela-ções entre esses objetos. Assim, para Russell, as relações não são objetos particula-res perceptíveis, mas universais. É, então, deste modo, que Russell admite a existên-cia de universais: parece não ser possível deixar de admitir que as relações são par-tes da constituição não linguística do mundo, tal como os objetos particulares. Do mesmo modo, também não é possível explicar as relações assimétricas, traduzidas por “ou” e por “não”, como pertencendo exclusivamente à linguagem. Pelo con-trário, palavras como “antes” e “sobre”, tal como os nomes próprios, significam algo que corresponde aos objetos da percepção.

Na filosofia de Russell, o conceito de existência aplica-se, então, tanto às coisas físicas, existentes no espaço e no tempo, como a coisas “intemporais” (para utilizar as suas palavras). No entanto, relativamente ao que devemos entender por existên-cia, neste seu significado mais extenso, as explicações de Russell são vagas e equívo-cas. Só a determinação negativa é muito clara, uma vez que exclui a existência como possibilidade. Russell chama “possível” à função proposicional que é alguma vez verdadeira como “X é um homem”; chama “necessária” à que é sempre verda-

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deira como “se X é homem, X é mortal”; e chama “impossível” à que nunca é ver-dadeira (“X é um unicórnio”). Só que, no seu entender, a proposição possível só é possível porque existem casos em que é verdadeira, isto é, porque corresponde aos factos, e assim a existência é o pressuposto da possibilidade, o que não deixa de ser incómodo.

Mesmo assim, e apesar de tudo, Russell admite que se possa falar de objetos não existentes e até que se possa falar de objetos de que não se tem conhecimento direto; ambos os casos contrariam as condições reconhecidas por ele como própri-as da estrutura da linguagem. Para fazer face a estes dois casos, idealizou a teoria da denotação, exposta pela primeira vez num artigo de 1905 (On denoting). Se-gundo esta teoria, existem frases que realmente não dizem nada sobre os objetos existentes, mas que dizem algo sobre os símbolos presentes na frase. Por exemplo, segundo ele, a frase “O autor de Waverley é escocês” não afirma nada sobre Scott (porque não tem nenhum constituinte que denote Scott), mas deve interpretar-se como se dissesse: “Existe uma e só uma entidade que escreveu Waverley, e quem escreveu Waverley é escocês”. Uma tradução semelhante da frase denotante torna possível falar inclusive de coisas inexistentes. Assim, a frase “o atual rei de França é careca” deve traduzir-se: “Há uma entidade que é atualmente rei de França, e esta entidade é careca”. Esta frase é certamente falsa, mas tem um significado que pode ser expresso e compreendido. Ora, este ponto de vista elimina a necessidade de admitir objetos ou entidades correspondentes a todos os símbolos empregues na linguagem.

Russell nunca duvidou de que o ponto de partida do conhecimento fosse a ex-periência individual, o domínio privado ou egocêntrico dos dados imediatos; mas tão pouco duvidou de que o conhecimento não se reduzisse a esse domínio. Pelo contrário, compreende um outro domínio que só pode ser alcançado através da in-ferência, que se reconhece e exprime de modo totalmente distinto do primeiro, mas que é constituído por elementos tomados dele.

Sendo um ponto de partida para todo o conhecimento, a experiência não pode ser, na opinião de Russell, um método de comprovação. Nesta convicção se baseia

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a crítica de Russell ao Neoempirismo do círculo de Viena. Os neoempiristas, ao afirmar que o significado de uma proposição é o método da sua comprovação, o princípio de verificação, esquecem as proposições mais certas, isto é, os juízos de percepção: para estes juízos, não há nenhum método de comprovação, porque eles próprios constituem a comprovação de todas as restantes proposições empíricas que, de algum modo, possam ser conhecidas. Por outro lado, os neoempiristas es-quecem também, segundo Russell, o facto de que todas as palavras necessárias têm definições ostensivas, e que um enunciado pode ser compreendido se for com-posto por palavras que compreendemos, mesmo que não tenhamos uma experiên-cia que corresponda ao significado total do próprio enunciado.

Esta crítica confirma que, para Russell, a experiência não é um método de com-provação dos enunciados, mas sim o ponto de partida de onde nascem o conheci-mento e a linguagem. Mas, como ponto de partida, a experiência é imediata e pri-vada. O Problemas da Filosofia, de 1912, já continha uma exposição completa e ordenada do que Russell entende por estes termos. A experiência é a esfera do co-nhecimento direto, de cujos objetos somos diretamente conscientes sem mediação de nenhum processo de inferência ou conhecimento de verdade. Não são as coisas que são objeto de conhecimento direto, mas os dados sensíveis, os dados da intros-pecção (isto é: da reflexão, no sentido de Locke) e os dados da memória. Também é provável que tenhamos, segundo Russell, conhecimento direto de nós próprios, isto é, do nosso eu, já que não se vê como poderíamos conhecer a verdade da pro-posição: “Eu tenho conhecimento dos dados sensíveis”, se não tivéssemos um co-nhecimento imediato de algo a que chamamos “eu”. Do mesmo modo, Russell ad-mite que temos um conhecimento imediato dos universais (ou seja, das relações que entram como componentes essenciais de todo o enunciado) e que esse conheci-mento é o conceito.

Para além do conhecimento imediato, existe ainda aquilo a que Russell chama conhecimento por descrição, que é constituído pelo conhecimento da verdade. Neste caso, o que conhecemos é precisamente uma descrição e também que há um único objeto ao qual se aplica a descrição, embora o próprio objeto não seja diretamente conhecido. Por exemplo, “o computador que está diante de mim é o objeto físico que causa este e aquele dado sensível”. Esta proposição descreve o

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computador através dos dados sensíveis. Os objetos físicos e as mentes das outras pessoas não são susceptíveis de ser conhecidos diretamente, mas exclusivamente através do conhecimento por descrição. Mas, em qualquer caso, o conhecimento por descrição é, no limite, redutível ao reconhecimento direto. Por esta razão, Rus-sell conserva como princípio que toda a proposição que possamos compreender tem de ser composta por constituintes de que tenhamos conhecimento imediato.

O que é o Atomismo Lógico?

“Atomismo lógico” é o nome dado por Russell à sua teoria filosófica, exposta em conferências realizadas em 1918 sob o título Lições sobre o atomismo lógico, cuja origem atribui às ideias de L. Wittgenstein, seu discípulo, e que este, mais tar-de, exporá também no seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Por via disso, é também o nome que se dá à teoria filosófica sobre o mundo que aparece no Trac-tatus de Wittgenstein; no entanto, à versão de Wittgenstein do atomismo lógico, dá-se mais apropriadamente o nome de “teoria pictórica ou figurativa da realida-de”.

Segundo esta teoria, o mundo consta de “factos atómicos”, ou simples, que são o referente dos enunciados simples ou “enunciados atómicos”, de modo que a lin-guagem vem a ser como que uma pintura do mundo, ao jeito de um mapa que de-senha um terreno ou uma determinada região. O mundo possui, tal como a lingua-gem, uma estrutura lógica, cujos elementos se manifestam através da análise lógi-ca. Este isomorfismo entre linguagem e mundo supõe que a cada nome correspon-da, como referente, uma entidade concreta, chamada neste caso dado sensorial, e que a cada predicado, de qualidade ou de relação, corresponda uma propriedade real, absoluta ou relativa. Com este isomorfismo, Russell pretendia superar as am-biguidades da linguagem comum ou natural, cujo uso fez com que muitas das pro-posições da filosofia – sobretudo da metafísica – sejam “sem sentido”. O atomismo lógico conduz a que consideremos uma linguagem ideal, característica que não é possível encontrar nas línguas comuns, e que é própria exclusivamente de uma lin-guagem formalizada. As metáforas devem ser abandonadas. Curiosamente, o ato-

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mismo lógico teve influência marcada no neopositivismo, mas tanto Russell como Wittgenstein acabaram por abandonar esta teoria.

O objetivo de Russell é semelhante ao de Frege, e é análoga também a justifica-ção do seu interesse pelas condições que deve respeitar a linguagem para alcançar a perfeição lógica. No entanto, Russell elabora as suas reflexões num contexto filo-sófico mais rico e consegue, por isso, um grau de elaboração muito mais elevado. Na doutrina de Russell, os pressupostos epistemológicos e as consequências metafí-sicas possuem uma riqueza explicativa praticamente ausente em Frege. Como foi dito atrás, a teoria de Russell é denominada por ele de “atomismo lógico”; alcança a sua maturidade em 1918, ano em que pronuncia as já referidas conferências so-bre “A filosofia do atomismo lógico”.

Nessas conferências, caracteriza o tema central como o tema da gramática filo-sófica, justificando-se assim: “Creio que praticamente toda a metafísica tradicional está cheia de erros que se devem à má gramática, e que quase todos os problemas e resultados tradicionais da metafísica se devem a não fazer, no quadro do que po-demos chamar a gramática filosófica, o tipo de distinções de que nos temos vindo a ocupar nestas conferências”. Uns anos depois, num resumo da sua teoria, ainda é mais claro: “Creio que a influência da linguagem na filosofia tem sido profunda e quase não reconhecida. Para que esta influência não nos afaste do nosso cami-nho, é necessário que estejamos conscientes dela, e que nos questionemos delibera-damente sobre em que medida ela é legítima. Neste aspecto, a linguagem extravia-nos pelo seu vocabulário e pela sua sintaxe. Devemos estar em guarda face a am-bas as coisas, para que a nossa lógica não nos conduza a uma falsa metafísica”.

No respeito por estas advertências, Russell desenvolveu um tipo de análise da linguagem que aspira a pôr em evidência as suas imperfeições lógicas, contrapon-do-as às qualidades de uma linguagem logicamente perfeita.

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Como deve, então, ser uma linguagem logicamente perfeita?

Segundo Russell, é deste tipo que pretende ser a linguagem do Principia Mathe-matica, com a única diferença de que, neste caso, a linguagem possui sintaxe, mas carece de vocabulário: esta seria a linguagem logicamente perfeita, se à sintaxe acrescentássemos um vocabulário. Mas, entendamo-nos: o Principia Mathematica, como qualquer cálculo lógico, tem o seu vocabulário, isto é, o conjunto de signos com os quais se compõem as fórmulas para aplicação das suas regras; o que Rus-sell quer dizer é que uma linguagem logicamente perfeita poderia ser uma lingua-gem que, possuindo um vocabulário não de signos lógicos, mas de palavras, como as da linguagem natural, tivesse uma sintaxe, regras de estruturação e composição de enunciados, como as do cálculo lógico. As linguagens naturais, as línguas huma-nas, não correspondem a esta necessidade de perfeição lógica. Do ponto de vista filosófico, para Russell, isto é uma desgraça, mas do ponto de vista dos efeitos práti-

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☛ A primeira condição para que uma linguagem seja logicamente perfeita é uma condição semântica: que as palavras de cada proposição correspondam uma por uma aos componentes do facto correspondente. Excetuam-se palavras como “ou”, “não”, “se... então”, que têm uma função diferente, isto é, carecendo de conexão direta à realidade, são palavras que exprimem modos de compor frases, e que podem traduzir-se em marcadores de funções lógicas. Deste modo, Russell reforça a sua crença no princípio de isomorfismo semântico: “numa linguagem logicamente perfeita, haverá uma única palavra para cada objeto simples, e tudo o que não seja simples será expresso por uma combinação de palavras...”

☛ Deve ainda ter a vantagem de mostrar, à vista desarmada, a estrutura lógica dos factos que afirma ou nega.

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cos de comunicação é uma vantagem. Ao contrário de uma linguagem logicamen-te perfeita, a linguagem comum caracteriza-se pela ambiguidade das suas pala-vras, sendo que quando alguém usa uma palavra isso não significa que queira di-zer a mesma coisa que outra pessoa diria. À primeira vista, esta falta de rigor pode-ria ser uma inconveniência, mas não o é na realidade; pelo contrário, o grave seria que todos os falantes significassem, com as suas palavras, as mesmas coisas, pois a comunicação seria impossível, porque “o significado que cada um dá às suas pala-vras tem de depender da natureza dos objetos com os quais está familiarizado, e uma vez que as diferentes pessoas estão familiarizadas com diferentes objetos, não poderão falar entre si, a menos que atribuam às suas palavras significados muito diferentes”. Assim - e o exemplo é de Russell –, quem já passeou por Picadilly, e está, por conseguinte, familiarizado com esta rua de Londres, atribui ao termo Pi-cadilly um significado muito distinto do que lhe dará uma pessoas que nunca lá te-nha estado. Se insistíssemos numa linguagem sem ambiguidade, não poderíamos falar de coisas que conhecemos com quem não as conhecesse.

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O Significado como Conhecimento Direto

Resumindo, podemos dizer que, para Russell:

O que conhecemos diretamente, então, são os dados sensíveis que os objetos produzem em nós: os objetos são simplesmente construções lógicas que fazemos com base nos nossos dados sensíveis. O fundamento do nosso conhecimento en-contra-se, por conseguinte, no conhecimento direto, na familiaridade. Mas esta fa-

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☛ O significado depende do conhecimento por familiaridade ou conhecimento direto, que Russell contrapõe, por vezes, ao conhecimento por descrição;

☛ O conhecimento direto exclui a mediação de processos de inferência ou de conhecimento de verdades;

☛ Os dados sensíveis constituem a aparência de um objeto material (cor, forma, etc.) e são um exemplo de algo que se conhece diretamente por familiaridade;

☛O conhecimento do objeto como tal, pelo contrário, é um conhecimento descritivo: pressupõe não só os meu dados sensíveis atuais, mas também a recordação de outros, associada ao conhecimento de certas verdades físicas;

☛ Os objetos não são conhecidos diretamente, portanto

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miliaridade não se limita aos dados sensíveis: Russell amplia o conhecimento dire-to:

Do conhecimento direto, ficam explicitamente excluídos por Russell os objetos físicos, na medida em que são distintos dos dados sensíveis que produzem, e os es-tados psicológicos alheios. Daquilo que conhecemos, tudo quanto não seja conheci-do por familiaridade é conhecido por descrição, sendo que este princípio se aplica tanto a fenómenos particulares como aos conceitos universais. O conhecimento por descrição tem, pois, a importante função de nos permitir ultrapassar os limites da nossa experiência pessoal, mas o conhecimento por familiaridade é a base de todo o conhecimento, e a ele é redutível o conhecimento descritivo. Com esta clari-ficação, Russell passa de um realista (admite os universais em si) a um “descritivis-ta” (os universais são descrições).

A importância da teoria referencialista nas declarações de Russell é muito evi-dente: os significados das palavras são os objetos de que temos conhecimento dire-to. Se se trata de um objeto físico, como o designado pelo nome Picadilly, o seu si-gnificado consistirá nos dados sensíveis passados e nas restantes vivências e senti-mentos que esse lugar tenha produzido. Se considerarmos os objetos como inte-grantes de um facto, poderemos, então, afirmar, com Russell, “que os componen-tes do facto que faz uma proposição verdadeira ou falsa, são os significados dos símbolos que temos de entender para poder entender a proposição”.

Temos, então, que uma linguagem logicamente perfeita, do ponto de vista do seu vocabulário:

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☛ Às recordações, com o que a memória passa também, juntamente com os sentidos, a ser uma via para o conhecimento;

☛ Aos estados psicológicos de cada um, que são objeto de auto consciência, embora levante algumas dúvidas sobre a consciência do “eu”;

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Já do ponto de vista da sintaxe o Principia Mathematica estabelece um desafio fundamental que não pode deixar de ser assumido por qualquer linguagem que se queira perfeita:

Isto implica que uma linguagem perfeita seja constituída por enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos, o que significa que só é candidata à perfeição ló-gica aquela porção da linguagem que utilizamos para declarar os factos, para falar do que acontece, isto é, aquela porção de linguagem que empregamos no discurso declarativo. Esta limitação corresponde ao mesmo tipo de redução que já tinha sido feita por Frege.

No que diz respeito a Russell, podemos dizer, seguindo a sua terminologia, que se trata de uma linguagem composta por proposições, já que uma proposição –se-gundo Russell – é um enunciado no modo indicativo, um enunciado que afirma algo; a proposição é, portanto, o veículo da verdade e da falsidade.

Os enunciados complexos da nossa linguagem perfeita são, então, compostos por enunciados simples unidos por palavras que, como “e”, “ou”, “se... então”,

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☛ É uma linguagem privada, na medida em que o conhecimento direto é próprio e particular de cada um.

☛ É uma linguagem, cujos termos não podem ter qualquer ambiguidade, significam sempre o mesmo, a saber, determinadas características dos factos, dos quais o sujeito possui conhecimento direto;

☛ A “extensionalidade”, isto é, que todos os seus enunciados complexos possam decompor-se em enunciados simples, de tal modo que a verdade ou falsidade daqueles seja uma função da verdade ou falsidade destes últimos, como acontece em qualquer cálculo lógico estandardizado.

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etc., representam os modos de composição funcional com valor de verdade. Que forma tomarão os enunciados simples? Estes enunciados, que Russell denomina “proposições atómicas”, descrevem o tipo mais simples de factos, aquilo a que, se-guindo a mesma analogia, chama “factos atómicos”. Daí o nome de “atomismo ló-gico” dado à sua teoria: trata-se de chegar aos últimos elementos que a análise lógi-ca da linguagem possa encontrar na linguagem; uma vez que a linguagem, naque-les aspectos que são relevantes para a filosofia, e de acordo com o princípio do iso-morfismo, corresponde estruturalmente aos factos, pelo mesmo processo chegare-mos aos últimos elementos da realidade. Neste sentido, a análise de Russell vai da lógica para a metafísica, através da linguagem.

Para Russell, os factos mais simples que possam ser imaginados, os factos ató-micos, são os que consistem na posse de uma qualidade por uma coisa particular, por exemplo, o facto descrito pela proposição “Isto é branco”. Neste caso, temos algo, aquilo a que se refere o termo “isto”, e a cor que lhe atribuímos. Uma propo-sição como esta, desde logo, é muito diferente de uma proposição como “Esta ca-misa é branca”. Neste caso, ao considerar algo como “camisa”, estamos a atribuir-lhe certas propriedades, algumas muito complexas, que sem dúvida nos levam para além dos meros dados sensíveis que temos, no imediato, do objeto em ques-tão. O termo “camisa” encerra uma complexidade que o exclui da candidatura a uma proposição atómica. Por essa razão, e para evitar juízos prévios sobre o dito objeto, devemos limitar-nos a utilizar um pronome demonstrativo “isto”.

É suposto também que uma qualidade como a cor é o tipo mais simples de qua-lidades e, por conseguinte, não é analisável ou decomponível. Há, no entanto, que ter em conta que o relevante aqui é a cor enquanto dado sensível, enquanto perce-bida, e não como realidade física, susceptível de ser estudada cientificamente. Por isso, a definição da cor em termos de um determinado comprimento de onda, é ir-relevante para a análise de Russell. Trata-se, não de uma análise física, mas lógica, embora o conceito de lógica aqui seja tomado num sentido com uma amplitude peculiar, pois nele está presente um pressuposto básico: o princípio de familiarida-de. Isto significa que os termos das proposições atómicas possuem significado, na medida em que designam objetos de conhecimento direto.

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O tipo mais simples de facto consiste, então, na posse de uma qualidade sim-ples por uma entidade particular. Factos ligeiramente mais complexos são os que consistem em relações diádicas, como o que é descrito numa proposição do tipo “Isto está junto daquilo”. O tipo seguinte será o das relações triádicas – “Isto está entre aquilo e aquilo”. E assim sucessivamente. Todos estes factos são atómicos, se-gundo Russell, e formam uma hierarquia de complexidade.

O que, numa proposição, corresponde a uma propriedade é o predicado. O que exprime uma relação costuma ser um verbo, ou, por vezes, uma frase inteira. O que corresponde a um particular é o sujeito que tem de ser um nome próprio, porque a única forma de falar de um particular é nomeá-lo; para o descrever, já te-mos de mencionar as suas propriedades e as suas relações, recorrendo aos termos correspondentes. E, uma vez que as palavras obtêm o seu significado dos objetos com que estamos familiarizados, só podemos nomear o que seja objeto de conheci-mento direto, e na justa medida em que o seja. A primeira consequência desta es-tranha doutrina é que os nomes próprios de particulares, tal como aparecem numa proposição atómica, são muito distintos do que, no discurso comum, chama-mos “nomes próprios”. Palavras como “Sócrates”, “Vénus”, “Lisboa” são usadas para nos referirmos aos seus objetos correspondentes, quando estes não estão pre-sentes; com efeito, a sua utilidade baseia-se nisso mesmo, pois quem esteja diante de Sócrates ou se encontre em Lisboa provavelmente não necessitaria de recorrer a esses nomes. Ora, de acordo com a doutrina de Russell, assim sendo, não temos conhecimento direto de Sócrates e, por conseguinte, não podemos nomeá-lo. Pela mesma razão, quem nunca tenha estado em Lisboa tão pouco poderá atribuir si-gnificado a este termo, e muito menos poderá atribui-lo a Vénus quem nunca te-nha contemplado este planeta. Estas palavras, na realidade, não são nomes própri-os, isto é, não são nomes próprios do ponto de vista da lógica. O que é que são, en-tão? Segundo Russell tratam-se de descrições encobertas e abreviadas. “Sócrates” é uma abreviatura para qualquer descrição correta que possamos dar ao seu obje-to correspondente, por exemplo, “filósofo grego que foi condenado a beber cicu-ta”, ou “o mestre de Platão”, ou qualquer outra. Tal como “Lisboa” abrevia, entre outras, a descrição “capital de Portugal”, e Vénus equivale, por exemplo, a “estre-la da manhã”. Na medida em que estas descrições se referem aos seus objetos, des-

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crevendo algumas das suas propriedades, resulta óbvio que esses objetos não são particulares, porque não são simples. Temos, então, que nem os nomes próprios da linguagem comum são nomes próprios no sentido lógico, nem aquilo a que se referem é particular. Por isso, Russell afirma: “Falando em sentido restrito, só os particulares podem ser nomeados”.

Já Stuart Mill tinha dito que os nomes próprios da linguagem comum deno-tam, mas carecem de conotação. Russell acrescenta, precisamente por isso, que es-ses nomes não são, logicamente, nomes próprios, uma vez que, sendo possível subs-tituí-los por alguma descrição, não se limitam a nomear.

Em que consiste, então, um nome próprio em sentido lógico? Segundo Russell, as únicas palavras que usamos na nossa língua natural que correspondem a um nome próprio são palavras como “isto”, “isso”, “aquilo”, na medida em que po-dem ser usadas como nome de um particular de que se tenha conhecimento direto no momento. Assim, se dissermos “Isto é branco”, chamando “isto” àquilo que ve-mos, estamos a empregar o demonstrativo como nome próprio, em sentido lógico, de um suposto particular que tem a brancura como sua propriedade. Com efeito, os pronomes demonstrativos não nos dizem nada a respeito dos objetos a que, por meio deles, nos referimos; limitam-se a assinalá-los, e isso é prova de que são verda-deiros nomes próprios e de que os objetos que denotam são simples, particulares. Daqui resulta uma curiosa propriedade posta em evidência por Russell, a saber, que o significado dos nomes logicamente próprios está em permanente mudança, consoante se alterem as nossas percepções do mundo, os nossos dados sensíveis. Por outro lado, o seu significado será diferente para o falante e para o ouvinte, na justa medida em que os dados sensíveis que cada um tem do mesmo objeto são dis-tintos.

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A Ontologia de Russell

Contra o monismo hegeliano que Russell criticou insistentemente, a ontologia im-posta pela sua análise da linguagem consiste, em primeiro lugar, num pluralismo de factos simples ou atómicos, que se resolve num pluralismo de objetos simples ou particulares, independentes logicamente entre si e subsistentes por si mesmos, com um tipo de subsistência idêntica à da substância, conforme o próprio Russell con-fessa. Por seu turno, os objetos da vida quotidiana são todos complexos e, por isso, não se lhes pode atribuir um nome próprio lógico.

Temos, então, os elementos mais simples a que chega a análise de Russell: os particulares, as suas propriedades e as suas relações. Estes elementos representam-se nos enunciados do seguinte modo:

Como cada elemento do enunciado deve corresponder a um elemento do fac-to, temos de concluir que nos exemplos, apresentados atrás e escolhidos de entre os apresentados pelo próprio Russell, há algo a mais: a cópula “é”, uma vez que a ela nada corresponde que seja um facto. Os exemplos de proposições atómicas de-verão, assim, ser ainda menos idiomáticos do que os que até aqui foram apresenta-dos. Em rigor, essas proposições deverão tomar a forma de “Isto branco”, “Isto junto aquilo”, etc.. Com efeito não existe num cálculo lógico nada que represente o “é”: Px, Rxy, etc., só contêm termos de indivíduos (x, y) e termos de predicado (P, R).

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☛ Os particulares são representados pelos nomes logicamente próprios;

☛ As propriedades e as relações são representadas por diferentes tipos de adjetivos, verbos e advérbios.

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Mas será que todas as proposições de uma linguagem perfeita podem ser redu-zidas a proposições atómicas?

As proposições atómicas combinam-se entre si através da composição funcional com valor de verdade que é estabelecida no Principia Mathematica e que se en-contra em qualquer livro de lógica. Estas formas de composição representam-se, de forma aproximada, na linguagem comum através de palavras como “e”, “ou”, “não”, “se... então”, etc.. Às proposições complexas, assim formadas, Russell cha-ma-lhes, prosseguindo a mesma analogia, “proposições moleculares”.

É característico de uma linguagem perfeita que respeite o “princípio de extensi-onalidade”, isto é: que todas as suas proposições complexas ou moleculares pos-sam decompor-se em outras simples ou atómicas, de tal forma que a verdade ou falsidades daquelas seja função das verdade ou falsidade destas últimas. Daí que as proposições moleculares, sendo meros compostos de proposições atómicas, não te-nham correlato na realidade. Não há, nem é necessário que haja, factos molecula-res, porque toda a proposição molecular se decompõe em proposições atómicas e bastam os factos atómicos para conectar a proposição molecular ao mundo. Um facto é, simplesmente, aquilo que torna uma proposição verdadeira ou falsa. Mas uma proposição molecular não é verdadeira ou falsa por si mesma, isto é, em virtu-de da sua relação com o mundo, mas em função de que sejam verdadeiras ou fal-sas as proposições atómicas que a compõem. Por conseguinte, a única verdade que depende dos factos é a das proposições atómicas, e para declarar verdadeiras ou falsas as proposições atómicas bastam-nos os factos atómicos.

Se postulássemos a existência de factos moleculares, seríamos forçados a admi-tir que haveria na realidade, como parte de tais factos, elementos que correspon-dessem aos modos de combinação: a conjunção, a disjunção, o condicional, etc.. Se, retomando de novo um exemplo muito simples de proposições atómicas, afir-marmos “Isto (é) branco” e aquilo (é) preto”, a nossa afirmação seria verdadeira, de acordo com a interpretação da conjunção de qualquer cálculo lógico, só se am-bas as proposições o forem. E, para isso, bastam-nos os respectivos factos atómi-cos: que o designado por “isto” seja, efetivamente, branco, e o designado por “aquilo” seja preto. Não precisamos de postular um facto complexo, em que, para além de algo branco e de algo preto, haja também um estranho elemento que cor-

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responda à função “e”. Se todas as proposições complexas forem moleculares, e, por isso, redutíveis a proposições atómicas, a questão estará encerrada. Em última instância, só teríamos proposições atómicas na nossa linguagem perfeita, e factos atómicos no mundo.

Proposições Complexas não Convertíveis em Proposições Simples

O problema é que Russell encontra proposições complexas, cuja redução a pro-posições simples é muito problemática. O primeiro caso é o das proposições negati-vas que são verdadeiras. O exemplo sugerido por Russell é o seguinte:

1. “Sócrates não está vivo”

Esta proposição supõe uma proposição simples que seria:

2. “Sócrates está vivo”

à qual é acrescentada uma complexidade lógica: a negação. Sendo A verdadei-ra, B será falsa. Então, a questão é a seguinte: Que facto é que torna a proposição B falsa? Se não conseguimos indicar nenhum facto positivo responsável pela falsi-dade de B, então só teremos a solução de aceitar que o facto procurado é o mesmo que torna A verdadeira. Seguindo este caminho, teríamos de admitir que, para além dos factos atómicos que já conhecemos, ainda há factos negativos.

Russell não encontrou forma de evitar esta consequência. Não se sentia confor-tável com ela e, mais do que defender convictamente que há factos negativos, pre-feriu admitir a sua possibilidade. Em qualquer caso, repugnava-lhe menos aceitar factos negativos do que aceitar uma explicação, segundo a qual a uma proposição negativa np equivaleria uma proposição q verdadeira e incompatível com p. (no exemplo, a proposição q seria: “Sócrates (está) morto”)

O segundo tipo de proposições complexas que, para Russell, não podem ser re-duzidas a proposições simples são as proposições que exprimem atitudes proposici-onais, isto é, que exprimem certos fenómenos mentais que implicam uma proposi-ção, por exemplo, as proposições que exprimem crenças, desejos, compreensão, etc.: “Creio que hoje é terça-feira”, “Desejo ficar sozinho”, “compreendo o teore-ma de Pitágoras”, por exemplo.

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É óbvio que estas proposições complexas não podem ser decompostas em pro-posições simples. Podemos distinguir nelas duas partes: a parte que expressa a atitu-de em questão (creio que, desejo, compreendo), e a parte que exprime o conteúdo da atitude. Assim sendo, a proposição complexa não é função das suas partes: a proposição “Creio que hoje é terça-feira” é verdadeira se for isso aquilo em que verdadeiramente acredito, seja hoje terça-feira ou outro qualquer dia da semana. A minha crença não é menos crença, nem menos verdadeira se estiver enganado.

Segundo Russell, estas proposições correspondem a uma classe particular de factos, dentro da qual podemos distinguir factos de crença, factos de desejo, factos de compreensão, etc., embora todos os exemplos que ele dá se refiram a processos mentais. Uma possibilidade de solução para reduzir factos mentais a factos atómi-cos seria analisar os verbos proposicionais em processos de comportamento. Mas a melhor razão dada por Russell baseia-se no facto de não ser possível utilizar no-mes próprios, se prescindirmos da consciência: a referência a “isto” ou “aquilo”, nos exemplos anteriores, deriva, pura e exclusivamente, da intenção referencial do sujeito.

Em Resumo:

A argumentação de Russell relaciona linguagem e concepção da realidade de um modo muito típico do atomismo lógico:

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☛ Por um lado, toda a proposição é empiricamente verdadeira ou falsa em função de um facto

☛ Por outro lado, toda a proposição que não possa decompor-se numa função de verdade a partir de outras mais simples, corresponde a um tipo particular de facto. Assim, Russell teve de aceitar um mundo composto, não só de factos atómicos, mas também de factos negativos, de factos gerais, de factos de existência e de diferentes classes de factos de atitudes proposicionais (crenças, desejos, etc.)

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De qualquer modo, a sua teoria da lógica e a sua análise da linguagem condici-onaram a concepção de Russell sobre o mundo.

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5 S E C Ç Ã O

Texto de Bertrand Russell

Será que a forma de uma proposição verdadeira pode ser mostrada?

Russell, B (1961) Histoire de mes idées philosophiques, Trad. do inglês por G. Auclair, Paris, Gallimard, p. 141

A doutrina fundamental da filosofia do Tractatus reside talvez em que uma proposição seja a representação dos factos que ela afirma. É claro que um mapa fornece informações corretas ou incorretas; e quando a informação é correta, é porque há semelhança de estrutura entre o mapa e a região que ele representa. Wittgenstein defendia que isso é igualmente verdadeiro na asserção linguística de um facto. Dizia, por exemplo, que se alguém empregar o símbolo “aRb” para representar o facto que tem a relação de R com b, esse símbolo está em condições de o fazer porque estabelece uma relação entre “a” e “b” que representa a relação entre a e b. Esta teoria acentua a importância da estrutura. (...)

Penso ainda que ele tinha razão em acentuar a importância da estrutura; quanto à teoria segundo a qual uma proposição deve reproduzir a estrutura dos factos a que diz respeito, atualmente, estou muito cético, ainda que, na altura, a tenha aceitado. Em todo o caso, não creio que, mesmo que seja num certo sentido verdadeira, tenha grande importância. Para Wittgenstein, ela era fundamental. Fez dela a base de uma curiosa espécie de misticismo lógico. Defendia que a forma que uma proposição verdadeira partilha com o facto correspondente só pode ser mostrada, e não dita, pois não consiste numa outra palavra, mas num arranjo de palavras ou de coisas correspondentes. (...)

Era este o único ponto, na altura em que eu estava quase inteiramente de acordo com Wittgenstein, sobre o qual eu me mantinha cético. Na minha introdução ao Tractatus, avançava que, se em todas as línguas há coisas que elas não conseguem exprimir, é sempre possível construir uma língua de ordem superior que permitiria dizer essas coisas. Haverá sempre coisas que não poderão ser ditas na nova língua, mas que a língua seguinte poderá exprimir e assim ad infinitum. Esta sugestão, que era nova nessa altura, tornou-se, depois, um lugar comum da lógica.

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3 C A P Í T U L O

Wittgenstein

Cap3

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No entender de Wittgenstein, muito paradoxalmente, uma proposição que não possa ser falsa, uma proposição que seja sempre verdadeira, qualquer que seja o estado do mundo, como as proposições da lógica, não pode nunca ser uma proposição autêntica.

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1 S E C Ç Ã O

Introdução

Nascido em Viena em 1898, numa rica fa-mília judia, Ludwig Wittgenstein formou-se em engenharia em Berlim e em Manches-ter. Graças à leitura dos Princípios de Matemá-tica de Russell, começou a interessar-se cada vez mais pelos fundamentos da mate-mática e da lógica. Em 1911, faz uma visita a Frege em Iena e, em 1912, vai estudar ló-gica em Cambridge, sob a orientação de Russell. Durante a I Guerra Mundial, serve

como oficial do exército austríaco e começa a escrever os pensamentos que vão constituir a substância do Tractatus. Feito prisioneiro em Novembro de 1918 na frente italiana, acaba por ser libertado e, em 1919, junta-se a Russell na Holanda. Juntos, acabam a versão definitiva do Tractatus, que é publicado em 1921 em ale-mão e, em 1922, numa tradução em língua inglesa. Wittgenstein diz no prefácio que este livro tem a solução definitiva para todos os problemas da filosofia, os quais têm origem, segundo ele, numa má compreensão da lógica da linguagem hu-mana. Coerentemente, após a publicação deste livro, Wittgenstein abandona a filo-sofia durante dez anos para se tornar professor na Áustria, jardineiro num mostei-ro, arquiteto amador, etc. Quando volta a interessar-se pela filosofia, sente-se obri-gado a questionar algumas teses fundamentais do Tractatus. Podemos, então, dizer que há duas filosofia de Wittgenstein: a de 1921, que pretende definir os limites da expressão do pensamento, e a, ainda mais inovadora e igualmente importante, das Investigações Filosóficas, publicadas em 1953, dois anos após a sua morte, que estuda os empregos da linguagem comum, na sua diversidade e nos seus limites. Wittgens-tein está, portanto, na origem de duas das mais importantes correntes de filosofia do século XX.

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Ludwig Wittgenstein

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2 S E C Ç Ã O

O Tractatus Logico-Philosophicus

O Tractatus logico-philosophicus é um volume de dimensões reduzidas, composto por parágrafos curtos numerados, de forma a podermos situar cada um deles nas ramificações do raciocínio. O título e a disposição da obra podem fazer pensar no percurso dedutivo de Espinosa, ao jeito de more geometrico. Mas esta semelhança é só aparente. Com efeito, a ordem dos parágrafos não obedece às regras da dedução; as teses sobre o mundo são enunciadas antes das teses sobre a linguagem, embora aquelas dependam destas. De facto, o raciocínio que conduziu às suas fórmulas, os exemplos que as ilustram, as conceções que elas exprimem, ou que elas rejeitam, são mantidos na sombra. Por este motivo, o Tractatus provoca a vontade de o co-mentar, mas desencoraja quem o queira resumir.

Por isso, contentemo-nos em salientar um aspeto particular da filosofia exposta no Tractatus: o conceito de proposição - de frase no sentido de Frege -, considerada como uma imagem ou quadro do mundo. A linguagem é constituída, segundo Wittgenstein, por proposições que representam o mundo, no sentido em que lhe dão significado, ou fornecem uma imagem do mundo. Mas um desenho, uma foto-grafia, um mapa, um esquema de um motor e até uma partitura de música tam-bém são imagens do mundo, e estas formas são, talvez, mais fáceis de analisar. To-memos o exemplo de um mapa: a disposição dos pontos que designam as cidades mostra que Coimbra fica a norte de Lisboa e a sul do Porto. A apresentação do mapa, a escala, os símbolos que designam as cidades podem variar de acordo com as convenções aceites, mas a disposição espacial dos elementos, isto é, das palavras, corresponde, se o mapa estiver correto, à disposição das cidades na realidade. A re-alidade e a sua representação cartográfica têm, portanto, em comum uma certa forma de colocar os elementos no espaço. Esta forma comum ao mapa e ao real, esta estrutura idêntica, é aquilo a que Wittgenstein chama a “forma lógica”. Do mesmo modo, as notas de música escritas da esquerda para a direita numa partitu-ra, os sulcos dos discos e os sons que se sucedem no ar têm em comum uma forma

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lógica. As proposições da linguagem não passam de uma espécie, entre outras, de imagem do mundo.

Como Frege e Russell mostraram, as proposições complexas da linguagem de-vem ser objeto de uma análise que, graças ao simbolismo da lógica, as reduza a proposições elementares. Mas cada proposição elementar é, por seu turno, analisa-da na qualidade de conexão de dois elementos. Uma proposição elementar, como “x está a ver y”, é, na realidade, a imagem de um facto possível, de um estado de coisas que existe ou não existe. O mundo, tal como ele o define logo no início do Tractatus, é, portanto, o conjunto dos factos elementares, dos “estados de coisas” que correspondem às proposições elementares. Nem as proposições nem os factos que lhes correspondem são, todavia, verdadeiramente elementares; a correspon-dência que é possível estabelecer entre elas e eles baseia-se numa forma comum de organizar os elementos.

Para Frege, as frases, tal como os nomes, tinham ao mesmo tempo um sentido e uma referência. Para Wittgenstein, a referência de uma proposição (frase, segun-do Frege) é o facto que lhe corresponde e a torna verdadeira ou falsa. Mas pode-mos compreender o sentido de uma proposição antes de saber se ela é verdadeira ou falsa, portanto sem conhecer a sua referência. Uma proposição autêntica tem, de facto, sempre dois pólos, ou duas direções, na medida em que, por definição, ela deve poder ser verdadeira ou falsa. A verdade ou falsidade de uma proposição depende de uma comparação com o mundo. Mas esta comparação só será possí-vel se os elementos da proposição se combinarem numa conexão possível. Os ele-mentos da proposição, só por si, não dizem nada: posso pronunciar os nomes de Coimbra, Lisboa e Porto, mas só começo a dizer alguma coisa quando combino estes elementos numa relação possível que tenha um sentido, antes mesmo que eu possa verificar no mundo, ou, se quisermos, num mapa, que “Coimbra fica a nor-te de Lisboa e a sul do Porto”. Uma proposição só é verdadeira se se referir a um estado de coisas real, mas só o pode fazer se, antes, tiver um sentido, isto é, se for a imagem de um estado de coisas possível, de uma combinação possível das coisas.

A clássica conceção da verdade como adequação da coisa e do intelecto, sendo, no essencial, preservada (a comparação com o mundo), é objeto de uma importan-te modificação: uma proposição só pode ser verdadeira ou falsa, se, antes de qual-

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quer comparação, tiver um sentido que lhe é dado pela sua forma lógica. Tal como um esquema pode representar uma posição possível das peças de um jogo de xadrez, ou a disposição das tropas num campo de batalha, uma proposição combina elementos (nomes que podem ser substituídos por variáveis), de acordo com uma estrutura que corresponde, ou não, a uma combinação de elementos - de “objetos” -, no mundo.

Tendo definido a proposição como uma imagem da realidade, Wittgenstein pode então considerar as proposições da linguagem que não representem nada como pseudo-proposições. Deste modo, chega à conclusão de que a lógica, a mate-mática, os princípios a priori das ciências da natureza, a ética e a filosofia se com-põem de pseudo-proposições, que não podem ser verdadeiras nem falsas e que, portanto, não têm sentido.

No entender de Wittgenstein, muito paradoxalmente, uma proposição que não possa ser falsa, uma proposição que seja sempre verdadeira, qualquer que seja o estado do mundo, como as proposições da lógica, não pode nunca ser uma propo-sição autêntica. Longe de ser uma verdade a priori ou uma lei do pensamento a que o homem teria acesso fora da experiência, uma proposição da lógica não pas-sa de uma tautologia (isto é, que diz a mesma coisa). Ela diz sempre a mesma coi-sa, o que é o mesmo que afirmar que ela não diz nada, no sentido em que não traz nenhuma informação nova a respeito do mundo. Uma tautologia do tipo “está a chover ou não está a chover” é verdadeira qualquer que seja o estado das coisas. Não tem, portanto, sentido.

No entanto, esta tese surpreendente não deve iludir-nos a respeito do papel que a lógica desempenha em Wittgenstein na definição do que a linguagem pode dizer. Com efeito, as proposições da lógica, enquanto tautologias, fornecem a estrutura da linguagem: determinam o que pode ser dito a respeito do mundo e, portanto, determinam de facto a estrutura do mundo. Traçam o universo das coisas que po-dem ser ditas, das coisas possíveis (“está a chover”; “não está a chover”), universo no qual se inscrevem os factos do mundo, como as regras do jogo de xadrez defi-nem as posições possíveis das suas peças e proíbem, por exemplo, que se imagine a representação de uma partida de xadrez sem um rei (acabaria antes de ter começa-do). As proposições da lógica são evidentes, na medida em que mostram o que são

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(tautologias), mas Wittgenstein tem o cuidado de sublinhar, ao contrário de Rus-sell, que os axiomas não são mais evidentes do que as outras proposições da lógica e que a demonstração, longe de ser uma prova que se apoia em princípios, só ser-ve para iluminar o caráter tautológico de todas as proposições da lógica.

As pseudo-proposições tautológicas da lógica, como , aliás, as da matemática, que, segundo Wittgenstein, não passam de um “método de lógica”, não têm mani-festamente o mesmo estatuto das pseudo-proposições da ética, da estética e da filo-sofia, que, estas, se baseiam numa confusão entre a forma gramatical comum e a forma lógica. É possível que Wittgenstein, leitor de Schopenhauer, de Tolstoi e dos Evangelhos, tenha pensado que, limitando o que podia ser dito com sentido exclu-sivamente às proposições das ciências da natureza, e impondo um silêncio ascético à especulação metafísica, preservaria na sua pureza a procura pelo sentido da vida. Mas é certo que o célebre convite ao silêncio com que conclui o Tractatus (“Devemos calar aquilo de que não podemos falar”) pode ser legitimamente inter-pretado, num espírito positivista, como uma condenação da metafísica. Este mal-entendido permitiu, ou pelo menos favoreceu, o desenvolvimento do empirismo lógico que encontrou na noção de tautologia a chave de um problema clássico. Mas, ao mesmo tempo, deixou em aberto a questão do estatuto das proposições, das frases da filosofia.

Wittgenstein definiu a filosofia não como uma doutrina, mas como uma “ativi-dade”, cuja finalidade é a “clarificação lógica do pensamento”. Deve “delimitar ri-gorosamente” pensamentos que são, sem essa delimitação, “perturbadores e va-gos”. Mas esta clarificação deveria, se tudo corresse bem, ter um tempo limitado. As proposições “clarificadoras” do Tractatus, elas próprias, estão destinadas a desa-parecer, pois deixam de ter sentido logo que sejam compreendidas, isto é, só têm sentido clarificador e, portanto, só o têm enquanto não forem entendidas. A filoso-fia seria comparável a um ácido que teria a propriedade de fazer aparecer as pseu-do-proposições, de eliminar essas impurezas e, finalmente, dissolver-se a si mesmo, não deixando nada para além do espelho polido das proposições que fornecem uma imagem do mundo. Apesar de todo o seu aparelho de lógica simbólica, o Trac-tatus chega à sua conclusão com um paradoxo: as proposições que o Tractatus enun-cia são sem sentido.

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Mas quais são esses misteriosos “objetos” estáveis e simples que formam a subs-tância do mundo e que se combinam para formar configurações mutáveis e instá-veis, os “estados das coisas”? É provável que, no espírito de Wittgenstein, esses ob-jetos sejam deduzidos, como uma condição necessária, da existência dos factos, dos estados de coisas que tornam as proposições verdadeiras ou falsas. São eles - os “objetos” - que asseguram essa estabilidade, sem a qual não seria possível dizer o que quer que fosse a respeito do mundo. A sua existência é proclamada pelas ciên-cias. Mas qual é a sua natureza? Esta questão tem algum sentido? Se tem, será que devemos procurar a resposta do lado da psicologia, tomando como objetos primiti-vos os dados sensíveis, as cores, os sons, etc., ou então temos de seguir o caminho da física tomando, neste caso, as coisas materiais ou os átomos como elementos? Interessa pouco que uma ou outra das hipóteses não consiga responder verdadeira-mente àquilo que Wittgenstein procurava no Tractatus. O que conta para a história é que esta perspetiva abriu caminho para uma interpretação empirista do Tracta-tus, e esta interpretação é que foi verdadeiramente decisiva.

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3 S E C Ç Ã O

Investigações Filosóficas

Wittgenstein foi engenheiro, oficial no exército austro-húngaro, professor de ensi-no básico, ajudante de jardineiro num mosteiro, arquiteto, antes de ser professor na Universidade de Cambridge. O seu perfil não correspondia ao de um intelectu-al “encartado”, ao modo do seu tempo. Por isso só publicou duas obras em vida: um pequeno dicionário de alemão para alunos do ensino primário e o Tractatus, de que se falou na secção anterior. No entanto, as recolhas das suas numerosas notas de preparação das aulas em Cambridge foram publicadas, após a sua morte, pelos executores do seu testamento: as Investigações Filosóficas (1953), e os Caderno azul e Ca-derno castanho (1958). Estas obras não são verdadeiramente uma exposição doutriná-ria, mas sobretudo exemplos de um percurso tanto mais desconcertante quanto acaba por se constituir na refutação de uma parte das teses expostas no Tractatus, fortemente apoiadas pelo Círculo de Viena e pelo empirismo lógico, sob sua influ-ência. O silêncio de dez anos, que separa a publicação do Tractatus, do retorno de Wittgenstein à filosofia, não tem só interesse biográfico. Na verdade, prepara a emergência, alguns anos mais tarde, de uma nova filosofia da qual percebemos as premissas no Caderno castanho com a introdução do conceito de “jogo de lingua-gem” e com o questionamento do privilégio concedido à linguagem ideal da lógi-ca.

Nas Investigações, Wittgenstein dedica-se a criticar em detalhe uma conceção da linguagem que ele ilustra com uma citação das Confissões de santo Agostinho. Este filósofo medieval, ao descrever a forma como, quando criança, aprendeu a falar (a linguagem), privilegia o nome (comum ou próprio), e, na aprendizagem do nome, o papel da definição ostensiva, através do gesto: “Quando alguém nomeava um ob-jeto (...) retinha que a esse objeto correspondia o som que se fazia ouvir quando era designado”(1). Santo Agostinho estaria a esquecer, segundo Wittgenstein, a di-versidade dos tipos de palavras e dos tipos de linguagem. Enganados pela seme-lhança das palavras entre si - afinal, são sons articulados - esquecemos que elas

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não servem somente para designar de forma ostensiva um objeto presente ou dissi-mulado, e que elas também são empregues para dar ordens, relatar um aconteci-mento, fazer conjeturas e hipóteses, e examiná-las, inventar uma história, represen-tar peças de teatro, inventar ou resolver enigmas, traduzir, pedir, maldizer, saudar, rezar (2).

Não vale a pena, nestes exemplos, procurar o significado das palavras no objeto que designam, seguindo o modelo definitivamente demasiado simples do nome próprio que se refere a uma realidade individual e a uma só. A linguagem, segun-do uma metáfora célebre de Wittgenstein, é como uma caixa de ferramentas (3): não conseguimos compreender o significado de uma ferramenta sem lhe atribuir uma função e sem a associar a uma atividade humana. Podemos dizer, por exem-plo, que uma sovela “serve para cortar couro” e que é utilizada, entre outras, no ofício de sapateiro. Do mesmo modo, o significado das palavras aparece com o uso que fazemos delas, com o emprego que lhes damos no contexto de uma atividade coletiva.

Para designar o conjunto composto pela palavra e pela atividade humana em que ela é empregue, Wittgenstein introduz a noção de “jogo de linguagem”. Um jogo de linguagem pode tomar a forma de um conjunto de instruções, de ordens, de respostas e de gestos, por exemplo, no convés de um navio. Mas porquê falar de jogo de linguagem?

Em primeiro lugar, por analogia, na medida em que os diferentes jogos (o ténis, o xadrez, etc.) só têm entre si afinidades, semelhanças, um ar de família, mas não têm uma essência comum (4). Esta diversidade irredutível, temperada pelas seme-lhanças, encontra-se também nas funções da linguagem. Ao dizer isto, Wittgens-tein renuncia ao projeto central do Tractatus: encontrar a forma geral da proposi-ção, a função da linguagem. Por outro lado, não há jogo sem um conjunto de ges-tos submetidos a regras, que são arbitrárias, mas que são aceites como necessida-des naturais por aqueles que o praticam. Do mesmo modo, cada tipo de lingua-gem, enquanto jogo coletivo, supõe regras, uma gramática implícita.

No entanto, a fórmula “jogo de linguagem” mantém uma certa ambiguidade. Um jogo não é uma coisa a sério, diz-se, enquanto a linguagem tem a ver com as

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coisas e com a verdade. Considerá-la um jogo não será pôr entre parêntesis aquilo que constitui o próprio problema da linguagem, o facto de que possa ir, segundo se crê, para além de si mesma? Para Wittgenstein, os jogos de linguagem designam, em primeiro lugar, linguagens simplificadas e imaginadas, mas completas em si mesmas, que permitem compreender e criticar certas conceções filosóficas como, por exemplo, a teoria das descrições de Russell (5). Mas, ao mesmo tempo, temos a sensação de que cada linguagem natural é composta de vários jogos de linguagem enredados, que é possível descrever empiricamente numa perspetiva sociológica e antropológica.

É neste sentido, em particular, que Wittgenstein pode dizer que os jogos de lin-guagem representam “formas de vida naturais”, práticas coletivas do dia-a-dia, às quais não prestamos atenção, sobretudo, diz Wittgenstein, quando fazemos filoso-fia recorrendo ao modelo simplificado e simplista da definição ostensiva. “Nós fica-mos inconscientes da diversidade prodigiosa de todos os nossos jogos de linguagem do quotidiano, porque o vestuário da nossa linguagem torna tudo semelhante (6).”

Enquanto formas de vida naturais que combinam termos linguísticos e ações coletivas, os jogos de linguagem baseiam-se em regras que não são objeto de uma convenção explícita e que têm a natureza de factos sociais: “Obedecer a uma re-gra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar um jogo de xadrez, são hábi-tos (costumes, instituições) (7).” A partir daqui, podemos compreender a argumen-tação que fundamenta uma das teses mais surpreendentes de Wittgenstein: a im-possibilidade de qualquer tipo de linguagem privada.

Esta crítica da “linguagem privada” - por oposição aos jogos de linguagem que seguem regras respeitadas por todos - visa tanto as especulações idealistas de tipo cartesiano ou husserliano, que descrevem e classificam os atos de consciência após colocar entre parêntesis o mundo exterior, como as análises de tipo empirista (Hu-me, por exemplo) que pretendem apoiar-se em dados sensíveis. Uma linguagem privada, para Wittgenstein, é uma linguagem que se referiria a experiências, a esta-dos só conhecidos pela pessoa que fala, a sensações internas e imediatas como a dor, a dados sensíveis como uma certa tonalidade de vermelho, a processos men-tais como uma decisão. Se admitirmos a possibilidade de uma linguagem privada, se a linguagem é, primeiro, uma linguagem privada que, depois, traduz “as ideias

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que estão no espírito”, de acordo com a expressão de Locke, seremos conduzidos, como o são a maior parte dos empiristas, a tirar conclusões céticas. A refutação da tese da linguagem privada liga-se explicitamente, em Wittgenstein, à crítica da defi-nição ostensiva, que, segundo ele, só pode desempenhar um papel secundário de explicação, uma função pedagógica limitada, na medida em que supõe sempre a existência prévia de uma linguagem. É por definição ostensiva, por exemplo, que aprendemos, no início, palavras estrangeiras (explica-se rouge, mostrando verme-lho), porque o aluno já domina uma linguagem. Mas a denominação não consegui-ria explicar toda a linguagem e é conveniente distinguir o “significado” de uma pa-lavra do objeto que ela designa. Afinal, o objeto pode desaparecer sem que a pala-vra perca a o seu significado.

Mas a polémica contra a noção de linguagem privada visa também refutar o ce-ticismo. As últimas notas escritas por Wittgenstein, pouco tempo antes da sua mor-te, publicadas em 1969 sob o título Da certeza, tratam precisamente da questão da dúvida e do ceticismo (Cf. texto). Wittgenstein, numa forte polémica com o empi-rismo (sobretudo de Moore), reinterpreta a refutação do ceticismo, mostrando que a dúvida universal de tipo cético ou cartesiano é, de facto, impossível. É, evidente-mente, razoável duvidar da verdade de um enunciado particular, imaginar a sua negação. Mas a generalização da dúvida ao conjunto do que sabemos e em que acreditamos, ainda que sob a forma metódica e provisória que lhe atribuem Des-cartes e Husserl, faz parte dessas ilusões que só o uso irrefletido da linguagem pode fazer nascer em filosofia. Podemos, por exemplo, duvidar sem formular a dú-vida, portanto sem utilizar palavras cujos significados não podemos revogar atra-vés da dúvida? Descartes duvida de tudo de forma hiperbólica, salvo talvez do si-gnificado das palavras “enganar alguém” no enunciado: “Um génio maligno... que empregou toda a sua astúcia a enganar-me (8).” Isto é o mesmo que dizer que a dúvida supõe sempre a existência de um “jogo de linguagem”. De facto, do mes-mo modo que não conseguimos aprender nada em história ou em matemática, se começarmos por duvidar de tudo o que nos é ensinado, também não nos é possí-vel duvidar sem nos referirmos a alguma autoridade incontestada e implícita. O jogo da dúvida pressupõe a certeza e só tem sentido se ligado a ações concretas. Wittgenstein ultrapassa, portanto, o empirismo de Moore, mas também o raciona-

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lismo de Descartes e de Husserl, na medida em que considera que a generalização da dúvida, longe de me permitir descobrir o resíduo irredutível do Eu, do Ego puro, não passa de uma perversão ilusória da linguagem, uma vã glória da filoso-fia. Um jogo de linguagem supõe interlocutores comprometidos numa ação, nem que seja um génio maligno empenhado em os enganar; a certeza já não é uma pro-priedade do conhecimento teórico, uma característica das ideias claras e distintas, um valor absoluto descoberto por um Ego solitário que teria sido capaz de se puri-ficar da dúvida. A certeza está ligada a uma forma de vida que só pode ser ultra-passada ou modificada através de palavras, através de enunciados sem incidência prática. Não revogamos, através da dúvida, as formas do pensamento, as leis da ló-gica, não porque sejam verdades indubitáveis no sentido clássico e dogmático, mas porque não podemos viver sem elas, nem sequer imaginar que o possamos fazer.

Podemos acreditar verdadeiramente, por exemplo, que possamos encontrar se-res humanos que sejamos completamente incapazes de compreender? Não. Mas não é porque há uma razão universal, presente em cada homem, com as suas leis. É simplesmente impossível interpretar um comportamento sem supor um sistema comum de referência, um jogo de linguagem partilhado que permita determinar as diferenças. Antes de dizer que não compreendemos o que diz um homem que fala uma língua diferente da nossa, temos de reconhecer que ele fala, que os sons que ele emite constituem uma linguagem.

Wittgenstein põe em causa as interpretações intelectualistas que procuram a ra-zão de práticas estranhas em erros, ou em “crenças científicas erradas”. O primiti-vo que dança para fazer chover não acredita que a dança faz chover. Wittgenstein esboça assim um projeto de uma gramática para a antropologia e para a psicolo-gia, mas também para a filosofia, entendida não como uma explicação que forne-ceria as verdadeiras razões, mas como uma descrição não normativa dos jogos de linguagem na sua diversidade e nas suas semelhanças. De uma maneira geral, “o jogo de linguagem não se baseia em nenhum fundamento. Ele não é razoável (nem tão pouco não razoável). Esta aí como a nossa própria vida”(9).

Esta conceção pode evidentemente ser objeto de duas interpretações divergen-tes:

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Wittgenstein recusaria sem dúvida comprometer-se com esta via transcenden-tal, que simplifica e economiza aspetos essenciais do pensamento que se exprime nas Investigações, nomeadamente, a ideia pragmática de que o significado das pala-vras e das frases está ligado às atividades que lhe servem de contexto, e a ideia ana-lítica segundo a qual a filosofia deve ter uma função terapêutica. Como é que a fi-losofia poderia procurar condições transcendentais não empíricas, válidas para to-dos os casos, quando a sua verdadeira tarefa é a de resolver os problemas e dissi-par definitivamente as confusões que surgem quando a linguagem “patina no va-zio”?

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☛ Podemos considerar que conduz a uma espécie de relativismo cultural que se submete perante a diversidade dos jogos de linguagem, dos rituais, das mitologias, das culturas, sem nunca procurar julgá-los, nem tão pouco explicá-los. Esta linha de pensamento seria compatível com a ideia de Wittgenstein de que as “formas de vida” são irredutivelmente diversas;

☛ Mas podemos também vislumbrar a possibilidade de uma gramática profunda e universal - segundo a expressão de Chomsky - que descreveria as regras de funcionamento de toda a linguagem humana. Esta interpretação conduziria assim à ideia de uma “análise transcendental”, que indicaria as condições de possibilidade dos diversos atos da linguagem, nomeadamente, da referência a objetos, da atribuição de certas caraterísticas pelos predicados, e as condições de possibilidade da argumentação

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Texto de Wittgenstein

Uma espécie de mitologia

Wittgenstein, L. (1976), De la certitude, Trad. do alemão por J. Fauve, Paris, Gallimard, p. 49 e seg.

93. As proposições que representam o que Moore “sabe” são todas de um género tal que dificilmente nos poderíamos representar por que razão alguém iria acreditar no contrário. Por exemplo, a proposição segundo a qual Moore viveu na proximidade imediata da terra. - Neste caso também posso falar de mim mesmo, em vez de de Moore. (...) Nada na minha imagem do mundo me dá uma visão contrária.

94. Mas esta imagem do mundo, eu não a tenho porque me convenci da sua retidão; nem tão pouco porque estou convencido da sua retidão. Não, ela é o cenário que herdei, no fundo do qual distingo entre o verdadeiro e o falso.

95. As proposições que descrevem esta imagem do mundo poderiam pertencer a uma espécie de mitologia. E o seu papel é semelhante ao das regras do jogo; e este jogo, podemos também aprendê-lo de forma puramente prática, sem regras explícitas.

96. Poderíamos representar-nos certas proposições, empíricas na forma, como solidificadas e funcionando como vias condutoras para as proposições empíricas fluidas, não solidificadas; e que esta relação se modificaria com o tempo, solidificando-se proposições fluidas e liquidificando-se proposições robustas.

97. A mitologia pode encontrar-se de novo aprisionada na corrente, o leito onde deslizam os pensamentos pode deslocar-se. Mas eu distingo entre o fluxo da água no leito do rio e a deslocação deste último; se bem que não haja entre os dois uma divisão clara.

98. Mas se alguém viesse dizer-nos: “A lógica é, ela também, uma ciência empírica”, estaria errado. O que está certo é isto: a mesma proposição pode ser tratada num momento

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como o que é a verificar pela experiência, num outro momento como uma regra da verificação.

99. E mesmo a margem deste rio é feita em parte de uma rocha sólida que não está sujeita a nenhuma modificação ou quando muito a uma modificação imperceptível, e é feita em parte de uma areia que o fluxo de água transporta e depois deposita aqui e ali.

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Notas

1 L. Wittgenstein, Investigations philosophiques, I, § 1

2 L. Wittgenstein, op. cit., I, § 23

3 L. Wittgenstein, op. cit., I, § 11

4 L. Wittgenstein, op. cit., I, § 66

5 L. Wittgenstein, op. cit., I, § 48

6 L. Wittgenstein, op. cit., II, p. 357

7 L. Wittgenstein, op. cit., I, § 199

8 Descartes, Méditations, p. 75

9 L. Wittgenstein, De la certitude

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4 C A P Í T U L O

Heidegger

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A existência é importante para apreender a realidade. É preciso esperar que o ser se nos revele. A sua verdade mostra-se de maneira enigmática na linguagem poética que toma o valor de uma revelação religiosa. As palavras perdem o seu papel de utensílios e são literalmente utilizadas pelo ser para nos manifestar a sua verdade.Ao contrário da poesia que revela o ser, a técnica moderna, verdadeiro remate do niilismo filosófico, revela o nada.

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1 S E C Ç Ã O

Heidegger

De certo modo, Heidegger coloca-nos diante de uma alternativa: ou o seu pensamento é a derradeira expressão de uma metafísica oca, puramente verbal, como pensa ainda um grande número de filósofos de inspiração analítica, ou então tenta verdadeiramente dizer-nos alguma coisa, que está presente, mas implicitamente, negativamente, no vazio, nas metamorfoses da filosofia analítica. Algumas perspetivas atuais do lado da hermenêutica, como a de Paul Ricoeur, ou sob o signo do pragmatismo, de R. Rorty, sugerem que o abismo entre a corrente analítica e a corrente da filosofia “continental” de língua alemã e francesa, não sendo preenchido, deixou de

ser inultrapassável.(1hd) Mas estamos ainda longe de ter a noção exata do pensamento terrivelmente controverso de Heidegger.

Estas controvérsias têm origem, em parte, no facto de Heidegger ser um filósofo ou um pensador sujeito a mal-entendidos, não de um mal-entendido decorrente de uma simples e contingente perturbação da comunicação, de um acidente de bom entendimento, mas um mal-entendido como destino, como finalidade, do próprio pensamento.

Mal-entendido antes de mais nas relações que estabelece com a fenomenologia. O próprio Heidegger refere a importância que teve para ele, em 1910, a leitura das Investigações lógicas de Husserl; a sua primeira tese (Dissertação), sob a orientação do neo-kantiano Rickert é uma crítica da doutrina psicologizante do juízo (em 1913) e o grande livro de 1927, O Ser e o Tempo, contém uma dedicatória a Husserl, que Heidegger sucede em Friburgo em 1928. Todavia, o Ser e o Tempo indica claramente que a fenomenologia, para Heidegger, é sobretudo uma “possibilidade” que falta explorar, e não uma forma científica de investigação filosófica, como pretendia Husserl. É verdade que reconhece que as Investigações lógicas constituem uma “avanço”, mas, como afirma num pequeno texto muito esclarecedor, O Meu Caminho e a Fenomenologia, em vez de constituir um genuíno início de uma nova filosofia, essas investigações limitam-se a encontrar, de forma confusa e contraditória, o traço fundamental do pensamento grego. Recusando seguir os passos de Husserl no caminho da

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Martin Heidegger

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fenomenologia e do idealismo, Heidegger critica as Investigações lógicas por não se terem afastado o suficiente da psicologia, por se encerrarem nas descrições dos “atos de consciência”, em vez de se dedicarem ao tema que verdadeiramente interessa, o sentido do ser. “Ontologia e fenomenologia, escreve Heidegger no Ser e o Tempo, caracterizam a filosofia no que diz respeito ao seu objeto e à sua forma de o abordar”.(2hd)

Outro mal-entendido está sobretudo associado à leitura francesa da sua obra num contexto existencialista, que não se limitou ao l’Être et le Néant de Sartre, mas que reuniu também correntes de inspiração espiritualista (G. Marcel, K Jaspers), unidas pelo interesse pela obra de Kierkegaard. A interpretação existencialista de Heidegger não era um simples erro de leitura; pelo contrário, podia ser autorizada por algumas páginas de O ser e o Tempo que fazem referência ao filósofo dinamarquês (Kierkegaard), a santo Agostinho e aos temas da angústia e da morte. Mas nem por isso deixava de ser um mal-entendido, na medida em que negligenciava o caráter muito particular das preocupações ontológicas de Heidegger, sobretudo preocupado em romper com o domínio da filosofia do sujeito, a ponto de designar o termo “ser humano” pelo termo sem dúvida intraduzível de Dasein (estar-aí) (3hd). Foi preciso esperar pela Carta sobre o Humanismo dirigida a Jean Beaufret em 1946 - um texto fundamental para perceber a evolução de Heidegger - para que este novo e inevitável mal-entendido fosse parcialmente dissipado.

Este último mal-entendido foi, no entanto, relegado para um segundo plano por um outro mal-entendido bem mais grave que diz respeito à atitude de Heidegger nas fases iniciais do nazismo. Em 1933, Heidegger aceitou ser reitor da Universidade de Friburgo e, nessa qualidade, fez um discurso intitulado Discurso da Reitoria (maio de 1933), no qual defende a autonomia da Universidade em termos, no mínimo, muito ambíguos. Será esse discurso a manifestação de uma fidelidade de fundo com o movimento “nazi”? Ou será, antes, no meio de algumas afirmações de circunstância e de compromisso - mas com quem? - a defesa da autonomia do pensamento contra a politização da ciência? Heidegger demite-se, é verdade, em fevereiro de 1934 e dedica-se ao ensino de lições sobre Nietzche claramente em confrontação com a interpretação “nazi” do “super-homem”. Mas, embora possamos comparar esta incursão do pensador na política aos contratempos de Platão querendo tornar-se conselheiro do tirano de Siracusa, não podemos deixar de nos sentir surpreendidos (pelo menos) ao ler a entrevista que Heidegger deu em 1966 ao semanário alemão der Spiegel, e que só foi publicada, após a sua morte, em 1976: uma defesa crispada da sua atitude durante essa época, sem a menor autocrítica; a recusa de qualquer consideração ética e uma total indiferença face aos aspetos mais monstruosos do regime nazi.

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O compromisso nunca negado de Heidegger com o nazismo parece-nos um escândalo, ao mesmo tempo porque põe em questão a filosofia na sua acepção tradicional, herdada de Sócrates e das Luzes - a conjunção do bem e do verdadeiro, o ideal de uma harmonia entre as vias do conhecimento e os instrumentos da política - e porque esse compromisso traz consigo uma terrível dúvida sobre a própria ideia de filosofia moderna; o seu compromisso, talvez limitado no seu alcance real, mas mais profundo do que se disse durante muito tempo, retira a sua importância da amplidão do seu trabalho de “destruição” da metafísica. Como Nietzche e mais tarde Foucault, Heidegger rejeita todos os humanismos que pretendam julgar ou defender o homem em nome de certos valores, mas ignorando a longa história das noções de “homem” ou de “valor”. Recusa o discurso moral na sua forma tradicional, porque esse discurso já não pode, diz ele, pretender fundamentar-se em evidências, numa razão eterna e imutável, num encadeamento demonstrativo. Ora, este questionamento da interpretação clássica da razão não característica exclusiva de Heidegger. É mesmo uma tendência fundamental de toda a filosofia contemporânea. Será que isto quer dizer que o pensamento que é contra o humanismo, pergunta Heidegger na Carta sobre o Humanismo, equivale a uma “defesa do desumano e uma glorificação da brutalidade?”(4hd) Talvez não... Ou, pelo menos, nem sempre... Mas a postura de Heidegger, que pode ser interpretada como uma aceitação do niilismo, coloca-nos contra a parede. Existe uma racionalidade que escape à crítica que faz à metafísica tradicional e que se oponha aos seus compromissos? Existe uma racionalidade suficientemente flexível para não se transformar numa metafísica dogmática camuflada, e ao mesmo tempo suficientemente clara, suficientemente nítida, para orientar as escolhas éticas?

Só conseguimos responder a Heidegger, tendo em conta o seu pensamento, seguindo-o no seu percurso, ao mesmo tempo extraordinariamente paciente e violento, interpretando os seus textos.

Neste ponto também nos defrontamos com um mal-entendido, na medida em que, a partir de O ser e o Tempo, Heidegger atribui-se a si mesmo a tarefa do “ensaio da questão do ser”. As ciências particulares lidam com “entes”, com objetos que elas próprias determinam e descrevem: a biologia estuda a vida, a física a natureza, a teologia Deus, a psicologia a alma, etc. Só a filosofia é a ciência do Ser, nos termos do curso dado em Marburg em 1927 sobre os Problemas fundamentais da fenomenologia (5hd). Ora, esta questão específica da filosofia (“o que quer dizer o ser?”) foi esquecida, negligenciada, recalcada mesmo, porque o conceito de “ser” é geral, indefinível, evidente. Para repor esta questão ao mesmo tempo ontológica e fenomenológica (pois trata da questão do sentido do ser), Heidegger vai propor o recurso à mediação de um ente particular, o homem, ou melhor, para empregar o termo

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que ele inventa, o Dasein. Heidegger vai, portanto, dedicar-se a distinguir as estruturas da experiência quotidiana mais banal, estabelecendo um vocabulário que lhe permite desligar-se das concepções demasiado evidentes que recebemos dos Gregos e dos Romanos (corpo/alma, teoria/prática, ação/paixão). Este vocabulário novo é pedido emprestado por Heidegger à língua alemã, através da metamorfose de certos termos. Daí, as ambiguidades da interpretação e da tradução da obra de Heidegger.

A existência humana, como conjunto de projetos e de possibilidades, é definida, não a partir da consciência e dos seus atos, mas a partir do “estar no mundo”. Este estar no mundo que é anterior a qualquer divisão entre um sujeito e um objeto, entre o Eu e o mundo, é ele próprio objeto de análise. Esta análise põe em evidência uma “constituição existencial” que comporta três dimensões originais: o “sentimento da situação” (também traduzido como “afecção”), que se manifesta, por exemplo, no medo; em seguida, a “compreensão” ou o “entender”; finalmente, a “palavra” ou “discurso”. Heidegger pode, deste modo, descrever as formas “não autênticas” da existência quotidiana, sem, diz ele, intenções moralizadoras: a “cavaqueira” ou o “diz-que-diz”, a “curiosidade”, o “equívoco”, o “conformismo”, o “desânimo” e o “abandono”. Conclui a sua primeira secção mostrando que a “preocupação” - noção que escapa à dicotomia da teoria e da prática e que reúne as três dimensões de que se falou mais atrás - é o ser do Dasein, deste ser humano que já não é definido pela sua consciência, pela sua razão ou pelas suas pulsões, mas por uma espécie de presença ativa e “preocupada” no mundo.

A chave da preocupação aparece na segunda secção (Dasein e temporalidade), que descreve, desta vez, as formas “autênticas” da existência à luz de uma análise da temporalidade. Nada mostra melhor o poder impressionante da construção de Heidegger do que o parágrafo 68 desta segunda secção, que retoma as três dimensões da “constituição existencial”, reinterpretando-as num plano mais autêntico em função desta “temporalidade” definida como “sentido ontológico” (∬ 65)

O Ser e o Tempo, este livro tão rico e tão obscuro, dedica-se a fabricar mal-entendidos porque pretende reencontrar uma questão esquecida (o que é o ser?), mas corre o risco, pelo caminho que toma, de passar por uma descrição pura e simples da existência humana no que ela tem de mais geral e de mais profundo, e também de encontrarmos nesta forma de análise de formas não autênticas e de formas autênticas da existência certos pormenores que fazem lembrar Kierkegaard. Afinal, não estarão todos os homens ocupados em missões diversas e num divertimento universal, em razão de uma preocupação fundamental ligada à sua finitude? No entanto, Heidegger vai recusar esta interpelação no Ser e o Tempo, porque entende que

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ela dissimula a verdadeira interrogação sobre o sentido do ser. O avanço das Investigações lógicas de Husserl não foi completo porque foram vítimas da psicologia do atos de consciência. Iria Heidegger seguir o mesmo caminho, sendo vítima de uma interpretação antropológica, cristã, existencialista, que, digamos em abono da verdade, teria todas as razões de ser?

A elaboração da questão do ser a que Heidegger pretendia responder implicava que dividisse esse tratado (O Ser e o Tempo) em duas partes:

A primeira parte foi dividida em três secções:

O Ser e o Tempo, tal como foi publicado em 1927, só continha as duas primeiras secções da primeira parte. O resto não foi publicado sob esta forma, e podemos, por conseguinte, considerar que toda a sua obra posterior, em particular os seus cursos, é uma lenta e interminável reestruturação dessas partes não publicadas. Como nos dá a saber na Carta sobre o humanismo, a linguagem herdada da tradição metafísica impediu Heidegger de levar a bom termo esta sua tarefa (6hd).

É através de uma verdadeira revolução do seu pensamento por volta de 1930, com a conferência sobre a Essência da Verdade, que Heidegger vai renunciar à análise da existência humana para investigar a palavra esquecida, a “verdade” do ser, operando, assim, uma destruição da metafísica e da sua linguagem. Esta abordagem, que envolve Heidegger numa interpretação de todos os grandes textos da metafísica, contrasta com a de Husserl que

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☛ uma interpretação do Dasein, centrada na temporalidade e a explicação do tempo como horizonte transcendental da questão do ser:

☛ uma “destruição fenomenológica da história da ontologia”, nomeadamente de Kant, de Descartes e de Aristóteles, de acordo com a sua problemática da temporalidade.

☛ Análise do Dasein

☛ “Dasein e temporalidade”

☛ Tempo e ser

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pretendia construir por sua própria conta novas bases para a filosofia. Em que é que esta postura de Heidegger se distingue do positivismo lógico? Num aspeto central: a crítica da metafísica produzida por Carnap e pelos membros do Círculo de Viena traduz-se numa rejeição sem frases, sem novo conteúdo proposicional, numa análise crítica formal; muito pelo contrário, Heidegger prefere o comentário, por vezes, violento, mas que tende sempre para um não pensado que a tradição esqueceu, para um esquecimento necessário. Estes comentários têm um fio condutor: o parentesco de alemães e gregos, de Holderlin e dos pensadores pré-socráticos. Esta relação de parentesco, de familiaridade, contrasta com a traduzibilidade universal que deveria caracterizar a linguagem da ciência segundo o positivismo lógico.

De certo modo, poderíamos dizer que, tal como Frege e os lógicos em geral, Heidegger está insatisfeito com a lógica clássica, baseada no juízo que combina um sujeito e um predicado. Mas, enquanto Frege, Russell e Wittgenstein transformam a lógica clarificando, nomeadamente, o papel da cópula “é”, Heidegger assume um diferente ponto de partida logo no início do Ser e o Tempo. Um lógico poderia, talvez, dizer que Heidegger especula sobre noções confusas de lógica, mas Heidegger poderia responder-lhes que a lógica deve a sua existência a Aristóteles, que a lógica, em Aristóteles, está estreitamente associada à ontologia e que o empirismo lógico é uma forma de nomear, dizer o nome do problema, mas não de o resolver.

Fica, portanto, claro que enquanto o positivismo lógico quer corrigir a linguagem da metafísica e, com menor empenho, a linguagem comum, Heidegger esforça-se por subverter, por desconstruir a linguagem da metafísica, em primeiro lugar, através de um uso criativo e criador da linguagem do quotidiano (quando recorre a termos como “cavaqueira”, “curiosidade” ou “preocupação”), em segundo lugar, nos textos posteriores à Carta sobre o humanismo (Ensaios e conferências), através de uma forma mais poética da linguagem, que tende para o silêncio.

No entanto, a verdadeira oposição ao positivismo lógico reside na sua conceção da ciência. Ao ideal de uma ciência unitária, corresponde em Heidegger a constatação de uma pluralidade de ciências e de objetos (os “entes”) que só poderiam encontrar a sua unidade numa ciência do ser ainda não encontrada. Por outro lado, enquanto o positivismo lógico nada diz a respeito da técnica, Heidegger propõe uma viragem da conceção corrente que vê a técnica como algo derivado e dependente do saber, e sugere que o fenómeno característico do seu século (o século XX) não é o progresso do saber, o desenvolvimento da ciência, mas o estrangulamento crescente da técnica. Ora, a essência da técnica pode ser interpretada como a abolição da misteriosa diferença entre os entes e o ser que os pré-

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socráticos tinham entrevisto. A técnica, na sua versão imperialista, reduz tudo a uma função instrumental; o obscuro e o mistério desaparecem, para que passe a só existir o conhecimento impessoal da Ciência.

A famosa entrevista ao Spiegel, na sequência de outros textos, descreve a grandeza aterradora de uma técnica “planetária” que afasta o homem da terra, da tradição, da sua pátria. Mas será esta crítica uma manifestação da sua nostalgia camponesa dos campos e da floresta, dos camponeses e dos artesãos? Será uma espécie de ideologia florescente na Alemanha e, em todo o lado, nas épocas que antecedem a calamidade da guerra? Não, as coisas, em Heidegger, são sempre mais complexas, do que aquilo que o simples bom senso nos permitiria pensar.

Heidegger, com o tema da técnica, constata o fim de um certo racionalismo, o racionalismo da metafísica - o homem animal racional - que é paradoxalmente ferido de morte com Nietzsche, pensador da vontade de poder, da vida irracional e da arte. Os dois volumes da sua obra sobre Nietzsche, talvez a sua obra prima depois de O Ser e o Tempo, são influenciados pela preocupação em demonstrar o caráter supérfluo da filosofia numa época marcada pela ciência. Quererá isto dizer que temos de nos resignar a um universo dominado por uma técnica destruidora da verdadeira vida?

Deste modo, vemos aparecer em Heidegger, é certo que de forma algo misteriosa, uma outra ideia: a de uma possibilidade indeterminada de verdadeira ultrapassagem da metafísica, de uma outra forma de pensamento ocidental, que seria, enfim, a negação da oposição imemorial da teoria e da prática, do conhecimento e da ação. Nos seus comentários aos poemas de Holderlin, Heidegger lembra por mais de uma vez que vivemos numa época de indigência, de aflição. Mas, tal como o poeta alemão, Heidegger parece estar a preparar-se para o advento de algo mais - um deus, deuses, diz ele por vezes - que nos traria a salvação. Nestas condições, a essência da técnica não é uma infelicidade que se teria abatido sobre o mundo, mas “uma tarefa para o pensamento”.

A partir daqui, o pensamento de Heidegger pode ter destinos diferentes, todos fundamentados em mal-entendidos fecundos. Podemos ver neste Ser misterioso e inefável, que escapa a todas as determinações, um objeto monstruoso que se esconde à reflexão e à razão humana, como pensa Adorno que lança uma crítica impiedosa ao que considera ser uma ideologia reacionária que seria camuflada pelo jargão da autenticidade de Heidegger. Pelo contrário, alguns filósofos americanos, como R. Rorty da corrente pragmatista, acreditam estar perante uma crítica da metafísica e das noções de verdade com afinidade

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admirável com o pragmatismo otimista de John Dewey e com a última filosofia de Wittgenstein.

Este, como muitos outros aspetos da teoria de Heidegger, promete perdurar por um tempo indeterminado, tão indeterminado, pelo menos, quanto algumas das suas ideias se mantêm obscuras ou ambíguas, pelo seu recurso frequente a uma linguagem metamorfoseada, poética mesmo muitas vezes.

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2 S E C Ç Ã O

Síntese

Escritor de linguagem difícil, o pensador alemão Martin Heidegger, que não acei-tava ser classificado entre os filósofos, marcou profundamente a ideologia contem-porânea. Os seus trabalhos são uma das origens do existencialismo de Sartre (mes-mo contra a sua vontade), e influenciaram a psicanálise (Jacques Lacan), a crítica literária e até deram origem a tentativas de síntese com o marxismo (Kostas Axe-los).

Martin Heidegger nasceu em 1889 em Messkirch, na região de Bade, onde pas-sou toda a sua vida. Estudante, depois doutor na Universidade de Friburgo, suce-deu em 1928 ao seu mestre Husserl. Nomeado reitor em 1933, assina um apelo a favor de Hitler, mas demite-se das suas funções em 1934 e observa seguidamente a maior reserva em relação ao nazismo. Morre em 1976.

O ponto de partida da sua meditação é a existência imediata, o “Dasein” (que se traduz por “estar-aí” ou “Ser presente”) A filosofia (incluindo aqui a de Husserl), como as ciências, procura evadir-se da temporalidade e fundar um ser, ultrapassan-do a existência histórica (ideia, matéria, sujeito transcendental, etc.). Todos dei-xam escapar a realidade humana, porque o Dasein não é nem um produto nem um simples “facto”, é intenção, “projeto”. O homem projeta-se para os possíveis.

Mas todos os possíveis remetem para a morte como possível último. Existir de modo autêntico é aceitar viver na temporalidade do seu destino de ser-para-a-mor-te. Quanto ao ser, não é objeto de conhecimento como o julgou a metafísica. Esta pode apenas escolher entre a teologia e o niilismo. Estes são os temas das primei-ras grande obras de Heidegger: “O Ser e o Tempo” (1927), “O que é a Metafísi-ca?” (1929).

A interrogação metafísica deve necessariamente ser posta no seu conjunto, conside-ra Heidegger. Deve-o ser, de cada vez, como nascendo da situação essencial da rea-

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lidade humana questionante. Somos nós quem interroga, aqui e agora, a nós pró-prios.

Martin Heidegger orienta-se em seguida para uma espécie de teologia poética. A existência é importante para apreender a realidade. É preciso esperar que o ser se nos revele. A sua verdade mostra-se de maneira enigmática na linguagem poéti-ca que toma o valor de uma revelação religiosa. As palavras perdem o seu papel de utensílios e são literalmente utilizadas pelo ser para nos manifestar a sua verda-de.

Ao contrário da poesia que revela o ser, a técnica moderna, verdadeiro remate do niilismo filosófico, revela o nada. Numa das suas últimas obras, traduzida em francês (“Questions III”), que reagrupa textos dos últimos vinte anos, Heidegger evita falar da técnica à maneira de “reação nostálgica”, mas pede que “a todo o momento conservemos a nossa distância em relação a ela”.

A obra de Heidegger, para além da modernidade dos seus temas, tende a reen-contrar a origem, reconduzir o pensamento ao estado mítico de onde saiu. Daí, a paixão que provoca. Objeto de um verdadeiro culto para uns, constitui, para ou-tros, a manifestação mais típica do obscurantismo contemporâneo. Talvez não me-reça o primeiro, e talvez não seja a segunda, mas tão só um filósofo que viveu o seu tempo com todas as ambiguidades que a vida proporciona.

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3 S E C Ç Ã O

Texto

Superar a Metafísica

Heidegger, M. (1958) Essais et conférences, Trad. do alemão para francês por A. Préau, Paris, Gallimard.

A superação da metafísica é pensada na sua relação com a história do ser. É um signo percursor que anuncia a compreensão do início do esquecimento do ser. Aquilo que se mostra no signo é anterior ao signo, embora mais em recuo do que ele. É o próprio advento. Aquilo que, para o pensamento metafísico, se apresenta como signo percursor de outra coisa já só conta como o simples brilho de uma iluminação mais original. A superação da metafísica só merece ser pensada quando se pensa na apropriação que supera o esquecimento do ser. Este pensamento insistente pensa ainda, ao mesmo tempo, na superação (da metafísica). Um tal pensamento apercebe-se dessa aurora única à qual responde a expropriação do ente, onde se esclarecem a angústia da verdade do ser e, por conseguinte, as primeiras emergências da verdade, e onde, num adeus, projetam uma luz sobre a condição humana. Ultrapassar a metafísica é libertá-la e devolvê-la à sua própria verdade.

Só podemos, desde logo, representar-nos a superação da metafísica a partir da própria metafísica: como se ela se concedesse a si mesma um novo patamar. Temos o direito neste caso de falar uma vez mais de “metafísica da metafísica”, assunto aflorado no estudo Kant e o problema da metafísica (publicado em 1929), onde tentámos um ensaio de interpretação do pensamento kantiano, que procede da crítica pura e simples da metafísica racional, considerando-a precisamente sob este ângulo. Deste modo, concede-se ao pensamento de Kant mais do que ele próprio podia pensar, tendo em conta os limites da sua filosofia.

Falar da ultrapassagem da metafísica pode significar também que “a metafísica” conserva o nome do platonismo, que se oferece ao mundo moderno na interpretação que deram dela Schopenhauer e Nietzsche. A reversão do platonismo, reversão segundo a qual as coisas sensíveis se tornam para Nietzsche o mundo verdadeiro e as coisas supra-sensíveis o mundo das ilusões, mantém-se completamente no interior da metafísica. Esta forma de

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ultrapassar a metafísica, em que Nietzsche se empenha, no sentido do positivismo do século XIX, marca somente, embora sob uma forma diferente, que já não conseguimos libertar-nos da metafísica. Parece, certamente, que o meta (em “metafísica”), a passagem por transcendência ao supra-sensível, tenha sido posto de lado a favor de uma instalação domiciliária no lado “elementar” da realidade sensível, enquanto o esquecimento do ser é simplesmente conduzido à sua realização e o supra-sensível, enquanto vontade de poder, é libertado e posto em marcha.

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4 S E C Ç Ã O

Notas

1hd P. Ricoeur, Du texte à l’action, p. 183; Richard Rorty, “Overcoming the Traditi-on”, Consequences of pragmatism, p. 37

2hd M. Heidegger, O Ser e o Tempo, ∬ 7, p. 38

3hd M. Heidegger, Lettre sur l’humanisme, pp. 61-69

4hd M. Heidegger, Lettre sur l’humanisme, p. 121

5hd M. Heidegger, Problèmes fondamentaux de la phénoménologie, p. 27

6hd M. Heidegger, Lettre sur l’humanisme, p. 69

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5 C A P Í T U L O

Ortega y Gasset

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A verdade, então, tem origem numa perspetiva, mas é possível apreendê-la, ainda que cada um a veja do seu ponto de vista exclusivo. Um copo de água nunca é visto exatamente igual pelos dois olhos, ou por mil, mas todos eles vêem um copo de água.

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1 S E C Ç Ã O

A Razão Vital

O raciovitalismo ou teoria da razão vital é uma conceção da racionalidade criada por Ortega y Gasset. Este autor que, como Nietzsche, critica a ditadura, no mundo ocidental, de uma razão abstrata de origem socrática, defende que não devemos aceitar nem o ponto de vista unilateral do vitalismo, nem o não menos unilateral ponto de vista do racionalismo. Isto é, não podemos reduzir o humano a um mero fenómeno biológi-co, mas muito menos podemos aceitar uma ra-zão que está para além da vida e a considera em função de si mesma. “A razão pura não pode su-plantar a vida: a cultura do intelecto abstrato não é, por contraposição à espontânea, uma outra

vida que se baste a si mesma e possa desalojar aquela. Não é mais do que uma breve ilha que flutua no mar da vitalidade primária. Longe de a poder substituir, tem de apoiar-se nela, alimentar-se dela como cada um dos membros vive do organismo inteiro”. Assim, a supera-ção do ponto de vista do idealismo realiza-se, segundo Ortega, partindo de um dado funda-mental que é o da “minha vida”, o da vida de cada um. Por outro lado, Ortega também se opôs à tese idealista - sobretudo kantiana - segundo a qual as coisas devem acomodar-se às funções do pensamento (como formas a priori do conhecimento). Com efeito, defende que, embora esta perspectiva tenha conduzido a bons resultados no estudo da realidade natural, fracassou completamente na busca de compreensão do ser humano, porque “o homem não tem natureza, mas só história”. Com esta tese, Ortega liga-se de algum modo à tradição do vitalismo que, desde Dilthey a Bergson, tinha destacado a impossibilidade de o método, utili-zado para o estudo da natureza, se adequar ao estudo da realidade humana. Seria necessá-rio voltar a pensar radicalmente fora dos esquemas do realismo e do idealismo.

Para Ortega, é preciso pensar a realidade realmente radical que é a vida, uma vez que quer a natureza quer o entendimento se referem a ela. Mas a razão capaz de pensar esta realidade radical - a vida - não pode ser a razão pura; não pode ser a razão mecânica, nem a razão físi-

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Ortega y Gasset

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co-matemática, mas a razão vital. Assim, e, de algum modo, num sentido idêntico ao de cer-tas posições defendidas pelo pragmatismo(1o), Ortega subordina o estudo da ciência, a técni-ca e a cultura, ao estudo geral e globalizante da vida, distanciando-se claramente das posi-ções contrárias que subordinam a vida à inteligência.

Esta posição sustenta que nenhum saber diz respeito diretamente às próprias coisas, mas à nossa atitude perante elas, e, portanto, Ortega recusa a crença num ser em si das coisas, in-dependente de nós. Consequentemente, afirma que o ser das coisas deve entender-se a par-tir da sua relação connosco. Por isso, concebe o saber como um saber a qué atenerse. Esta reivindicação da vida não deve entender-se à maneira irracionalista que advoga instintos ou impulsos obscuros, mas que a vida deve ser entendida como realidade radical, e o raciovita-lismo como uma teoria da realidade.

Nem Racionalismo, Nem Irracionalismo

Para Ortega y Gasset existe primazia da vida sobre a razão. Este é o seu lado do “vitalismo”. No entanto, este vitalismo, longe de se constituir em desprezo pela razão, é a constatação do seu caráter relativo, ou, em todo o caso, não absoluto. Para superar a oposição vitalismo/racionalismo, Ortega propõe o seu conceito de razão vital ou raciovitalismo. Deste modo, va-loriza a racionalidade, mas está consciente de que a racionalidade mergulha as suas raízes nas necessidades vitais, e coloca-a ao serviço da vida que é a realidade autenticamente radi-cal. “A minha vida” é o ponto de partida radical da filosofia.

Não é Possível Renunciar à Razão.

Todas as dimensões cognitivas do ser humano (razão, memória, entendimento, imagina-ção…) e as construções a que dão lugar (cultura, filosofia, ciência…) estão alicerçadas inevi-tavelmente na vida. Perante as formas radicais do irracionalismo, que negam a validade des-tas dimensões, Ortega, pelo contrário, considera-as legítimas, na justa medida em que se constituam como instrumentos que a própria vida utiliza para solucionar os problemas com que se defronta2. Não se pode viver sem crenças: elas salvam-nos do caos originário da vida. O mundo da cultura e da razão é a valsa, onde podemos navegar sem naufragar, evitan-do o naufrágio que é a própria existência; a razão é útil para a vida, o pensamento é “uma função vital, como a digestão ou a circulação sanguínea”, diz Ortega. A cultura e a razão têm uma dupla face: por um lado, na medida em que respondem à utilidade do sujeito, sendo a expressão das suas peculiaridades, são determinadas por leis subjetivas; no entanto, por ou-tro lado, distinguem-se de outras atividades vitais, como a digestão, porque a sua própria es-sência aspira à universalidade, à objetividade.

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O erro do irracionalismo consiste em esquecer esta dimensão fundamental da vida humana: o seu apetite pela objetividade, pela verdade, pela universalidade.

“… o mundo exterior não existe sem o meu pensá-lo, mas o mundo exterior não é o meu pensamento, eu não sou teatro nem mundo - sou frente a este teatro, sou com o mundo, somos o mundo e eu. E, generalizando, diremos: o mundo não é uma realidade subsistente em si com independência de mim - mas é o que é para mim ou perante mim e, para já, nada mais. Até aqui, caminhamos com o idealismo. Mas acrescentamos: como o mundo é somente o que me parece que é, será só ser aparente e não há razão nenhuma que obrigue a buscar-lhe uma substância por trás dessa aparência - nem a buscá-la num cosmos substante, como os antigos, nem a fazer de mim mesmo uma substância que leve sobre si, como conteúdos seus ou representações, as coisas que vejo e toco e cheiro e imagino. Este é o grande preconceito antigo que a ideologia atual deve eliminar. (…) Eu sou quem agora o vê, ele é o que agora eu vejo - sem ele e outras coisas como ele, o meu ver não existiria, isto é, não existiria eu. Sem objetos não há sujeito. O erro do idealismo foi converter-se em subjetivismo, em sublinhar a dependência em que as coisas estão de que eu as pense, da minha subjetividade, mas não se aperceber que a minha subjetividade depende também de que existam objetos. O erro foi fazer que o eu engolisse o mundo, em vez de os deixar a ambos inseparáveis, imediatos e juntos, mas, por isso, diferentes.

Necessitamos, pois, de corrigir o ponto de partida da filosofia. O dado radical do Universo não é simplesmente: o pensamento existe ou eu, pensante, existo; mas que se existe o pensamento existem, ipso facto, eu que penso e o mundo em que penso, e existe um com o outro, sem separação possível. Mas nem eu sou um ser substancial, nem o mundo tão-pouco - mas ambos somos em ativa correlação; eu sou o que vê o mundo e o mundo é o que é visto por mim. Eu sou para o mundo e o mundo é para mim. Se não há coisas que ver, pensar e imaginar, eu não veria, pensaria ou imaginaria - isto é, não seria.” (…)

O erro do racionalismo consiste em renunciar à vida, em inventar um sujeito alheio à realida-de concreta e histórica. Não existe a razão sem mais; nem o irracionalismo é possível: a ra-zão é vital, porque a história é um seu constituinte intrínseco.

O Raciovitalismo Aceita As Dimensões Irracionais Da Existência.

Ortega acredita que as dimensões irracionais da existência se manifestam, não só, no mundo da vida, mas também na própria matemática (os números irracionais, por exemplo) e nas ci-ências naturais (a própria noção de causa não é racionalmente justificável). O racionalismo terá tentado ocultar a dimensão irracional da existência. Pelo contrário, o raciovitalismo mos-tra que a ordem e a ligação entre as coisas do mundo da vida não coincide plenamente com a ordem e a ligação das nossas ideias, dos nossos pensamentos, da nossa razão.

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Razão, Sim; Racionalismo, Não.

Ortega não está contra o uso da razão. A sua crítica dirige-se contra o racionalismo, contra o exagero no uso da razão, daquela razão que desconhece os seus limites vitais e históricos, contra o desprezo pela vida concreta e pelas circunstâncias de cada um. Considera que to-das as teorias têm de ser racionais e conceptuais, mas, ao mesmo tempo, não podem igno-rar a vida. Aceita, portanto, a razão, mas não a identifica com a razão matemática, ou com a razão abstrata. A razão vital mostra que uma dimensão fundamental da vida é o “saber a qué atenerse”, é saber dar-se conta, sendo, portanto, impossível viver sem razão. A razão é um instrumento da vida para superar o caos originário da existência(3o).

A tragédia do idealismo radicava em que havendo transmudado alquimicamente o mundo em “subjecto”, em conteúdo de um sujeito, encerrava este dentro de si e, assim, não havia maneira de explicar claramente como, se este teatro é somente uma imagem minha e um pedaço de mim, parece tão completamente diferente de mim. (…) A consciência não é reclusão, mas, pelo contrário, é essa estranhíssima realidade primária, suposto de toda outra, que consiste em que alguém, eu, sou eu precisamente quando me apercebo de coisas, do mundo.

Mas - que é isto? Com que tropeçámos sem querer? Isso, esse facto radical de alguém que vê e odeia e quer um mundo e nele se move e por ele sofre e nele se esforça - é o que desde sempre se chama no mais humilde e universal vocábulo “a minha vida”. Que é isto? É, simplesmente, que a realidade primordial, o facto de todos os factos, o dado para o Universo, o que me é concedido é… a “minha vida”, - não eu sozinho, não a minha consciência hermética, estas coisas são já interpretações, a interpretação idealista. É-me dada a minha vida, e a minha vida é, acima de tudo, um achar-me eu no mundo. (…)

Portanto, o problema radical da filosofia é definir esse modo de ser, essa realidade a que chamamos a nossa vida. Pois bem, viver é o que ninguém pode fazer por mim - a vida é intransferível -, não é um conceito abstrato, é o meu ser individualíssimo”.

Qué es Filosofia?, en Obras completas, Revista de Occidente, Madrid 1966-69, pp. 401-404

Torna-se, então, necessário superar as posições tanto do subjetivismo quanto do idealismo:

Apesar de tudo, esta radicalidade da vida exige no homem um saber, que é saber de que dar-se conta, e este é o fundamento da razão para Ortega. A noção do saber de que dar-se conta (saber a qué atenerse) surge ligada a uma outra grande tese de Ortega y Gasset, a do perspetivismo e circunstancialismo: “yo no soy yo; yo soy yo y mi circunstancia”. Tomada fora do contexto, a fusão de uma razão vital como a descrita com o perspetivismo poderia dar lu-gar a uma concepção relativista. Mas esta não corresponde de forma alguma ao pensamento de Ortega, pois, para ele, essa fusão deve efetuar-se numa dimensão concreta, e a fusão da razão vital e do perspetivismo é-nos proporcionada pela história. Assim sendo, a razão vital

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constitui-se como razão histórica, já que o homem não tem natureza, mas história. Deste modo, Ortega supera o ponto de vista meramente biologista da racionalidade, que tão em voga esteve entre vários seguidores das correntes vitalistas da sua época.

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2 S E C Ç Ã O

A Questão do “Nosso Tempo”

Segundo Ortega, a modernidade baseia-se no conceito racionalista e idealista da subjetivida-de. O problema do nosso tempo é, então, a superação desse conceito e, com ela, a supera-ção do racionalismo e do idealismo, como propedêutica para a preparação de uma nova épo-ca.

Para Ortega, todo o tempo tem a sua missão e a sua tarefa. Quando os homens deixam de se preocupar com a missão e a tarefa do seu tempo, mantendo-se em formas espirituais do passado, não vivem à altura dos tempos. Considera que a época moderna e o espírito filosófi-co que a sustenta está em crise e que deve ser superada, através de novas crenças (convic-ções que “nos possuem a nós e que nós possuímos”, e que configuram a nossa visão do mundo e da realidade) e através de novas formas culturais e vitais. As crenças são as nossas convicções íntimas, aquelas que nos permitem saber de que devemos dar-nos conta, que nos permitem andar pela vida; as nossas crenças são as nossa cosmovisões, as nossas inter-pretações do mundo; se não as tivéssemos, ou melhor, se elas não nos tivessem a nós, sería-mos seres errantes em direção a lugar nenhum, a partir de sítio nenhum.

A superação do racionalismo e do idealismo não é uma questão meramente técnica, mas a aceitação do nosso próprio destino histórico.

Recordemos que o racionalismo e o idealismo defendem ambos o seguinte:

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☛ A razão é a dimensão básica do ser humano;

☛ A razão está acima das particularidades de cada homem, é atemporal;

☛ A razão a-histórica apresenta-se como o instrumento adequado para o desenvolvimento da filosofia4, da ciência, da moral e da política;

☛ O mundo é, então, o produto da razão, um dado da própria subjetividade. As coisas do mundo são conteúdos de consciência.

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Pelo contrário, para Ortega a razão deve submeter-se à vida, e não o inverso. Este é precisa-mente o tema, a que chama do “nosso tempo”. “Este é o estádio da evolução europeia que coincide com a nossa geração. Os termos do problema (…) aparecem numa posição rigorosa-mente inversa àquela em que se apresentaram ao espírito de Sócrates. O nosso tempo fez uma descoberta oposta à do seu tempo: ele surpreendeu a linha em que começa o poder da razão; a nós, é-nos dado ver, pelo contrário, o ponto em que termina. A nossa missão é, pois, contrária à sua. Através da racionalidade, voltámos a descobrir a espontaneidade. Isto não significa um retorno à ingenuidade primogénita, semelhante à que pretendia Rousseau. A razão, a cultura more geométrico5 é uma aquisição eterna. Mas é preciso corrigir o misticis-mo socrático, racionalista, culturalista, que ignora os seus limites, ou não deduz fielmente as consequências dessa limitação. A razão é simplesmente uma forma e função da vida. A cultu-ra é um instrumento biológico e nada mais. Se a cultura se coloca numa posição contrária à vida, transforma-se numa subversão da parte contra o todo. É urgente reduzi-la ao seu ofí-cio. O tema do nosso tempo consiste em submeter a razão à vitalidade. Dentro de poucos anos parecerá absurdo que se tenha exigido que a vida se pusesse ao serviço da cultura. A missão do tempo novo é precisamente inverter a relação e mostrar que é a cultura, a razão, a arte, a ética quem deve servir a vida.”(6)

O Historicismo: A Razão Histórica.

Ortega sempre defendeu que o “homem não tem natureza, tem história”. Opunha-se assim à concepção substancialista da realidade que se iniciou com a filosofia de Parménides e o seu conceito de ser. Segundo ele, a filosofia moderna entendeu a razão como uma razão pura (Kant), com muito de razão matemática (Descartes, Espinosa). A modernidade pensou que a racionalidade, assim entendida, seria a porta do progresso da humanidade, geradora de uma nova época. Este ideal de razão ilustrada permitiu compreender e dominar em boa medida o mundo natural. Mas esta mesma racionalidade não serviu para compreender o problema fun-damental do Homem, que é ele próprio. Poucos momentos históricos souberam tanto a res-peito do homem e, ao mesmo tempo, tão pouco. Por isso, do mesmo modo que Husserl criti-cava a razão científica como reducionista, assim também Ortega pensa que a razão moderna fracassou, pelo que seria necessário superar este tipo de racionalidade. Ela não falhou na sua tentativa de explicar a natureza das coisas, porque se apresenta como objeto, como su-cessão de objetos substancializados e susceptíveis de uma explicação matemática. Mas não conseguiu explicar o mundo propriamente humano, o próprio do homem, que não tem nature-za, mas tem história e que, como tal, não é objetivável nem matematizável de forma estática.

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Impõe-se, então, uma superação da razão substanciadora e matematizante, sem cair por isso no irracionalismo, por exemplo, de Nietzche. Para Ortega, a razão é um instrumento legí-timo e válido de explicação do real, mas não qualquer tipo de razão e, seguramente, não a razão objetivante. É necessário, segundo ele, propor uma razão histórica. Para o seu projeto de razão, Ortega propõe uma distinção interessante entre Explicar e Compreender.

Explicar - Uma coisa ou uma realidade é explicada quando conseguimos ter ideias claras e um conhecimento das leis físicas, ou de outro tipo, que expliquem o comportamento ou a causa de algo, como fazem as ciências positivas, empíricas e matemáticas. Esta racionalida-de explica o como de algo.

Compreender - Compreendemos algo quando compreendemos o sentido de algo e não so-mente as leis que o explicam. Esta racionalidade explica o porquê, a razão de ser, de algo. Ora, o mundo especificamente humano é o mundo do sentido do que o homem faz, dos seus costumes, das suas crenças, dos seus valores.

Uma coisa, com efeito, é explicar um fenómeno físico, como uma tempestade, pelas suas causas naturais, e outra é compreender o sentido dessa tempestade para os homens (como algo desejado, algo temido, um castigo dos deuses, uma bênção, etc.). Deste modo, o mun-do da explicação não anula nem esgota o mundo da inteligência do sentido para o homem. Daqui resulta o perspetivsmo de Ortega: uma tempestade não é vista de forma igual por to-dos os homens, nem é entendida do mesmo modo por todos, e isto independentemente de a explicação científica ser una e conhecida.

É, então, necessário pensar uma racionalidade que sirva para compreender o sentido do mundo do homem, que permita que compreendamos o próprio homem, coisa que não pode ser feita por uma razão supostamente pura que está privada de poder apreender o homem na sua realidade concreta e encarnada, no seu aqui e agora histórico, na sua singularidade. O homem não tem, pois, uma natureza que seja absolutamente uniforme em todos os seres humanos, mas o homem vai-se construindo a si mesmo na história, no seu fazer; o homem é essencialmente um ser do futuro. Torna-se necessário compreender, não só, a fisicalidade do ser humano, mas também a complexidade da sua própria biografia (a nível individual), assim como as circunstâncias em que o homem vive com os outros homens, com a sua vocação particular, e com o destino que une os homens aos homens do seu tempo e aos homens que os precederam no tempo.Por isso, não basta explicar as circunstâncias do passado, é tam-bém necessário compreendê-las. E, para isso, há que utilizar categorias adequadas e não re-ducionistas do humano, como faz, por exemplo, o materialismo dialético mono-explicativo. Se, por vezes, nos dá muito trabalho entender a nossa própria biografia, como poderemos

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entender as dos outros? Segundo Ortega, a compreensão dos outros desenvolve-se em du-as perspectivas:

O “outro” diferente de nós que tem as suas circunstâncias particulares que são suas em exclusividade;

No entanto, apesar das diferenças e particularidades individuais, o “outro” é também um homem como nós.

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3 S E C Ç Ã O

Eu Sou Eu e a Minha CircunstânciaNa sua obra Meditaciones del Quijote, escrita em 1914, já aparece a famosa frase que marca o talento filosófico de Ortega y Gasset. Esta frase implica algumas teses específicas:

A circunstância é o mundo vital do homem. A circunstância é tudo o que rodeia o homem, na medida em que ele a percebe como sua: a cultura, a sociedade concreta, a sua cultura espe-cífica, as suas crenças, etc. Para além destas “circunstâncias” exteriores à própria subjetivi-dade, Ortega acrescenta em algumas obras também tudo aquilo que é dado ao homem: o seu corpo, o seu caráter, o seu modo de ser, as suas qualidades e aptidões, etc.

O mundo é um dado originário. Contra o racionalismo cartesiano, Ortega defende que o dado é um dado imediato; o imediato não é só a consciência, mas também as nossas cir-cunstâncias: encontramo-nos sempre, como algo dado, instalados num mundo, com pesso-as concretas. Não existe em primeiro lugar a percepção da consciência, ou uma apercepção transcendental a que se acrescentariam (com dificuldades, segundo Descartes) as coisas ex-ternas. Pelo contrário: a consciência subjetiva do homem, o seu ser “eu” forma-se inevitavel-mente na sua relação com os outros e com o mundo. Não faz falta a tentativa (falhada) de Descartes de “fundamentar” a existência extramental dos outros homens, nem das coisas ex-tensas. A existência dos outros é um “a priori”, algo imediatamente dado, que não tem de ser deduzido de uma autoconsciência prévia.

O mundo extramental não é independente do eu. O mundo não é uma construção do eu, como pretendia o idealismo subjetivo. Mas também não existem coisas com completa inde-pendência do eu. O “mundo” não deve ser identificado, sem mais, com a Natureza; tão pou-co se identifica com o “cosmos”, conjunto ordenado do físico. O mundo é-o para o ser huma-no; o mundo é o que o ser humano percebe, com a sua perspectiva peculiar. O mundo nem sequer é “tudo o que é o caso”, como dissera Wittgenstein; o mundo é tudo aquilo que tem relação com o homem. O “ser” do mundo das coisas é um ser-para, um ser em relação com a vida, com a sua possibilidade de ser utilizado pelo homem. Poderá haver cosmos, poderá haver natureza, mas não haveria mundo se não fosse para um homem.

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O Perspetivismo De Ortega.

O perspetivismo é uma doutrina básica de Ortega y Gasset. Consiste em afirmar duas coi-sas:

Para Ortega, a unidade que engloba em si a natureza e o entendimento aparece-nos sempre em perspectiva. O ser do mundo não nos é dado, é sempre uma perspectiva. A perspectiva surge assim como uma condição epistemológica para captar a autêntica realidade: “onde está a minha pupila, não há nenhuma outra”. O eu e o mundo formam uma totalidade concre-ta e indivisa, cujo núcleo é a vida do homem. A vida humana não é coisa, nem matéria, nem essência, nem é algo dado; o homem não é uma res cogitans, mas uma res dramatica: um drama, uma unidade dramática de eu e mundo, isto é, do eu e da sua circunstância7. Não existe porque pensa, pensa porque existe. Deste modo, inverte-se o ponto de partida cartesi-ano, e o centro de gravidade da reflexão filosófica encontra-se no pré-reflexivo que é a pró-pria vida: “viver é não ter outro remédio senão arrazoar diante da inexorável circunstância”. Mas, embora o ser do mundo seja perspectiva e o eu circunstancial, isso não significa a defe-sa do mero relativismo. Ortega tenta conciliar a multiplicidade de perspectivas na unidade da verdade, o que o conduz à reflexão sobre a história. Por isso, a razão vital é sobretudo razão histórica, já que a circunstância é sempre circunstância histórica concreta, e o eu é sempre um ser que se encontra no mundo, que se caracteriza pela sua temporeidade. Por outro lado, o eu é um projeto, uma futurização, na sua circunstância concreta.

Se a perspetiva é a construção de uma imagem em função do ponto de vista do observador, o perspetivismo, como concepção filosófica, supõe que toda a representação é dependente do sujeito que a constitui. Na história da filosofia, este termo associa-se geralmente a Niet-zche e, mais apropriadamente, a Ortega y Gasset. Em certo sentido, a “monadologia” de Leibniz é também um perspetivismo (cada mónada é uma perspectiva única do universo). A realidade oferece-se, pois, em perspectivas individuais. O ser do mundo não nos é dado de

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☛ Que todo o conhecimento está ancorado sempre num ponto de vista, numa situação concreta, numa circunstância;

☛ Que, na sua própria essência, a própria realidade é multiforme, atendendo à pluralidade de pontos de vista.

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uma vez por todas, mas é sempre uma perspectiva que surge como uma condição epistemo-lógica para captar a autêntica realidade, uma vez que cada vida pessoal é um ponto de vista sobre o universo.

“De diferentes pontos de vista, dois homens observam a mesma paisagem. No entanto, não vêem o mesmo. A situação distinta faz com que a paisagem se organize diante de ambos de maneira distinta. O que, para um, ocupa o primeiro plano e mostra com vigor todos os seus detalhes, para outro, fica em segundo plano e mantém-se obscuro e apagado. Para além dis-so, como as coisas postas umas atrás das outras se ocultam no todo ou em parte, cada um deles perceberá porções de paisagem que não chegam ao outro. Faria sentido que cada um declarasse falsa a paisagem do outro? Não, evidentemente: tão real é uma como a outra. Mas tão pouco faria sentido que, concordando entre eles que as suas paisagens não eram coincidentes, as julgassem ilusórias. Isso levar-nos-ia a supor que haveria uma terceira paisa-gem autêntica, que não se teria submetido às mesmas condições das outras duas. Ora bem, essa paisagem arquétipo não existe nem pode existir. A realidade cósmica é de tal ordem que só pode ser vista sob uma determinada perspectiva. A perspectiva de um dos compo-nentes da realidade, longe de ser a sua deformação, é a sua organização. Uma realidade que, vista de qualquer ponto resultasse sempre idêntica, é um conceito absurdo.

O que acontece com a visão dos olhos acontece igualmente em tudo o resto. Todo o conheci-mento o é de um ponto de vista determinado. A species aeternitatis, de Espinosa, o ponto de vista ubíquo, absoluto, não existe propriamente: é um ponto de vista fictício e abstrato. Não temos de duvidar da sua utilidade instrumental para certos misteres do conhecimento; mas não devemos esquecer que, a partir dele, não se vê o real. O ponto de vista abstrato só pro-porciona abstrações. (…)

Cada vida é, então, um ponto de vista sobre o universo. Em rigor, o que ela vê não o pode ver outra. Cada indivíduo - pessoa, povo, época - é um órgão insubstituível para a conquista da verdade. (…)

O erro inveterado consistia em supor que a realidade tinha por si só, e independentemente do ponto de vista que sobre ela se tomasse, uma fisionomia própria. Pensando assim, é cla-ro, toda a visão dela a partir de um ponto determinado não coincidiria com esse seu aspecto absoluto, e, portanto, seria falsa. Mas dá-se o caso de que a realidade, como uma paisagem, tem infinitas perspectivas, todas elas igualmente verídicas e autênticas. A única perspectiva falsa é essa que pretende ser a única”(8).

Este perspetivismo permite a Ortega superar tanto o cepticismo como o racionalismo. Para além disso, a perspectiva não tem origem num ponto de vista abstrato, já que o eu não é

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algo dado, mas uma unidade dramática de eu e mundo, isto é, do eu e da sua circunstância. A circunstância e a perspectiva articulam-se permitindo o acesso à verdade; o ponto de arti-culação é proporcionado pela história. Por isso, o perspetivismo de Ortega conduz, a partir de uma razão vital (o raciovitalismo) a uma razão histórica, uma vez que a circunstância é sempre circunstância histórica concreta, e a perspectiva é a de um eu que parte dessa cir-cunstância.

Também Nietzche (embora mais radicalmente, numa perspectiva subjetivista, a que Ortega se opõe) defende uma posição perspetivista, que concebe como articulação entre conheci-mento e necessidades vitais. Esta tese fundamenta-se numa concepção: do ser como devir (no qual não existem verdades absolutas, pois toda a verdade é interpretação), e do conheci-mento como a sua união com as necessidades vitais.

Outros autores, como Merleau-Ponty e Samuel Alexander, também defenderam teses perspe-tivistas muito semelhantes à de Ortega y Gasset.

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4 S E C Ç Ã O

Síntese

Em Síntese

O perspetivismo de Ortega y Gasset dirige-se:

Contra o objetivismo da verdade, entendida como dogmatismo, que defende que existe a verdade, que é una, que é a mesma para todos os homens e que deve ser entendida em ter-mos idênticos por todos.

Contra o subjetivismo. Para o subjetivismo, não haveria um acordo possível entre os sujei-tos, pois a percepção da verdade seria exclusivamente a de cada um

Enquanto o objetivismo considera que o sujeito deve adaptar-se à coisa ou objeto, que é inal-terável e sempre o mesmo, o subjetivismo acha o contrário: toda a percepção é subjetiva e não é possível objetividade alguma. O destino do subjetivismo é um relativismo quase solip-sista.

Ortega afirma que é preciso superar ambas as perspetivas. O objetivismo falha ao esquecer que qualquer percepção repousa num ponto de vista peculiar: a perspetiva é algo intrínseco à realidade humana, pelo que a percepção da realidade não é unívoca, mas múltipla. O subje-tivismo, segundo ele, falha ao considerar que as perspectivas particulares são irreconciliáveis entre si. É aí que falha precisamente: a perspetiva falsa é aquela que clama ser a única pers-pectiva verdadeira.

A verdade, então, tem origem numa perspetiva, mas é possível apreendê-la, ainda que cada um a veja do seu ponto de vista exclusivo.

Um copo de água nunca é visto exatamente igual pelos dois olhos, ou por mil, mas todos eles vêem um copo de água.

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Notas

1 “Não se confunda a escassa estima que merece o pragmatismo como filosofia e tese geral com um desdém preconcebido, arbitrário e beato para com o facto do praticismo humano, em benefício da pura contemplação. Aqui tentamos torcer o pescoço a toda a beatice, inclusive à beatice científica e cultural que se extasia dian-te do puro conhecimento sem dele fazer uma questão dramática”. Qué es Filosofia?, 1993

2 “...Antes de ser físico, ele é homem e, ao sê-lo, preocupa-se com o Universo, isto é, ele filosofa - melhor ou pior - técnica ou espontaneamente, de modo culto ou sel-vagem. (…) Resulta esta (a raiz da filosofia), portanto, não da meta-física, mas da ante-física. Nasce da própria vida e, (…), esta não pode evitar, ainda que de modo muito elementar, filosofar”. Qué es Filosofia?, 1993

3 “A filosofia não brota por ser útil, mas tão-pouco pela acção irracional de um de-sejo veemente. É constitutivamente necessária ao intelecto”.

4 Para Ortega, a filosofia é o conhecimento radical do mundo, de tudo o que exis-te, do cosmos. A prática da vida filosófica leva o homem à descoberta da vida como realidade primordial.

5 Seguramente uma referência, não explícita, sobretudo a Espinosa.

6 El tema de nuestro tiempo, en Obras completas III, Revista de Occidente, Madrid 1966-69, pp. 177-178

7 A “circunstância”, para Ortega é como o “mundo”: trata-se do conjunto de reali-dades em que o homem se situa e que determinam as suas possibilidades existenci-ais e vitais, e o seu destino.

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8 El tema de nuestro tiempo, em Obras completas, Revista de Occidente, Madrid 1966-1969, vol. III, pp. 199-201

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7 C A P Í T U L O

Habermas

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“Somos assim levados a comparar o processo de socialização na história humana ao do indivíduo (...) são as mesmas forças que empurram o indivíduo para a neurose e que levam a sociedade a estabelecer instituições.”

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1 S E C Ç Ã O

O Debate Livre

Jurgen Habermas foi, nos anos cinquenta, assistente de Adorno e, em 1964, ocupou a cadeira O Livre de Horkheimer em Frank-furt. A teoria crítica de Adorno e de Horkheimer, nomeadamente na Dialética da Razão, empenhava-se em analisar, da forma o mais lúcida possível, todos os mecanismos de alienação e de dominação da sociedade ocidental, em particular os mecanismos psi-cológicos e culturais. No final de contas, era a Razão do século das Luzes, ela própria,

que estava a ser considerada pervertida em instrumento de dominação, em razão puramente instrumental e calculista. Habermas procura sobretudo, sem negar esta dimensão ultra-crítica, encontrar uma teoria da emancipação humana pelo livre debate que, por vezes, parece uma reativação do pensamento kantiano.

Trata-se, como foi dito, de “levar a sério as potencialidades da democracia bur-guesa” (1h) sem negligenciar as suas manipulações atuais e sem renunciar à noção de ideologia. Este ambicioso projeto de defesa da modernidade das Luzes foi amor-tecido pela crítica do positivismo em Conhecimento e interesse (1968), uma arqueologia do saber que se situa nos antípodas da de Foucault, pois é sua intenção “reconstru-ir a pré-história do positivismo moderno” e do cientismo, apresentando-os como a negação e o esquecimento da reflexão e da sua dimensão crítica. (2h)

Habermas empenha-se, então, numa auto reflexão crítica que “muda a vida”, tanto no plano individual quanto no coletivo. Nesse período, adotando uma pers-petiva de espírito anarquizante, escreve: “Somos assim levados a comparar o pro-cesso de socialização na história humana ao do indivíduo (...) são as mesmas forças

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Jurgen Habermas

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que empurram o indivíduo para a neurose e que levam a sociedade a estabelecer instituições.” (3h)

Habermas, a partir dos anos 70, vai mudar de perspetiva graças à descoberta dos trabalhos de Austin, de Searle e de outros, e descobrir um potencial crítico no seio da linguagem comum e da comunicação intersubjetiva. A teoria dos atos de linguagem apresentada como uma “pragmática universal” (4h) vai, portanto repre-sentar para Habermas - que dá, deste modo, um exemplo bastante raro de abertu-ra real a uma outra tradição de pensamento - uma verdadeira mudança de para-digma, uma revolução nas formas de abordar as relações entre a ação e a teoria: passamos com efeito de uma filosofia da consciência que só se entrega a uma argu-mentação “monológica”, conduzida em pensamento no foro íntimo, seguindo o tipo de meditação cartesiana, para uma filosofia pragmática da linguagem que tem em conta a dimensão irredutível da comunicação e do debate num espaço pú-blico, que constituem uma atividade, o agir comunicacional distinto da atividade instrumental.

Esta nova conceção encontra a sua tradução provisória nos dois volumes da am-biciosa Teoria do agir comunicacional (1981) e nos textos que a acompanham.

A teoria do “agir comunicacional” não releva propriamente nem da filosofia nem da sociologia empírica: o debate incide sobre os fundamentos teóricos das ci-ências sociais e em particular da sociologia - “teoria global da sociedade” - que Ha-bermas quer afastar do positivismo. Em vez de ser uma descrição neutra dos fac-tos sociais, dos comportamentos, a sociologia, pelo uso que faz da noção de racio-nalidade, fundamenta-se numa compreensão que compromete o observador, pelo menos virtualmente, num processo de intercompreensão. Não conseguimos descre-ver um comportamento sem mostrar a sua racionalidade própria, portanto sem to-mar partido perante uma “pretensão à validade”.

Para Habermas, existem dois tipos de racionalidade: a racionalidade instrumen-tal e estratégica que é dirigida para um objetivo, que busca o sucesso através do emprego de meios apropriados, e a racionalidade comunicacional que investiga, pelo contrário, o entendimento e a concordância entre sujeitos capazes de agir e de falar, com vista a uma ação comum. “Um acordo obtido pela comunicação, es-

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creve Habermas, tem um fundamento racional, não pode ser imposto”, e acrescen-ta que “a intercompreensão é inerente à linguagem humana.” (5h) esta racionalida-de comunicacional apoia-se “na força sem violência do discurso argumentativo.” (6h) Neste caso, não procuro agir sobre o mundo dos objetos, nem manipular os outros; cada um procura, reconhecendo as pretensões dos outros e criticando-as,al-cançar esta “intercompreensão” ou entendimento, sem o qual não há ação coleti-va.

É neste ponto da sua abordagem que Habermas é realmente original, recorren-do aos contributos dos filósofos anglo-saxónicos, sobretudo os que se deixaram in-fluenciar pelo último Wittgenstein e que, contrariando a tradição empirista, põem em relevo o aspeto performativo da linguagem, que não se reduz a enunciados ver-dadeiros ou falsos sobre as coisas e que se baseiam em “atos de linguagem”, atra-vés dos quais ordenamos, afirmamos, prometemos, exprimimos, etc. Cada enuncia-do, por mais neutro ou objetivo que seja na sua aparência, insere-se numa ação, estabelece uma comunicação intersubjetiva, exibe uma pretensão à validade (à ver-dade, à justiça social, à autenticidade subjetiva) que sugere uma atitude crítica; cada enunciado faz apelo a “um bastidor” (Searle), a um contexto, a um mundo vivido comum aos interlocutores (7h).

A descoberta desta racionalidade comunicacional negligenciada pela sociologia anterior corresponde, para Habermas, a uma mudança de paradigma na filosofia, a uma viragem. Em lugar da tradição cartesiana aparece uma conceção nova fun-dada na comunicação, na relação intersubjetiva instaurada por “sujeitos capazes de falar e de agir quando se entendem entre si sobre alguma coisa”(8h).

No entanto, Habermas não vai tão longe quanto alguns anglo-saxónicos que pretendem ter encontrado novos fundamentos racionais para a ética, muito ao jei-to de Kant, como Apel, por exemplo. A sua perspetiva mantém-se sociológica, ou, por outras palavras, só concebe a reflexão filosófica numa cooperação com as ciên-cias sociais, desde que estas “não se afastem do saber pré-teórico de sujeitos que fa-lam e agem” (9h) e desde que renunciem ao objetivismo positivista. Mas é claro que a descoberta da racionalidade comunicacional dá a Habermas uma espécie de padrão, a partir do qual pode julgar as distorções e os disfuncionamentos da co-municação nas sociedades ocidentais, nos meios de comunicação social, no ensino,

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na vida quotidiana, no trabalho. Esta descrição crítica da “colonização do mundo vivido” permite-lhe referir-se ao ideal de uma comunicação transparente sem ma-nipulação, sem preconceitos, sem doutrinação (10h). Este critério adquire todo o seu valor numa época em que, como Habermas diz numa entrevista (11h), os do-mínios específicos do mundo vivido - o mundo escolar, familiar, a cultura, a vida quotidiana - estão de forma crescente submetidos a imperativos administrativos, à manipulação dos meios de comunicação social e ao poder do dinheiro.

Habermas encara assim a hipótese (só em forma de projeto) de fundar racional-mente uma ética do debate. Contra as diferentes concepções segundo as quais não se pode decidir racionalmente sobre questões práticas nem fundamentar racional-mente as normas que nos regem. Habermas apoia-se no testemunho das práticas da linguagem comum. Estas mostram que, ao lado das pretensões à verdade, exis-tem pretensões práticas à justiça que se referem às normas. Nós cultivamos preten-sões tanto à verdade dos nossos enunciados como à justeza das nossas normas de ação. Nos dois casos, pensamos implicitamente que temos boas razões para dizer o que fazemos e para fazer o que dizemos.

Os céticos, desde Hume, negligenciam estas pretensões à validade, pois julgam que não podem ser fundamentadas. Habermas pergunta-se, portanto, em que con-dições uma norma que diz o que devemos fazer pode ser considerada como váli-da. John Rawls, na sequência de Kant, afirmou que uma norma é válida quando é universalizável, quando exprime uma vontade geral geral, um interesse comum. Este princípio de universalização é para Habermas um “princípio-ponte” que per-mite passar do mundo dos valores concretos - necessariamente diversos - para o das normas justas válidas para todos. Trata-se, portanto, de uma primeira etapa, à qual Habermas acrescenta uma nova questão: em que é que a universalização pos-sível de uma norma faz dela uma norma moral?

Para justificar o princípio kantiano de universalização sem ter de se referir a uma Razão humana, para mostrar que este princípio tem, ele próprio, um valor universal que ultrapassa a cultura “ocidental”, Habermas, na sequência do segun-do Wittgenstein, vai atualizar os pressupostos de toda a argumentação, as quais não são nem convenções arbitrárias, nem regras explícitas (como as regras do jogo). Por exemplo, a ideia de imparcialidade está enraizada nas estruturas da ar-

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gumentação (12h). Sabemos por um saber implícito em que condições podemos forjar uma convicção correta: num debate livre no seio do espaço público, sem in-tervenção exterior, sem pressão e sem violência. Uma norma ética só é válida se for universalizável, e ela só pode ser universalizável se for objeto de um debate li-vre, no quadro do agir comunicacional que tende para o entendimento entre os atores, por oposição à atividade estratégica na qual cada um só busca o seu suces-so. Habermas não propõe normas efetivas; não defende valores. Formula um prin-cípio formal que não define nenhuma moral concreta, mas resiste ao ceticismo. “só podem pretender à validade normas que sejam aceites (ou possam sê-lo) por todas as pessoas envolvidas na qualidade de participantes no debate.”

Talvez seja isto que torna difícil o pensamento de Habermas: a reunião parado-xal de uma utopia e de um método, a tensão entre um ideal sempre presente e os tempos do debate, a diferença entre a compreensão e o debate. A utopia, define-a ele próprio atribuindo-lhe uma origem religiosa, ou mesmo mística: o desejo de “uma via comum fundada na amizade” (Brecht), a reconciliação da modernidade desfigurada por si mesma, o ideal de uma “interação conseguida” (de sucesso). O método, por seu turno, baseia-se na “síntese argumentativa” que se apropria incan-savelmente da linguagem dos outros, que avança passo a passo, de resumos para esquemas, como o “trabalho de um puzzle em construção”.

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2 S E C Ç Ã O

Texto

O conceito de Racionalidade Comunicacional

Habermas, J. (1969) Prolégomènes et compléments à la théorie de l’action communicationelle, Trad. do alemão para francês por J. Lacoste, Paris, PUF, p. 604

A teoria do agir comunicacional é concebida para responder às necessidades da teoria social; mas, se o programa que esbocei na segunda Consideração intermediária pode ser levada a bom termo, essa teoria tem consequências para a resolução dos problemas filosóficos. Ela comporta, antes de mais, uma contribuição para a teoria do significado.

Ao desenvolver certas ideias da teoria semântica da verdade, a pragmática formal reporta a compreensão de uma enunciação que se concretiza segundo regras linguísticas determinadas, com conhecimento das condições gerais que devem ser respeitadas para que um ouvinte possa aceitar uma enunciação. Nós compreendemos um ato de linguagem quando sabemos o que o torna aceitável. Do ponto de vista do locutor, essas condições de aceitabilidade são idênticas às condições do seu sucesso locutório. A aceitabilidade não é definida num sentido objetivista, a partir do ponto de vista de um observador, mas em função de posição performativa da pessoa que participa na comunicação.

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3 S E C Ç Ã O

Notas

1h C. Bouchindhomme, in J. Habermas, Morale et Communication, p.10

2h Cf. P. Ricoeur, Du Texte à l’action, p. 333

3h J. Habermas, Connaissance et intérêt, p.307

4h J. Habermas, Logique des sciences sociales, p.329

5h J Habermas, op. cit, 1h, p. 297

6h J. Habermas, o. cit., 1h, p. 27

7h J. Habermas, op. cit. 1h, pp. 337 e 345

8h J. Habermas, op. cit. 1h, p.95

9h J. Habermas, op. cit. 4h, p. 440

10h J. Habermas, op, cit. 1h, p. 395

11h “Dialectique de la rationalisation”, entrevista com J. Habermas, les Cahiers de philosophie, nº 3, Lille, 1987, p. 81

12h J. Habermas, Morale et communication, p. 97

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8 C A P Í T U L O

Popper

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É, sem dúvida, difícil, à primeira vista, compreender como é que a verdade científica pode ser definida pelo seu caráter falível.

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1 S E C Ç Ã O

A Abertura do Pensamento

Nascido em Viena em 1902, publicou a sua Logik der Forschung (A Lógica da descoberta cientí-fica) em 1934, numa coleção inspirada pela “conceção científica do mundo” do Círculo de Viena. Mas o seu percurso é completa-mente diferente e, na sua notável autobio-grafia intelectual (Busca inacabada: autobiogra-fia intelectual) (conf. texto), Popper quase se vangloria de ter “liquidado” o positivismo lógico. No início, com efeito, Popper procu-

ra um critério que permita distinguir a ciência autêntica, a física de Newton corri-gida por Einstein, das teorias com pretensão científica que ocupam o lugar cimei-ro na Áustria dos anos vinte: o marxismo, a psicanálise, a psicologia de Adler. Co-loca, assim, a questão da demarcação entre a ciência e as pseudo-ciências. A conce-ção empirista da ciência, exposta no início do século XVIII por Francis Bacon, re-tomada por Ernst Mach e pelos seus discípulos do Círculo de Viena, defendia que o único método científico era o indutivo, portanto, que parte dos factos para as leis através da generalização. Uma teoria só deve a sua existência e a sua validade a ex-periências repetidas.

Ora, a astrologia, ciência falsa por excelência, arranja sempre forma de ser con-firmada pelos factos, e as suas predições assemelham-se às que têm origem na fé em profecias de vez em quando verificadas. Curiosamente, e de forma algo pertur-badora, foi, inspirando-se na tradição astrológica da influência dos planetas, que Newton foi conduzido à teoria da gravidade. Popper vai, portanto, propor uma conceção nova do percurso científico que vai tornar menos restrita e menos brutal a separação entre os enunciados científicos e os enunciados metafísicos, traçando ao mesmo tempo uma linha de demarcação muito nítida entre as verdadeiras ciên-

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Karl Popper

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cias, feitas de conjeturas submetidas deliberadamente à refutação eventual dos fac-tos, e as falsas ciências “irrefutáveis” ou “não falsificáveis”. Estas falsas ciências são, com efeito, doutrinas que, porque pretendem deter a verdade pura, não acei-tam ser um dia “falsificadas”, isto é, refutadas pela experiência.

É, sem dúvida, difícil, à primeira vista, compreender como é que a verdade ci-entífica pode ser definida pelo seu caráter falível. Na conceção de Popper, tudo o que agora sabemos sobre o ADN ou sobre a evolução será um dia refutado ou reti-ficado, tal como a Física de Newton foi retificada e completada pelas teorias da re-latividade. Todavia, estes conhecimentos são os únicos conhecimentos verdadeiros que conseguimos obter. A tese de Popper não é, então, nem trivial nem cética: con-siste em dizer que todo o conhecimento é, ao mesmo tempo, objetivamente verda-deiro, e conjetural, portanto refutável. Enquanto o cético suspende o juízo diante de duas teorias de igual valor, com a mesma força, Popper afirma que uma teoria pode ser mais verdadeira do que outra, sem que se possa dizer que a verdade foi completamente desvendada. Os empiristas defendem que uma teoria tem uma probabilidade acrescida quando se apoia na repetição de experiências. Popper in-troduz o conceito, completamente diferente, de verosimilhança, para designar este grau de aproximação à verdade. Ora, a hipótese que está mais próxima da verda-de, nesse sentido, é justamente aquela que é menos provável, a mais audaciosa, a menos verosímil para o senso comum. Basta pensar nas teses pré-socráticas sobre o atomismo, o heliocentrismo, etc.

Com Popper, a ciência volta a ser uma aventura intelectual que coloca proble-mas metafísicos sempre novos, mantendo-se submetida ao controlo da experiên-cia. A “falsificação” substitui, assim, a verificação positivista. Não dispomos de cri-térios da verdade e esta situação incita-nos ao pessimismo. Mas possuímos muitos e bons critérios que, com alguma sorte, podem permitir-nos reconhecer o erro ou a falsidade .

Esta conceção aberta e pluralista do conhecimento tem prolongamentos interes-santes na tese dos três mundos, que Popper expõe nos três volumes do PostScript to the Logic of Scientific Discovery, dos quais, o segundo foi traduzido em francês (L'Uni-vers irrésolu - plaidoyer pour l'indéterminisme, Post-scriptum à la logique de la découverte scientifique T2, Renée Bouveresse-Quilliot). Três mundos, com efeito, comporiam

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o universo, três mundo relativamente autónomos mas em interação. O mundo 1 seria o mundo da física, da matéria, isto é, um mundo complexo de forças. O mun-do 2 começaria com as sensações animais. É o mundo dos estados de consciência e dos processos subconscientes, domínio da psicologia. Enfim, o mundo 3 aglutina-ria as produções do espírito humano, os problemas, as teorias e as argumentações. Este mundo adquire, graças à linguagem, uma realidade objetiva; tem as suas pró-prias leis, que nem as forças da natureza, nem os processos subjetivos da consciên-cia podem explicar.

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Texto

Não há indução

Popper, K. (1981) La Quête inachevée, Trad. do inglês por Bouveresse, Paris, Calmann-Lévy, p. 122

Não posso, de modo nenhum, fazer aqui um esboço desse esboço em que se transformou o meu primeiro livro publicado. Mas há um ou dois argumentos de que gostaria de falar. Esse livro devia fornecer uma teoria do conhecimento e, ao mesmo tempo, conter um tratado sobre o método - o método da ciência. Esta combinação era possível porque, na minha opinião, o conhecimento humano resultava das nossas teorias, das nossas hipóteses e conjeturas. (...) Há, evidentemente, uma outra forma de conceber o “conhecimento”: podemos representá-lo como um estado de espírito subjetivo, o estado subjetivo de um organismo. Mas eu decidi estudá-lo como um sistema de enunciados, como teorias submetidas a debate. O conhecimento é, neste sentido, objetivo; e é hipotético e conjetural.

Esta forma de considerar o conhecimento deu-me a possibilidade de reformular o problema da indução de Hume. Nesta reformulação objetiva, o problema da indução já não diz respeito às nossas crenças - ou à racionalidade das nossas crenças - mas à relação lógica entre enunciados singulares (descrições de factos singulares “observáveis”) e teorias universais.

Sob esta forma, o problema da indução torna-se solúvel: não há indução, porque as teorias universais não são dedutíveis de enunciados singulares. Mas podemos refutá-las através de enunciados singulares, pelo facto de elas poderem chocar com descrições de factos observáveis.

Mais, podemos falar de teorias “melhores” ou “piores” num sentido objetivo, antes mesmo de as ter posto à prova: as melhores teorias são aquelas que têm um conteúdo mais rico, um maior poder explicativo (sendo estes dois critérios relativos ao problemas que tentamos resolver). São também, conforme demonstrei, as teorias melhor testáveis; e - se elas resistirem aos testes - aquelas que são mais bem testadas.

Esta solução do problema da indução deu nascimento a uma nova teoria do método da ciência, a uma análise do método crítico, o método de tentativa e erro: aquele que propõe hipóteses audaciosas, que as expõe à crítica mais severa, para detetar o erro.

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Do ponto de vista desta metodologia, começamos o nosso estudo com problemas. Encontramo-nos sempre numa situação problema (problem situation); e escolhemos um problema que esperamos ser capazes de resolver. A solução, sempre uma sugestão, consiste numa teoria, numa hipótese, numa conjetura. As diversas teorias em conflito são comparadas e submetidas a exame crítico para detetar os seus defeitos -, e os resultados sempre em mudança, nunca conclusivos, desses exames críticos constituem o que se pode chamar “a ciência do dia”.

Assim, não há indução: nunca argumentamos de factos para teorias, a não ser através da refutação ou da “falsificação”. Esta visão da ciência pode ser definida como seletiva, ou darwiniana. Pelo contrário, as teorias do método que afirmam que procedemos por indução ou que insistem na verificação, de preferência à falsificação são tipicamente lamarckianas.

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A distinção, capital para o positivismo lógico, entre a verdade científica e o erro, a superstição e o mito, perde nitidez quando se tem em conta a génese e a morte das teorias científicas.

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Revoluções Científicas

Thomas S. Kuhn pôs em evidência na Estrutura das Revoluções Científicas (1962) o caráter descon-tínuo da história das ciências da natureza (as-tronomia, física, química, biologia). A distin-ção, capital para o positivismo lógico, entre a verdade científica e o erro, a superstição e o mito, perde nitidez quando se tem em conta a génese e a morte das teorias científicas. Longe de constatar um pacífico processo de acumula-ção de conhecimentos e uma progressiva elimi-

nação das conceções erradas, observa-se que conceções opostas da natureza, todas compatíveis de facto com um método de observação, mas “incomensuráveis” en-tre si, fazem-se concorrência na origem de cada ciência e sucedem-se na história. Kuhn descreve, inicialmente, a “ciência normal”. Esta ciência normal é consigna-da nos manuais e nos livros didáticos; caracteriza-se pela existência de uma comu-nidade de investigadores que trabalham sobre um conjunto de problemas que têm entre si um “ar de família”, segundo a expressão de Wittgenstein. As teorias e mé-todos expostos nos textos clássicos e nos manuais servem de paradigmas para a ati-vidade científica, isto é, servem de “exemplos reconhecidos de trabalho científico real”, e dão origem a tradições científicas que estimulam e, ao mesmo tempo, limi-tam a reflexão dos investigadores. Mas estas tradições científicas paradigmáticas sucedem-se na história, refutando-se umas às outras (1).

A ciência normal apresenta-se, com efeito, em certos momentos, como incapaz de resolver as anomalias e os enigmas que enfrenta. A comunidade científica não encontra no paradigma dominante as respostas às questões que podem surgir. A ciência normal entra, então, em crise quando se encontra na necessidade e na obri-gação de renovar os seus utensílios ou instrumentos, de substituir algumas crenças

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e alguns procedimentos. Mas uma teoria que se situa no quadro de um paradigma só é substituída por uma outras teoria que seja capaz de se enquadrar num novo paradigma, isto é que se situe ao mesmo nível (neste aspeto, Kuhn diverge de Po-pper e da sua teoria da falsificação). Os factos, por si sós, não bastam para refutar uma teoria, se esta estiver instalada numa posição dominante. “Rejeitar um para-digma é sempre, simultaneamente, decidir aceitar outro” (2). Enquanto não surge a nova teoria que servirá de paradigma, a comunidade científica contentar-se-á com teorias ad hoc, adaptadas só ao caso em questão, e multiplicará os arranjos cada vez mais complexos da teoria em declínio. De facto, a ciência normal, que é uma tradição, não pode, por si só, corrigir o paradigma de que depende; o novo paradigma só pode, portanto, impor-se na ocasião de uma crise muitas vezes dolo-rosa. A inovação teórica que vem resolver provisoriamente esta crise não não con-segue completar o edifício já construído da disciplina acrescentando um piso. Ela destrói e arrasa estaleiros e edifícios inteiros antes de reconstruir um novo edifício com um outro estilo e um novo projeto. Após a descoberta do oxigénio, cerca de 1777, Lavoisier (1743-1794) trabalhou, diz Kuhn, num mundo novo, diferente da-quele que podiam ver os químicos que ainda procuravam o mítico “flogístico” (in-flamável), com origem na combustão dos metais, o “fogo” como elemento dos cor-pos. Através de uma viragem completa de perspectiva, Lavoisier vê, a partir de en-tão, na combustão um fenómeno aparentado com a oxidação, e não como a perda de uma substância misteriosa. O sábio inglês Joseph Priestley (1733-1804) foi, sem dúvida, o primeiro a isolar o gás libertado pelo óxido de mercúrio exposto ao ca-lor. Mas não viu, nisso, ar que tinha perdido uma parte da sua “flogística”, e não quis nunca admitir que esse gás fosse um corpo químico distinto, e um dos dois componentes do ar (3).

Ao descobrir a presença de oxigénio no ar, Lavoisier dá origem a um novo para-digma - o da química moderna, distinta da alquimia -, portanto, a uma nova for-ma de ver o mundo, pois não há uma visão pura dos dados. Mas, acrescenta Kuhn, que recua diante de uma interpretação subjetivista e irracionalista que pu-desse ser dada à sua teoria dos paradigmas sucessivos, “o que quer que seja que o homem de ciência veja após uma revolução, ele olha, apesar de tudo, para o mes-

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mo mundo” e “a maior parte dos termos da sua linguagem e dos instrumentos do seu laboratório mantêm-se os mesmos” (4).

Do mesmo modo, Kuhn parece hesitar entre duas conceções: uma visão com-pletamente descontinuista da história das ciências, que supera mesmo a ruptura que certos epistemólogos como Bachelard pretenderam observar entre percurso pré-científico e ciência autêntica, e uma conceção menos radical que admite um progresso do conhecimento científico e, portanto, uma acumulação racional dos conhecimentos. Num posfácio de 1969, Kuhn enuncia, por exemplo, um certo nú-mero de critérios que permitem dizer que uma teoria é melhor do que outra (exati-dão das predições, número de problemas resolvidos, simplicidade) e acrescenta: “O desenvolvimento científico é, como o desenvolvimento biológico, um processo unidirecional (que vai no mesmo sentido) e irreversível” (5).

A prudência de Kuhn no que diz respeito à verdadeira natureza do progresso nas ciências da natureza - embora essa prudência ponha em questão a fronteira que traça dogmaticamente o positivismo entre “verdades” científicas de hoje e “er-ros” do passado - contrasta singularmente com a radicalidade de outras aborda-gens como a de Michel Foucault face às ciências do homem, por exemplo.

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Texto

Como se produzem as revoluções científicas

Kuhn, T.-S., (1983) La stucture des révolutions scientifiques, Trad. do inglês por L. Meyer, Paris, Flammarion, p. 82

A ciência normal, essa atividade consistente, como acabamos de o ver, a resolver enigmas, é uma empresa fortemente cumulativa que consegue eminentemente cumprir a sua finalidade: alargar regularmente, em alcance e em precisão, o conhecimento científico. Todavia, não encontramos aqui um dos elementos habituais da empresa científica. A ciência normal não se propõe descobrir novidades, nem em matéria de teoria, nem no que diz respeito aos factos, e, quando tem sucesso na sua investigação, não descobre nada disso.

No entanto, a investigação científica descobre muito frequentemente fenómenos novos e inesperados, e os sábios inventam continuamente teorias radicalmente novas. O estudo histórico permite mesmo supor que a empresa científica aperfeiçoou uma técnica de uma força única para produzir surpresas deste género. Se quisermos que este traço característico da ciência não conflitue com o que dissemos anteriormente, temos de admitir que a investigação no quadro de um paradigma deve ser um modo particularmente eficaz de levar esse paradigma a mudar. Pois é este o resultado das novidades fundamentais nos factos e na teoria: produzidas por inadvertência, ao longo de um jogo conduzido com um certo conjunto de regras, a sua assimilação exige a elaboração de um outro conjunto de regras. Tendo-se tornado partes integrantes da ciência, o empreendimento científico não será nunca mais o mesmo. (...)

Devemos agora perguntar-nos como é que mudanças deste género se podem produzir. (...) A descoberta começa com a consciência de uma anomalia, isto é, com a impressão que a natureza, de uma maneira ou de outra, contradiz os resultados esperados no quadro do paradigma que governa a ciência normal. Há, em seguida, uma exploração, mais ou menos

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prolongada, do domínio da anomalia. E o episódio só é encerrado quando a teoria do paradigma é reajustada, de modo a que o fenómeno anormal se torne num fenómeno esperado. A assimilação de um novo tipo de factos é, portanto, muito mais do que um complemento que se acrescentaria simplesmente à teoria e, até que o ajustamento que ela exige seja conseguido - até que o homem de ciência tenha aprendido a ver a natureza de uma maneira diferente -, o facto novo não é de modo nenhum um facto científico.

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Notas

1 T. -S Kuhn, La Structure des révolutions scientifiques, p. 32

2 T.-S Kuhn, op. cit., p. 115

3 T.-S Kuhn, op. cit., p. 84 sqq.

4 T.-S Kuhn, op. cit., p. 181

5 T.-S Kuhn, op. cit., p. 279

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John Rawls

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À Constituição, no sentido político, são reservadas as disposições que garantem a cada um as liberdades essenciais, enquanto a legislação, exclusivamente social e económica, deve ter a finalidade de “maximização das expectativas a longo prazo dos mais desfavorecidos”.

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O Que é a Justiça

A Teoria da Justiça (1970) de John Rawls repre-senta uma ruptura na filosofia analítica, porque este livro monumental não se preocupa minima-mente com a linguagem comum, nem com o sen-tido que possamos dar à palavra “justiça”. Por ou-tro lado, viola decididamente o princípio, estabele-cido por Hume, da separação entre factos e valo-res. O que se mantém da filosofia analítica é o es-forço incessante de argumentação e de distinção para alcançar uma definição autónoma, real e não verbal, da justiça, uma definição que permita

esclarecer e resolver alguns problemas políticos e sociais. Mas Rawls supera este método de análise, reencontrando, à sua maneira, a grande tradição do contrato social, nomeadamente na formulação de Rousseau e de Kant, à qual pretende dar um interpretação “natural e procedimental”. (1)

Para além da simples legalidade ou autoridade da lei, justiça formal que se limi-ta à conformidade com o direito existente, coloca-se o problema da justiça das ins-tituições sociais. Estas estruturas de base são definidas pela presença de regras pú-blicas e limitadoras - jogos, ritos, processos, parlamentos, mercados, regimes de propriedade, os jogos de linguagem como forma de vida de Wittgenstein - que fa-zem de “uma sociedade bem organizada” um sistema de cooperação estável. Ora, para ajuizar da justiça de uma instituição social, temos de dispor de uma definição ou de uma “teoria” da justiça. Então, qual é a boa teoria da justiça?

Para responder a esta questão, que é, como se sabe, o tema central da República de Platão, Rawls imagina uma situação hipotética, sem realidade histórica mas, diz ele, que podemos encontrar, sempre que queiramos, em pensamento, e na qual pessoas livres e racionais deveriam escolher as regras permanentes da sua associa-

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ção, isto é, os princípios gerais, públicos, simples e universais segundo os quais as pessoas repartiriam os bens essenciais e resolveriam diferendos que não deixariam de existir.

Note-se que, nesta nova formulação do contrato social, os parceiros não têm de fazer uma escolha política, mas tomar posição sobre uma questão filosófica: Qual é a melhor conceção de justiça? As pessoas livres e iguais que têm de definir a “constituição” fundadora da sua associação, tendo em conta a raridade dos bens e reivindicações concorrentes, não alimentam nem sentimentos de simpatia, nem sentimentos de antipatia umas pelas outras. São indiferentes uma às outras. Mas a característica principal que caracteriza esta situação imaginária é que os parceiros não sabem qual será o seu lugar na futura associação (senhor ou escravo? rico ou pobre?); desconhecem mesmo os seus dotes naturais, as suas preferências, a sua conceção de existência. A esta situação, Rawls dá o nome de “véu de ignorância”. Que ideia de justiça defenderiam estas pessoas, preocupadas em defender os seus interesses mais importantes, sem os conhecer previamente? Rawls afirma que elas escolheriam aquilo que ele chama “teoria da justiça como equidade”, de preferên-cia a qualquer outra teoria, em particular o utilitarismo que seria liminarmente re-jeitado.

O utilitarismo, que nasce no século XVII com Helvetius e com Hume, e encon-trou a sua formulação clássica no século XIX com Jeremy Bentham e Stuart Mill, baseia-se na ideia de que uma sociedade é bem organizada e, portanto, justa, quan-do as suas instituições de base se organizam de forma a conceder a maior soma to-tal de satisfações ao conjunto dos seus membros. Esta teoria imagina um espécie de espectador imparcial que, porque dispõe de todas as informações, seria capaz de determinar, através de um balanço de ganhos e de perdas, qual é a regra que traz consigo maior utilidade - total ou média - ao maior número de pessoas. É cla-ro que o utilitarismo pode servir para justificar - em nome da justiça e através de uma espécie de truque do “bem-estar geral” - qualquer sistema de opressão: “No final das contas”, a escravatura de alguns é justa porque permite maximizar as van-tagens dos outros, por exemplo, favorecendo o nascimento de uma classe favoreci-da que poderá dedicar-se à ciência, à arte ou à política. (2)

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A este utilitarismo que alarga à sociedade o raciocínio que influencia certas es-colhas económicas individuais (um sacrifício agora, para um maior ganho depois), Rawls opõe, então, a teoria da justiça como equidade que se baseia em dois princí-pios.

O primeiro afirma o direito igual de cada um às liberdades básicas, como as li-berdades políticas, a liberdade de expressão e de consciência, a integridade da pes-soa, etc. O segundo estipula que as desigualdades sociais são aceitáveis, desde que resultem em benefício de cada um, nomeadamente dos mais desfavorecidos. Estes dois princípios são hierarquizados segundo uma ordem de prioridade: para Rawls, não há injustiça no facto de um pequeno número obter vantagens superiores à mé-dia, desde que, por essa via seja melhorada a situação dos mais desfavorecidos. O igualitarismo do primeiro princípio é, portanto, temperado por uma espécie de rea-lismo utilitarista. Mas esta concessão é estritamente limitada na medida em que o primeiro princípio, sendo de natureza política, proíbe a justificação da perda de li-berdade de alguns pela maior quantidade de bens, de “prazeres” que os outros par-tilhariam. Em resumo, Rawls, como Rousseau no Discurso sobre as ciências e as artes, sublinha o preço político da acumulação excessiva de riquezas.

Uma vez enunciados estes princípios e definida a respetiva prioridade, Rawls empenha-se em descrever, idealmente, as instituições que podem fazer da socieda-de um sistema justo e estável, estável porque justo.

À Constituição, no sentido político, são reservadas as disposições que garantem a cada um as liberdades essenciais, enquanto a legislação, exclusivamente social e económica, deve ter a finalidade de “maximização das expectativas a longo prazo dos mais desfavorecidos”. (3) A este respeito, importa notar que Rawls se afasta da tradição grega separando o conceito de bem do conceito de justo. A sua crítica ao utilitarismo inscreve-se numa crítica mais geral às teorias “teleológicas” da justiça que a definem a partir de um bem supremo, de um fim dominante, quer seja o pra-zer, a utilidade ou a excelência. A justiça não consiste em impor um ideal de pes-soa ao qual tudo deveria ser sacrificado; ela, a justiça, deve permitir a cada um que conduza com sucesso o “seu projeto de vida” no quadro de múltiplas associa-ções que concedam a cada um o primeiro de todos os bens, o respeito por si. A pri-oridade da justiça sobre o bem é uma forma de defender a riqueza da sociedade

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civil, a diversidade das personalidades, a liberdade contra as limitações dos princí-pios morais.

Este livro de Rawls deu origem a muitos debates. Hare defendeu uma nova perspetiva utilitarista. (4) Robert Nozick em Anarquia, Estado e Utopia (Anarchy, State and Utopia), retomando e reforçando a ideia liberal de um Estado mínimo ocupado unicamente com a proteção dos cidadãos da violência, defendeu contra Rawls a propriedade legítima, a justa aquisição e a justa transmissão dos bens. (5) Poder-se-ia, de qualquer modo, tentar fazer uma comparação entre as conceções de Rawls e uma obra de Sartre razoavelmente desconhecida, mas que se equivale à Teoria da Justiça. De certo modo, com efeito, a Crítica da razão dialética, embora situando-se no interior da filosofia marxista, “horizonte inultrapassável” segundo Sartre, procu-ra descrever a formação da sociedade injusta a partir das relações humanas indivi-duais, num universo de bens raros. (6)

Pode dizer-se assim que Rawls, pelas alterações que traz ao utilitarismo e Sar-tre, ao bater-se por conciliar marxismo e existencialismo, colocam, ambos, no cora-ção do problema da justiça e da ação (a que Sartre chama praxis) a noção de comu-nicação. Para Rawls, as coisas são claras na medida em que a definição da justiça passa por um debate onde cada um deve imaginar “sob o véu da ignorância”, a conceção mais justa, aquela que assegure a cada um, quem quer que seja, os bens essenciais. Mas a experiência de pensamento que ele imagina só é possível se cada participante puder conceber qual seria a sua situação, abstraindo-se das suas parti-cularidades sociais, psicológicas, físicas, etc. Este esforço de compreensão, por seu turno, só é possível naquilo a que Habermas chama uma “situação ideal de fala” (7), ao abrigo de pressões, de manipulações, de medos e de influências. Cada um, neste debate “constitucional”, é colocado numa situação de igualdade anterior à igualdade que pode ter origem na distribuição dos bens materiais. A primeira igualdade é a do debate, sem o qual as outras reivindicações de igual distribuição dos bens e de justiça não conseguem exprimir-se.

Sartre mostra, com o exemplo da linguagem, como as relações humanas se ma-terializam, se congelam, se transformam em “totalidade inerte” inscrita na histó-ria; mas, ao mesmo tempo, a linguagem, na sua qualidade de interação entre sujei-tos que falam, não se reduz a esta totalidade inerte da língua; é uma fala, uma “to-

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talização orgânica” perpetuamente em curso, que ultrapassa sempre, pelos seus projetos, a realidade material congelada da dispersão. “Sem dúvida, escreve Sar-tre, a fala separa tanto quanto une, sem dúvida as clivagens, os estratos, as inércias do grupo refletem-se nela, sem dúvida os diálogos são em parte diálogos de surdos (...). Só que esta incomunicabilidade (...) só pode ter sentido se se basear numa co-municação fundamental, isto é, num reconhecimento recíproco e num projeto per-manente de comunicar”. (8)

Chegamos, então, por vias diferentes, a filosofia analítica e a razão “dialética”, a uma mesma noção fundamental: a da comunicação livre. A justiça na sua defini-ção depende, segundo Rawls, de uma experiência livre de pensamento, portanto de um debate sem entraves. Em Sartre, encontramos mesmo a ideia de uma praxis coletiva que supera a dispersão dos homens e cuja primeira forma é a linguagem: imaginemos, por exemplo, o juramento que sela os compromissos de um grupo re-volucionário (9) Mesmo que haja um grande contraste entre o filósofo americano que procura as condições de uma sociedade estável porque justa, e o filósofo fran-cês que descreve o nascimento da ação revolucionária, podemos considerar que as resposta ao problema da justiça, isto é, das relações entre a ação humana e as suas normas, passa, a partir deles, por uma reflexão sobre como essas normas são esta-belecidas, sobre o papel que desempenha o debate livre nessa ocasião, e sobre os entraves que ele pode ter de enfrentar. Tal como as leis da natureza perderam a sua realidade absoluta para se tornarem dependentes da atividade comunicacional da ciência, sem se tornar, por isso, simples representações subjetivas, assim tam-bém podemos pensar que as normas éticas, sociais e políticas, não sendo considera-das como leis intangíveis da natureza humana, retiram a sua validade e a sua obje-tividade relativas da qualidade do debate que lhes deu origem, sem, por isso, se tor-narem máximas arbitrárias.

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A Justiça como Equidade

Rawls, J., (1987) Théorie de la Justice , Trad. do inglês para francês por C. Audard, Paris, Le Seuil, p. 37

O meu objetivo é o de apresentar uma conceção da justiça generalize e eleve ao mais alto nível de abstração a teoria bem conhecida do contrato social, tal como a encontramos, entre outros, em Locke, Rousseau e Kant. Para isso, não devemos pensar que o contrato original é concebido para nos comprometer com uma sociedade particular ou com o estabelecimento de uma forma particular de governo. A ideia que nos orientará é, antes, a de que os princípios de justiça válidos para a estrutura de base da sociedade são objeto do acordo original. São aqueles princípios que pessoas livres e racionais, com vontade de defender os seus próprios interesses e colocadas numa posição inicial de igualdade, aceitariam e que, segundo elas, definiriam os termos fundamentais da sua associação. Estes princípios devem servir de regra para todos os acordos posteriores: especificam as formas de cooperação social com as quais nos podemos comprometer e as formas de governo que podem ser estabelecidas. É a esta forma de considerar os princípios da justiça que eu chamarei a teoria da justiça como equidade (fairness).

Por conseguinte, devemos imaginar que aqueles que se comprometem com a cooperação social escolhem juntos, através de um único ato coletivo, os princípios que devem estabelecer os direitos e os deveres de base e determinar a repartição das vantagens sociais. Os homens devem decidir previamente segundo que regras vão arbitrar as suas reivindicações mútuas e qual deve ser a constituição (a carta constitucional) fundamental da sociedade. (...)

Na teoria da justiça como equidade, a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. Esta posição original não é concebida, obviamente, como sendo uma situação histórica real, menos ainda como uma forma primitiva de cultura. Devemos entendê-la como sendo uma situação puramente hipotética,

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definida de maneira a conduzir-nos para uma certa conceção da justiça. De entre os traços essenciais desta situação, há o facto de ninguém conhecer o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou o seu estatuto social, nem tão pouco a sorte que lhe está reservada na repartição das capacidades de dos dons naturais, por exemplo a inteligência, a força, etc. Vou mesmo ao ponto de defender que os parceiros ignoram as suas próprias conceções de bem ou as suas tendências psicológicas particulares. Os princípios de justiça são escolhidos sob um véu de ignorância.

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Notas

1 J. Rawls, Théorie de la justice, p. 305

2 J. Rawls, op. cit., p. 192

3 J. Rawls, op. cit., p.235

4 R-M Hare (1981), Moral thinking, Oxford

5 R. Nozick (1974), Anarchy, State and Utopia

6 J-P Sartre, Critique de la raison dialectique, p. 200

7 J. Habermas, Morale et communication, p. 110

8 J-P Sartre, Critique de la raison dialectique, p. 180 sqq.

9 J-P Sartre, op, cit., p. 439

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Outros Temas

“Parece-me que a filosofia não tem somente a tarefa de se dedicar, num discurso diferente do cien-tífico, à relação de pertença entre aquilo que somos e esta ou aquela região de ser, que esta ou aque-la ciência elabora em objeto através de procedimentos metódicos apropriados. Ela deve também ser capaz de dar conta do movimento de distanciação através do qual esta relação de pertença exige a objetivação, o tratamento objetivo e objetivante das ciências e, portanto, do movimento pelo qual explicação e compreensão fazem apelo uma à outra no plano propriamente epistemológico.”

Paul Ricoeur

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Husserl e a Fenomenologia

É ao filósofo alemão Hegel (1770-1831) que se deve a primeira acepção filosófica do termo fenomenologia. Esta é definida em “A Fenomenologia do Espírito” (1807) como a ciência da experiência da consciência. A consciência é sempre a consciência de qualquer coisa, e os objetos são sempre objetos para uma consciência. Mas, para Hegel, objeto e sujeito, sentido e consciência, ser e conceito são idênticos. A feno-menologia volta a traçar o caminho percorrido pela consciência para recuperar a realidade total do saber absoluto.

Com Husserl (1859-1938), a fenomenologia abandona o terreno do saber abso-luto para se interrogar sobre o que precede o saber, o pré-reflexivo, o irrefletido, o ante-predicativo sobre o qual se apoiam a reflexão e a ciência. Torna-se descrição de “fenómenos”, e Husserl considera isso a exploração do que é dado à consciência, re-cusando toda a hipótese sobre a causa desse dado, tanto sobre a causa exterior (o mundo físico) como sobre a causa interior (o mundo psicológico). É preciso esfor-çar-se por ficar ao nível da própria coisa, libertando-a de toda a explicação tanto metafísica como científica.

Numa primeira tentativa, Husserl procura constituir uma ciência das essências (ei-dética). A essência é o que se obtém fazendo variar um objeto de consciência pela imaginação até ao momento em que se apreendeu o invariante. Por exemplo, a cor pode ser imaginada sob aspetos muito diversos, mas sempre necessariamente exposta num espaço. A essência experimenta-se numa intuição vivida. É a “doação originária” de sentido efetuada pela consciência. A ciência eidética é preferível à ciência empírica e contém os seus verdadeiros fundamentos.

Se se aplicar ao “eu” o método do “pôr entre parêntesis” do mundo, encontra-se uma consciência, cuja essência é ser intencional. Toda a realidade se situa entre dois pólos. O pólo do eu, que visa o objeto, e o pólo da objetividade que reenvia para a consciência, a qual lhe dá o sentido da objetividade. Mas, encontrando o problema do “outro”, Husserl é levado a refletir sobre a intersubjetividade e sobre

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a história. O seu pensamento evolui, então, para uma sociologia cultural. A feno-menologia aparece-lhe como a tomada de consciência de uma crise da ciência e da filosofia. É uma reação contra o objetivismo e as suas alienações. Ele pretende reconciliar o saber abstrato e a vida concreta.

Husserl apoia-se no ante-racional (pré-racional). Alguns dos seus sucessores, em particular Heidegger, inclinarão a fenomenologia para o anti-racional, insistindo na oposição entre a consciência e o objeto e recusando qualquer valor de verdade à interpretação científica do mundo.

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Paul Ricoeur

Paul Ricoeur (nascido em 1913) representa na filo-sofia francesa atual uma tentativa original. Em re-lação às correntes existencialistas, estruturalistas ou racionalistas, liga-se ao problema da interpreta-ção, da elucidação do sentido, o que se chama her-menêutica. Inaugurando a sua obra por uma “Philo-sophie de la Volonté” (1950), ele tentou uma des-crição da atividade e da passividade do homem em face do mundo, um estudo da relação dialética entre o voluntário e o involuntário, que haveria de desembocar em 1960 numa meditação sobre a “Fi-nitude et la Culpabilité”.

O mal introduz-se na realidade humana porque há uma desproporção, uma não coincidência de homem consigo próprio, sobre todos os planos do conhecimento, da ação e do sentimento. Não percebemos nada totalmente, mas a nossa linguagem vai sempre mais além, transcende o que é visto. Há uma dualidade entre o dado e o sentido, que permanece irredutível. Do mesmo modo, no plano da ação, há uma desproporção entre uma exigência de totalidade ou de infinidade e o caráter, que não é mais do que uma abertura limitada e finita. O sentimento, enfim, criou uma nova cisão pela oposição que ele interioriza entre o amor, o impulso vital para o outro e o “apego ao viver”, a agressividade do desejo.

Há, portanto, no homem uma falha, uma fragilidade afetiva, que se exprime na “tristeza do finito”. Revela-se na falta, no injustificável. O mal não pode ser obje-to de um discurso coerente, racional. Mas está traduzido nos símbolos primitivos que são a linguagem no estado nascente: por exemplo, a mácula exprime-se no símbolo da obrigação, o pecado no dos caminhos tortuosos, etc. Depois vêm os mitos que

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Paul Ricoeur

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contam a origem do mal (mitos da queda, do caos, etc.). O cristianismo inverte a perspetiva dando ênfase ao perdão, à remissão dos pecados.

Pensador cristão, muito ligado ao protestantismo, e colaborador da revista per-sonalista “Esprit”, Paul Ricoeur procura, em seguida, numa série de obras, “De l’interprétation, essai sur Freud” (1965), “Le Conflit des interprétations, essai her-méneutique” (1969), “La Métaphore vive” (1975), edificar uma filosofia da lingua-gem que, restituindo a riqueza das significações criadas pelos homens, faria preva-lecer o sentido sobre as estruturas. Segundo ele, as estruturas não intervêm a não ser para limitar e articular as significações dos conjunto coerentes.

Esta tentativa passa por uma longa explicação com as correntes do pensamento que se dedicam a um estudo formalista e sintático da realidade humana e das suas produções: a psicanálise até Jacques Lacan, a etnologia de Claude Lévy-Strauss, o estruturalismo e a linguística, sem falar desses “mestres da desconfiança” que são, segundo Ricoeur, Marx, Nietzsche e Freud. Estes últimos denunciam a falsa consci-ência, revelam a existência de sistemas inconscientes que dominam a vida humana. A verdade não é pois acessível ao sujeito e a própria ideia de sujeito revela-se ilusória: tal é a conclusão tanto de Nietzsche, como de Marx, como de Freud.

Todo os esforços de Paul Ricoeur é alimentar uma filosofia da pessoa com as con-tribuições dessas diferentes correntes, sem alinhar em nenhuma delas e sem voltar a uma “filosofia da pessoa” no sentido tradicional.

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Texto

Explicar e Compreender

Ricoeur, P., (1986) Du Texte à l’action, Essais d’herméneutique, Paris, Le Seuil, p. 181

A minha conclusão será dupla.

No plano epistemológico, primeiro, direi que não há dois métodos, o método explicativo e o método compreensivo. Estritamente falando, só a explicação é metódica. A compreensão é sobretudo o momento não metódico que, nas ciências da interpretação, se compagina com o momento metódico da explicação. Em contrapartida, a explicação desenvolve analiticamente a compreensão. Este momento precede, acompanha, encerra e, portanto, envolve a explicação. Em contrapartida, a explicação desenvolve analiticamente a compreensão. Esta ligação dialética entre explicar e compreender tem como consequência uma relação muito complexa e paradoxal entre ciências humanas e ciências da natureza. Nem dualidade, nem monismo, diria eu. Com efeito, na medida em que os procedimentos explicativos das ciências humanas são homogéneos aos das ciências da natureza, é assegurada a continuidade das ciências. Mas, na medida em que a compreensão comporta uma componente específica - sob a forma ou de compreensão dos signos na teoria dos textos, ou da compreensão das intenções e dos motivos na teoria da ação, ou da competência em seguir uma narrativa na teoria da história -, nesta medida, a descontinuidade entre as duas regiões do saber é insuperável. Mas descontinuidade e continuidade compõem-se entre as ciências como a compreensão e a explicação nas ciências.

Segunda conclusão: a reflexão epistemológica conduz pelo próprio movimento do argumento (...) a uma reflexão mais fundamental sobre as condições ontológicas da dialética entre explicar e compreender. Se a filosofia se dedica ao “compreender”, é porque ele (compreender) testemunha, no cerne da epistemologia, uma pertença do nosso ser ao ser que precede toda a objetivação, toda a oposição de um sujeito a um objeto. Se a palavra “compreensão” tem uma tal densidade, é porque, ao mesmo tempo, designa o pólo não

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metódico, dialeticamente oposto ao pólo da explicação em todas as ciências interpretativas, e constitui o índice já não metodológico mas propriamente veritativo (de verdade) da relação ontológica de pertença do nosso ser aos seres e ao Ser. É aqui que se vê a rica ambiguidade da palavra “compreender” e que ela designa um momento na teoria do método, aquilo a que chamámos o pólo não metódico, e a apreensão, a um nível distinto do científico, da nossa pertença ao conjunto do que é. Mas voltaríamos a cair numa ruinosa dicotomia se a filosofia, após ter renunciado a suscitar ou a manter um cisma metodológico, reconstituísse um reino do puro compreender nesse novo nível de radicalidade. Parece-me que a filosofia não tem somente a tarefa de se dedicar, num discurso diferente do científico, à relação de pertença entre aquilo que somos e esta ou aquela região de ser, que esta ou aquela ciência elabora em objeto através de procedimentos metódicos apropriados. Ela deve também ser capaz de dar conta do movimento de distanciação através do qual esta relação de pertença exige a objetivação, o tratamento objetivo e objetivante das ciências e, portanto, do movimento pelo qual explicação e compreensão fazem apelo uma à outra no plano propriamente epistemológico.

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O Outro

O problema do outro só tardiamente se formulou em filosofia. Para a filosofia clássica, a consciência de si é um dado fundamental. A consciência é ime-diatamente transparente para ela própria. O outro é apercebido como um objeto que a minha consciên-cia interpreta a partir de um certo número de da-dos: os seus gestos, as suas atitudes, a sua lingua-gem, etc.

É relacionando-as com a sua própria existência que o sujeito dá sentido às manifestações do outro e lhe atribui uma consciência análoga à sua. O cogito car-tesiano exprime esta atitude de modo exemplar. Só

o meu pensamento me dá a certeza da minha existência. A consciência do outro não pode ser objeto de uma intuição racional. É garantida, como a realidade exte-rior, pela veracidade divina, segundo Descartes.

Com Hegel, o problema é posto ao contrário. A consciência de si aparece ape-nas para o sujeito que se opõe ao outro. Antes desse conflito, a consciência é como a de um animal, reduzida à sensação imediata, à vida orgânica. O encontro com o outro faz nascer o desejo de ser reconhecido, o que leva a uma luta de morte, cada cons-ciência querendo dominar a outra ao seu desejo. Nesta luta, o que cede primeiro permite ao outro aceder à consciência de si, mas é logo negado como ser consciente pelo seu vencedor. É o que Hegel chama a “dialética do senhor e do escravo” (o se-nhor para ser senhor precisa do escravo, a ponto de, para ser senhor, ter de ser es-cravo do escravo).

A fenomenologia interrogou-se longamente sobre a experiência do outro, sobre a possibilidade de conhecer o outro e de comunicar com ele. Assim, Husserl insis-tiu no caráter irredutível da relação com outrem. É impossível constituir o outro a

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Edmund Husserl

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partir de uma consciência. Esta dificuldade insuperável prova que não se pode dar a outrem um estatuto de objeto.

Para Jean-Paul Sartre o problema do outro é uma verdadeira obsessão. Reto-mando a descrição hegeliana e levando-a às suas últimas consequências, afirma que cada consciência deseja a morte do outro. A multiplicidade das consciências aparece-lhe como um escândalo intelectual. Estar constantemente sob o olhar do outro é não somente perder a liberdade, é também ser transformado por esse olhar em ob-jeto congelado. O outro impõe-me finalmente a visão que tem de mim. É assim que, para Sartre, é o anti-semita que faz o judeu. A co-presença de outrem faz-me sempre diferente de mim próprio. Torna a minha existência ambígua.

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Existencialismo

Como corrente filosófica, o existencialismo atinge o grande público depois da segunda guerra mundial. Entre os anos 1945 e 1960, a sua influência será predominante na juventu-de, conquistará posições muito fortes no ensi-no superior e secundário. A sua fama deve-se tanto à poderosa personalidade de Jean-Paul Sartre, seu principal representante, como à cor-respondência íntima entre os temas do existen-cialismo e as realidades da época.

Pode ser denominada “existencial” toda a posição filosófica que acentua mais a vivência do que o ser, a consciência subjetiva na sua interioridade do que este ou aquele sistema conceptual. Neste sentido, pode dizer-se que há existencialismo em Kierkegaard, esse protestante dinamarquês que se revoltou contra toda a filosofia e teologia racional em nome da verdade irredutível do individual.

Todavia, as fontes mais importantes do existencialismo encontram-se nos filóso-fos alemães Edmund Husserl e, contra a sua vontade, Martin Heidegger, aos quais se pode acrescentar, para o existencialismo cristão, Karl Jaspers e, numa versão ti-picamente peninsular, Ortega y Gasset. Na pesquisa da “intuição original” que, para além das construções da filosofia e da ciência é “fundadora de sentido”, Hus-serl encontra as vivências da consciência de que se esforça por efetuar a descrição fenomenológica que visa restituir as “próprias coisas”.

Martin Heidegger, em quem se vai inspirar mais diretamente Jen-Paul Sartre nas suas primeiras obras (“L’Être et le Néant”) insistirá na relação trágica do ho-mem com o ser, fazendo da existência uma finitude radical do homem, “um ser para a morte”. Sartre vê na consciência humana o “para-si”, um processo de “na-

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Jean-Paul Sartre

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dificação” do ser “em-si”. O homem existe escapando sempre à essência, recusan-do o ser pelo “fazer”.

A liberdade é, então, o próprio estofo da consciência. É absoluta como uma condenação sem apelo. A nossa existência é irremediavelmente tecida pelas suas escolhas. Nenhum deus e nenhum determinismo material nos preservam de uma responsabilidade total. Esta posição que parece que devia arrastar Sartre para um pessimismo radical (“A Náusea”), condu-lo, pelo contrário, através da experiência da Resistência, a um ativismo revolucionário.

Para assumir plenamente a sua liberdade, o homem deve recusar a submissão aos valores transcendentes, à ordem estabelecida, a toda a relação de dominação e exploração para que se fixe ele próprio em essência e deixe de existir no sentido au-têntico do termo. Reconhecer e querer a liberdade do outro como a sua própria é a única saída. É por esse lado que o existencialismo é um humanismo e toma a dimen-são ética; é também por esse lado que o existencialismo de Sartre se afasta irreme-diavelmente de Heidegger.

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6 S E C Ç Ã O

Utopia

A palavra “utopia”, criada por Thomas More (1480-1535) que dela fez o título de um romance poético e social, “Utopia” (1516), significa de acor-do com a sua etimologia grega: nenhuma parte. Em consequência, atribuir-se-á às utopias este caráter imaginário e impossível. Entre imaginar uma ou-tra realidade e sonhar o impossível, o irrealizável, a distância é considerável e permite compreender que se tenha interpretado o fenómeno da utopia de maneira ora positiva, ora negativa.

Encontra-se já na “República” de Platão os traços essenciais do pensamento utópico. Platão traça aí

o plano de uma cidade perfeita fundada para a eternidade. O modo de vida de cada um é fixado em função do bem comum. Os guardas da cidade devem estar isentos de todo o interesse pessoal. Daí a comunidade das mulheres e as crianças tomadas a cargo do Estado, desde o berço. Encontra-se aí também a preocupação de uma re-gulamentação detalhada de toda a existência pessoal e social, o condicionamento de todos pela educação, a escolha dos mais sábios (os filósofos) e não a dos mais ricos ou dos mais fortes, para governar

O pensamento utópico vai tornar a florescer no século XVI, altura em que ex-prime as profundas aspirações às reformas políticas e sociais. Thomas Moore, chanceler de Inglaterra que haveria de morrer decapitado por ordem de Henrique VIII por se ter recusado a aprovar a nova religião do reino, procura na “Utopia” uma solução para as misérias do tempo. Imagina uma ilha onde toda a população traba-lha seis horas por dia e pratica a alternância de tarefas, onde o ouro é banido, a guerra proscrita. Os costumes, muito austeros, estão aí minuciosamente codifica-dos. Em “A Cidade do Sol”, que o padre calabrês Campanella (1568-1630) redige

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Thomas More

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na cadeia de Nápoles, é instaurado o comunismo. A sociedade está protegida de todo o espírito de propriedade pessoal pelo amor livre e pela educação em comum das crianças.

Os grandes utopistas do século XIX, de Henri Saint-Simon a Charles Fourier, são, por várias razões, precursores do socialismo moderno. Saint-Simon proclama que o trabalho é a fonte de todas as virtudes, que a propriedade deve ser gerida e repartida tendo em vista a utilização social, que a herança é em princípio absurda, que a nação não tem necessidade de ser governada, mas administrada o mais eco-nomicamente possível.

Fourier preconiza a associação para a produção, o consumo e a educação, a co-propriedade e a co-gestão das empresas. No falanstério fourrierista , os trabalhado-res são repartidos segundo as leis da “atração passional”, o que deve transformar o trabalho em prazer. Étienne Cabet vai tentar com a “Icarie” que se instala em Nauvoo (Estados Unidos), em 1847, uma realização do ideal comunitário fourrie-rista. A colónia sobrevive até 1895.

Obras como “O Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley ou “1948” de George Orwell utilizam a utopia não para mostrar o desejo da sociedade perfeita, mas para a pôr a ridículo. Encontra-se aí, como também na ficção científica, a mo-tivação fundamental de todas as utopias: a recusa de um presente angustiante. Se-gundo certos sociólogos, existe uma estreita correlação entre as diferentes formas de utopia e as camadas sociais que transformam a ordem existente. A vaga moder-na da utopia é um sinal daquilo que se chama crise da civilização ou crise da sociedade.

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Razão

A ideia de razão é formada por duas tradições que se conjugam no pensamento ocidental. A pa-lavra grega “logos” significa palavra e também re-lação justa ou ajustada entre duas grandezas. O “logos” é a palavra que estabelece um laço entre os homens por uma comunicação cuja verdade pode ser reconhecida por cada um. O termo lati-no “ratio” tem o sentido originário de cálculo, medida. A “ratio” é igualmente o instrumento do acordo entre os espíritos pela conta exata das coisas.. A razão opõe-se, assim, ao conhecimento sensí-vel, à opinião, à experiência vaga e à rotina.

A filosofia helénica distingue duas formas de razão: uma razão intuitiva que apreende diretamente as verdades; uma razão discursiva que procede por articula-ção lógica de juízos, por demonstração. Esta distinção há-de dominar durante mui-to tempo a reflexão filosófica e marcar o racionalismo com o selo da metafísica.

O pensamento medieval vai subordinar a razão à fé. As verddaes reveladas não dependem do conhecimento racional. Mas a razão permanece para Tomás de Aquino (1227-1274) uma faculdade natural pela qual o homem pode atingir a ver-dade pela via do raciocínio discursivo. Descartes julga que seguindo o método das matemáticas, a razão humana é capaz de fazer sair as verdades seja qual for o as-sunto de que se trate. Protegido por esta razão, o homem pode tornar-se “mestre e possuidor da natureza”.

Kant reduz este optimismo e restringe o campo da razão. Esta não nos dá se-não um conhecimento relativo às estruturas do nosso espírito (“Crítica da Razão Pura”). Enquanto faculdade prática, a razão apreende as regras da ação moral, mas está submetida a postulados (imperativos categóricos).

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Hegel

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Hegel renova a problemática da razão. A razão é uma criação contínua da his-tória universal. A sua realização progressiva obedece a um processo dialético que in-clui momentos de afirmação, de negação e de síntese (negação da negação). As-sim, o que aparece como irracional é uma etapa para o devir da razão.

De uma maneira mais limitada, mas mais precisa, a epistemologia contemporânea mostra igualmente, através da história das ciências, uma maturação progressiva do pensamento racional. A obra de Gaston Bachelard revela os preconceitos, os ar-caísmos, os desejos inconscientes que o conhecimento científico tem de vencer, e o trabalho criador de uma razão que renova as suas formas de explicação, em fun-ção do estado das técnicas de observação e de experimentação, assim como dos desenvolvimentos do pensamento abstrato.

A razão é fortemente posta em causa por diversas correntes do pensamento contemporâneo, que a acusam de ser responsável pelos males da sociedade moder-na. A racionalização do trabalho e da vida quotidiana privaria o homem de todos os valores que constituem o preço da existência. À antiga oposição da razão e da fé juntaram-se as oposições da razão e do desejo, da racionalidade e do imaginá-rio, etc. Mas este anti-racionalismo, num mundo dominado pela ciência, é mais uma projeção do passado do que uma figura do futuro (provavelmente).

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8 S E C Ç Ã O

O Absurdo

Num primeiro sentido, o absurdo é o que contradiz a lógica. Se eu caracterizo um su-jeito por atributos excluídos pela sua defini-ção ou se obtenho uma conclusão contraditó-ria com as premissas (por exemplo: a imorta-lidade de Sócrates no silogismo clássico), o meu raciocínio é absurdo. Mas pode-se, tam-bém, nas matemáticas, raciocinar pelo absur-do. Neste caso, é preciso demonstrar que uma proposição conduz a resultados contra-ditórios da hipótese de partida. Considera-se que a contrária desta proposição é verdadei-ra. Pode dizer-se deste tipo de raciocínio que

ele constrange mais a razão do que a convence.

Para o senso comum, é absurdo o que é desprovido de sentido. Mas a reflexão mostra a relatividade de uma tal noção. Qualificar-se-á como absurdo o não-famili-ar, o diferente, o insólito. Os escritores modernos, Franz Kafka (1883-1924), Samu-el Becket (1906-1989), Albert Camus (1913-1960) exprimem uma visão muito mais radical do absurdo, sem referência a um sentido tranquilizador do Universo. É o próprio mundo que está privado de significação. O homem à procura de senti-do é constantemente ultrajado pelos homens e pelas coisas. O absurdo nasce do di-vórcio entre o espírito e o real.

Uma certa tendência do pensamento religioso tinha já tirado do absurdo, como ausência de significação do universo para o homem, uma justificação da fé em Deus. O “credo quia absurdium” (creio porque o mundo é absurdo) do bispo Tertuliano, retomado por Pascal, situava num Deus inacessível à razão humana (o Deus escon-dido) o sentido que falta necessariamente à nossa finitude.

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Samuel Becket

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O filósofo dinamarquês Kierkegaard (1813-1855) faz do absurdo o cerne da sub-jetividade. Recusando a racionalização hegeliana que ele acusa de ignorar a realida-de do indivíduo, Kierkegaard apreendeu essa realidade na angústia, no “temor” nas-cidos do sentimento do absurdo. Mas também para ele, o absurdo encontra a sua finalidade na fé. Uma fé trágica porque Deus não responde ao apelo angustiado do crente.

Roquentin, o herói da “Náusea” (1938) de Sartre tem a revelação do absurdo ao contemplar uma raiz num jardim público. O absurdo é para ele a existência hu-mana que está irremediavelmente “a mais” num espaço cheio de ser opaco e iner-te. As análises de “O Ser e o Nada” (1943) precisarão a relação do homem com o mundo. A consciência apreende-se a si mesma negando o ser, aniquilando-o. Mas o poder da negação exerce-se também a respeito de qualquer valor. A liberdade hu-mana é total e, por isso mesmo, retira qualquer fundamento absoluto às suas esco-lhas.

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Page 134: Filo So Fos Dose Culo Xx

Bibliografia

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Wittgenstein, L. (1961), Tractatus logico-philosophicus (de 1921), seguido de Investiga-tions philosophiques (de 1953), Paris, Gallimard

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Behaviorismo

Teoria que baseia a psicologia na observação experimental do comportamento (em inglês: behavior) sem fazer intervir o espírito ou a mente (mind).

Termos do glossário relacionados

Índice

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Procurar termo

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Dialética

O sentido original da palavra era «arte de discutir». Para Platão, a dialética é o processo progressivo de investigação usado pelos filósofos para se libertarem da

ignorância (simbolizada pela escuridão da caverna) e alcançarem a verdade.

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Discurso

(argumentativo) Exposição metódica que visa influenciar o pensamento, os senti-mentos e a ação do receptor.

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Empirismo

Doutrina, defendida em particular por D. Hume, segundo a qual todo o conheci-mento deriva da experiência e só dela.

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Existencialismo

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Fenomenologia

Corrente filosófica nascida com Husserl que se dedica a descrever na sua pureza originária a experiência da consciência individual

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Filosofia Analítica

Estilo de filosofia, nascida no Reino Unido com Russell e Moore, hostil a especu-lações e que privilegia a análise da linguagem.

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Formas Puras

Tradução do termo grego eidos (também traduzido por Ideias) com que Platão designava as formas, ou estruturas da realidade, que servem de modelo aos obje-

tos (eidola) do mundo sensível. Platão chamava noésis à faculdade capaz da «vi-

são» das formas do kósmos noêtos, o «mundo inteligível».

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Hermenêutica

Inicialmente, ciência da interpretação de textos, sobretudo bíblicos; por exten-são, filosofia que se interroga sobre a compreensão do sentido em geral (Gada-mer, Ricoeur)

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Page 145: Filo So Fos Dose Culo Xx

Historicismo

Teoria segundo a qual as crenças e os valores de uma época não têm sentido fora do seu contexto histórico.

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Page 146: Filo So Fos Dose Culo Xx

Idealismo

Teoria que recusa conceder ao mundo exterior uma realidade objetiva indepen-dente das ideias que temos dele. Num certo sentido, opõe-se ao realismo.

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Logicismo

Teoria segundo a qual as matemáticas podem ser inteiramente deduzidas da lógi-ca (Frege, Russell)

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Page 148: Filo So Fos Dose Culo Xx

Nominalismo

Doutrina que recusa conceder às noções gerais uma realidade objetiva fora do espírito. Opõe-se a realismo no sentido 2.

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Positivismo Lógico

Teoria, inicialmente formulada pelo Círculo de Viena, que rejeita como metafísi-cos os enunciados que não sejam ou enunciados de factos ou fórmulas lógicas.

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Page 150: Filo So Fos Dose Culo Xx

Pragmática

Estudo da interpretação e da utilização dos signos em situações concretas, nome-adamente em ações coletivas. Completa a semântica.

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Pragmatismo

Filosofia de origem americana (W. James) que concede um papel determinante à ação, à prática, na definição do verdadeiro.

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Page 152: Filo So Fos Dose Culo Xx

Realidade

Realidade (do latim, realitas) ou plano ontológico (do grego, ontos) são termos que

designam «tudo o que é», a que os filósofos chamam Ser, independentemente de sabermos ou não da sua existência e do conhecimento que dele possamos ter.

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Page 153: Filo So Fos Dose Culo Xx

Realismo

1.Tese segundo a qual as coisas percebidas ou conhecidas têm uma existência independente da perceção ou do conhecimento que temos delas. Opõe-se, neste sentido, ao idealismo.

2.Doutrina segundo a qual uma noção geral se refere a uma realidade objetiva, não sensível, que tem uma existência fora do espírito (por exemplo: a Ideia, segundo Platão). Opõe-se neste sentido ao nominalismo

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Page 154: Filo So Fos Dose Culo Xx

Relativismo

Teoria que considera que a verdade, os valores estéticos e morais variam segun-do os indivíduos, as culturas.

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Page 155: Filo So Fos Dose Culo Xx

Semântica

Estudo das relações entre signos, o que eles significam e o que eles designam.

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Page 156: Filo So Fos Dose Culo Xx

Sofistas

Eruditos que se apresentavam como oradores e professores de retórica, propon-do--se preparar as elites para o exercício do poder político.

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Page 157: Filo So Fos Dose Culo Xx

Verdade

No contexto da filosofia de Platão, a Verdade é o conhecimento do mundo inteli-

gível (imutável e original, dá sentido a toda a realidade sensível) que os filósofos

procuram alcançar. Para os sofistas, a verdade é um ponto de vista sobre o mun-do que é legitimado pela discussão e pela capacidade persuasiva do discurso.

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Page 158: Filo So Fos Dose Culo Xx

Verificação (princípio de)

Teoria segundo a qual os enunciados que não sejam leis lógicas só têm sentido se forem verificáveis empiricamente.

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