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Filosofia e Ética 2014

Filosofia e Ética

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FILOSOFIA E ÉTICA

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Filosofia e Ética

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Editorial

© UniSEB © Editora Universidade Estácio de SáTodos os direitos desta edição reservados à UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá.

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico, e mecânico, fotográfi co e gravação ou qualquer outro, sem a permissão expressa do UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. A violação dos direitos autorais é

punível como crime (Código Penal art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126).

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Comitê EditorialSergio Cabral

Claudete VeigaClaudia Regina de Brito

Organizador do LivroKaren Fernanda Bortoloti

Autores dos OriginaisKaren Fernanda Bortoloti

Rodrigo Rizério

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Filosofia e ÉticaCapítulo 1: Filosofia e Ética ................... 7

Objetivo da sua aprendizagem ........................... 7Você se lembra? ......................................................... 7

1.1 Introdução à Filosofia ............................................... 81.2 A passagem do mito à Filosofia .................................... 13

1.3 Periodização da História da Ética ....................................... 201.4 Quadro de doutrinas éticas fundamentais ao longo da História

da Filosofia .......................................................................................... 291.5 Ética filosófico e os problemas éticos .............................................. 53

Reflexão ...................................................................................................... 61Leitura recomendada ...................................................................................... 62

Referências ........................................................................................................ 62Capítulo 2: Ética e Moral .................................................................................. 65

Objetivos de Aprendizagem: ................................................................................. 65Você se lembra? ........................................................................................................ 65

2.1 Distinção entre ética e moral ............................................................................... 662.2 Perspectiva ética e moral das normas e valores .................................................... 73

Atividades ..................................................................................................................... 76Reflexão ......................................................................................................................... 77Leitura recomendada ...................................................................................................... 78Referências ..................................................................................................................... 79No próximo capítulo ...................................................................................................... 79Capítulo 3: Filosofia e Política ................................................................................... 81Objetivos de sua Aprendizagem .................................................................................. 81Você se Lembra? ....................................................................................................... 81

3.1 Introdução ........................................................................................................ 823.2 Política em Platão ......................................................................................... 83

3.3 Política em Aristóteles ............................................................................. 853.4 Política em Maquiavel ........................................................................... 88

3.5 Doutrina do Direito Divino ............................................................... 923.6 Teoria do Contrato Social .............................................................. 93

3.7 Política e educação .................................................................... 96Atividades ..................................................................................... 99

Reflexão ................................................................................. 100Leitura Complementar ...................................................... 100

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oReferências .................................................................................................................... 100No próximo capítulo ..................................................................................................... 101Capítulo 4: O Compromisso Ético na Construção do Conhecimento: .................. 103Objetivos de sua aprendizagem .................................................................................... 103Você se Lembra? ........................................................................................................... 1034.1 Introdução .............................................................................................................. 1044.2 Ciência e Técnica ................................................................................................... 1064.3 Breve histórico da relação “Técnica e Ciência” ................................................... 1084.4 Os efeitos da técnica .............................................................................................. 1104.5 A técnica e a essência da técnica ............................................................................ 112Atividades ..................................................................................................................... 116Reflexão ........................................................................................................................ 117Leitura Complementar .................................................................................................. 118Referências .................................................................................................................... 118No próximo capítulo ..................................................................................................... 119Capítulo 5: Responsabilidade Social ......................................................................... 121Objetivos de aprendizagem: ......................................................................................... 121Você se lembra? ............................................................................................................ 1215.1 Definição e disseminação do conceito no mundo e no Brasil ............................... 1225.2 Global Compact ..................................................................................................... 1325.3 Ética no mundo contemporâneo ............................................................................. 1355.4 Ética e Política no Brasil ........................................................................................ 138Referências .................................................................................................................... 149

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o Prezados(as) alunos(as)A filosofia é um produto cultural do

ocidente que, desde a sua origem, no século VI a.C., influencia o modo de pensar do homem

ocidental.Trata-se de um tipo de reflexão sobre a realidade

que busca rigor e radicalidade no modo de tratar os pro-blemas. Não tem um assunto específico, pois pode voltar-se

para qualquer tema ou assunto de interesse do homem.Esperamos que você seja capaz de identificar as diversas

fases do pensamento ocidental, suas características distintivas e seus principais autores, além de reconhecer os problemas filosó-

ficos que têm repercussão no âmbito da prática Conhecendo ideias é que desenvolvemos as nossas próprias ideias, e o curso de filosofia

nada mais almeja senão isso: fomentar ideias.

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Cap

ítulo

1 Filosofia e Ética

Neste capítulo conheceremos de maneira introdutória o que é Filosofia e Ética, como

e quando surgiram e como se caracterizaram o tipo de abordagem teórica própria da Filosofia.

Objetivo da sua aprendizagem• Você deverá ser capaz de reconhecer a importância

da Filosofia para a formação do pensamento ocidental e para a construção do senso crítico de cada ser humano em específico.

Você se lembra?De algum filósofo importante da história e alguma de suas ideias?

O que você achou interessante no que ele disse?

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1.1 Introdução à Filosofia

A Filosofia é um produto cultural da huma-nidade, criado há mais de 27 séculos e que, desde então, com maior ou menor influência, tem acompanhado o desenvolvimento da ci-vilização ocidental. Houve épocas em que a filosofia permaneceu esquecida ou apagada, quando, durante a Idade Média, as autorida-des religiosas consideravam perigoso o seu estudo, já que ele poderia supostamente levar à perda da fé em Cristo.

Contudo, não é possível entender o nosso mundo ocidental sem a filosofia, pois foi o tipo de explicação do mundo por ela inaugurado que construiu a nossa visão de mundo. A Filosofia contribuiu para a formação da religião cristã, especialmente com relação ao catolicis-mo; foi importante quando do surgimento da ciência, no século XVII; foi responsável pela construção de ideias como as de corpo, alma, espírito, enfim, muitos dos conceitos e das ideias que hoje usamos sem conhecer sua origem tiveram para sua consolidação a influência e a contribuição da filosofia.

O estudo da filosofia, tem o objetivo de apresentar a disciplina em caráter introdutório, explicitando seus períodos históricos e suas princi-pais características, assim como relacionando os conceitos da Filosofia com os conceitos que também ajudam a pensar a prática. Vale lembrar que a Filosofia é uma disciplina essencialmente teórica, o seu objetivo é desenvolver nossa capacidade de pensar e criticar, através do estudo e do debate acerca de ideias. Como ela será, na prática, utilizada depende da criatividade de cada um, pois não existe uma única receita de como “apli-car” a filosofia. Seu estudo deve desenvolver em nós o senso crítico e nos tornar capazes de pensar a realidade de modo mais profundo e original.

Dito isso, façamos uma primeira caracterização do que é Filosofia. Em geral, começamos a explicar a filosofia por meio da apresentação do significado da palavra. A palavra filosofia tem origem grega, pois a Filosofia, como veremos, surgiu na Grécia Antiga: filo quer dizer amor, amizade ou atração; sofia significa conhecimento ou sabedoria. Portanto, a filosofia consiste em um amor ou amizade pelo saber ou conhecimento. Qual conhecimento? Qualquer um. Em certo sentido, podemos dizer que

Conexão: Para uma introdu-

ção ao estudo da Filosofia, visite o seguinte endereço: <http://

portal.filosofia.pro.br/>. Nesse endere-ço você encontrará, de forma acessível e resumida, uma discussão a respeito

dos principais e mais tradicionais problemas com os quais a filosofia

se envolveu ao longo de sua história.

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qualquer pessoa que é “apaixonada” por um tipo de estudo qualquer é filósofa, pois, inicialmente, filosofia significa apenas atração pelo saber.

O primeiro a utilizar a palavra foi o filósofo e matemático Pitágoras, e com isso ele queria expressar o fato de que apenas os deuses são sábios, os homens podem quando muito se aproximar da sabedoria, buscá-la ou sentir por ela atração, mas nunca poderão ser, em sentido estrito, consi-derados “sábios”. Com efeito, nunca saberemos tudo, pois sempre haverá algo de que ainda não sabemos, e a capacidade humana de conhecimento é infinita.

Contudo, apesar de ser um “amor ao conhecimento”, a filosofia não se confunde com a ciência. Em que Filosofia e ciência são diferentes? Ora, antes de tudo no fato de que as ciências possuem, cada qual, um ob-jeto específico de estudo. Isso significa que a Física, por exemplo, estuda algo de específico e distinto da Química, da Biologia ou da Psicologia. Cada ciência tem o seu ramo de atuação e só fala a partir dele. Já a filo-sofia não tem objeto específico, ou seja, podemos usar o tipo de reflexão da filosofia para pensar sobre qualquer assunto. Podemos, pois, refletir filosoficamente sobre a vida, sobre o mundo, sobre a ciência, sobre o conhecimento, sobre a sociedade ou, ainda, sobre o mundo dos negócios. Portanto, a filosofia não tem propriamente conteúdo, no sentido de que não tem um único assunto. Trata-se antes de um modo de pensar, que pode ser “aplicado” em qualquer assunto.

Que características possui esse modo de pensar?Por um lado, a filosofia evita qualquer tipo de dogmatismo. Um

dogma é uma verdade inquestionável, proferida por alguma autoridade e que todos devem simplesmente aceitar. Não se pode duvidar ou pensar di-ferente do dogma. A filosofia evita cair nesse tipo de atitude. Ela é sempre aberta a críticas e a novas construções, sempre é possível pensar de modo diferente daquele que alguém pensou e seguir um caminho distinto.

Dogmatismo, do grego dogmatikós, significa o que se funda em princípios ou o que é relativo a uma doutrina. O dogmatismo designa as

verdades inquestionáveis: o indivíduo, de posse de uma verdade, fixa-se nela e abdica de continuar a busca por outras verdades. A palavra ceticismo vem do grego sképsis, que significa investigação, procura. O cético tanto

procura que acaba concluindo pela impossibilidade do conhecimento.

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Por outro lado, a filosofia também não se fecha no ceticismo. O ceticismo consiste em negar que seja possível alcançar a verdade e que devemos ficar apenas na dúvida. Ora, quando pensamos filosoficamente, apesar de não ser o nosso desejo estabelecer uma verdade inquestionável e única, nem por isso negamos que aquilo que falamos seja uma verdade, ainda que parcial. Filosofia é sempre busca da verdade, ainda que uma busca interminável e jamais concluída.

Além de evitar tanto o dogmatismo quanto o ceticismo, a filosofia caracteriza-se por ser um tipo de reflexão. O termo reflexão vem do verbo latino reflectere, que significa “voltar atrás”. Filosofar, portanto, significa retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar, examinar detidamen-te, prestar atenção e analisar com cuidado.

Em contrapartida, não é qualquer tipo de reflexão. Não é correto dizer que sempre quando refletimos sobre algo estamos filosofando. Para que isso aconteça, precisamos seguir alguns caminhos. Quais são eles? Bom, a reflexão filosófica deve ser:

a) Radical: dizer que a reflexão filosófica é radical significa afirmar que é uma reflexão profunda, que vai até as raízes da questão ou problema, até os seus fundamentos. Comumente, quando pensamos em algo, permanecemos na superficialidade do que todo mundo diz ou pensa. Pensar filosoficamente é ir mais além, pensar de modo próprio e profundo.

b) Rigorosa: a reflexão filosófica é rigorosa porque segue regras e métodos específicos. Para ser profunda, uma reflexão precisa ser realizada com rigor, colocando de lado as conclusões da sabedoria popular ou os preconceitos que trazemos conosco a respeito de de-terminado tema.

c) De conjunto: além do que já foi dito, a reflexão filosófica deve ser também de conjunto, e isso significa que devemos pensar cada problema relacionando todos os seus aspectos, isto é, pensando cada aspecto do problema com relação aos demais, construindo uma visão do todo. Uma reflexão filosófica não pode ser parcial, privile-giando um ponto de vista, mas total ou global. Todas as vezes, portanto, em que pensamos de modo radical, rigo-

roso e de conjunto estamos filosofando. Você já se perguntou a respeito das relações entre um indivíduo e o grupo social em que ele vive? Se é nossa vontade individual ou a vontade coletiva que deve prevalecer? Já se perguntou quem somos nós? O que é razão? O que é virtude? O que é

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Filosofar significa questionar-se: O que é? /

Como é? / Por que é?Dirigindo-se ao mundo que nos cerca e

aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam.

liberdade? Por que nascemos e morremos? De onde viemos e para onde vamos? (Dentre outras perguntas, é claro!) Tais dúvidas atravessaram os séculos e permanecem no decorrer do desenvolvimento da humanidade, sem respostas conclusivas. Pensar sobre elas filosoficamente é pensar, como dito, de maneira radical, rigorosa e de conjunto.

Muitos de vocês com certeza irão perguntar-se: mas para que estu-dar filosofia? Qual é a sua utilidade? Bom, esse tema é complicado, pois a filosofia, estritamente falando, não é, por assim dizer, útil. Como assim? Com ela não aprenderemos como con-sertar uma torneira quebrada, como organizar as luzes de uma casa ou como armazenar produtos em uma prateleira. Isto é: a filo-sofia não tem uma utilidade imediata ou prática. Isso sig-nifica que ela seja completa-mente inútil?

Não. Com efeito, a filo-sofia tem uma aplicação indireta, no sentido de que seu estudo de-senvolve nossa capacidade de pensar e nosso senso crítico, tornando-nos capazes de refletir sobre a realidade de modo profundo, rigoroso e global. Certa-mente não podemos “ver” nosso pensamento, e isso faz com que frequen-temente pensemos que a filosofia nada fez conosco. Mas ela está lá, quan-do conversamos com alguém sobre algum assunto e conseguimos expor nossos argumentos de forma consistente e lógica; quando conseguimos resolver um problema, percebendo sua relação com outros problemas; quando conseguimos relativizar nossas opiniões e aprendemos a ouvir o outro e entender seu ponto de vista. Portanto, a questão não é o que pode-mos fazer com a filosofia, mas sim: o que ela pode fazer conosco? E ela pode transformar nosso pensamento e nos tornar pessoas mais críticas.

O administrador de empresas e professor de filosofia João Mattar apresenta testemunhos de administradores que se aproveitaram do estudo da filosofia. Vejamos o que diz um deles, Marshall E. Dimock:

Vários homens de negócios já diziam, na década de 1930, que os executivos de alto nível são pagos para ser filósofos, e que esses homens procuram descobrir a razão por que as instituições sobrevi-

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vem e prosperam ou definham e declinam. Esses mesmos homens já me disseram inúmeras vezes, durante meus estudos, que o filóso-fo da instituição é o homem mais prático e também o mais necessá-rio da organização.

Ora, nesse testemunho ficamos sabendo que um bom executivo deve ser, sob certo aspecto, um filósofo. Em que sentido? Ele deve ser não apenas um homem de ação, mas também capaz de pensamento e reflexão, pois deve ser capaz de pensar o funcionamento das institui-ções, os mecanismos que as fazem prosperar ou declinar. A ação sem pensamento é instintiva e perigosa; o pensamento sem ação é cego. Por isso é preciso ser um pouco filósofo, mesmo quanto ao trabalho de um executivo.

João Mattar oferece, ainda, outro testemunho, dessa vez do bra-sileiro Roberto de Mello:

O estudo da filosofia me tem alegrado, formado e desenvolvido, me tem ensinado literalmente a pensar melhor e, portanto, a en-xergar mais claramente meu mundo de Administrador profissio-nal, a tomar decisões mais adequadas, a ter mais equilíbrio, a ser mais criativo, a julgar com mais sabedoria”.

Dessa vez ficamos sabendo, ainda, que o estudo da Filosofia pode ser, além do mais, prazeroso. Além disso, completando o teste-munho anterior, pode fazer-nos pensar melhor, enxergar as coisas com mais claridade e por consequência tomar melhores decisões, com mais criatividade e sabedoria.

É nessa direção, pois, que está a “utilidade” da Filosofia. Se pensar com mais rigor for útil, se abandonar os preconceitos do senso comum for útil, se desenvolver nossa criatividade e nossa originali-dade for útil, se aprender a ver os diversos aspectos de um problema e entender todos os pontos de vista de uma questão for útil, então a filosofia se mostra da máxima utilidade, seja em que profissão for, es-pecialmente no que diz respeito ao administrador, que deve ser alguém dinâmico e capaz de lidar com uma variedade de problemas e dificul-dades em seu cotidiano.

MATTAR, João. Filosofia e ética na Administração. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 19.

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1.2 A passagem do mito à Filosofia

Antes de iniciarmos nosso estudo, é necessário analisarmos a ori-gem da Filosofia. Sabemos que a filosofia surgiu na Grécia , mas poucos conseguem dissertar a respeito dessa origem e o que exatamente contri-buiu para a transformação mais significativa da história do pensamento ocidental. A filosofia nasceu na Grécia por volta dos séculos VI e VII a.C., promovendo a passagem do pensamento mítico ao pensamento racional. Essa passagem, todavia, ocorreu por meio de longo processo histórico, sem um rompimento brusco com as formas de conhecimento anteriores. Os primeiro filósofos gregos compartilharam de crenças míticas, enquanto desenvolviam o conhecimento racional que, posteriormente, caracterizaria a filosofia.

Tudo isso ocorreu porque o povo grego cultuava uma série de deuses, semideuses e heróis, contribuindo para o fortaleci-mento de uma rica mitologia, isto é, um conjunto de lendas e crenças que forneciam explicações para a realidade. A passagem da mitologia para o logos (uso da razão) ocorreu quando se tornou necessário o uso da razão para a solução dos problemas apresentados pela pólis, cidades-Estado. A pólis foi uma forma de organização social e política desenvolvida entre os séculos VIII e VI a.C. Durante o governo democrático, tornou-se necessá-rio o desenvolvimento das habilidades de argumentação, pois os assuntos da cidade eram decididos em conjunto, e quem sabia falar melhor sempre conseguia impor suas ideias sobre os outros.

A prática constante da discussão política pelos cidadãos fez com que o raciocínio bem formulado e convincente se tornasse o modo ado-tado para se pensar sobre todas as coisas, não só as questões políticas. Assim, há uma estreita ligação entre o desenvolvimento das cidades-Esta-do e o pensamento racional. Alguns pensadores chegam mesmo a afirmar que a filosofia é filha da cidade.

Voltemos-nos, porém, mais pormenorizadamente à distinção entre mito e filosofia, para entender melhor como se deu a passagem de um para a outra.

Em primeiro lugar, vamos definir melhor o que é um mito. Um mito não é uma história simplesmente inventada ou ficção; trata-se de um

Conexão:

Para um estudo mais profundo acerca dos mitos

gregos, assim como acerca da distinção entre deuses, ninfas, titãs e outras figuras mitológicas, visite o site <http://www.suapesquisa.

com/mitologiagrega/>.

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modo sobrenatural de explicar a realidade, que usa nessa explicação figu-ras de deuses ou seres imortais, que seriam as causas de tudo o que acon-tece no mundo. Não é uma mentira criada para enganar o povo: as pessoas realmente acreditavam no que os mitos diziam.

Entretanto, para tornar isso ainda mais claro, conheçamos um mito grego, para entender melhor como os gregos, antes da filosofia, explica-vam a realidade.

Mito de Narciso

O mito de Narciso conta a história de um rapaz extremamente boni-to e que era admirado por todas as moças de sua região. Todas eram perdi-damente apaixonadas por ele, mas Narciso, devido a sua enorme vaidade, sempre desprezava a todas. Uma dessas moças era a ninfa Eco, e era muito apaixonada por Narciso. Contudo, tinha vergonha de dizer isso a ele. Além do mais, Eco tinha um grave defeito: ela falava demais. Sempre em qualquer conversa Eco tomava a palavra e já não parava de falar. Seu maior e mais importante defeito, portanto, era a tagarelice.

HTTP://PT.WIKIPEDIA.ORG/W

IKI/NARCISO

NINFA: na mitologia grega, ninfas são espíritos femininos que habitam lagos, riachos, rios ou bosques. Em geral personificam a gra-ça criativa e a fecundidade da natureza.

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Os deuses gregos

eram em tudo semelhantes aos seres humanos: sentiam inveja, ciúme, traíam, mentiam e tinham até

mesmo desejo sexual. O que diferenciava os deuses dos seres humanos era o fato de

possuírem poderes especiais e, sobretudo, o fato de serem imortais.

Certo dia Zeus, o mais importante dos deuses gregos, estava train-do sua esposa Hera com algumas amigas de Eco. Hera, porém, descon-fiou da traição e resolveu averiguar o que estava fazendo o seu marido. Contudo, Eco começou a conversar com Hera para distraí-la e impedir que ela pegasse o marido em flagrante. Como consequência, as amigas de Eco fugiram e Zeus não foi apanhado em traição.

Contudo, Hera descobriu o truque de Eco e resolveu puni--la: uma vez que Eco gostava muito de falar, ela seria cas-tigada com o silêncio: não falaria mais nada, a não ser repetir as últimas palavras que as pessoas dissessem.

Um dia Narciso andava por um bosque e Eco, escondida, o viu. Como era muito apaixonada por ele, queria lhe falar, mas não podia, devido ao castigo que recebera de Hera. Então fez um barulho na mata a fim de chamar a sua atenção. Ouvindo o baru-lho, Narciso perguntou:

— Quem está aí?— Quem está aí?, respondeu Eco.Narciso, ao ouvir aquela voz, ficou muito encantando, pois a voz era

muito bonita. Perguntou, então:— O que você está fazendo aí?— O que você está fazendo aí?, respondeu Eco.— Ora, venha até aqui!— Venha até aqui!, respondeu Eco.A voz que Narciso ouvia era tão bela que ele pensou que quem a

possuía só podia ser alguém de uma beleza extraordinária. Então, falou:— Saia daí, quero namorar você.— Namorar você, respondeu Eco e saiu de onde estava escondida.Porém, ao vê-la, Narciso decepcionou-se e não quis ter nada com

ela. Pelo contrário, desprezou-a e a mandou embora. Eco ficou muito triste, de tal forma que perdeu até mesmo o apetite. Como consequência, começou a enfraquecer e por fim transformou-se em rocha. É ela que

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ouvimos quando, dentro de uma caverna, por exemplo, gritamos algo e recebemos de volta a nossa voz.

Contudo, os deuses sentiram piedade de Eco e resolveram castigar Narciso. Enviaram-lhe então uma forte sede, e ele, desesperado, procurou imediatamente um lago para beber um pouco de água. Quando se apro-ximou do lago, porém, viu sua própria imagem refletida na água e, sem perceber que era ele próprio, começou a conversar com a imagem:

— Quem é você?Mas a imagem nada respondia. Narciso tentou até tocar a imagem,

mas, assim que o fazia, ela se afastava. Então, desesperado de amor, ele pulou na água a fim de abraçar a imagem, pois sentia-se incontrolavel-mente apaixonado por ela. O problema é que ele não sabia nadar e, por-tanto, morreu afogado.

Para pensarOs gregos usavam mitos como o de Narciso para educar os jo-

vens ou mesmo, em alguns casos, para explicar fenômenos da natureza. O que o mito de Narciso, que conhecemos, poderia ensinar a um jovem?

Filosofia

A Filosofia surge, portanto, como uma forma de romper com o tipo de explicação da realidade que caracteriza o mito. Se o mito antes explica-va a realidade por meio do sobrenatural ou divino, e afirmava a presença ou interferência dos deuses na vida humana, a filosofia tentará explicar a realidade apenas a partir da razão ou inteligência e usando para tanto ape-nas o mundo, ou seja, sem o recurso a seres ou coisas sobrenaturais.

Isso, como dizemos, aconteceu na Grécia Antiga, mais especifica-mente por volta do século VI a.C. Porém, não foi propriamente na Grécia que a Filosofia surgiu, mas em colônias gregas, que ficavam na costa ocidental da Ásia e no que é hoje o sul da Itália. O mapa a seguir ajuda a visualizar essa região e aponta as localidades em que viveram alguns dos filósofos antigos.

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Roma

Eléia| Xenófanes,Parmênides,

Zenão |

Agrigento | Empédocles |

Crotona | Pitágoras |

Atenas | Sócrates |

Esparta

Tróia

Clazómenas | Anaxágoras |

Mileto | Tales, Anaximandro, Anaxímenes |

Éfeso | Heráclito |

Abdera | Demócrito |

Estagira

Micenas

MAGNA

G

RÉCIA

JÔNIA

GRÉCIA

Mar Mediterrâneo

A costa ocidental da Ásia era conhecida à época como Jônia, e foi nessa região, numa cidade chamada Mileto, que nasceu aquele que é con-siderado o primeiro filósofo, Tales. Onde hoje é o sul da Itália era uma região conhecida como Magna Grécia, e nela floresceu Pitágoras, um dos mais influentes pensadores gregos. Apenas cerca de um século após a criação da Filosofia ela foi para a cidade grega de Atenas, onde flores-ceram Sócrates, filósofo que divide a filosofia grega em antes e depois dele, além de Platão e depois Aristóteles, que não era ateniense, mas viveu grande parte de sua vida em Atenas.

Entretanto, o desenvolvimento da filosofia grega, suas diversas eta-pas e características conheceremos mais adiante.

O que é Filosofia?O homem, diz-se, é naturalmente filósofo, “amigo da sabedoria”.

E é verdade. Ávido de saber, não se contenta em viver o momento presente e aceitar passivamente as informações fornecidas pela expe-riência imediata, como fazem os animais. Seu olhar interrogativo quer conhecer o porquê das coisas, sobretudo o porquê da própria vida.

Mas, enquanto o homem comum, o homem da rua, formula estas interrogações e enfrenta estes problemas de maneira descontínua, sem método e sem ordem, pessoas há que dedicam a essas pesquisas todo o seu tempo e todas as suas energias e propõem-se a obter uma solução concludente para todos os ingentes problemas que espicaçam a mente humana, por meio de uma análise aprofundada e sistemática. São estas as pessoas que costumamos chamar “filósofos”.

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Mas, então, o que é exatamente a Filosofia?É um conhecimento, uma forma de saber e, como tal, tem sua esfera

particular de competência; sobre esta esfera busca adquirir informações válidas, precisas e ordenadas. Mas, enquanto é fácil dizer qual é a esfera de competência das várias ciências experimentais, não é igualmente cômodo delimitar o campo de pesquisa próprio da filosofia. É sabido, por exemplo, que a botânica estuda as plantas, a geografia os lugares, a história os fatos, a medicina, as doenças etc. Mas a filosofia, que estuda ela? No entender dos filósofos, ela estuda tudo. Aristóteles, o primeiro a pesquisar rigorosamente e sistematicamente a natureza desta disciplina, diz que a filosofia estuda “as causas últimas de todas as coisas”. Cícero define a filosofia como sendo “o estudo das causas humanas e divinas das coisas”. Descartes afirma que a Filosofia “ensina a bem raciocinar”. Hegel concebe a filosofia como “sa-ber absoluto”. Whitechead julga que seja tarefa da Filosofia “fornecer uma explicação orgânica do universo”. Poderíamos citar muitos outros filóso-fos, que definem a Filosofia quer como estudo do valor do conhecimento, quer como pesquisa sobre o fim último do homem, quer como estudo da linguagem, do ser, da história, da arte, da cultura, da política etc. Com efei-to, coerentes como estas definições discrepantes, os filósofos estudaram todas as coisas. Devemos, pois, concluir que a Filosofia estuda tudo? Sem dúvida. Isto por duas razões.

Em primeiro lugar, porque todas as coisas, além de poderem ser examinadas em nível científico, podem sê-lo também em nível filosófico.

Assim, os homens, os animais, as plantas, a matéria, já estudados por muitas ciências e sob diferentes pontos de vista, são suscetíveis também de uma pesquisa filosófica. Com efeito, os cientistas se inter-rogam sobre a constituição da matéria, perguntam-se o que é a vida, como estão estruturados os animais e o homem, mas não chegam a enfrentar certos problemas também referentes ao homem, aos animais, às plantas, à matéria: por exemplo, o que seja o existir. Especialmente com relação ao homem, do qual as ciências estudam múltiplos aspec-tos, são muitos os problemas que nenhuma delas enfrenta (enquanto os supõe já resolvidos), como o valor da vida e do conhecimento humano, a liberdade, a natureza do mal, a origem e o valor da lei moral. Somen-te a filosofia se ocupa destes problemas.

Em segundo lugar, porque, enquanto as ciências estudam esta ou aquela dimensão da realidade, a filosofia tem por objeto o todo, a tota-lidade, o universo tomado globalmente.

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Eis, pois, a primeira característica que distingue a filosofia de qualquer outra forma de saber: ela estuda toda a realidade ou, de algum modo, procura apresentar uma explicação completa e exaustiva de um domínio particular da realidade.

Mas há também outras três qualidades que contribuem para dar ao saber filosófico um caráter próprio e específico: o instrumento de pesquisa, o método e o escopo.

O instrumento de trabalho, de pesquisa, de análise de que a Fi-losofia se utiliza é a razão, a razão pura, o “raciocínio puro”, como diz Platão. Ela não dispõe de microscópios, telescópios, máquinas fotográ-ficas etc. Não pode estabelecer controles com instrumentos materiais nem apressar suas operações recorrendo a computadores. Mesmo os instrumentos cognitivos de que utiliza todo homem e todo cientista, os sentidos e a imaginação, ao filósofo só servem na fase inicial, para conseguir alguns conhecimentos do real, para o qual depois volta o olhar penetrante da razão. O trabalho verdadeiro e próprio de pesquisa filosófica é realizado apenas pela razão; esta, para subtrair-se a todo tipo de distração, encerra-se em seu sagrado recinto, longe do barulho das máquinas, da sedução dos prazeres e da práxis, da confusão dos sentidos, em solitária companhia com o próprio objeto.

O método da filosofia é essencialmente raciocinativo, embora não exclua algum momento intuitivo (quer na fase inicial, quer na final). Mas os processos raciocinativos são múltiplos, e os mais impor-tantes dentre eles são a indução e a dedução. A filosofia utiliza ambos: o primeiro, para ascender dos fatos aos princípios primeiros; o segun-do, para descer de novo dos primeiros princípios e iluminar posterior-mente os fatos, para compreendê-los melhor.

Além da natureza e do método, a filosofia se distingue das ciên-cias também no fim (escopo). A filosofia não está voltada para fins prá-ticos e interesseiros, como a ciência, a arte, a religião e a técnica; estas, de um modo e de outro, sempre têm em vista alguma satisfação ou al-guma vantagem. A filosofia tem como único objetivo o conhecimento; tem em vista simplesmente pesquisar em si mesma, prescindindo-se eventuais utilizações práticas. A filosofia tem um objetivo puramente teórico, ou seja, contemplativo; não pesquisa por nenhuma vantagem que lhe seja estranha, mas por ela mesma; por isso, como disse egre-giamente Aristóteles na Metafísica, ela é “livre” enquanto não está

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sujeita a nenhuma utilização de ordem prática e, portanto, realiza-se e se resume na pura contemplação do verdadeiro.

Já dissemos anteriormente que todas as coisas são suscetíveis de pesquisa filosófica. Por isso, pode haver uma filosofia do homem, dos animais, do mundo, da vida, da matéria, dos deuses, da sociedade, da política, da religião, da arte, da ciência, da linguagem, do esporte, do riso, do jogo etc. Mas, na realidade, os que se chamam filósofos estudam de preferência apenas alguns problemas, os que são conheci-dos com o nome de lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética, teodiceia, psicologia, política, estética, antropologia cultural e axiologia; por isto estas constituem também as partes principais da filosofia. A lógica se ocupa do problema da exatidão dos raciocínios; a epistemologia, do valor do conhecimento; a metafísica, do fundamento último das coisas em geral; a cosmologia, da constituição essencial das coisas materiais, da sua origem e de seu devir; a psicologia, da nature-za humana e de suas faculdades; a teodiceia, do problema religioso, ou seja, da existência e da natureza de Deus e das relações que os homens têm com ele; a ética, da origem e da natureza da lei moral, da virtude e da felicidade; a política, da origem e da estrutura do Estado; a estéti-ca, do problema do belo e da natureza e função da arte; a antropologia cultural, do problema da cultura; a axiologia do problema dos valores.

Quem quer tornar-se especialista nas disciplinas filosóficas deve, logicamente, estudar, profunda e sistematicamente, todos os problemas mencionados, sob cada um dos quais, através dos séculos, acumulou-se uma bibliografia imensa.

MONDIN, Battista. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores e obras. 16. ed. São Paulo: Paulus, 2006, p. 5- 8;

1.3 Periodização da História da Ética

1.3.1 As Origens

Com a vitória da democracia escravista, no século V a.C., surgem na Grécia, particularmente em Atenas, os primeiros problemas éticos referen-tes à vida pública na pólis (cidade) ocasionados pelo novo regime político.

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É nesse sentido que a Ética relaciona-se de maneira primordial com a Política, isto é, com o comportamento humano na vida em sociedade. Ou, como será definida mais tarde, como a práxis do bem comum.

Originalmente, a pólis grega é a fortaleza dos homens livres, ca-pazes de se defenderem, incluindo aí a defesa à propriedade da terra, porque o direito à cidadania, naquele momento histórico, é inseparável da posse da terra.

A partir do século V a.C., a cidade-fortaleza se transforma na pólis democrática, na qual a nobreza, ligada à propriedade de terras, terá de re-partir o poder com a aristocracia surgida do comércio. A pólis se constitui como o Estado (cidade-estado) dos homens livres, que possuem o direito à cidadania, à proteção das leis e à participação nos destinos sociais (polí-ticos, econômicos e militares) da cidade. Dessa sociedade estão excluídos, portanto, os não livres: estrangeiros, mulheres, crianças e os escravos, que são considerados como instrumentos de trabalho (“mercadorias”: drapo-don, que significa criatura vivente com pés humanos), equivalentes a um bem móvel do proprietário de terras.

Nesse período, a virtude objetiva – que fundamenta as relações humanas na polis – é a justiça. Ela é a síntese de todas as virtudes morais subjetivas, pelo fato de conferir-lhes um sentido social. É por ela que o homem virtuoso torna-se um bom cidadão. Assim sendo a justiça é a vir-tude da sociedade e da cidadania.

É nesse contexto que os jovens aristocratas devem ser preparados para a vida política, ou seja, para participarem das assembleias (agôn) em praça pública (ágora) sobre o destino da pólis.

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Com Sócrates tem-se o ensino da virtude através da dialética; teve participação ativa na vida da cidade, dominada pela desordem intelectual e social, submetida à demagogia dos que sabiam falar bem. Convidado a fazer parte do Conselho dos 500, manifesta sua liberdade de espírito combatendo as medidas que julgava injustas, mantendo-se independente em relação às lutas travadas entre os partidos da democracia e da aristocracia. Acreditando em uma voz interior, realiza a tarefa de educador público e gratuito. “O homem mais justo de seu tempo”, diz Platão, foi condenado à morte sob acusação de impiedade e de corrupção da juventude. Seria sua mor-te o fracasso da filosofia diante da violência dos homens? Ou não, indicaria ela que o filósofo é um servidor da razão, e não da violên-cia, acreditando mais na força das ideias do que na força das armas? (JAPIASSÚ, 2001, p. 251-252).

Em Platão, a educação, tem uma finalidade claramente política: conduzir o cidadão pelo caminho da luz, da virtude e da justiça, para de-sempenhar com adequação o seu papel na polis. Para Platão, conhecer o Bem significa tornar-se virtuoso. Aquele que conhece a justiça não pode deixar de agir de modo justo.

Dois pontos fundamentais emergem da discussão platônica sobre questões éticas. O indivíduo que age de modo ético é aquele que é capaz de autocontrole, de “governar a si mesmo”. Entretanto, a possibilidade de agir corretamente e de tomar decisões éticas depende de um conheci-mento do bem, que é obtido pelo indivíduo por meio de um longo e lento processo de amadurecimento.

Finalmente, em Aristóteles, aponta-se para uma educação sistemá-tica, que enaltece os valores intelectuais e éticos subordinando os valores materiais e sensíveis.

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Compreende-se educação como atribuição do

Estado a fim de dar condições para o cidadão (animal político) desenvolver suas

potencialidades, participando da vida política e, com isso, atingir a felicidade. Sua concepção é

de que o homem, é um “animal político” submetido ao Estado que, pela educação, obriga-o a realizar

a vida moral, pela prática das virtudes: a vida social é um meio, não o fim da vida moral. A

felicidade suprema consiste na contem-plação da realização de nossa forma

essencial (JAPIASSU, 2001).

A Ética a Nicômaco, de Aristóteles foi o primeiro tratado de ética da tradição ocidental e também pioneiro no uso do termo “ética” no sen-tido em que empregamos até hoje, como um estudo sistemático sobre as normas e os princípios que regem a ação humana e com base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins. Na concepção aristotélica, a felicidade está relacionada à realização humana e ao sucesso naquilo que se pretende obter, o que só dá se aquilo que se faz é bem-feito, ou seja, corresponde à excelência humana e depende de uma virtude (areté) ou qualidade de caráter que torna possível essa realização.

Algum tempo depois, a destruição da autonomia das cidades-estado, causada pela ascensão dos grandes impérios (macedônio e romano), leva os filósofos estóicos e epi-curistas a não mais relacionar a Ética com a pólis, mas sim com o kósmos (universo) e assim, não depender mais de uma deter-minada comunidade, caracteriza-da por sua organização social.

A passagem do mundo antigo para o mundo medieval ocorre por volta do século IV, quando o cristianismo torna-se a reli-gião oficial, e o modelo escravista é substituído pelo regime de servidão.

A fragmentação econômica e política é característica do mundo feu-dal, no qual a religião cristã desponta como a única fonte de unidade social.

A Ética, nesse contexto, aparece profundamente impregnada por um sentimento religioso. A natureza humana, que anteriormente achava sua realização na pólis, agora a encontra na transcendência do mundo, na cidade celeste.

O cristão, além de ser cidadão do mundo, exercitar as qualidades e virtudes morais e defender uma ordem social justa, é, também, aquele que crê em Deus, criador de tudo e doador da vida, e, pela virtude da fé, espe-ra que a vida histórica, pessoal e social tenha uma dimensão eterna.

Surge, então, uma norma moral baseada na revelação de Deus. Essa acaba estabelecendo a Filosofia como serva da Teologia (philosophia ancilla theologiae).

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A questão social, sob a ótica da Igreja

Católica, perde sua conotação clássica e transforma-se numa questão

de ordem moral: a única forma de salvar a humanidade das sequelas da questão social e das propostas comunistas e liberais estava na cristianização dos indivíduos, da família e

da sociedade. Assim, a questão social se transforma numa questão de moralismo.

Sendo assim, a Ética, no mundo medieval, é compreendida como uma doutrina moral, e a Justiça se aproxima da piedade e da santidade, condicionada pelas formulações sacras do Direito Canônico.

Para os primeiros pensadores cristãos, como Agostinho de Hipo-na (354-430 d.C.), o Direito Natural, que por razão do pecado original vinculou-se à corrupção, parece, muitas vezes, não se conformar com a vontade divina.

Essa constatação leva a Igreja a refletir sobre a relação entre a lei divina e a lei do mundo, concluindo sobre a necessidade de se restaurar o Direito Natural, o qual deveria ser entendido como a imagem da lei divi-na na alma humana. O Direito Canônico, no qual a lei humana, como as necessidades e atividades jurídicas dos fiéis, estava subordinada à autori-dade da Igreja, que tinha o dever de zelar por uma ordenação justa e santa da vida social.

Outra concepção filosófica importante na idade média é o tomis-mo. Os princípios fundamentais da metafísica tomista giram em torno da noção de essência e existência de SER Supremo que é Deus, enquanto criador de tudo o que existe, é a expressão da perfeição e da bondade, bem como é o responsável por todas as leis que regem o movimento do universo – sua criação.

Dentro desta perspectiva, o homem é um ser racional, social e político (con-cepção aristotélica) que participa da essência de seu criador e tem nele a causa suficiente para a sua existência (concepção tomista). A existência do mal no mundo é fruto da capacidade de liberda-de, inerente ao homem, e que o torna capaz de optar entre o bem e o mal, servindo-se dos atributos da vontade e da razão que são os fun-damentos do agir humano e, portanto, de seu comportamento ético/moral. Mas esta maneira de pensar ultrapassou os muros dos conventos e os monastérios e foi além da idade moderna.

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Embora os primeiros problemas éticos do Ocidente tenham surgido com os gregos, o problema da distinção entre Ética, Moral e Direito só aparece na modernidade, com a autonomia das ciências e a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo (VASQUEZ, 2000, p. 279-281).

Verifica-se, então, uma separação entre o bem (ideal) e o que é bom (real), entre o legal (jurídico) e o legítimo (justo).

Enquanto na Idade Média, a Filosofia está subordinada à Teologia, e ética e religião estão estreitamente ligadas; a Igreja se torna guardiã da moral exercendo um controle rigoroso sobre a conduta dos cidadãos, associada ao poder civil, na modernidade (séc. XVI-XIX), começa a se desenvolver uma nova tendência que desvincula definitivamente o agir do homem de uma concepção teocêntrica de mundo. As guerras de religião dos séculos XVI e XVII acentuam as divergências entre as Igrejas cristãs e contribuem para despertar a busca de uma moral “natural” ou “puramen-te racional”, que esteja acima das diferenças confessionais.

Há uma ruptura entre Metafísica e Ética e, consequentemente, com a tutela religiosa. A Ética, originada dessa tendência, atingirá seu ponto culminante no pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem o homem, e não mais Deus, apresenta-se como legisla-dor supremo.

De acordo com Immanuel Kant, o faktum moral é sempre constitu-ído da mesma forma: pelo dever e pela liberdade. O dever é incondicio-nado, expressando uma necessidade que se pronuncia, não pela natureza, mas pela razão, através de uma norma e de um fim. Em outras palavras, espera-se que o dever tenha seu fundamento, não na sensibilidade empíri-ca ou na contingência das circunstâncias, mas unicamente nas leis racio-nais, válidas para todos os homens em todas as condições.

A liberdade, por sua vez, deve ser entendida como capacidade de ele-ger uma ação possível. Trata-se, tal como o dever, de um faktum a priori da razão que enfrenta, como algo absoluto, a realidade espaço-temporal. Nesse sentido, dever e liberdade estão incorporados na essência do homem.

O projeto moderno, sintetizado no lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), não ficou isento de críticas, na tentativa de enquadrar tudo na razão e na ciência, a modernidade acabou identificando a razão com o poder.

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1.3.2 Ética na Grécia antiga

Segundo Valls (1986), a reflexão grega sobre a ética se deu como uma pesquisa sobre a natureza do bem moral, na busca de um princípio absoluto da conduta procede do contexto religioso, onde pode-se encon-trar o início de muitas ideias éticas, tendo como formulações mais conhe-cidas: “nada em excesso” e “conhece-te a ti mesmo”.

Sócrates usava o método da maiêutica que consistia em interrogar o interlocutor até que este chegue por si mesmo à verdade, sendo o filó-sofo uma espécie de “parteiro das ideias”. Há uma procura da verdade no interior do próprio homem, através do questionamento busca-se fazer um “parto” desta verdade interior. Tal ato era realizado em duas partes:

4. No primeiro momento levava seus interlocutores a duvidarem de seu próprio conhecimento a respeito de determinado assunto.

5. Em um segundo momento os leva a conceber de si mesmos uma nova ideia, uma nova opinião sobre o assunto em questão.

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Sócrates acreditava que o conhecimento poderia ser encontrado pe-las respostas a perguntas propostas de forma perspicaz.

[...] Sócrates foi chamado, muitos séculos depois, “o fundador da moral”, porque a sua ética (e a palavra moral é sinônimo de ética,

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acentuando talvez apenas o aspecto de interiorização das normas) não se baseava simplesmente nos costumes do povo e dos ances-trais, assim como nas leis exteriores, mas sim na convicção pessoal, adquirida através de um processo de consulta ao seu “demônio in-terior” (como ele dizia), na tentativa de compreender a justiça das leis. (VALLS, 1986, p. 19)

Assim, Sócrates, passou a ser considerado como o primeiro grande pensador da subjetividade.

Platão parte das ideias de que todos os homens buscam a felicida-de, sendo que a maioria das doutrinas gregas colocava a busca de felicidade no centro das preocupações éticas. Ao pesquisar as noções de prazer, sabedoria prática e virtude, colocava-se sempre a questão: onde está o Sumo Bem?

Parece acreditar numa vida após a morte e por isso prefere uma vida de virtudes ao prazer terreno. Desta forma os homens deveriam procurar a contem-plação das ideias, tendo como o conceito mais importante a ideia do Bem.

O sábio não é, então, um cientista teórico, mas um homem virtuoso ou que busca a vida virtuosa e que assim consegue estabelecer, em sua vida, a ordem, a harmonia e o equilíbrio que todos desejam. O sábio faz penetrar em sua vida e em seu ser a harmonia que vem do hábito de submeter-se à razão. Dialética e virtude devem andar jun-tas, pois a dialética é o caminho da contemplação das ideias e a vir-tude é esta adequação da vida pessoal às ideias supremas. (VALLS, 1986, p.26)

Aristóteles foi discípulo de Platão e este de Sócrates; Aristóteles foi um escritor enciclopédico e sistematizador, sua produção revelou seu vas-to conhecimento nos mais variados campos. Para Aristóteles, Platão es-

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creveu a República não só com intenções metafísicas, mas com intenções de levantar questões como política e consequentemente ética, esta última como sendo a conduta coletiva e individual dos homens.

Partindo da correlação entre o Ser e o Bem, Aristóteles insiste sobre a variedade dos seres e daí conclui que os bens devem variar, pois para cada ser deve haver um bem, conforme a natureza ou essência deste ser.

O homem se diferencia das outras espécies por ser uma entidade racio-nal, capaz de tecer ideias próprias, portanto, pode-se considerar o pensamen-to como algo extremamente especial, divino, assim quem o valoriza e pratica esse exercício racional é sábio, não necessitando de muitas outras coisas.

De acordo com Valls (1986), para Aristóteles, a função do homem era fazer com que sua alma encontrasse o equilíbrio entre a virtude e a ra-zão. As virtudes humanas se dividiam em duas: a intelectual ligada à bus-ca pela sabedoria e a virtude moral enfatizando a ação ponderada, atitudes moderadas, prudentes.

Este movimento de interiorização da reflexão e de valorização da subjetividade ou da personalidade se inicia com Sócrates e parece culmi-nar com Kant, já no final do século XVIII.

1.3.3 A ética de Kant

Kant buscava uma ética de validade universal que se apoiasse apenas na igualdade fundamental entre os homens, sua filosofia se volta sempre, em primeiro lugar, para o homem, e se chama filosofia transcendental porque busca encontrar no homem as condições de possibilidade de conhe-cimento verdadeiro e do agir livre. No centro das questões éticas, aparece o dever, ou obrigação moral, uma necessidade diferente da natural, ou da matemática, pois necessidade para uma liberdade. O dever obriga moral-mente a consciência moral livre, e a vontade verdadeiramente boa deve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever. (VALLS, 1986).

Kant por influência do movimento iluminista1 acredita na igualdade básica entre os homens, desse modo, precisa chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional, a única possível para todo e qualquer ser racional.

1 Segundo o dicionário Aurélio, o movimento iluminista partia da confiança na razão e nas ciências como motores do progresso.

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Esta moral não se interessa essencialmente pelos aspectos exte-riores, empíricos e históricos, tais como leis positivas, costumes, tradições, convenções e inclinações pessoais. Se a moral é a racio-nalidade do sujeito, este deve agir de acordo com o dever e somente por respeito ao dever: porque é dever, eis o único motivo válido da ação moral. (VALLS, 1986, p. 20)

De acordo com Valls (1986), Kant considera que os conteúdos éti-cos nunca são dados do exterior, assim cada um de nós tem uma forma de dever, esta fórmula se expressa em várias formulações, no chamado impe-rativo categórico, desta forma “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que minha máxima se torne uma lei universal”.

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1.4 Quadro de doutrinas éticas fundamentais ao longo da História da Filosofia

1.4.1 A ética no sistema filosófico aristotélico

Na filosofia aristotélica, ética e política constituem as chamadas ciências práticas, aquelas que têm no homem seu fundamento e sua finalidade, ou seja, diferentemente das teoréticas, como a física e a me-tafísica, que versam sobre objetos universais cuja existência independe de qualquer interferência ou vontade humana, o conhecimento das ações humanas lida com o que pode ou não acontecer, de acordo com a decisão do agente. A ética, portanto, refere-se ao estudo da natureza humana e das possibilidades nela inscritas, isto é, corresponde ao exame da finalidade

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natural da vida humana, o que explica sua afluência com a política, posto que para Aristóteles o homem é um ser essencialmente político 2 .

Os estudos de Aristóteles em filosofia moral são desenvolvidos coerentemente ao conjunto de seu sistema filosófico. Sabemos que esse filósofo, diferentemente de seu mestre Platão, localiza os inteligíveis necessariamente nos sensíveis, admitindo sua dissociação apenas sob o ponto de vista conceitual, ou seja, sua teoria renuncia ao dualismo ontoló-gico platônico para o qual o plano dos inteligíveis e o plano dos sensíveis existem separadamente. Assim, no sistema filosófico aristotélico, em que as formas existem exclusivamente na matéria, adquire relevância a tese das quatro causas, que pretende explicar a formação de todas as coisas que observamos no mundo e confere sentido acentuadamente teleológico ao pensamento de Aristóteles.

Para situarmos os problemas éticos no horizonte da filosofia de Aristóteles, convém relembrarmos brevemente os pontos cardeais de sua teoria. As quatro causas são a material, a eficiente, a formal e a final. A causa material consiste na matéria de que uma coisa é feita; a eficiente corresponde ao elemento que age sobre a matéria, transformando-a; a for-mal é precisamente o conteúdo que define algo como sendo o que é; e a final compreende o fim previamente determinado para o qual se destinam os seres, isto é, o motivo último pelo qual existem. Há, nessa concepção, uma supremacia da causa final, que, subordinando todas as outras causas a si, quer dizer, fazendo delas simples meios para sua realização, eviden-cia o sentido teleológico expresso na atualização de potências.

Nas relações aristotélicas entre ato e potência, vigora o pressuposto de que o fim de algo – sua forma final – está potencialmente contido em seu começo e, consequentemente, a completa atualização de uma potência é a realização plena da natureza de um ser. Nesse devir, as coisas tornam-se natu-ralmente o que são ou, em termos mais claros, cumprem-se as potencialidades presentes em sua natureza.

Sob esse prisma é que Aristóteles desenvolve suas reflexões éticas, a saber, concebendo-se a dimensão moral do homem em perfeita equiva-lência com a finalidade prescrita pela natureza para a vida humana. Nesse sentido, a excelência humana, a areté, é a atualização da potência contida

2 É preciso destacar que a palavra política em Aristóteles, bem como nos gregos antigos em geral, tem significado amplo e profundo, abrangendo a totalidade das relações sociais que configuram a pólis, desde os meios pelos quais os seres humanos asseguram sua sobrevivência até o domínio público constituído pelos cidadãos. Nesse sentido é que se deve entender a definição aristotélica do homem como ser naturalmente político, densamente registrada no início de sua obra A política, quando declara que o homem fora da sociedade não é propriamente um homem, mas uma besta ou um deus (2202, p. 5).

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na natureza dos homens ou, em outras palavras, é a consecução da função humana estabelecida pela natureza. A expressão função humana tem sig-nificado muito bem definido na filosofia de Aristóteles, especificamente por seu citado aspecto teleológico, pelo qual os seres desenvolvem-se no horizonte de sua forma plena. Assim sendo, função humana é sinônimo de fim para o qual tende naturalmente o homem, a explicitação total de sua forma, o que torna a ética aristotélica o estudo sistemático sobre a finali-dade natural da vida dos homens.

Entretanto, Aristóteles observa que a atualização da potência é menos certa nos seres humanos do que nos demais seres da natureza, pois o percurso dos homens à areté é afetado pelas intervenções dos próprios agentes humanos, com seus desejos e suas escolhas que, com relativa frequência, contrariam sua capacidade racional para a vida vir-tuosa. Afinal, se a excelência humana, como veremos, é a vida racional virtuosa, por outro lado, a natureza do homem é mista, abrigando tam-bém faculdades irracionais que são constante ameaça à primazia natural da razão.

1.4.2 A finalidade da vida humana e a felicidade como bem supremo

A investigação minuciosa das questões morais é efetuada por Aristóte-les em seu livro Ética a Nicômaco, no qual, coerentemente aos seus conceitos filosóficos mais gerais, dedica as primeiras reflexões à identificação da fina-lidade da vida dos homens. Em termos exatos, as páginas iniciais procuram delimitar filosoficamente o significado do bem, que, em sua expressão má-xima, coincide com a função humana. E mais uma vez é necessário indicar o distanciamento de Aristóteles perante Platão, pois, na concepção do filósofo estagirita, o bem não é uma ideia suprema e intangível, acima da existência concreta dos seres humanos, sendo, ao contrário, algo passível de ser atingido pelas atividades dos homens.

Em sua acepção ampla, o bem aristotélico é justamente a finalidade dos seres e das práticas humanas. Assim, recorrendo a alguns exemplos, o bem da medicina é a saúde, o bem de uma construção é o edifício, o bem da alfaiataria é a vestimenta, e o bem do escravo é servir a seu senhor. Em todas essas situações, os bens mencionados são igualmente meios para outros fins: a saúde e os préstimos da escravidão são meios para se viver, bem como as roupas e as casas são meios para vestir e morar. Consideran-

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do-se que, na filosofia de Aristóteles, a superioridade de algo é sempre di-retamente proporcional ao seu grau de autossuficiência, um bem supremo é o que é necessariamente um fim em si mesmo, sem jamais ser meio para outro fim. Portanto, todos os bens exemplificados concorrem para uma função maior, contribuindo para a finalidade da vida humana.

Esse bem supremo para os homens – a finalidade de suas vidas –, se-gundo Aristóteles, é a felicidade. A autossuficiência da felicidade explicita-se no fato de que ela é perseguida pelos seres humanos invariavelmente como um fim em si mesmo, e jamais como aquisição intermediária que proporciona o acesso a um bem maior. De acordo com o filósofo, para que tal conclusão seja aceita, basta observar que muitos homens procuram as riquezas com a convicção de que em sua posse reside a felicidade, outros dedicam-se a atrair para si as honrarias públicas, julgando o prestígio social como fonte de felicidade, e há ainda os que se empenham no desenvolvi-mento de suas virtudes, identificando-as com a felicidade. O ponto comum dessas diferentes escolhas é o fim visado pelos homens: a felicidade. Em contrapartida, não é factível supor que alguém busque a felicidade para com ela alcançar as riquezas, as honrarias ou as virtudes. A felicidade, portanto, é o bem excelente porque é exclusivamente um fim para os seres humanos, nada havendo além dela que possa ser almejado pelos homens 3.

Ao constatar a felicidade como o bem autossuficiente para os homens, e tendo antes declarado a equivalência deste com a finali-dade da vida dos seres humanos, Aristóteles elabora a seguinte inter-rogação filosófica: qual é o fim a que se destina naturalmente a vida humana? Com as reflexões desenvolvidas em torno dessa questão, o filósofo pretende evidenciar o conteúdo da felicidade, conceito cen-tral em sua teoria ética. Trata-se, então, de investigar aquilo que é específico nos homens, dotando-lhes de uma finalidade vital diferente daquelas que caracterizam os demais seres vivos, tema este que é cla-ramente contemplado no trecho seguinte:

Estaríamos nós autorizados a supor que enquanto o carpinteiro e o sapateiro têm

funções ou ocupações que lhes são pertinentes, o ser humano como tal não tenha

alguma e não esteja, por natureza, destinado a desempenhar qualquer função?

Não devemos nós, ao contrário, supor que, como o olho, a mão, o pé e cada

3 Na história da filosofia moral, o bem recebe diferentes conceituações. Nas teorias éticas hedonistas, caso, por exemplo, da escola epicurista na Grécia helenística, o bem ou bom é sinônimo de prazer. Nas filosofias utilitaristas, como são as teses de Jeremy Bentham e de John Stuart Mill, o bem equivale àquilo que é vantajoso ou o útil para o maior número de pessoas na sociedade. Em Immanuel Kant, conforme estudaremos nos próximo capítulo, o bem consiste na boa vontade.

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um dos membros do corpo tem conpiscuamente uma função própria, do mesmo

modo um ser humano tem, igualmente, uma certa função que supera todas as

funções de seus membros particulares? Qual, então, poderia ser essa função pre-

cisamente? O mero ato de viver parece ser compartilhado pelas mesmas plantas

e estamos buscando a função peculiar do ser humano. Diante disso, devemos pôr

de lado a atividade vital de nutrição e crescimento. A seguir na escala vemos al-

guma forma de vida sensitiva, porém esta, igualmente, parece ser compartilhada

por cavalos, bois e animais em geral. Resta, assim, o que pode ser denominado

de vida ativa da parte racional do ser humano. (ARISTÓTELES, 2007, p. 49-50).

Assim, Aristóteles ressalta que, como na natureza e na pólis todas as coisas prestam-se a um fim, é lícito supor uma função específica para os seres humanos. Afirma, em seguida, que o propósito da vida humana não consiste na simples atividade vital de nutrição e crescimento, condição que compartilha com a totalidade dos seres vivos, tampouco se localiza nas sensações, posto que a vida sensitiva é comum aos animais. A fina-lidade natural da vida dos homens encontra-se na faculdade que existe exclusivamente na alma humana, isto é, o princípio racional. Dessa forma, o fim ao qual se direcionam os homens é a atividade racional virtuosa ou, em linguagem diferente, a felicidade é exercício contínuo da razão ao lon-go de uma vida.

Sendo assim, no horizonte filosófico aristotélico, a felicidade não coincide com os bens do corpo, a sensualidade e o deleite de objetos ma-teriais, o que manteria o homem como ser indiferenciado no conjunto da animalidade, do mesmo modo que não está no prestígio social das honra-rias públicas, pois estes são sempre exteriores ao próprio homem, e a vida feliz não pode se realizar na dependência de opiniões alheias. A felicidade corresponde, isto sim, à efetivação da natureza do ser humano em uma existência virtuosamente orientada pela razão 4.

4 É importante salientar que, embora Aristóteles afirme que os bens do corpo e os bens exteriores são inferiores aos bens da alma, ele não declara que são totalmente dispensáveis É certo que a vida consagrada aos prazeres do corpo e ao acúmulo de riquezas perverte a natureza, mas também é correto que a satisfação das necessidades corporais e a posse de bens materiais são elementos sem os quais não se atualizam as virtudes dos seres humanos, quer dizer, não há propriamente felicidade. Também é necessário acrescentar que o filósofo não ignora que circunstâncias adversas representem riscos à felicidade, mas considera que o homem virtuoso tem condições de reagir de maneira equilibrada diante delas.

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1.4.3 O homem como ser político

Essa definição da felicidade como atividade humana racional torna-se mais compreensível se a situarmos na concepção teleológica aristoté-lica, segundo a qual as coisas transcorrem adequadamente se seguem o curso determinado pela natureza, no qual os inferiores são submetidos aos superiores e o todo é sempre mais perfeito do que as partes. Para Aristóte-les, a natureza dispõe a fêmea ao domínio do macho, o escravo ao domí-nio do senhor, as crianças ao domínio dos adultos e a alma irracional ao domínio da alma racional. A vigência da razão virtuosa, por seu turno, é viável apenas na sociedade política, naturalmente superior aos indivíduos, portanto.

Em seu livro A política, Aristóteles descreve essa hierarquia natural a partir das relações domésticas, a primeira unidade social para a qual se inclinam os seres humanos (2002, p. 9-65). No interior desses núcleos familiares, escravos, crianças e mulheres estão sob a dependência do ho-mem livre, ou melhor, submetidos, respectivamente aos poderes despóti-co, paternal e marital. Nessa ordenação natural, sublinha-se o predomínio da razão sobre aquilo que é irracional, caracterizando uma supremacia que se verte em benefícios para todos.

O poder paternal sobre os filhos e marital sobre a esposa é justifica-do pela carência de razão das crianças e das mulheres, que, consequente-mente, dependem do comando racional do homem – pai e marido – para a condução de suas vidas, com a única diferença de que os descendentes do sexo masculino, ao alcançarem a idade adulta, serão plenamente capazes de usar sua própria razão, emancipando-se do princípio racional paterno.

Não é diferente a fundamentação aristotélica do poder do senhor sobre os escravos, explicada na suposta inferioridade natural destes úl-timos, que, conquanto capazes de perceber a razão em seu senhor, não conseguem jamais fazer uso próprio da razão, limitando sua contribuição à sociedade ao labor de seus corpos. Desse modo, ainda que o poder do senhor sobre o escravo, despótico, seja exercido para atender somente aos interesses do primeiro, a dominação é estabelecida pela natureza em benefício de ambos, pois o escravo teria pior sorte se fosse entregue a si mesmo. Não sendo naturalmente capaz de liberdade, tem no senhor a dimensão racional que lhe falta. Sendo a virtude sempre algo conforme a natureza, o mérito do escravo é resignar-se ao domínio do seu senhor, executando devidamente os serviços que lhe são ordenados.

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Nesse sentido, Aristóteles estende sua argumentação à composição da pólis ou sociedade política, compreendida como construção prescrita pela natureza aos homens, não apenas por permitir maior estabilidade econômica e segurança militar, mas, sobretudo, pela finalidade de pro-mover o bem viver dos homens, ou seja, a vida racional virtuosa. Dito de outro modo, assim como escravos, crianças e mulheres não têm au-tonomia e não podem existir por si, mas somente integrados no poder da sociedade doméstica, os indivíduos e as associações intermediárias não existiriam verdadeiramente fora do todo, quer dizer, da sociedade política para a qual são naturalmente propensos. O poder político, por sua nature-za, diferencia-se dos poderes despótico, paternal e marital. Esses poderes domésticos, afinal, são exercidos por um superior sobre seus inferiores, e, além disso têm por fim o benefício específico de alguns, enquanto o poder do Estado é partilhado entre iguais, os cidadãos, e visa o bem comum.

Essa sociabilidade inscrita na natureza dos homens, na qual os seres humanos realizam concretamente sua humanidade, exprime-se no concei-to de philia, sobre o qual Aristóteles discorre em Ética a Nicômaco (2007, p. 235-264). Definida pelo filósofo como uma das exigências indispensá-veis da vida, pois não seria pensável alguém escolhendo uma existência sem amigos, a philia ou amizade é discriminada em três tipos, de acordo com os motivos nos quais se sustentam: o útil, o agradável e o bem.

Na amizade alicerçada na utilidade, os amigos se vinculam apenas por interesses próprios, ou seja, pelos benefícios que se possam extrair da relação, sendo que esta termina tão logo deixe de oferecer vantagens às partes envolvidas. Situação análoga verifica-se na amizade que se susten-ta naquilo que é agradável, isto é, no prazer que se obtém na companhia do outro, sem que haja um afeto autêntico entre os amigos, pois desapa-recendo o bem-estar que a presença de determinada pessoa proporciona, encerra-se também a amizade que se sente por ela. Ambas as formas de amizade, erguidas sobre a utilidade ou sobre o agradável, são imperfeitas, segundo Aristóteles, porque não existem pelo que os amigos são em si mesmos, mas pelo benefício pessoal ofertado pela amizade.

A amizade perfeita é aquela em que os amigos se associam pelo afeto desinteressado que nutrem um pelo outro, desconsiderando-se qual-quer benefício adicional que a relação apresente. Na amizade pelo bem, os amigos admiram-se pelo que, de fato, são e desejam o melhor um ao outro, constituindo-se o senso de comunidade no qual vigora a noção de bem comum, finalidade natural da sociedade política.

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1.4.4 A ética do justo meio

A conceituação aristotélica da felicidade como a vida racional vir-tuosa, o bem supremo do homem que se concretiza na sociedade política, não deve nos conduzir à falsa conclusão de que o filósofo preconiza um controle repressivo da razão sobre as inclinações irracionais da alma hu-mana. Ao contrário, Aristóteles não apenas reconhece a importância dos apetites e das paixões na vida dos homens, como atribui ao desejo uma condição motriz no ser humano: os homens são seres desejantes cujas ações visam sempre a um fim agradável ou não doloroso. Aproximando-se naturalmente do que promete prazer e evitando o que acena com a dor, os homens revelam sua semelhança com os animais. Porém, relacionando-se adequadamente com o prazer e a dor, afirmam-se como seres virtuosos.

O homem virtuoso não ignora o prazer e a dor, estabelecendo, isto sim, uma relação racional com ambos, pela qual experimenta os senti-mentos certos nas ocasiões pertinentes. Ao invés do conflito entre razão e desejo, temos a confluência de ambos, de tal modo que não se deseja nada além daquilo que é condizente com a finalidade da vida, ou seja, sente-se prazer em agir virtuosamente.

Nessa perspectiva, o filósofo situa a mediania moral como ponde-ração entre os extremos, localizando o vício na carência e no excesso. O vício é o contrário da virtude. Enquanto esta é a excelência moral, o que, em Aristóteles, consiste na vida racional do homem em sociedade, o vício é a imoralidade do homem. Como vimos, de acordo com a filosofia moral aristotélica, o bem situa-se sempre na natureza, é conforme o que é natural, e o mal é o que se desvia do que é prescrito pela natureza. Assim, se a finalidade natural humana é a existência racional, o homem que se movimenta somente pelas paixões perverte sua natureza, enredando-se nos vícios.

A mediania ou, como é mais conhecida, a ética do justo meio corres-ponde ao ajuste entre a intensidade dos sentimentos experimentados pelos indivíduos e as exigências apresentadas pelas situações. Portanto, dentre as virtudes enumeradas por Aristóteles, estão a coragem, a generosidade, a brandura, a espirituosidade e a moderação, que são termos médios, res-pectivamente entre temeridade e covardia, prodigalidade e mesquinhez,

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irascibilidade e desalento, bufonaria e indelicadeza, e desregramento e insensibilidade5 .

A coragem é a virtude do homem que teme as situações que, de fato, devem ser temidas, por apresentarem riscos desnecessários para si e para as pessoas de sua comunidade, mas que não hesita em enfrentar os perigos quando as circunstâncias exigem tal postura para a preservação do bem comum. O covarde, por sua vez, a tudo teme, aterrorizando-se com quaisquer ameaças, ainda que sejam mínimas ou improváveis. Na outra extremidade, o temerário excede-se em ousadia, expondo-se a toda sorte de situações adversas e comprometendo a própria finalidade da vida ou, o que é pior, muitas vezes fazendo questão de exibir uma coragem que sequer sente.

Justa medida igualmente é a generosidade, que consiste no uso apropriado dos recursos financeiros em benefício das pessoas que neces-sitam e que têm merecimento para tanto. O generoso dispõe suas riquezas ao bem comum nas ocasiões certas, sem negar aos outros auxílios ao alcance de suas possibilidades e sem se desfazer de seu patrimônio em gastos supérfluos. Na deficiência da generosidade existe a mesquinhez, o apreço exagerado aos valores econômicos, impedindo a cessão de dinhei-ro em circunstâncias que justificariam as doações. Em sentido oposto age quem é tomado pela prodigalidade, que desperdiça seus bens materiais utilizando-os sem critérios, frequentemente empregando-os com pessoas e situações impróprias, ou mesmo em quantidades que ultrapassam larga-mente sua base financeira.

A brandura, por seu turno, é a virtude relativa à ira. O homem bran-do sente cólera nas ocasiões que assim o exigem, quando, por exemplo, alguém de sua estima é vítima de uma injustiça, manifestando-a de modo ponderado e sem inclinar-se a procedimentos vingativos. Desalento e irascibilidade são os vícios dessa paixão. No primeiro caso, constata-se a indisposição de indignar-se ante quaisquer situações, por mais absurdas ou agressivas que sejam. No segundo caso, a cólera assume proporções descontroladas e não diferencia os acontecimentos que realmente a solici-tam daqueles em que esse sentimento é inoportuno, estendendo-se ainda para além dos momentos em que a ensejam e, comumente, resultando em ações profundamente ofensivas.

5 Aristóteles alerta que algumas paixões implicam necessariamente o mal, não admitindo a virtude da mediania. É o caso da malevolência, da inveja e da impudência.

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A espirituosidade é o meio termo entre a indelicadeza e a bufona-ria. Indelicado é quem não reage educadamente em encontros sociais de entretenimento, persistindo em um mau humor explícito nas mais descon-traídas conversações. O bufão, por outro lado, destaca-se por valer-se de sua irreverência com o propósito de chamar a atenção para si, fazendo de tudo objeto de diversão e, com isso, tornando seu humor desmedido e sua presença inconveniente. Nessas questões, é o espirituoso quem procede com mediania (equilíbrio), conduzindo-se de maneira bem-humorada e divertindo-se com outros nas ocasiões que favorecem a descontração sem o risco da vulgaridade.

A moderação ou temperança, por fim, concerne aos prazeres do cor-po – bebida, alimentação, sexualidade –, aos apetites que são comuns aos seres humanos e aos animais em geral. Remetem, portanto, claramente às relações entre razão e desejo sob o prisma aristotélico da virtude, pois a moderação pode ser definida justamente como a harmonização do desejo com a racionalidade, na qual os prazeres são vividos na intensidade e nas ocasiões oportunas, sem carências ou excessos. Uma vida pervertida nos prazeres corporais excessivos incorre no vício do desregramento, pelo qual o homem mistura-se à animalidade. Uma vida que despreza comple-tamente os prazeres corporais – situação muito rara, segundo Aristóteles – é acometida de uma insensibilidade que nega a própria natureza humana.

1.4.5 As ações voluntárias e a vida virtuosa

Após explanarmos sobre algumas das virtudes da mediania aristoté-lica, é importante examinarmos como o filósofo caracteriza as ações nas quais se pode identificar a presença ou a ausência de virtude nos indivídu-os. O ponto de partida de Aristóteles para a investigação das condutas que se prestam à avaliação moral é a divisão do comportamento humano em dois tipos básicos: ações involuntárias e ações voluntárias.

No capítulo anterior, assinalamos que são involuntárias as ações per-petradas por compulsão ou ignorância. Aristóteles usa a palavra ignorância, nesse contexto, não em seu significado geral de ausência de saber, referindo-se, isto sim, ao desconhecimento, por parte do agente, das circunstâncias que envolvem a execução de um ato. Nas ações desse tipo, o indivíduo não tem à sua disposição todas as informações necessárias à ponderação sobre as im-plicações de sua conduta e, assim sendo, não pode ser responsabilizado pelas consequências – exceto se a condição de ignorância das circunstâncias for

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resultado de sua negligência. Como compulsórios o filósofo designa os atos cujas origens são absolutamente exteriores aos indivíduos que os praticam, isto é, trata-se de condutas nas quais os agentes não têm a mínima possibilidade de escolha, sendo integralmente conduzidos por uma força externa a se comportar de determinada maneira. É o que ocorre quando alguém, subjugado fisica-mente por outros indivíduos, é impedido de agir como gostaria ou obrigado a proceder de um modo que, na ausência da compulsão, não procederia.

Aristóteles observa, porém, que, entre as ações absolutamente com-pulsórias e as praticadas livremente pelos indivíduos, existem condutas mistas, nas quais os agentes realizam escolhas, embora estas sejam pro-fundamente restringidas e condicionadas pela especificidade das situações em que estão envolvidos. Nessas ocasiões extraordinárias, a margem de escolhas é extremamente reduzida, e o indivíduo, dispondo de poucas al-ternativas, opta por aquela que lhe parece menos prejudicial, conduzindo-se de maneira diferente do que faria em situações cotidianas comuns.

Um exemplo de ação desse tipo é quando um sujeito, sob ameaça de terceiros, é forçado a escolher entre a morte de um familiar que é mantido em cativeiro e a realização de uma operação financeira ilegal. Ao agente, nesse caso, oferecem-se duas possibilidades, sendo muito provável, entre-tanto, que nenhuma delas seja do seu agrado e que ele jamais as escolheria em um contexto de total liberdade. Por esse motivo, ações dessa natureza são denominadas por Aristóteles de intrinsecamente involuntárias e cir-cunstancialmente voluntárias (2007, p. 89).

As ações voluntárias, por seu turno, são aquelas que têm seu autên-tico ponto de partida no agente que conhece as circunstâncias que envol-vem sua conduta, o que inclui as condutas derivadas das paixões, como a ira e o desejo. Dessa maneira, segundo Aristóteles, as ações voluntárias não transcorrem necessariamente sob o princípio da razão, abrangen-do também as práticas humanas que classificamos como impulsivas ou intempestivas, como do mesmo modo o são as ações dos animais e das crianças.

Em outras palavras, as ações voluntárias nem sempre implicam a realização de uma escolha. Para esclarecer convenientemente a questão, o filósofo delimita o conceito de escolha, recorrendo, para tanto, ao seu cotejamento com o desejo, a vontade e a opinião.

Muito embora a escolha não desconsidere os desejos, escolha e desejo não são sinônimos, o que é constatado pelo fato de que é possível desejar algo e, entretanto, escolher não fazê-lo. Nem ao menos à vonta-

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de, que, na filosofia aristotélica, distingue-se do desejo por envolver a dimensão racional, a escolha pode ser absolutamente identificada, pois a vontade referencia-se em objetos que nem sempre são passíveis de serem alcançados pela ação. Para usarmos um exemplo oferecido pelo próprio Aristóteles, um homem pode ter vontade de ser imortal, mas jamais pode-rá escolher ser imortal, posto que não se trata de algo que ele seja capaz de atingir com suas ações. Por fim, escolha não deve ser confundida com opinião, pois, embora seja comum que alguém escolha fazer ou deixar de fazer algo em decorrência da opinião que se tem sobre isso, a opinião ver-sa sobre os mais diversificados temas, não se atendo ao que efetivamente pode ser transformado pela interferência dos homens.

A escolha, portanto, é definida como a ação voluntária antecedida por deliberação, que consiste no exame das alternativas disponíveis à con-duta humana e na investigação racional sobre os meios adequados para se alcançar os fins moralmente pretendidos. Nessa perspectiva, a deliberação contempla aquilo que tem nas ações humanas o seu fundamento, não se relacionando com coisas eternas ou imutáveis, como os ciclos da natureza ou a posição dos astros celestiais, pois estes não são objetos de escolha. Essas ações voluntárias escolhidas contêm um valor moral, realizando a virtude na forma de um desejo deliberado, ou melhor, na confluência do princípio desejante com o princípio racional.

Essa convergência entre desejo e razão, característica do comporta-mento virtuoso, não é decorrência necessária e imediata do conhecimento do bem, ou seja, desviando-se da ética intelectualista socrática, o filósofo declara que a sabedoria não é condição suficiente da virtude. Neste mo-mento, é importante frisar que Aristóteles diferencia as virtudes intelec-tuais das virtudes morais, sendo que as primeiras consistem no conheci-mento em si, e as últimas, das quais estamos tratando neste texto, dizem respeito ao comportamento humano 6.

É certo que as virtudes morais não existiriam sem o conhecimento, sendo, aliás, uma das virtudes intelectuais, a prudência, a sabedoria práti-ca que permite aos homens a escolha dos meios corretos para a consecu-ção de ações virtuosas. Entretanto, o acesso às virtudes intelectuais não se desdobra naturalmente em virtudes morais, sendo imprescindível o desen-volvimento do hábito para a confluência entre razão e desejo.

6 Neste texto, exceção feita a esse momento específico, ao empregarmos a palavra virtude, estamos nos referindo às virtudes morais.

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Para auxiliar a compreensão dessa necessidade de atualização moral pelo hábito, é interessante acompanharmos a definição formal que Aristó-teles apresenta da virtude, quando tenta concebê-la como paixão, capaci-dade ou disposição:

Um estado de alma é ou uma paixão, uma capacidade ou uma disposição, de modo que a virtude tem que ser uma dessas três coisas. Por paixão quero dizer desejo, ira, medo, confiança, inveja, júbilo, amizade, ódio, saudade, ciúme, compaixão e geralmente aqueles estados de consciência (ou sentimentos) que são acompanhados por prazer ou dor. As capacidades são as faculdades em função das quais se pode afirmar de nós que somos suscetíveis às paixões, por exemplo, sermos capazes de sentir ira, dor ou compaixão. As disposições são os estados de caráter formados devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relação às paixões; por exemplo, estamos mal dispostos para a ira se estivermos predispostos a nos enraivecer com demasiada violência ou sem violência suficiente; estamos bem dispostos para a ira se habitualmente sentimos uma raiva moderada – analogamente com respeito às outras paixões.

De acordo com Aristóteles, portanto, as virtudes não são sinôni-mas de paixão porque ninguém pode ser julgado bom ou pervertido por suas paixões, mas pelo modo como as experimenta; também porque as virtudes expressam escolhas, enquanto não escolhemos as paixões que sentimos. Em sentido igual, não se pode identificar a virtude com a ca-pacidade de sermos afetados pelas paixões, uma vez que isso nada infor-ma acerca da bondade ou da maldade de um homem.

A virtude, então, como o próprio texto citado indica, é uma dis-posição, particularmente aquela pela qual um ser humano atualiza sua potência para a areté ou, em linguagem mais direta, torna-se um ser moral. Assim sendo, na concepção aristotélica, a virtude não nos é dada pela natureza, tampouco se desenvolve em direção contrária a esta; ela consiste, precisamente, em uma disposição natural que deve ser concre-tizada na introdução do hábito.

Os hábitos virtuosos, diz Aristóteles (2007, p. 67-68), são assi-milados pela educação, compreendida, em termos práticos, como um conjunto de exercícios virtuosos constantes. Nos exemplos oferecidos pelo próprio filósofo, assim como os construtores tornam-se mestres em seu ofício à medida que constroem casas e os tocadores de liras tornam-se músicos exímios pelo exercício de seu ofício, os homens tornam-se moderados, corajosos e justos ao praticarem a moderação, a coragem e a justiça. Em uma só expressão, tornam-se virtuosos ao praticarem a virtude.

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1.4.6 A teoria moral kantiana: a boa vontade como bem ilimitado e incondicionado

O alemão Immanuel Kant (1724-1804), cuja obra é considerada uma das mais completas expressões do movimento filosófico iluminista, inscreve seu nome entre os clássicos do pensamento ocidental ao realizar metódica investigação das possibilidades cognitivas humanas. Em seu exame sobre os limites da razão, no qual aponta restrições às concepções gnosiológicas tradi-cionais, empirismo e racionalismo, desenvolve-se a distinção kantiana entre a esfera dos fenômenos e a esfera dos númenos. A primeira refere-se ao modo como as coisas se apresentam à nossa experiência, o mundo fenomênico so-bre o qual elaboramos conhecimentos efetivos. A segunda esfera consiste nas coisas em si, no mundo inteligível que, porém, não nos é diretamente acessí-vel, pois está além da nossa capacidade de conhecimento.

É com base nos termos dessa diferenciação entre o nível dos fenôme-nos e o nível das coisas em si que Kant concilia a ideia de liberdade dos seres humanos com o determinismo inerente às leis da natureza, identificando o homem como ser simultaneamente situado no plano sensível e projetado além dele por sua faculdade racional. Existindo na dimensão dos fenômenos, a humanidade é sujeita aos ditames da natureza, que nela se manifestam em inclinações. Em sua condição racional, entretanto, dispõe de autonomia da vontade, com a qual se coloca acima das causalidades naturais, afirmando sua liberdade prática.

Na autonomia da vontade, o filósofo encontra o princípio de morali-dade, tema nuclear de muitas de suas reflexões. As origens das teses morais kantianas certamente remontam aos seus primeiros textos, nos quais as preo-cupações éticas revelavam-se tangencialmente. Contudo, são nos escritos da maturidade, especialmente a partir de seu livro Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) 7, que o autor constrói uma teoria moral sistemática, cuja ascendência sobre os debates éticos contemporâneos é tão notável quan-to a influência de suas proposições nos domínios da teoria do conhecimento.

Kant, que, no prefácio do livro, anuncia-o como um estudo que visa atingir o princípio supremo da moralidade, dedica a sua primeira seção à passagem do conhecimento racional comum da moralidade para uma dimen-são propriamente filosófica. E, para tanto, assume como ponto de partida a

7 Dentre os textos de Kant que tratam de temas da filosofia moral, além da obra acima mencionada, podemos citar como principais: A religião nos simples limites da razão (1793), Crítica da razão prática (1788) e Metafísica dos costumes (1797).

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definição da boa vontade, que podemos compreender preliminarmente como a disposição racional de agir por dever, como o único bem ilimitado e incon-dicionado, ou seja, trata-se daquilo que é bom em si mesmo, quaisquer que sejam os fatores externos e as circunstâncias que eventualmente o envolvam. O filósofo justifica sua asserção na observação de que todas as qualidades humanas que se possam enumerar – inteligência, prudência e coragem, por exemplo – são louváveis somente se orientadas pela boa vontade, e a mesma constatação aplica-se ao que nos oferece a fortuna, como riqueza, poder e saúde.

No que tange aos bens da fortuna, comenta Kant, frequentemente deri-vam na soberba e na ganância, isto é, não possuem um valor em si e, na au-sência da boa vontade, afetam negativamente a humanidade de seu possuidor, bem como as pessoas que estão ao seu redor. Quanto às qualidades presentes em muitos seres humanos, mesmo as que costumamos julgar indispensáveis ao sujeito virtuoso, caso da moderação, do autocontrole e da calma, não são incondicionalmente boas, dependendo sempre, para o serem, de sua subordi-nação à boa vontade. Exemplificando, o filósofo cita a presença, perfeitamen-te possível, dessas características em um criminoso, o que seguramente não apenas as converte em fonte de perigos, como ainda as torna censuráveis.

Kant critica ainda as teorias morais que afirmam que a finalidade na-tural dos homens, como seres racionais, é a vida feliz, atribuindo, portanto, à felicidade a condição de bem supremo. Em sentido inverso a essas teses, Kant argumenta que, caso a natureza tivesse disposto os homens como seres cujo fim superior fosse a felicidade, não seria necessária a razão, pois os instintos conduzem o ser humano com mais precisão ao que favorece seu bem-estar e sua conservação. Além disso, algumas realizações práticas da razão, como os benefícios concretos proporcionados pelo conhecimento científico, não pare-cem ter feito mais felizes os homens, sendo comum que estes, ao contrário, habitualmente manifestam saudosismo dos tempos primitivos 8.

A razão, como faculdade prática, deve produzir uma vontade que seja boa em si mesma, isto é, a boa vontade possui um valor absoluto, que não se mede, então, pelos efeitos ou consequências das ações por ela promovidas. Assim, mesmo que não se encontrem os recursos necessários à realização daquilo que pretende a boa vontade, seu valor moral absoluto permanece

8 Duas observações são necessárias. A primeira concerne ao fato de que essa crítica aplica-se plenamente à ética de Aristóteles. A segunda consiste na importância de não confundirmos a posição de Kant com uma relação de antagonismo entre razão e felicidade. O filósofo tão somente empenha-se em demonstrar que a felicidade não é o fim supremo proposto pela natureza aos homens como seres naturais, afirmando, aliás, que a virtude é que nos faz verdadeiramente dignos da felicidade a que aspiramos como seres sensíveis.

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inalterado, porque ela não é simples meio para outros fins. As palavras do próprio Kant são bastante eloquentes a esse respeito:

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para rea-

lizar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mes-

ma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que

o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação

[...] Ainda mesmo que por um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamen-

to avaro duma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de

fazer vencer as suas intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a despeito dos

seus maiores esforços, e só afinal restasse a boa vontade (é claro que não se trata

aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que nossas

forças disponham), ela ficaria a brilhar por si mesma como uma joia, como alguma

coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. (2008, p. 23).

1.4.7 Ações conforme o dever e ações por dever

A explanação acerca do valor em si da boa vontade prossegue com a introdução do conceito de dever, que, resumidamente, corresponde àquilo que, do ponto de vista da moralidade, se tem obrigação de fazer e que se relaciona profundamente com a boa vontade, à medida que esta pode ser entendida também como a vontade de agir por dever. Discorrendo sobre os vínculos entre boa vontade, dever e ação humana, Kant discrimina dois tipos de ação dos homens: a ação conforme o dever, que pode ser por inte-resses pessoais ou por inclinação imediata, e a ação por dever.

As ações conforme o dever, mesmo concretizando o que é estabe-lecido no plano da obrigação moral e, consequentemente, realizando o conteúdo definido pelo dever, não tem sua raiz verdadeira na boa vontade, mas em interesses pessoais diversos, muitas vezes egoístas. Desse modo, por exemplo, o comerciante que recepciona educadamente seus clientes, com o propósito de cativá-los e, por conseguinte, de ampliar seus lucros, age em conformidade com o dever, embora não se conduza por dever. Afinal, ele não procede movido por uma vontade totalmente boa, com-portando-se, na realidade, pelo propósito de uma vantagem pessoal. Não é diferente com aquele que auxilia as pessoas motivado pela intenção de angariar prestígio e poder para si, e não porque se deve agir em benefício dos seres humanos. Em ambos os casos, portanto, as ações praticadas es-tão de acordo com o dever, mas nenhuma delas é feita por dever.

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As ações por inclinação imediata, que são igualmente conforme o de-ver, são as que, provocadas por sentimentos autênticos de afeição ou solida-riedade, conduzem as pessoas a ações socialmente honrosas. Assim ocorre quando alguém, por amor à vida, comporta-se de maneira a evitar a morte, tanto a sua quanto a de outras pessoas. Recorrendo aos exemplos anteriores, seriam por inclinação imediata as ações relatadas se o comerciante tratasse cordialmente seus fregueses por uma honesta afeição ou se o benemérito se dedicasse à filantropia pelo contentamento que sente com o bem-estar dos seres humanos. Em todas essas situações, as condutas não exprimem o respeito ao dever, quer dizer, são decorrências de sentimentos que não tem uma relação necessária com a obrigação moral.

As ações por dever, as únicas fundamentadas na boa vontade e que, assim sendo, possuem valor moral, baseiam-se no reconhecimen-to de uma lei moral que, muitas vezes, contraria desejos, sentimentos, enfim, inclinações individuais. Nessa perspectiva, as ações teriam valor moral se praticadas por respeito a uma lei racionalmente identificada. Retomando uma das narrativas anteriores, alguém que preserva sua pró-pria vida, em que pesem os dissabores que a transformam em completo desgosto, revela uma moralidade que não se pode localizar naquele que, por amor à vida, sequer aventa a hipótese de suicídio. Idêntica conclu-são se aplica ao comerciante, quando este, independentemente de seus interesses econômicos e contrariamente à falta de simpatia por seus clientes, procede com senso de dever ao recebê-los com cortesia, bem como ao sujeito que, conquanto não se sinta afetivamente ligado aos seres humanos, auxilia-os em obediência a um mandamento moral. Con-sideradas essas informações, seriam ações por dever, pois originam-se na boa vontade.

De forma didática, podemos extrair dessa exposição dois aspectos essenciais para a compreensão do conceito de boa vontade em Kant. Um deles, citado em linhas precedentes e reforçado nos comentários sobre as diferentes naturezas das ações, quando se destaca que o fim atingido pode ser bom sem que tenha na sua origem a boa vontade do agente, é a conclu-são de que a moralidade autêntica reside na intenção, e não na eficiência ou na adequação da conduta à norma. O outro, que é sublinhado ao se recusar a atribuição de valor moral às ações motivadas por inclinações sensíveis, é a constatação de que as condutas provenientes da sensibilidade não perten-cem à esfera moral, pois a ação praticada por dever provém unicamente da razão, cumprindo-se, inclusive, contra a resistência das inclinações.

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A boa vontade, então, é objetivamente determinada por uma lei racional que, portanto, tem validade universal e deve ser subjetivamente respeitada, ou melhor, seguida por todos os sujeitos independentemente de circunstâncias ou interesses específicos. Desse modo, o dever se apre-senta como necessidade de uma ação por respeito à lei, na qual a máxima, sinônimo do querer subjetivo de um agente particular, tem de se orientar pelo mandamento moral, mesmo se isso implicar o prejuízo ou a neutrali-zação de suas inclinações individuais.

1.4.8 A condição de universalidade de uma lei racional

Assim, coerentemente à tese de que a moralidade não está no com-portamento humano e em seus objetos, dado que as mesmas consequên-cias podem ser produzidas na presença ou na ausência da boa vontade, mas na própria pessoa em que o mandamento moral se realiza, Kant for-mula a condição de universalidade de uma lei racional nos termos seguin-tes: “Devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal.” (2008, p. 33).

Pronuncia, dessa forma, aquele que é, como veremos, o imperativo categórico supremo na filosofia moral kantiana, pelo qual uma máxima, que corresponde à elaboração subjetiva da vontade, deve ser adotada pelo sujeito sempre que seja passível da objetividade universal da lei moral. Essa lei fundamental é explicada por Kant através da argumentação em torno da impossibilidade de transformação da ação mentirosa em um mandamento moral, sobre a qual explanaremos a seguir.

Para sermos mais precisos, o que o filósofo discute é se alguém pode fazer uma promessa não pretendendo cumpri-la. Meticuloso no tratamento do problema, admite duas alternativas no exame da questão, uma concer-nente às prováveis consequências do ato e a outra em um nível propriamen-te moral. Ao ponderar sobre os desdobramentos do não cumprimento de uma promessa, o indivíduo faz uso da prudência em consonância com suas expectativas particulares, isto é, avalia os eventuais benefícios ou prejuízos futuros advindos de sua ação, os quais devem ser considerados em sua de-cisão. Nesse caso, não deve descartar a hipótese de ser descoberto e de, por conseguinte, perder a confiança das pessoas de sua convivência. Em uma avaliação desse tipo, sabemos, pelo que acompanhamos até o momento, que não há a interveniência de nenhum fator moral.

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Diferentemente, quando a questão é colocada sob a hipótese da universalização da máxima, adquire teor de problematização moral – evi-dentemente, é esse o enfoque que interessa ao filósofo. Nessa perspectiva, o agente indaga se sua conduta – escapar de uma dificuldade ao prometer o que não pretende realizar – pode ser assumida como uma lei moral obje-tiva que autorize sua prática para todas as pessoas. A resposta é negativa, pois, se assim fosse, todas as promessas estariam desacreditadas de ante-mão, ou seja, a suposta transformação da referida máxima em lei implica a contradição e a dissolução de sua base.

Ao registrar o exame das máximas sob sua hipotética condição de lei universal, Kant comenta que esse exercício é passível de execução pela razão vulgar, que os homens, em sua existência cotidiana, são perfei-tamente capazes de discernir entre o que deve e o que não deve ser feito. Entretanto, a necessidade de uma fundamentação filosófica da moral é justificada pelo fato de que os homens empíricos, ou seja, em suas expe-riências concretas, frequentemente são enredados por sua sensibilidade e por seus interesses particulares, que os afastam do reconhecimento racio-nal da universalidade das leis morais.

Nesse mesmo sentido, afirma que o princípio da moralidade não se situa na experiência, pois a moralidade não é exterior aos homens, em sua condição de seres racionais, ou seja, não se origina nas convenções sociais, em instituições políticas ou em associações religiosas. O valor moral incondicional, isto é, a boa vontade, não se referencia naquilo que efetivamente é – o que pertence ao domínio das causalidades fenomênicas –, mas remete para o que deve ser. Portanto, o filósofo alemão reivindica uma filosofia moral que não esteja contaminada pelos saberes da antropo-logia prática; afinal, uma lei que seja alicerce da obrigação moral tem sua raiz na dimensão da razão pura.

Dessa forma, reafirma-se o viés estritamente deontológico da éti-ca kantiana, assentada na noção de dever segundo a qual o valor moral situa-se exclusivamente no plano da intenção, e não nas consequências de uma ação ou em sua simples conformidade às normas. Kant reconhece, entretanto, a dificuldade de avaliação moral em situações cotidianas, pois não é fácil distinguir as ações praticadas por dever das ações praticadas conforme o dever, dado que exteriormente são idênticas. Admite, inclu-sive, a impossibilidade de se localizar na experiência uma única conduta realizada por dever, pois mesmo aos agentes não é possível a convicção da natureza de seus comportamentos. Em outras palavras, os móveis de

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uma ação nem sempre estão diretamente disponíveis aos sujeitos que as executam, e o que a eles mesmos se apresenta como boa vontade pode muito bem ocultar uma secreta inclinação do amor próprio.

Essa observação, porém, ao invés de ser impedimento à investiga-ção de princípios morais dissociados dos dados empíricos, é a sua defini-tiva justificação, porque a origem do dever está na razão que determina a vontade a priori, ou seja, é anterior a qualquer experiência. Com essa con-cepção, na qual se sustenta a procura de um conhecimento moral de base metafísica, vem à tona outro ponto nuclear da filosofia moral de Kant: os fundamentos da moralidade não procedem da natureza humana particular, mas da razão. Essa asserção é esclarecida quando notamos que o filósofo, ao afirmar que a moralidade não é algo externo ao homem, não se refere com isso à natureza humana em sua efetividade, isto é, ao homem empí-rico dotado de sensibilidade, mas aos seres humanos em sua condição de seres racionais. Assim, a raiz da moral está na razão, e seus mandamentos se aplicam aos seres racionais em geral, o que inclui a humanidade.

Embora a natureza seja regida por leis, o ser humano não se encon-tra completamente integrado às relações de causalidade que presidem os fenômenos, uma vez que possui vontade, uma faculdade prática sujeita a inclinações subjetivas e que não é, portanto, suficientemente determinada pela razão – se assim fosse, seria sempre a boa vontade. Nota-se, então, uma diferença entre a razão, que prescreve o bom em seu sentido univer-sal, conferindo-lhe, desse modo, uma objetividade que deve ser acatada por todos os seres racionais, e a subjetividade dos homens em sua nature-za humana específica, composta por desejos que frequentemente contra-riam o que é fixado pelo dever.

1.4.9 O conflito entre as prescrições da razão e a natureza humana efetiva

Revela-se, portanto, uma aparente contradição entre a razão que estabelece a universalidade objetiva e o querer subjetivo dos indivídu-os que reclamam exceções para si. Não se trata, porém, exatamente de uma contradição, mas do conflito instalado em uma natureza humana composta pela razão e pela sensibilidade suscitada por seu pertenci-mento ao mundo fenomênico, ou seja, no interior dos seres humanos há a resistência das inclinações às prescrições da razão.

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Dessa forma, o que emerge da natureza humana são máximas, e não leis, ou melhor, um querer subjetivo que não se orienta pela razão, construindo-se a partir de interesses pessoais que se confrontam com a objetividade racional das leis morais. As máximas, como destacamos an-teriormente, identificam-se com as leis morais apenas quando podem ser universalizadas, e nesse caso projetam-se despojadas dos elementos sensí-veis e das promessas de recompensa das inclinações. A virtude, assim, não se inscreve na especificidade da natureza humana, mas em sua dimensão puramente racional.

A dignidade do homem, segundo Kant, consiste justamente em sua condição de ser destinado pela natureza com a vontade, quer dizer, en-quanto a necessidade natural é a causalidade de todos os seres irracionais, submetidos a relações de causa e efeito às quais não podem se furtar, a vontade, cuja propriedade é a liberdade, é a causalidade dos seres racio-nais. Essa dignidade humana explica-se na discriminação kantiana entre plano sensível e plano inteligível ou, se preferirmos, entre fenômenos e coisas em si. Afinal, se o homem, como ser empírico, existe de fato no mundo sensível e, assim sendo, está ao menos parcialmente submetido às determinações das leis naturais, inegavelmente pertence ao inteligível como ser racional, o que lhe permite afirmar-se como ser livre em relação às determinações da natureza.

Na terceira seção de sua Fundamentação da metafísica dos costu-mes, Kant explicita a liberdade humana nos seguintes termos:

[...] um ser racional deve considerar-se a si mesmo como inteligência (portanto não

pelo lado das forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas

como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista

dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças:

o primeiro enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia);

o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da

natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão.

Como ser racional e, portanto, pertencente ao mundo inteligível, o homem não

pode pensar nunca a causalidade de sua vontade senão sob a ideia da liberdade [...]

Ora, à ideia de liberdade está inseparavelmente ligado o conceito de autonomia, e

a este o princípio universal da moralidade, o qual na ideia está na base de todas as

acções dos seres racionais como a lei natural está na base de todos os fenômenos.

(2008, p. 106, 107).

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Portanto, é como ser racional que o homem se coloca acima dos fe-nômenos, com autonomia diante das determinações da natureza, o que, em sentido prático, significa a liberdade de não seguir suas inclinações naturais. A liberdade proporciona aos seres humanos a escolha de ações consoantes à autonomia da vontade perante a natureza, e, em perspectiva oposta, quando os homens comportam-se sob o influxo das leis naturais, permanecem sob a heteronomia, isto é, vinculados aos seus interesses sensíveis, desviam-se das leis racionais e sucumbem às determinações causais da natureza. En-quanto a heteronomia caracteriza-se na vontade que busca seus objetos nas leis da natureza, a autonomia caracteriza-se na vontade que afirma o ho-mem como ser moral, capaz de estabelecer racionalmente suas próprias leis.

Nesse sentido, enquanto os seres irracionais – a natureza em seu conjunto – são regidos por causas que lhes são exteriores, os seres racio-nais compõem um reino dos fins a partir de regras derivadas da razão. Nesse reino dos fins, destaca Kant, cada homem não apenas deve obedi-ência às leis morais, como também é ele mesmo um legislador universal. Essa condição de legislador universal reside em sua capacidade de con-jugar a subjetividade de suas máximas com a objetividade dos manda-mentos morais, ou seja, na possibilidade de assumir para si somente as máximas que sejam passíveis de universalização moral.

Um reino dos fins, por seu turno, é possível na existência de seres racionais que, diferentemente dos demais seres da natureza, jamais podem ser reduzidos a simples meios para uma finalidade externa. A existência hu-mana, por sua racionalidade, é em si mesma um fim, ou seja, o ser homem representa subjetivamente sua vida com um sentido próprio, e não como mero meio para um propósito que esteja além de si. Porém, ao conceber subjetivamente sua existência como fim em si, um ser humano o faz por sua natureza racional, que é a condição de todos os demais seres da espécie, sendo que estes, consequentemente, também representam suas vidas encer-rando um sentido em si mesmas.

Não se trata, então, de um princípio unicamente subjetivo, sendo igualmente definido pela universalidade que articula os homens, enquanto seres racionais, a partir da prescrição objetiva de que cada homem nunca deve tratar a si mesmo ou a outro ser humano como simples meio, mas sempre como fim. Kant enuncia esse imperativo da seguinte maneira: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simples-mente como meio.” (2008, p. 73.).

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1.4.10 Imperativos hipotéticos e imperativos categóricos

Neste momento, é importante finalizarmos nossa exposição sobre a teoria moral kantiana, apresentando um conceito indispensável à sua compreensão, que, embora tenha percorrido a totalidade dessa explana-ção, não foi por nós devidamente nomeado. Trata-se do conceito de im-perativo. O filósofo diferencia os imperativos em dois tipos: imperativos hipotéticos e imperativos categóricos. Os primeiros concernem a ações necessárias para se alcançar um objetivo proposto, e seu valor, portanto, é indissociável da finalidade que se tem em vista. Os segundos são incon-dicionais, ou seja, determinam ações que independem de circunstâncias exteriores, sendo necessárias por serem boas em si mesmas.

Os imperativos hipotéticos indicam o que deve ser feito em situ-ações específicas nas quais se tem um objetivo definido. Assim, se, por exemplo, um indivíduo pretende construir uma residência que proporcio-ne certo isolamento térmico contra as baixas temperaturas da região em que será edificada, deverá adotar procedimentos adequados, que incluem desde a escolha correta do material até detalhes da planta da casa, sempre com o propósito de torná-la impermeável ao frio rigoroso. Em contrapar-tida, se a casa é erguida em uma região de clima quente, e a intenção do construtor é fazê-la de modo tal que torne amena a temperatura, as esco-lhas realizadas deverão ser totalmente diferentes. Em ambos os casos, a determinação do que deve ser feito depende da finalidade proposta, e as condutas prescritas em uma das hipóteses seriam condenáveis na outra. Por isso, Kant denomina de hipotéticos esses imperativos 9.

Como os imperativos hipotéticos são circunstancias, quer dizer, deli-mitados em conformidade com os objetivos ocasionalmente fixados, o seu valor coincide com a eficiência das ações que são prescritas para a consecu-ção da finalidade em questão. Em resumo, as ações ditadas por esses impe-rativos são boas se atingem o propósito, não importando se este é preparar uma refeição substanciosa, informar-se sobre os últimos acontecimentos internacionais ou praticar um assalto a um estabelecimento bancário.

O que se nota, portanto, é que o imperativo hipotético não possui nenhum sentido moral, algo que é explicitado no exemplo descrito pelo próprio Kant (2008, p. 53), quando assinala que, sob essa perspectiva, o

9 Kant subdivide os imperativos hipotéticos em imperativos de destreza e imperativos de prudência. Os imperativos de destreza são os que se relacionam com uma finalidade de qualquer natureza, seja limpar um móvel ou cometer um homicídio – para oferecermos dois exemplos distantes. Os imperativos de prudência são os que são seguidos pelos indivíduos em busca de sua felicidade.

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método empregado por um médico para curar o doente equivale à estraté-gia do assassino que pretende eliminar sua vítima, caso ambos se revelem eficientes em seus propósitos.

Os imperativos categóricos, por sua vez, exprimem a relação entre uma lei moral objetiva e uma vontade subjetiva que não é por ela neces-sariamente determinada, isto é, impõe à subjetividade imperfeita de seres racionais empíricos a universalidade do que deve ser feito por si mesmo, independentemente de ocasiões ou condições particulares. As ações deter-minadas por um imperativo categórico são invariavelmente boas, porque produzidas pela boa vontade, o único bem que é incondicional.

Dessa forma, são imperativos de moralidade, contendo leis racio-nalmente identificadas que ditam o que deve ser feito pelos seres humanos que, embora sendo os legisladores racionais, são seres sensíveis que ne-cessitam submeter sua imperfeição subjetiva à objetividade dos manda-mentos morais. Esses imperativos categóricos, destaca o filósofo, são a formulação de princípios morais que devem ser assimilados analogamente como leis universais da natureza – na ampla acepção da expressão, repor-tando-se à realidade das coisas, posto que são leis universais que devem ser observadas por todos os seres racionais.

Kant declara como imperativo categórico supremo, do qual se des-dobram todos os demais deveres morais dos seres humanos, a mencionada determinação pela qual cada ser humano deve proceder de modo tal que sua máxima possa ser universalmente adotada, ou seja, racionalmente identificada como lei objetiva. E referenciando-se no dever geral de cada um agir em relação a si mesmo e aos outros como fins em si, e não me-ramente como meios, enumera alguns deveres dos homens para consigo mesmos e para com os demais seres humanos. Dos exemplos comentados por Kant (2008, p.62-65), reproduziremos somente o que revela o dever de preservação da própria vida .

O filósofo descreve a situação de alguém que, diante das mais di-versas vicissitudes, tornou-se amargurado perante a vida, não depositando no futuro a mínima esperança de alegria. Supondo-se que esse indivíduo, malgrado seu desalento, ainda esteja em plena posse de sua razão, poderá questionar-se acerca da validade moral da prática do suicídio. Para tanto, recorre ao imperativo categórico supremo, indagando se sua máxima – a vontade de cometer o suicídio – pode se tornar um mandamento objetivo, ao modo de um princípio universal da natureza.

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Esse sujeito constata que seu desejo de abreviar a existência é con-sequência de seu amor a si mesmo, pois pretende abreviar a vida precisa-mente porque ela não mais apresenta expectativas de felicidade. Conclui, então, que não pode ser uma lei da natureza racional que uma vida seja destruída em decorrência da vontade de conservá-la, pois o sentimento no qual se origina a ideia de suicídio é o amor a si mesmo, ou melhor, o amor à vida. Há, portanto, uma contradição que inviabiliza a sustentação racional da prática do suicídio, tornando-o uma ação moralmente conde-nável. Assim, todos os seres humanos têm o dever, mesmo na presença de sucessivos infortúnios, de preservar as suas vidas.

Com esse exemplo de imperativo categórico, finalizamos essa ex-posição sumária da teoria ética de Immanuel Kant, que possui notável ascendência sobre as reflexões contemporâneas em torno da moral, assim como é decisiva a obra Aristóteles na delimitação temática desse campo do saber filosófico. Por essas razões, escolhemos Kant e Aristóteles como autores com os quais percorremos introdutoriamente alguns dos conceitos atinentes à filosofia moral.

1.5 Ética filosófico e os problemas éticos

Estudar o ser humano é lançar-se sobre um imenso labirinto de de-finições e possibilidades de interpretações. Paralelamente, diante deste tema identificam-se inúmeras facetas, e dentre estas se destaca a dimen-são simbólica.

O homem, desde que percebeu a sua consciência diante do mun-do, busca se autoconhecer e se questiona, então, sobre sua própria capacidade. De outro modo, como se estabeleceria o processo do co-nhecimento? Aliás, o que é o conhecimento? Como é possível definir um objeto? Para estes questionamentos direciona-se a análise deste capítulo, que busca identificar no ser humano toda a sua atividade simbolizadora, que constrói e estabelece paradigmas morais, sociais, políticos, religiosos, enfim, modelos significativos e organizadores de inúmeras culturas.

Por meio do contato entre consciência e mundo externo, o homem traz para a realidade a sua atividade simbólica, presente em sua existência há muito tempo. Talvez por isso esta dimensão seja uma das mais evi-dentes e possíveis de ser interpretada ou estudada. Em contato com esta

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relação, o homem recria a sua realidade, estabilizando formas e valores que antes eram despercebidos. Esta dimensão simbólica é exercida como um potente mecanismo catártico e passa a ser desenhada por meio de sím-bolos e significações de grande valor expressivo para a própria realidade e subjetividade autorrealizadora.

Dentro desse processo de significação, pedagogicamente encon-tram-se subdivididas duas dimensões: a cognociva, que busca representar a realidade por meio de conceitos e formas (símbolos); e os dados signi-ficativos, atribuídos à qualidade exercida ao próprio ser humano. Deste modo, a significação passa a ganhar uma valorização no que diz respeito à importância e à função para a realidade humana. Do contrário, se as produções simbólicas não ganhassem poder de valor, não existiriam de modo algum as áreas científicas, como as artes, a literatura, enfim, todas as facetas do conhecimento humano, pois elas existem e subsistem graças à significação que a elas é atribuída.

No campo científico, a atividade simbólica do ser humano sempre se colocou como um importante mecanismo de estudo, seja no âmbito da psicologia, seja no da sociologia, da linguística etc. Utilizam-se aqui inú-meros recursos, como a própria perspectiva de buscar estabelecer critérios justos para uma ampliação do assunto, pois este processo de simbolização passa a equiparar também a própria sensibilidade humana, que, levada ao campo da consciência, passa a ser exteriorizada como um retorno repre-sentativo e avaliativo, formando conceitos e conjecturas sempre novas diante do mundo, da essência, do ente etc.

Essa realidade simbólica é promovida pela sensibilidade, que iden-tifica os objetos e a estes passa a atribuir conscientemente um valor e uma forma. Encontramos sua força na intelectualidade, na ética, na religião, na linguagem, na arte, enfim, na própria manifestação sensorial do espírito humano. Para tanto, identificam-se em especial duas manifestações desta sensibilidade: a linguagem e a arte. Vejamos suas compreensões no âmbi-to das suas funções significativas.

O homem, desde que adquiriu esta consciência histórica e promis-sora de possibilidades simbólicas infinitas, é também compreendido como um ser de relações, seja com o próximo, seja para com o próprio mundo externo. Consequentemente, para que se aprimore este nó de relações, é necessário ao homem um estabelecimento de decodificações, para que se

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edifique evolutivamente uma melhor comunicação, seja na relação sujeito e objeto, seja na relação homem e seus semelhantes.

A linguagem tem por meta e função facilitar a relação entre a reali-dade simbólica, a cultura, o conhecimento, a religião, a comunicação etc. É por meio do estabelecimento de uma linguagem que o homem passa a gravar e informar, comunicar sobre a cadeia histórica das suas realidades de valor, simbolizadas através de suas convenções culturais, morais etc.

Por vezes, a arte – que é a própria expressão exteriorizada do sujeito que busca manifestar sua experiência do mundo sensorial e da fantasia em um determinado campo de manifestação – passa a identificar, nesta dimensão, imensas capacidades estéticas, valorativas, qualitativas etc. Isto se deve à estabilização com que esta forma de manifestação se impõe sobre o próprio ser humano, ou seja, a arte utiliza todos os recursos senso-riais, como o olfato, a visão, o tato, o paladar, a audição, e todos os equi-pamentos de conhecimento, que se tornam, no processo criativo, imensas ferramentas auxiliares e fundamentais para que se produzam grandes fontes criativas e significativas no mundo da arte. É por este motivo que se valorizam, diante da manifestação artística, o belo, o harmônico, o agradável. O fator de destaque é que o homem, sendo uma complexidade de dimensões, na simbolização do mundo passa a utilizar todos os seus mecanismos. Deste modo, ele passa a experimentar o mundo e até mesmo a recriá-lo para o estabelecimento de valor, de significação.

Essa atividade simbólica, que é fruto da exterioridade e da subjeti-vidade humana, não é forçada, mas natural, ou seja, tem relação própria com a natureza humana. Com isso, negar ao homem sua condição de ex-perimentar, recriar, interpretar o mundo segundo a consciência cultural é negar-lhe a sua própria condição humana. A compreensão de tal fato faz-se extremamente importante para o processo educacional, que deve ser auxiliado por esta exposição do indivíduo no mundo, a fim de que sejam despertadas realidades simbólicas, suscitadoras de juízo, valores e formas, esferas fundamentais para a construção de cidadania.

Por meio da compreensão histórica e sociológica em torno do pro-cesso de linguagem e significação que o homem enquanto ser subjetivo direciona para a realidade objetiva, encontramos um pleno desenvolvi-mento das faculdades dele enquanto ser que pensa, fala, conhece, inter-preta e recria um mundo paralelo além das aparências.

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1.5.1 O enviesamento ideológico: a alienação da consciência

Durante o percurso desta análise, já podemos constatar que a ativi-dade simbólica é fruto inerente e natural da própria essência humana, pois constitui a própria humanização do sujeito diante de sua realidade. Para tanto, não proporcionar ao homem meios necessários para o desenvolvi-mento desta faculdade é negar, de modo direto e objetivo, a sua própria condição humana.

Entretanto, deve-se aqui tomar um imenso cuidado com sua capaci-dade subjetiva. Não cabe ao ser humano esquecer-se de que sua dimensão subjetiva está eminentemente relacionada à realidade, pois, do contrário, se exacerbada subjetivamente, leva o indivíduo a fatores alienantes e leva o sujeito a camuflar sua própria relação no que diz respeito à realidade. Desde modo, acaba por formar uma “objetividade não real”, ou seja, em uma perspectiva quase que mítica, elenca em sua construção fatores não reais, fantasiosos. O problema central desta discussão é que, alienada por fatores ideológicos, a consciência não tem a percepção de que os valores e as formas atribuídas aos objetos não condizem com sua realidade objetiva.

Conhecida no cerne da sociabilidade a manipulação destas conjectu-ras simbólicas decorrentes da diferenciação entre as classes – a dominante e a dominada –, a sociedade (em grande parte a mais desfavorecida) passa a relacionar-se com inúmeras fronteiras desta temática, como a alienação.

Assim, toda a simbologia do sujeito passa a ser criada por um peque-no grupo específico, que coloca uma carga de interesses próprios na socie-dade e no lucro, o que acaba por sufocar toda a eminente possibilidade de conhecimento, no caso, do próprio sujeito (indivíduo) e da sociedade.

Surge, assim, o interesse e o valor de um determinado grupo espe-cífico que avança às dimensões subjetivas da classe dominada. O preo-cupante é que, se isso se observa por uma óptica profunda, acaba-se por perceber que todas as facetas da consciência humana podem ser facilmen-te alienadas, seja a própria filosofia, seja o mundo das artes, a história, a estética, a literatura, a sociologia, a ciência, que podem sempre trazer para a sociedade uma imensa carga ideológica, portanto uma grande roupagem intencional, a alienação.

Ainda dentro da temática da manipulação simbólica da consciência, destaca-se a própria divisão de trabalho, a maquinação do ser humano no mundo da indústria, donde dominantes expressam socialmente valores

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simbólicos particulares a uma grande parcela social como urgentes prer-rogativas universais, estereotipam suas realidades e a intencionalidade simbólica sobre o sujeito e – por que não – muitas vezes sobre as próprias áreas do conhecimento.

1.5.2 A ciência e a instrumentalização da razão

Com o alvorecer do mundo moderno, a ciência se transformou tal-vez no mais importante mecanismo do saber, ou seja, a ciência se coloca superiormente como senhora da própria subjetividade humana, isso gra-ças à sua realidade prática, que atinge todas as esferas dimensionais do humano.

A ciência acarreta para o ser humano duas perspectivas, uma teórica e a outra prática. Esta dubiedade – que pode ser identificada no próprio desenvolvimento científico, como é o caso da ciência que busca explicar categoricamente toda a realidade do mundo natural – traz como carga toda a compreensão e dominação do mundo físico, dando a este uma imensa capacidade técnica.

Consequentemente, a ciência evolui também sobre o campo práti-co, ou seja, conhecendo e manipulando a natureza, a ciência constata no ser humano parte desta mesma natureza dominada. Surgem neste viés as ciências humanas, que acabam por moldurar o ser humano à mão de tec-nocratas. Estes se colocam como organizadores de um sistema, manipu-lado pela técnica e pelo desenvolvimento, conhecido popularmente como indústria. Com o desenvolvimento da indústria, não nos resta dúvida de que a sua influência sobre a civilização proporcionou grandes desenvolvi-mentos técnicos, por isso não devemos aqui descartar toda a função que a supremacia da ciência exerceu e ainda exerce sobre a humanidade.

É interessante demarcar que, com o surgimento da ciência moderna, os pensadores deste período almejavam e significavam, na razão cientí-fica, a instauração de um mundo melhor, um ambiente novo, suficiente-mente democrático, aberto, igualitário e livre.

Dedutivamente, não se esperava que a ciência se assemelhas-se ao mito de Prometeu10 , colocando-se, na maioria das vezes, como

10 N.E. O mito de Prometeu, assemelhado à ciência e à técnica, reflete o próprio desenvolvimento das habilidades humanas. Porém, a condição desenfreada deste desenvolvimento não reflete o progresso humano. Conclui-se que a condição do fogo de Prometeu é a vinda da morte presente na caixa de Pandora. Site disponível em: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/artigos/prometeu_o_filantropo.pdf Acesso em 06/07/2.008.

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promessa, pois sua intencionalidade de conhecer e desenvolver se escon-de no próprio cerne dominante da sociedade.

Assim, a ciência que surgia como salvadora da humanidade acabava por aprisionar ainda mais o ser humano em primores da tecnocracia e toda a vida humana passava a ser condicionada e manipulada pelo mundo da técnica. Ou seja, o homem passava a ser encarado por aquilo que produz, e não por aquilo que é. Surgiu, então, uma identidade materialista baseada na ordem do capital e da industrialização.

1.5.3 A industrialização da cultura

Conforme identificado neste estudo, o homem é um ser de identida-de, que atribui e categoriza nas coisas e nos seres sua consciência, passa a atribuir significados aos objetos, ao mundo e aos seres e aperfeiçoa toda a sua dimensão humana. Convenientemente, esta capacidade criadora pode estar sujeita, ou melhor, delegada de modo alienante a uma determina-da classe social que passa a impor valores e regras sempre novas e que passam a condizer à realidade do mundo industrial. Com o desenvolvi-mento da ciência, surgiu a técnica, que também passa a ser simbolizada pelo poder de influências dominantes. Paralelamente a isso, a cultura não poderia ficar isenta desta manipulação. Este assunto foi incansavelmente discutido pelos filósofos da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno (1895-1973), Marx Horkheimer (1903-1969) e outros, como Benjamin, Marcuse e Habermas, que delineavam como centro temático de suas refle-xões filosóficas a industrialização da cultura.

Segundo estes autores, a cultura se tornou um mecanismo de aliena-ção, em razão de sua valorização unidimensional de fetiche e mecanismo de dominação ideológica, em que a produção corresponde à suscitação de símbolos criados (sonhos) que levam a humanidade a um controle de con-sumo e produtividade em massa. Deste modo, a cultura perde sua identi-dade criadora e se transforma em mercadoria de exploração.

Segundo Adorno e Horkheimer e os demais pensadores de Frank-furt, é notável, na cultura contemporânea, uma estrutura de semelhanças, em que todas as áreas estão eminentemente relacionadas – como exemplo, pode-se citar o rádio, cinema, televisão etc. Todos estes setores agem isoladamente, cumprindo sua função e seu papel estético de valor. Conse-quentemente, em seu funcionamento, mesmo agindo cada um em sua indi-vidualidade, estes setores estão relacionados, pois trazem intencionalida-

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des políticas de classes dominantes que buscam por meio de suas funções simplificar as intenções premeditadas a uma grande parcela social, fator que demonstra o grande falsete manipulador das conjunturas culturais, a saber: quando as novidades simbólicas de um pequeno grupo, portanto particular, são ideologicamente transformadas em conceitos universais em que passam a ganhar dimensões extremas. A partir desta definição, a idealização cultural destes veículos de significação, quando atingida a sua média estimada de consumo, é facilmente descartada e substituída por novas significações, que irão atender uma nova necessidade humana e mercadológica. A partir deste dado refletem os filósofos em questão.

(...) A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideolo-

gia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a

si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus direitos

gerais suprimem toda a dúvida quanto à necessidade social de seus produtos. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento,

1985 p.112-115 (trad. Guido Antônio de Almeida).

A cultura contemporânea reflete, em sua própria estrutura, sinôni-mos que se entrelaçam paralelamente, formando uma única rede do que pensamos e construímos no aspecto do que seja condicionalmente con-vencional, a sociedade.

Inicialmente, afirma-se que as artes e as manifestações humanas reproduzem em sua ideologia aquilo que é projetado por uma pequena classe majoritária, que acaba por massificar o restante perpendicular da sociedade, a massa. Para que este processo ocorra, é preciso com-preender toda a sua estrutura e maquinação, por exemplo o próprio slo-gan industrial que ideologicamente apresenta, como solução total das necessidades humanas, a base da tecnologia de consumo. Constata-se aqui que o espelho da técnica passa a condizer com o reflexo social; de outro modo, a sociedade passa a ser pautada e medida de acordo com a sua evolução produtiva e pelo seu poder de consumo. Eminentemente, a tecnologia significará os braços da dominação industrial.

1.5.4 Política

A Política, na sociedade que vivemos, é o braço e o exercício do poder.Numa democracia, o poder político é exercido pelas instituições de-

mocráticas, constituídas, por um lado, pela rede constitucional (Legislativo,

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Executivo, Judiciário) e, por outro lado, pela pluralidade de partidos, pela sociedade civil organizada e pelos centros formadores de opinião pública.

Os partidos políticos possibilitam a negociação política, por meio da qual os interesses conflitantes, na arena política, são identificados, articulados, definidos, representados e, de algum modo, resolvidos. O sistema de controle democrático do poder completa-se com as liberdades individuais e garantias constitucionais. A essência do regime democrático repousa, histórica e doutrinariamente em três pressupostos: liberdade, igualdade e participação. Portanto, para que o regime funcione, é necessá-rio que todas as classes sociais e todos os cidadãos disponham de algum recurso de poder, pois “só o poder controla o poder”.

Neste panorama, a Ética nos impele a trabalhar para:• desenvolver uma nova consciência participativa, junto às classes

populares; • buscar a redefinição do papel do Estado, questionando o modelo

de Estado Mínimo proposto pelo neoliberalismo;• buscar o fortalecimento do poder local, da municipalização das

decisões e das políticas públicas, para possibilitar uma maior fis-calização e cobrança da sociedade organizada;

• Afirmação da pluralidade e da diversidade como valor;E, sobretudo, a defesa constante e convicta da introdução, no Es-

tado democrático e pluralista, de valores de justiça social, liberdade, respeito e solidariedade, afirmando a dignidade humana sobre todas as demais concepções.

O problema é que, hoje, a hegemonia encontra-se nas mãos do setor articulado com os centros mundiais de decisão, o que restringe o

espaço das grandes massas no processo político e provoca a imensa dis-paridade social que marca a sociedade globalizada, mais especificamen-te, à sociedade brasileira. Isso pode ser descrito sumariamente, a partir de alguns poucos indicadores: a elevadíssimwa concentração de renda e da propriedade da terra; o desemprego; o alto grau de marginalização; taxas inaceitáveis de analfabetismo e de mortalidade infantil, ainda nesse milênio; a fome; a favela; a violência urbana.

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Reflexão

Para encerarmos essa nossa primeira unidade, ainda se faz necessá-ria lembrarmos de outra discussão ao redor do problema do conhecimento está ligada à possibilidade ou não de o homem atingir ou não a certeza. Assim, distinguiremos duas tendências principais: o dogmatismo e o ceti-cismo.

Dogmatismo, do grego dogmatikós, significa o que se funda em princípios ou o que é relativo a uma doutrina. Dogmatismo é a doutrina segundo a qual é possível atingir a certeza. Apesar de associarmos o termo à religião, ele pode estar presente em outras áreas como a política. Na re-alidade, quando o dogmatismo atinge o campo não-religioso, passa a de-signar as verdades inquestionáveis: o indivíduo, de posse de uma verdade, fixa-se nela e abdica de continuar a busca por outras verdades.

A palavra ceticismo vem do grego sképsis, que significa investiga-ção, procura. O cético tanto procura e pondera que acaba concluindo, nos casos mais radicais, pela impossibilidade do conhecimento. Nas tendên-cias mais moderadas, mesmo que seja impossível alcançar uma certeza, a busca não deve ser abandonada.

Alguns filósofos ao questionarem expressões dogmáticas do saber e ao criticarem a aceitação apressada de algumas certezas, acabam adotan-do posturas céticas, mas não podem ser classificados como céticos, pois fazem apenas questionamentos e críticas, valorizando a busca e o abando-no da aceitação “cega”.

Com relação às civilizações ocidentais o que vale ainda ressaltar é que as antigas civilizações orientais foram responsáveis pela formalização do processo de ensino e aprendizagem ao criarem escolas; incorporação do método mnemônico ao processo de ensino e aprendizagem, método que até os dias atuais está presente em nossa educação; por colocar o educador como único detentor do saber a ser transmitido e o aluno como sujeito passivo e receptivo; pela invenção da escrita; pela criação das pri-meiras formas de Ensino Superior; por uma formação centrada no ritual; por incorporar os castigos físicos ao processo educacional e por apre-sentar uma educação dedicada à conservação e continuidade do sistema sócio-político e dos valores vigentes.

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Leitura recomendada

ARANHA, Maria L. Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna,1986.

Referências

______ Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro, 2007.

ALVES, Giovanni. Globalização como processo civilizatório humano-genérico. In: Estudos de sociologia, Araraquara, 13-14, p. 37-48, 2002/2003.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamor-foses e a centralidade do trabalho. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.

ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

BARROCO, Maria Lucia Silva. Ética e serviço social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez, 2008.

CANTO-SPERBER, Monique (org.). Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, 2007. v. 2.

CHÂTELET, François (org.). História da filosofia. Lisboa: Dom Qui-xote, 1995.

HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Tradução e prefácios Mon-cada, L.C. Coimbra: Armenio Amado, 1980.

HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lis-boa: Edições 70, 2008.

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NETTO, José Paulo. Ética e crise dos projetos de transformação social. In: BONETTI, Dilséa, A.(org.) Serviço social e ética: convite a uma nova práxis. 11 ed., São Paulo: Cortez,

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis: Vozes, 2005.

PECORARO, Rossano. Os filósofos: clássicos da filosofia. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC, 2008. v. 2.

SANTA’NA, Raquel. O desafio da implantação do projeto ético-po-lítico do Serviço Social. Serviço Social & Sociedade. N.62.p.73-92. 2000.

SILVEIRA, Ubaldo. Nominata: códigos, resoluções, diretrizes cur-riculares e gerais e lei de regulamentação da profissão de assistente social. 2010, mimeo.

VALLS, Álvaro L. M., O que é ética. Ed. Brasiliense. Coleção Primei-ros Passos. São Paulo. 1986.

VÁZQUEZ, Adolfo Sanches. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 2001.

VÁZQUEZ, Adolfo Sanches. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 2001.

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Minhas anotações:

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Cap

ítulo

2 Ética e Moral

Neste segundo capítulo vamos analisar a ética e a moral com o objetivo

de compreendermos a diferença entre elas e a importância de cada uma delas em nossa vida

e em nossas ações.

Objetivos de Aprendizagem: • Compreender a diferença entre ética e moral;

• Analisar as perspectivas éticas e morais;• Compreender o que está relacionado a liberdade ou ao deter-

minismo a partir da análise das responsabilidades individuais.

Você se lembra?Você sabe a diferença entre ética e moral? Já pensou a respeito dessa

distinção ou acredita que, na prática, são a mesma coisa?

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2.1 Distinção entre ética e moral

2.1.1 Ética, moral e valores.

Segundo Valls (1986, p.7) a ética pode ser entendida

[...] como um estudo ou uma reflexão, científica ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre os costumes ou sobre as ações humanas. Mas também chamamos de ética a própria vida, quando conforme aos costumes considerados corretos. A ética pode ser o estudo das ações ou dos costumes, e pode ser a própria realização de um tipo de comportamento.

A ética seria apenas um comportamento adequado aos costumes e valores de determinada época, determinada região e determinado contex-to. O que se considera ético entre os índios, por exemplo, devido aos seus costumes e a sua realidade muitas vezes pode não ser considerado ético na sociedade capitalista contemporânea.

O mesmo raciocínio pode-se aplicar ao Ocidente em relação ao Oriente. Costumes regidos principalmente por crenças religiosas, tornam-se opostos e ambíguos.

Assim sendo, o que seria ético ou não ético, por exemplo, tratando-se de um homicídio, em um assalto a vítima acaba atentando contra a vida do agressor – legítima defesa – correto, e em uma situação inversa, onde o assaltante tira a vida da vítima. Partindo do princípio que em ambas si-tuações ocorreu um homicídio, tirou-se a vida de alguém, não importa de quem. O que é ético ou não. O contexto, a situação faz a ética?

Não são apenas os costumes que variam, mas também os valores que os acompanham, as próprias normas concretas, os próprios ideais, a própria sabedoria, de um povo a outro. (VALLS, 1986, p. 13)

Ao questionarmos a existência ou não de uma ética absoluta, pode-se sugerir que talvez o cristianismo tenha-a trazido, válida acima de todas as fronteiras do tempo e do espaço. Mas dentro do próprio cristianismo Max Weber mostra que essa ética não era unânime, pois os protestantes, principalmente os calvinistas, sempre valorizaram muito mais o trabalho e a riqueza, enquanto os católicos valorizavam mais a abnegação, ao espíri-to de pobreza e de sacrifício.

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Não seria exagerado dizer que o esforço de teorização no campo da ética se debate com o problema da variação de costumes. E os grandes pensadores éticos sempre buscaram formulações que expli-cassem, a partir de alguns princípios mais universais, tanto a igual-dade do gênero humano no que há de mais fundamental, quanto as próprias variações. Uma boa teoria ética deveria atender à pretensão de universalidade, ainda que simultaneamente capaz de explicar as variações de comportamento, características das diferentes forma-ções culturais e históricas. (VALLS, 1986, p. 16)

Os autores que mais se destacaram neste sentido foram o filósofo grego Sócrates (470-399 a.C.) e o alemão prussiano Kant (1724-1804).

2.1.2 Ideais Éticos

Os ideais éticos de acordo com Álvaro Valls (1986, p.41-47).

[...] Para os gregos, o ideal ético estava ou na busca teórica e prática da ideia do Bem, da qual as realidades mundanas participariam de alguma maneira (Platão), ou estava na felicidade, entendida como uma vida bem ordenada, uma vida virtuosa, onde as capacidades superiores do homem tivessem a preferência, e as demais capacida-des não fossem, afinal, desprezadas, na medida em que o homem, ser sintético e composto, necessitava de muitas coisas (Aristóteles).

Já dentro do cristianismo a questão ética se identifica com a questão religiosa, ou seja, fazer o bem; ser bom é uma conduta colocada pela re-ligião e também é tida como um valor ético importante na sociedade. Ao agradar a Deus, apresenta-se também uma conduta ética, valores como fraternidade, solidariedade demonstram uma conduta ética e religiosa.

Entre os séculos XV e XVIII a burguesia passa a ocupar posição importante na sociedade, buscando sua supremacia, esta passa a ditar outros aspectos éticos, exaltando a liberdade pessoal como conduta ética preponderante. Kant faz uma associação entre o ideal ético e o ideal da autonomia individual, trazendo a figura do homem que se baseia na razão e na sua liberdade e autonomia.

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Se Kant e a Revolução Francesa acentuaram de maneira talvez de-masiado abstrata à liberdade, o ideal ético para Hegel estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem se-paradas, e nem em contradição. A profunda perspectiva política de Platão e Aristóteles transparece de novo, portanto, em Hegel. Mas parece que a realidade histórica não acompanhou muitas de suas teorias. Os valores espirituais, éticos e religiosos foram se tornando, nestes últimos duzentos anos, sempre mais assunto particular, e os assuntos gerais foram sendo dominados pelo discurso da ideologia. (VALLS, 1986, p.45-46)

A liberdade permanece como um ideal ético até a atualidade, não se pode conceber a ética sem um dos seus princípios fundamentais: a liberda-de, a liberdade de pensamento, de expressão, de ir e vir, de ser autônomo e em um sentido mais liberal, a liberdade de propriedade, de possuir, de ter.

O ideal ético se diferencia no pensamento social e dialético, pois busca a justiça e equidade social, uma sociedade mais justa, sem explora-ção e discriminação. Afasta questões religiosas se ocupando fundamen-talmente com as questões da terra, do nosso mundo, da nossa sociedade, buscando a construção de um mundo melhor.

Finalmente não há como negar que exatamente a maioria dos países ricos atuais se caracteriza por uma ética que em muitos casos lem-bra a busca grega do prazer, porém, nem sempre com moderação. O prazer, depois do século XIX, época da grande acumulação ca-pitalista, reduziu-se bastante, de fato, à posse material de bens, ou à propriedade do capital. Em nome da defesa do capital, ou, mais modestamente, em nome da defesa da propriedade particular, muito sangue já foi derramado e muita injustiça cometida. O grande argu-mento do pensamento de esquerda é que não foi a esquerda quem inventou a luta de classe. E que a propriedade é um direito básico para todos. (VALLS, 1986, p.47)

Vivemos hoje uma grande massificação, pensamos de forma igual, compramos as mesmas coisas, temos os mesmos objetivos. Os meios de comunicação e a sociedade do consumo cada vez mais nos tornam pesso-

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Pode-se conceituar moral como um conjunto de normas e regras destinadas

a regular as relações dos indivíduos numa comunidade social dada, o seu significado,

função e validade não podem deixar de variar historicamente nas diferentes sociedades.

as iguais, sem aspectos críticos na nossa formação. Não nos apresentamos como cidadãos conscientes, capazes de analisar e julgar a realidade.

Moral, imoral e amoral.Ultimamente, “imoral” e “amoral” têm sido

aplicados para designar um mesmo significado: aquele que não tem moral, ética.

É verdade, os dois referem-se à questão moral, no entanto, têm relações diferentes com a mesma.

De acordo com o site Mundo da Educação, po-demos assim conceituar:

Conexão:

Moral, imoral e amoral.

Disponível em HTTP://www.mundoeducacao.com.br/gra-

matica/imoral-amoral.htm

Moral é o que está “de acordo com os bons costumes e regras de conduta; conjunto de regras de conduta proposto por uma determinada doutrina ou inerente a uma determina condição”. Também é classificada como o “conjunto dos princípios da honestidade e do pudor”. Daí este termo ser tão utilizado em âmbito social, principalmente no político!

Imoral é tudo aquilo que contraria o que foi exposto acima a respeito da moral. Quando há falta de pudor, quando algo induz ao pecado, à indecência, há falta de moral, ou seja, há imoralidade.

Amoral é a pessoa que não tem senso do que seja moral, ética. A questão moral para este indivíduo é desconhecida, estranha e, portan-to, “não leva em consideração preceitos morais”. É o caso, por exem-plo, dos índios no tempo do descobrimento.

As sociedades se alteram, evoluem, e com elas seus valores, sua moral, sua forma de viver em sociedade, de aceitar ou normatizar as ações de seu povo.

Desta forma, a moral pode ser con-siderada como um fato histórico, que se altera de acordo com as alterações his-tóricas, se considerarmos a ética como a ciência da moral, concluiremos que a ela também se altera de acordo com o momento histórico vivenciado, ela

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é mutável com o tempo, sempre sendo baseada nas visões de homem e mundo da sociedade.

É essencial entender que a moral é um fato histórico e negar tal con-dição é ter uma visão a-histórica, ou seja uma visão limitada que não leva em consideração as mutações da sociedade como um todo.

2.1.3 Mudanças da moral

É necessário o entendimento da evolução histórica da sociedade para se compreender quais as impressões em relação as questões morais e éticas de determinados momentos históricos.

Com a evolução da sociedade, houve um aperfeiçoamento em re-lação à produtividade, impulsionado em especial por um maior grau de desenvolvimento na criação de gado, em processos na agricultura e nos trabalhos manuais; também houve a injeção de uma nova mão de obra ocasionada em especial por escravos (prisioneiros de guerra), fazendo com que fosse possível armazenar produtos, uma vez que se produzia além do que se consumia. Desta forma, passou a existir a apropriação dos frutos do trabalho de um indivíduo por outro indivíduo, propiciando o an-tagonismo entre ricos e pobres.

Por isso há o desfacelamento do regime comunal e o aparecimento da propriedade privada, acentuando cada vez mais a diferença entre ho-mens livres e escravos. Nesta perspectiva, o trabalho físico passou a ser uma ocupação indigna de homens livres que se dispunham a executar o trabalho mental, ou seja, dá-se início a uma divisão que se percebe ainda na atualidade, o trabalho físico na maioria das vezes, mal remunerado, e o trabalho intelectual, onde há maiores exigências em relação à qualificação e maior remuneração.

A sociedade antiga passou a ser dividida em duas classes sociais an-tagônicas, ocasionando também uma divisão no que diz respeito à moral, passando a existir duas morais: a moral dominante dos homens livres, tida como a única verdadeira, e a outra moral, dos escravos, que no seu íntimo não aceitavam as normas morais vigentes e consideravam os seus próprios valores como os válidos, de acordo com o desenvolvimento de sua consci-ência em relação à liberdade.

Segundo Silveira (2006), a moral dos homens livres, não só era uma moral efetiva, vivida, mas tinha também seu fundamento e sua justificati-

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va teórica nas grandes doutrinas éticas dos filósofos da antiguidade, como Sócrates, Platão e Aristóteles.

A moral dos escravos nunca conseguiu alçar-se a um nível teórico, embora – como atestam alguns autores antigos – alcançasse algumas for-mulações conceptuais.

Portanto, prática e teoricamente na antiguidade, a moral que dominava era a dos homens livres.

O mundo antigo que tinha suas bases na escravidão é superado, sur-gindo uma nova sociedade, a sociedade feudal que se inicia nos séculos V-VI de nossa era e existindo por mais dez séculos, aproximadamente. A sociedade feudal se divide por duas classes sociais fundamentais, os se-nhores feudais e os camponeses servos.

Os senhores feudais eram os donos, os senhores absolutos da terra e ainda apresentavam uma propriedade relativa junto aos servos, pois estes eram presos à terra, tendo os donos das terras como os seus senhores. Se houvesse transações de compra e venda, os servos eram vendidos e/ou comprados juntamente com aquela terra, sendo obrigados a trabalhar para o seu senhor, tendo em troca parte do que produziam.

A moral feudal tinha sua base na religião católica, o poder da Igreja era aceito por todos, senhores feudais, servos, artesãos; este poder eclesi-ástico mantinha uma certa unidade moral àquela sociedade. Mas ao mes-mo tempo havia uma pluralidade de padrões morais de acordo com as cor-porações, comuns àquela época, havendo os códigos morais dos nobres ou cavaleiros, códigos morais das ordens religiosas e assim por diante. Já os servos não possuíam um código moral, dependendo sempre da moral que lhes era imposta.

Com a evolução dentro da sociedade feudal inicia-se novas relações sociais que propiciam uma nova moral, uma nova maneira de regular as relações entre as pessoas desta comunidade. Desta forma nasce uma nova classe social – a burguesia – dona dos recentes meios de produção que passam as substituir as velhas oficinas artesanais, formando uma outra nova classe, a dos trabalhadores livres e assalariados.

Deste modo se formaram duas classes fundamentais: burguesia e proletariado.

No sistema capitalista, o homem é livre, porém necessita vender sua força de trabalho em troca de um salário; este sistema é marcado pela

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Segundo Vásquez (2000), a moral vivida realmente na socie-

dade muda historicamente de acordo com as reviravoltas fundamentais que se

verificam no desenvolvimento social. Em uma sociedade baseada na exploração de homens

pelos homens, ou de países por outros paí-ses, a moral se diversifica de acordo com os

interesses antagônicos fundamentais.

exploração do homem pelo homem e pela necessidade da mais-valia1. Mas a moral tida como comum, justifica e reforça os interesses do sistema capitalista.

A moral colonialista começa por apresentar como virtudes do colo-nizado o que condiz com os interesses do país opressor: a resignação, o fatalismo, a humildade ou a passividade. Mas os opressores não somente costumam insistir nesta suposta virtude, como também numa pretensa atitude moral do colonizado (sua indolência, criminalidade, hipocrisia, apego à tradição, etc.) que serve para justificar a necessidade de lhe impor uma civilização superior. Este esquema se re-produz dentro de cada país.

Atualmente estamos vivendo uma nova forma de acumulação capitalista global, desregula-do e comandado muito mais pela especulação financeira rendista do que por investi-mentos produtivos, ou seja, está impondo um novo tipo de imperialismo que se alimenta dos fluxos de rendas financeiras internacionais que transitam por intermédio dos comércios financeiros ditos emergentes.

Para Vásquez (2000), a construção de uma nova sociedade onde haja uma moral de fato humana, igualitária, sem os traços de exploração do homem pelo homem, ou submissão ou supremacia entre países depen-de da superação do antagonismo entre as classes sociais. Esta nova moral trará uma conduta de cooperação, visando o coletivo e eliminando a ex-ploração e o preconceito.

1 Segundo o dicionário Aurélio em Economia marxista, valor do que o funcionário produz menos o valor de seu próprio trabalho (dado pelo custo de seus meios de subsistência). [Segundo o marxismo, a mais-valia mede a exploração dos assalariados pelos capitalistas, e é a fonte de lucro destes.]

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Para Johnson (1997), em termos gerais, o determinismo é um modo de

pensar que supõe que tudo é, de modo previsível, causado por alguma coisa. Mais

especificamente, determinismo descreve qual-quer teoria que explique o mundo em termos

de alguns fatores estreitamente definidos, com exclusão de todos os demais.

2.2 Perspectiva ética e moral das normas e valores

2.2.1 Liberdade

A liberdade é inerente a ética, se o homem não for livre para agir conforme seus preceitos, ou mesmo se não for livre para formulá-los, não há sentido ético em sua vivência pessoal ou cole-tiva. A liberdade é um princípio ético fundamental em busca de uma sociedade mais justa, mais humana, uma vida melhor para todos.

Há a possibilidade de cumprir, obedecer ou não as normas; as regras e normas morais visam de certa forma conduzir a vida em sociedade, mas a liberdade também se faz presente quando se opta por viver ou não da maneira que estabelece o senso comum.

Assim, Valls (1986, p.49) afirma:

Todas as doutrinas éticas se articulam entre dois extremos que tor-nam a ética impossível. Se alguém afirma que o determinismo é to-tal, então não há mais ética. Pois a ética se refere às ações humanas, e se elas são totalmente determinadas de fora para dentro, não há espaço para a liberdade, como a autodeterminação, e, consequente-mente, não há espaço para a ética.

Dentre as formas de determinismo temos o fatalismo onde, tudo que acon-tece, tinha que acontecer. Segundo os orientais “estava escrito”. Se atri-buirmos à fatalidade ou ao destino, a todos nossos passos, atos, omis-sões, então não temos liberdade e nem optamos pelo nosso presente ou futuro. Tudo o que acontecer já estava decidido, determinado.

Ainda segundo Johnson (1997), o determinismo social atribui à vida social exclusivamente aos sistemas sociais, assim nega aspectos biológicos da existência humana.

Conexão:

Para uma maior refle-xão sobre ética e liberdade,

acesse:http://www.fflch.usp.br/df/site/

publicacoes/discurso/pdf/D22_Ser_Parte_e_Ter_

Parte.pdf

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Dentro desta perspectiva o homem tem pouco ou nenhum controle ou livre arbítrio diante de fatores biológicos ou sociais.

“Quando uma objetividade total domina o sujeito, não há mais espaço para a liberdade e consequentemente nem para a ética”. (Valls, 1986, p.50).

Assim como não está tudo determinado, nem tudo que se aspira é possível, estamos sujeitos a impedimentos sociais, políticos e econômi-cos. Não há uma liberdade total para se fazer o que quiser, a ética muitas vezes nos condiciona e nos limita visando o convívio social.

[...] alguns pensadores do idealismo também acentuaram de tal maneira o poder da vontade, acima de todos os condicionamentos naturais, materiais, sociais, econômicos e psicológicos [...] pressu-pondo um sujeito puramente racional, infinito, acima e livre do aqui e agora, um espírito tão poderoso que não se identifica mais com o homem real e concreto (VALLS, 1986, p.50).

Para Hegel, filósofo alemão (1770-1831)Em certas passagens expõe a história de uma liberdade que seria

sobre-humana, mas não se pode negar sua importância em relação a liberdade, explica por exemplo, porque num Estado em que apenas um homem é livre ninguém é livre, nem mesmo o tirano. Num Estado de di-reito, o exterior, ou seja, as leis e as organizações sociais, garantem a li-berdade, ou melhor, as liberdades individuais e o bem comum. Pois não basta que eu me sinta livre, é preciso que eu me saiba realmente livre, num Estado organizado que garanta a liberdade de todos e de cada um. Hegel mostra que a liberdade não pode ser apenas exterior, nem apenas interior, e que ela se desenvolve na consciência e nas estruturas. A li-berdade aumenta com a consciência que se tem dela, embora a simples “consciência da liberdade” ainda não seja a liberdade efetiva, isto é, real.

Fonte: (VALLS, 1986, p.53).

Tanto o determinismo absoluto quanto o libertarismo absoluto, são dois extremos que fazem com que a ética se movimente entre eles, mas ambos são falsos.

A ética se preocupa, podemos dizê-lo agora, com as formas humanas de resolver as contradições entre necessidade e possibilidade, entre tempo e eternidade, entre o individual e o social, entre o econômico e o moral, entre o corporal e o psíquico, entre o natural e o cultural e entre a inteligência e a vontade. Essas contradições não são todas do

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mesmo tipo, mas brotam do fato de que o homem é um ser sintético, ou, dito mais exatamente, o homem não é o que apenas é, pois ele precisa tornar-se um homem, realizando em sua vida a síntese das contradições que o constituem inicialmente (VALLS, 1986,p. 56).

A ética se diferencia da moral; a primeira visa uma vida melhor para todos, um bom convívio social, já a segunda tem um caráter mais regulador, fundamentado na obediência de normas e regras bem como na obediência de costumes culturais e religiosos.

2.2.2 Os valores

Em nossas vidas formulamos constantemente juízos de valor ao afirmarmos que este lápis é ruim, pois sempre quebra a ponta; este livro não é bom, mas tem um valor sentimental grande, pois alguém que gosto me presenteou; acho que fulano agiu mal em determinada situação.

Estas situações retratam os juízos de valores formulados, assim des-cobrimos em nossa realidade conteúdos que mobilizam nossa atração ou repulsa.

[...] o mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de tal modo que aprendemos desde cedo como nos com-portar à mesa, na rua, diante de estranhos; como, quando e quanto falar em determinadas circunstâncias; como andar, correr, brincar; como cobrir o corpo e quando desnudá-lo; qual o padrão de beleza; que direitos e deveres temos. Conforme atendemos ou transgredi-mos certos padrões, nossos comportamentos são avaliados como bons ou maus. (ARANHA, 1986, p.302)

Assim as pessoas podem nos recriminar ou nos elogiar, nós próprios podemos nos alegrar ou sentir remorsos por uma ação praticada; isso quer dizer que o resultado de nossos atos está sujeito à sanção, ou seja à recom-pensa e à punição nas mais diversas intensidades.

Podemos considerar a moral como o conjunto de regras que deter-minam o comportamento dos indivíduos na sociedade. Segundo Aranha (1986), exterior e anterior ao indivíduo, há uma moral constituída, que orienta seu comportamento por meio de normas. Em função da adequação ou não à norma estabelecida, o ato será considerado moral ou imoral.

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O mundo do trabalho influência diretamente as formas de organiza-ção da sociedade, assim ao alterar as relações de trabalho, novos valores e condutas nascem, alterando o comportamento coletivo.

Na antiguidade o trabalho era restrito aos escravos, na idade média ele passa a ser restrito aos servos, em ambos os casos a classe dominante se dedicava ao ócio e a uma vida contemplativa. Com o surgimento da burguesia surgem novas relações de trabalho, nascendo novos valores, havendo a valorização do trabalho e a crítica ao ócio.

Aranha (1986), afirma que o homem, ao mesmo tempo em que é herdeiro, é criador de cultura e só terá uma vida autêntica se diante da mo-ral constituída, for capaz de propor uma moral constituinte, isto é, a que se faz dolorosamente e por meio das experiências vividas.

Nessa perspectiva, a moral não pode recusar a ambiguidade fun-damental, justamente a que determina o seu caráter histórico. Toda moral está situada num tempo e reflete um mundo em que a nossa liberdade se acha situada. Diante desse passado que condiciona nossos atos, podemos nos colocar à distância para reassumi-lo ou recusá-lo. A historicidade do homem não reside na sua mera con-tinuidade no tempo, mas é a consciência ativa do futuro, pela qual se torna possível a criação original por meio de um projeto de ação que tudo muda (ARANHA, 1986, p. 305).

Segundo Aranha (1986), a instauração do mundo moral exige do homem uma consciência crítica, a qual pode-se chamar de consciência moral, trata-se do conjunto de exigências das prescrições que reconhece-mos como válidas para orientar a nossa escolha; é essa consciência que vai discernir o valor dos nossos atos.

Ato Moral – deve ser livre, consciente, intencional e responsável.

Atividades

01. Defina ética, moral e valores.

02. Ética e valores morais se alteram de acordo com o contexto histórico, como você analisa a ética na atualidade?

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Reflexão

Bruxos, vampiros e avataresLya Luft

“A tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos contro-lar: se pensarmos um pouco, sentiremos medo”

Cibernéticos e virtuais, nadamos num rio de novidades e nos consi-deramos moderníssimos. Um turbilhão de recursos trazidos pela ciência, pela tecnologia, nos atrai ou confunde. Se somos mais velhos, nos faz crer que jamais pegaremos esse bonde – embora ele seja para todos os que se dispuserem a nele subir, não necessa-riamente para ser campeões ou heróis.

A tecnologia abre territórios fascinantes, e ameaça nos controlar: se pensarmos um pouco, sentiremos medo. O que mais vem por aí, quanto podemos lidar com essas novidades, sem saber direi-to quais são as positivas, quanto servem para promover progresso ou para nos exterminar ao toque do botão de algum demente no poder? Exageradamente entregues a esses jogos cada dia inovados, vamos nos perder da nossa natureza real, o instinto? Viramos homens e mulheres pós-modernos, sem saber o que isso significa; somos cibernéticos, somos twitteiros e blogueiros, mas não passamos disso. E, se não formos muito equilibrados, vamos nos transformar em hackers, e o mundo que exploda.

Sobre a sensação de onipotência que esse mundo novo nos confere, lembro a história deliciosa do aborígine que, contratado para guiar o cien-tista carregado de instrumentos refinados, lhe disse: “Você e sua gente não são muito espertos, porque precisam de todas essas ferramentas simples-mente para andar no mato e observar os animais”.

Não vamos regredir: a civilização anda segundo seu próprio arbí-trio. Mas, como quase todas as coisas, seus produtos criam ambiguidade pelo excesso de aberturas e pelo receio diante do novo, que precisa ser domesticado, para se tornar nosso servo útil. As possibilidades do mundo virtual são quase infinitas. Sua sedução é intensa. Tão enganador quanto fascinante, no que tange à comunicação. Imenso, variado, assustador, rumoroso, ameaçador, e frio, porque impessoal. Nesse mundo difuso so-mos quase onipotentes, sem maior responsabilidade, pois cada ação nem sempre corresponde a uma consequência – e ainda podemos nos esconder

Conexão:

http://veja.abril.com.br/170210/bruxos-

vampiros-avatares-p-18.shtml

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no anonimato. Criam-se sérias questões morais e éticas não resolvidas nesse território: através da mesma ferramenta que nos abre universos e nos comunica com o outro, caluniamos e somos caluniados, ameaçamos e somos ameaçados, nos despersonalizamos, nos entregamos a atividades estranhas, algumas perversas; espiamos, espreitamos, maldizemos amigos e desconhecidos, odiamos celebridades, cortamos a cabeça de quem se destaca porque se torna objeto de inveja e ressentimento, escutamos men-sagens sombrias e cumprimos, talvez, ordens sinistras.

Relacionamentos pessoais começam e terminam, bem ou mal, nesse campo virtual – não muito diferente do mundo dito real, dos bares, festas e trabalho, faculdade e escola. Para as crianças, esse universo extenso e invasivo pode ser uma grande escola, um mestre inesgotável, um salão de jogos divertido em que elas imediatamente se sentem à vontade, sem os limites dos adultos. Mas pode ser a estrada dos pedófilos, a alcova dos doentes, ou a passagem sobre o limite do natural e lúdico para o obsessivo e perverso.

Como quase tudo neste mundo nosso, duplo é o gume: comunicar-se é positivo, mas sinais feitos na sombra, sem verdadeiro nome nem ros-to, podem acabar em fantasmáticas perseguições e males. Singularmente, mas de maneira muito significativa, enquanto estamos velozes e espertos no computador, criando mundos virtuais, e jogando jogos cada vez mais complexos, buscamos o nevoeiro desse anonimato e, na época das maio-res inovações, curtimos voar com bruxos em suas vassouras, namorar vampiros e inventar avatares que vão de engraçados a sinistros.

Estimulante, múltiplo, tão rico, resta saber o que vamos fazer nesse novo mundo – ou o que ele vai fazer de nós. Quando soubermos, estare-mos afixados nele como borboletas presas com alfinete debaixo da tampa de vidro ou vaga-lumes em potes de geleia vazios, naquelas noites de ve-rão quando a infância era apenas aquela, inocente, que ainda espia sobre nossos ombros.

Lya Luft é escritora.

Leitura recomendada

ARANHA, Maria L. Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna,1986.

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Referências

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamor-foses e a centralidade do trabalho. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1995.

HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Tradução e prefácios Mon-cada, L.C. Coimbra: Armenio Amado, 1980.

SANTA’NA, Raquel. O desafio da implantação do projeto ético-po-lítico do Serviço Social. Serviço Social & Sociedade. N.62.p.73-92. 2000.

SILVEIRA, Ubaldo. Nominata: códigos, resoluções, diretrizes cur-riculares e gerais e lei de regulamentação da profissão de assistente social. 2010, mimeo.

VALLS, Álvaro L. M., O que é ética. Ed. Brasiliense. Coleção Primei-ros Passos. São Paulo. 1986.

No próximo capítulo

No próximo capítulo abordaremos a estrita relação entre conceitos como ética e trabalho, fundamentais à organização e entendimento da so-ciedade capitalista.

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Minhas anotações:

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3 Filosofia e Política

Neste capítulo conheceremos as prin-cipais doutrinas políticas construídas ao

longo da história do pensamento ocidental, destacando a filosofia de Platão e Aristóteles, que

podem ser considerados os iniciadores desse debate, prosseguindo para a análise de algumas teses de Maquia-

vel para enfim conhecer a diferença entre as doutrinas do Direito Divino e do Contrato Social. Terminaremos refletindo

sobre a relação entre política e educação, escolhendo para essa reflexão um estudo sobre o problema da legitimidade do poder

em Hannah Arendt.

Objetivos de sua AprendizagemVocê deverá ser capaz de discutir sobre as principais teorias políticas

da história da filosofia e ainda relacionar o tema “política” com o pro-blema da educação e da ética, já discutidos antes.

Você se Lembra?De algum debate político ocorrido no Brasil que levava em conta o pro-blema da relação entre ética e política? Como isso se dá no contexto efe-tivo da prática política?

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3.1 Introdução

O que se disse anteriormente sobre a ética, ou seja, que seu lugar é a própria natureza humana e o conflito que lhe é próprio entre os impul-sos e a inteligência, poderia levar a pensar que a evolução das ideias e da ciência seria capaz de um dia tornar a vida humana sumamente feliz. Os conhecimentos disponíveis hoje seriam talvez capazes de suavizar o que de inconveniente existe na vida humana, conferir-lhe um grau de conforto nunca antes experimentado e tornar a existência sobre a Terra o mais agra-dável e prazeroso passa-tempo.

Contudo, a história tem mostrado, isso desde a alvorada da socieda-de humana, que os desejos que dominam e se sobrepõem são justamente aqueles que visam à derrota e aniquilamento do outro. Isso desde o amor ao poder, a rivalidade, o ódio e até o prazer na contemplação do sofrimen-to alheio.

Russell entende, de acordo com isso, que se antes, quando a vida social não era tão organizada quanto é hoje, existiam os perigos da fome e dos animais selvagens; esses perigos não impediam a satisfação da felicidade quando a fome era saciada ou os animais afugentados. A orga-nização da sociedade outra coisa não fez do que diminuir os momentos dessa felicidade despreocupada, própria das primeiras coletividades. O aumento ou mesmo a invenção do trabalho, fruto talvez do crescimento da previdência humana, se diminuiu o sentimento de insegurança diante do mundo, também tornou a vida na terra extremamente fatigante, sobretudo para aqueles que se destinavam ao serviço braçal. Hoje o trabalho parece ocupar todos os setores da vida humana, diminuindo os momentos de lazer, os quais também se enquadram dentro da lógica do trabalho, de tal forma que o lazer se torna quase uma extensão da atividade laboral, e é vi-vido de acordo com a dinâmica que comanda essa atividade. Com efeito, justamente nos momentos em que nada se tem para fazer, os momentos de ócio puro, é então que o imperativo do fazer mostra sua força, ao exigir do homem que se ocupe de algo, ainda que seja da limpeza da casa.

Assim, ganância pelo poder, o ímpeto de dominação estrangeira, que se expressa na guerra e nos mecanismos cada vez mais sofisticados de combate, aliada ao estudo da história, não são capazes de encorajar nin-guém e nem sugerem a esperança na evolução das sociedades. Tudo isso leva a supor que a intimidade entre ética e política é quando muito teórica, e não alcança na prática repercussão alguma.

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Contudo, é justamente no nosso tempo, determinado que é pela uni-dade entre ciência e técnica, que o debate ético, conjugado a um projeto filosófico de educação da humanidade – entendida como o caminho para o desenvolvimento da virtude – que a proximidade entre ética e política se mostra urgente. E de fato, a recusa a essa proximidade pode colocar em risco a própria existência humana, visto que nossa crescente habilidade pode nos conduzir ao desastre inevitável.

A seguir conheceremos em linhas gerais a forma como foi pensada a política ao longo da história, analisando o que sobre isso es-creveram alguns personagens importantes como Platão, Aristóteles, Maquiavel e os contratualistas, para depois pensar a rela-ção entre política e educação, de acordo com o fio condutor que orienta nosso estudo.

3.2 Política em Platão

O texto de Platão mais importante é a República, que se ocupa, entre outras coisas, da questão de saber como deve ser um Estado ideal e quais são suas características. Essas características expomos a seguir.

Em primeiro lugar, devem existir três classes sociais, quais sejam, a gente comum, responsável pelo sustento material da cidade, os soldados, que defendem a comunidade de ataques estrangeiros e mantêm a ordem social e os guardiões, responsáveis pela administração da cidade.

Apenas os guardiões receberiam educação, e a cultura, nesse caso, deveria promover a gravidade, o decoro e a coragem. Nesse sentido, deveria ser proibida todo tipo de literatura que apresentasse homens em lamento ou em flagrante de covardia, assim como proibir a representação dos deuses, própria de Homero ou Hesíodo, posto que nesses poetas os seres que deveriam ser exemplos para todos são apresentados em com-portamentos nada edificantes, como expondo ciúme, inveja, parcialidade ou impulso sexual. Deveriam ser proibidas também as músicas excessi-vamente tristes ou alegres, permitindo-se apenas aquelas que levassem à gravidade e temperança.

No que diz respeito à economia, os guardiões viveriam de modo a não possuir nem riqueza e nem serem vitimados pela pobreza. Viveriam

Conexão:

Para o aprofundamento do tema e o debate de outros pro-

blemas políticos não contemplados aqui, pode ser consultado o Caderno

de Ética e Filosofia Política da Faculda-de de Filosofia da USP, acessível no endereço a seguir: http://www.fflch.

usp.br/df/cefp/

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em pequenas casas e só fariam uso de alimentos simples. Por outro lado, sua casa deveria ser na verdade uma espécie de acampamento, onde os guardiões residiriam e comeriam juntos, o que é possível graças ao pe-queno número de pessoas que deveria compor essa classe. Em suma, não teriam propriedade privada e nem objetos valiosos, visto que o ouro e a prata seriam proibidos.

Quanto à família, impera também aí essa espécie de comunismo. Com efeito, os amigos devem ter tudo em comum, inclusive as mulheres e os filhos. As meninas receberiam a mesma educação que os meninos, pois não há diferença entre homem e mulher, do ponto de vista político. Assim, caso elas queiram ocupar-se de filosofia, bem como participar da guerra, não a nada que as impeça de fazê-lo.

Por outro lado, como não haveria casamento, a continuação da classe seria responsabilidade do Estado, o qual, no momento certo, esco-lheria os homens e mulheres que se relacionariam para gerar filhos para a cidade. Inicialmente, o legislador anunciaria os casais alegando que a escolha foi realizada por sorteio. Contudo, essa escolha seria na verdade realizada de acordo com princípios eugênicos, garantindo que os filhos nasçam saudáveis e fortes. De fato, filhos defeituosos seriam levados a um “lugar desconhecido” e aqueles que fossem gerados sem a autorização do Estado, seriam considerados ilegítimos. Ainda com relação aos filhos, Platão defendia que eles fossem retirados dos pais logo que nascessem, e educados pelo governo. Assim, quando crescessem, tratariam todos os mais velhos como seus possíveis pais, assim como os adultos tratariam todas as crianças como seus possíveis filhos. As idades para a procriação seriam, para as mulheres, entre 20 e 40 anos, e para os homens, entre 25 e 55 anos. Fora dessas idades o relacionamento sexual é livre, mas o aborto ou infanticídio é obrigatório. No que diz respeito à escolha dos casais, não seria permitido recusa aos escolhidos, que agiriam motivados por um de-ver para com o Estado, e não por sentimentos pessoais.

No que se refere à justiça ou às ações do governo, Platão sugere que é prerrogativa do governo a mentira. Assim, o Estado deveria inculcar uma série de mitos nas pessoas, que as tornassem mais dóceis à estrutura social proposta. Por exemplo, deveria ensinar que Deus fez as pessoas de três matérias diferentes: umas fez de ouro, outras de prata e outras de bronze ou cobre. Os primeiros servem para guardiões, os segundos serão soldados e os últimos serão responsáveis pelos trabalhos manuais. Existe a possibilidade de mobilidade social, mas há de se supor que ela seria rara.

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Justiça, por sua vez, significa em Platão algo como fazer cada um o que lhe é próprio e não interferir na vida do outro. Assim, a desigual-dade de poder ou de privilégios não implica injustiça, mas reflete apenas a estrutura legal da sociedade. Desse modo, os guardiões devem possuir todo o poder, os soldados devem se preocupar com a segurança e a gente comum com o trabalho. Cada um fazendo o que deve, parece ser isso que Platão chama de justiça, ainda que a nós possa causar alguma estranheza.

Essas são, em linhas gerais, algumas das principais características da República ideal de Platão. Suas ideias são hoje, em grande medida, de difícil defesa.

3.3 Política em Aristóteles

Sob muitos aspectos, as ideias presentes no texto político de Aris-tóteles refletem os preconceitos próprios de sua época. Como exemplo, pode-se citar a ideia de que as crianças devem ser concebidas no inverno, ou ainda a ideia de que não se deve casar muito jovem, pois então os fi-lhos seriam fracos e do sexo feminino, as mulheres seriam devassas e pre-judicaram o desenvolvimento físico do marido. Assim, a idade adequada para o casamento seria 18 anos para a mulher e 37 para o homem.

Contudo, deixando de lado essas curiosidades próprias do período em que o filósofo viveu, voltemo-nos para sua teoria política propria-mente. Segundo Aristóteles, o Estado é a mais perfeita comunidade e tem

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como finalidade o bem mais elevado. Embora a família seja anterior ao Estado, e este só surja após a reunião de diversas famílias em aldeias e da unidade de diversas aldeias, ainda assim o Estado é anterior às famílias e indivíduos, se não no tempo, ao menos ontologicamente. Sua concepção de Estado aproxima-se da ideia de organismo, de acordo com a qual o in-divíduo só tem razão de ser se vive na comunidade política, tal como uma parte qualquer de um corpo só existe e é capaz de exercer sua função se unida ao corpo. O Estado seria, por outro lado, a maior das benfeitorias, pois sem ele, os homens seriam os piores animais; com ele, ao contrário, a vida humana se torna tolerável e até feliz.

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Quanto à família, Aristóteles dedica grande atenção à questão do escravo, então entendido como membro da família. A escravidão justifica-se, de acordo com ele, visto que há homens que nasceram para a obediên-cia, enquanto outros têm por natureza a característica do comando. Porém, os escravos não devem ser gregos, mas de uma raça com menos espírito. Esses escravos, tal como acontece com os animais domesticados, tornam-se seres melhores através da condução do dono.

No que diz respeito à economia, Aristóteles defende uma tese segun-do a qual o comércio a varejo não é natural, sendo antes uma forma de-gradante de adquirir riqueza. Com efeito, ele entende que cada coisa tem dois usos, um próprio e um impróprio. Calçar um sapato, por exemplo, é fazer dele um uso próprio, mas trocá-lo ou vendê-lo é um uso impróprio, de onde segue que o sapateiro exerce uma atividade antinatural e indigna. A forma correta de adquirir riqueza é a administração da casa e da terra, sendo condenável a prática de acumular moedas ou da usura.

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Aristóteles é ainda crítico de algumas das ideias políticas de Platão, como a proposta de abolição da família. Sustenta que aquilo que é comum a um número muito grande de pessoas costuma receber menores cuidados, de onde segue que filhos em comum seriam na verdade negligenciados em comum. Afirma também que evitar o adultério é uma virtude que, no go-verno de Platão, não tem lugar, e seria lamentável a ausência dessa virtude tão edificante. Outra virtude igualmente ausente seria a benevolência e a generosidade, que só são possíveis caso exista a propriedade privada, coi-sa que Platão condena.

No que se refere ao governo da cidade, Aristóteles entendia que um governo bom é aquele que tem em vista o interesse de toda a comunidade, e um governo ruim é aquele que pensa apenas em si próprio. Existem três classes de governos bons e três classes de governos maus corresponden-tes: os bons são a monarquia, a aristocracia e o governo constitucional, ao passo que os maus são a tirania, a oligarquia e a democracia. As diferenças entre essas formas de governo residem nas disposições morais de quem governa: o rei é virtuoso, o tirano é mau; a aristocracia é um governo de homens bons, a oligarquia, de homens ricos; no governo constitucional, o interesse de todos é preservado, na democracia os pobres governam sem levar em conta os interesses dos ricos.

A monarquia é melhor que a aristocracia e esta melhor que a cons-tituição. Por outro lado, como o vício do melhor é o pior, a tirania é pior que a oligarquia e esta que a democracia. Tendo isso em conta, Aristóte-les, sabendo que a maior parte dos governos são maus, sustenta a prefe-rência pela democracia, não por ser a melhor forma de governo, mas por ser a menos pior. As formas de governo, pois, dividem-se de acordo com a tabela a seguir:

Formas de governo em aristótelesMonarquia – um rei bom Tirania – um déspota sem virtudeAristocracia – governo de homens bons Oligarquia – governo de homens ricos

Constituição – governo que zela pelo todo Democracia – governo que zela apenas pelo interesse dos pobres

A melhor forma de governo é a monarquia, visto que o rei não procura riquezas, como é o caso do tirano, mas honrarias. Por sua vez, o tirano para reter o poder deve levar a cabo uma série de ações que poderí-amos considerar prejudiciais ao corpo social, tais como impedir o apare-

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cimento de qualquer pessoa de mérito excepcional – mesmo com o assas-sinato –; proibir as refeições em comum ou clubes e associações; impedir discussões literárias; evitar que as pessoas se conheçam muito e obrigá-las a viver em público; usar constantemente espiões, especialmente mulheres e escravos; promover o conflito e empobrecer o povo e ainda mantê-lo sempre ocupado com grandes obras.

Por fim, quanto à educação, Aristóteles advoga que ela se destina apenas aos futuros cidadãos, ficando os escravos excluídos da cultura e só tendo direito de aprender coisas úteis, como o cozinhar. Como já vimos antes, o ensino profissionalizante não é considerado por Aristóteles como pertencendo à educação e se volta apenas às pessoas inferiores, dada o descrédito que possuía na época o trabalho manual. Para as crianças desti-nadas à cidadania, porém, nada lhes seria ensinado que as pudesse tornar vulgares. Sendo assim, não aprenderiam uma profissão qualquer que lhes pudesse deformar o corpo ou que lhes permitisse ganhar dinheiro. A prá-tica da educação física, por isso, deve ser moderada, para que a criança não se torne em seguida uma atleta profissional, tendo em vista os riscos à saúde que isso pode representar. No caso do aprendizado da música, só seria oferecido até o ponto que tornasse o educando capaz de julgá-la e criticá-la, mas evitando-se tornar a criança uma exímia instrumentista, já que o homem só canta e toca quando está embriagado. Contudo, todos os programas de estudos devem estar orientados para a finalidade última da educação, que é a virtude, e não a utilidade. Aqueles que recebem educa-ção, com efeito, serão os homens virtuosos que em seguida se ocuparão do governo e da administração da cidade.

3.4 Política em Maquiavel

Com o fim da cidade-Estado grega e o advento posterior do regime feudalista, as ideias políticas de Aristóteles perderam espaço para seus textos de metafísica, que despertavam mais o interesse dos filósofos cris-tãos. Contudo, com o renascimento das cidades e o fim gradual da Idade Média, elas voltaram a inspirar os intelectuais da Europa, sobretudo na Itália, que à época vivia dividida e podia facilmente inspirar-se nas ideias políticas clássicas, escritas em um período em que a Grécia era também um país dividido. Porém, no caso italiano essa divisão implicava um jogo complexo de poder, cujas regras previam o uso frequente da desonestida-de, deslealdade e maldade. É nesse contexto que apareceu Nicolau Ma-

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A família dos Médicis foi inicialmente uma

família de banqueiros e mais tarde uma casa real (denominação familiar uti-

lizada pela realeza). Tornou-se uma dinastia política italiana e possuía grande riqueza,

tendo fundado o Banco Médici. Pertenceram a essa família personagens importantes, como o

papa Leão X, em cujo governo teve início a Reforma Protestante.

quiavel, pensador florentino que compreendeu muito bem a perversidade política de seu tempo.

Maquiavel (1467-1527) nasceu em Florença, filho de um pai ju-rista. Trabalhou durante um tempo para o governo florentino, mas com a restauração dos Médicis, em 1512, foi condenado a viver afastado no campo, visto que fora antes um opositor da família. Assim afastado, nada lhe restou senão escrever. Sua obra mais famosa foi O príncipe, escrita em 1513 e destinada a ensinar como se ganham os principados, como eles são mantidos e como se perdem.

Em seus textos, Maquiavel tece elogios à religião e defende a im-portância de crenças religiosas como alicerce social, mas critica ao mesmo tempo o comporta-mento moralmente duvidoso que os eclesiásticos da época adotavam. Com efeito, em seus Discursos afirma o seguinte:

Quanto mais perto os indi-víduos se acham da Igreja de Roma, que é a cabeça de nossa reli-gião, tanto menos religiosos são... A ruína e o castigo da Igreja estão próximos... Nós, italianos, devemos à Igreja de Roma e aos seus sacerdotes o fato de nos termos tornado irreligiosos e maus; mas lhes devemos ainda uma dívida maior, uma dívida que será a causa de nossa ruína, isto é, que a Igreja haja mantido e ainda mantenha o nosso país dividido.1

Por outro lado, em O príncipe Maquiavel relativiza a importância dos valores morais. Assim, se defende o lugar de destaque que a religião deve ocupar no Estado; isso não se deve à crença nas verdades e na mo-ral religiosa, e sim à sua função social: garantir a coesão e a ordem. Com efeito, os valores morais ou aquilo que se entende por virtude podem ser, pelo contrário, prejudiciais, ao menos para os governantes. De fato, um governante perecerá, se for bom; por isso deve ser astuto e feroz, e

1 Citado a partir de RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Trad. Breno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. III, p. 23.

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inclusive desrespeitar acordos ou não manter sua palavra, se isso lhe for conveniente.

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Essas ideias sempre geraram por parte dos leitores de Maquiavel um certo incômodo ou mesmo choque. Com efeito, passou-se mesmo a deno-minar qualquer pessoa que cometa atos desonestos ou falsos de “maquia-vélica”, denominação que, levando em conta a força moral que o adjetivo tomou, pode ser considerada injusta. De fato, Maquiavel apenas retratava a política de seu tempo e todas as suas observações são apoiadas na expe-riência concreta com personagens de sua época. É certo que não se pode negar que algumas de suas colocações são chocantes, de uma sinceridade desconcertante, mas assim seriam também as opiniões de muitos homens ainda hoje, se não fossem tão hipócritas. É talvez justamente a hipocrisia social que levou à difamação mencionada acima do nome de Maquiavel, devido à recusa do reconhecimento explícito das más ações, que nem por isso deixam de ser cometidas, embora o sejam frequentemente acompa-nhadas da possibilidade do arrependimento. É como se alguém dissesse: “faço o mal, mas não o queria fazer”, ou então: “reconheço: pratico o mal, mas o pratico com peso na consciência”. Longe disso, Maquiavel expõe com toda honestidade intelectual o que é a desonestidade política, a qual, assumida ou não como tal, sempre esteve mais ou menos presente no uni-verso político.

Em todo caso, vimos que Maquiavel não entendia ser um dever do governante a lealdade. Ao invés disso, ele deve ser desleal e desonesto, caso seja necessário para a manutenção de seu poder. Contudo, um go-vernante explicitamente ou excessivamente desonesto pode também gerar descontentamento entre os súditos. Daí a necessidade do fingimento e do disfarce, isto é, o príncipe deve passar-se por honesto, bom e religioso,

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mas não precisa sê-lo sempre. Pelo contrário, deve estar sempre disposto a ir contra a virtude e a religião, tendo em vista o bem do Estado. Acom-panhemos a descrição que o próprio Maquiavel faz do comportamento moral do governante:

Mas é necessário que saiba dissimular bem essa condição, sendo um grande fingido e dissimulador; e os homens são tão simples e tão prontos a obedecer às necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre aqueles que estão dispostos a deixar-se enganar. Citarei apenas um exemplo moderno. Alexandre VI não fez outra coisa senão enganar os outros; não pensou noutra coisa e sempre encontrou ocasião para isso; nunca qualquer outro homem foi mais capaz de assegurar ou afirmar coisas com juramentos mais fortes, e ninguém os observou menos; no estudo, foi sempre bem sucedido em seus embustes, pois conhecia bem este aspecto das coisas. Não é necessário, portanto, que um príncipe tenha todas as qualidades acima mencionadas (as virtudes convencionais), mas é muito necessário que pareça tê-las. (Idem, p. 24)

Ao contrário de autores seus contemporâneos, Maquiavel não baseia suas ideias em preceitos religiosos ou na Bíblia, como se observa na cita-ção acima. Ele tem em vista a política de sua época e fala a partir dela.

Considera, pois, como bens políticos a independência nacional, a segurança e uma constituição bem ordenada. Esta será melhor na medida em que distribuir proporcionalmente o poder entre o príncipe, os nobres e o povo. Esses são alguns dos fins a que se destina o Estado. Para alcançá-los, há que se usar de quaisquer meios, mesmo aqueles considerados imorais. Não adianta, portanto, um fim bom e justo, se não forem usados meios adequados a ele. Observe-se, porém, que sempre é importante apre-sentar uma aparência de virtude para o povo, o qual espera de fato esse comportamento de seus superiores.

Enfim, essas ideias de Maquiavel brevemente apresentadas aqui nos fazem perceber que nossa política atual não está muito distante daquilo que o pensador florentino acreditava. Também vivemos, como ele, em uma época de valores comprometidos, em que o interesse econômico de alguns comprometem o bem-estar e o conforto de muitos. A leitura de sua obra, portanto, é atual, e deve ser levada a cabo, ainda que para pensar uma outra perspectiva política.

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Robert Firmer foi um escritor inglês autor de

teorias que justificavam o poder ab-soluto dos reis. O texto em que defende

o poder divino dos reis (Patriarca) foi escrito durante o reinado de Carlos I – reinado duran-te o qual tornou-se cavaleiro – e o autor viveu até 1653, a tempo de ver a execução do rei e

a vitória de Cromwell.

3.5 Doutrina do Direito Divino

A Reforma Protestante foi um movimento dos mais importantes dos últimos séculos, visto que abriu as portas para a modernidade. Embora um movimento inicialmente religioso, teve repercussões políticas e econômi-cas de grande importância. A recusa da autoridade religiosa católica moti-vou uma série de ações semelhantes por parte dos príncipes europeus. Por outro lado, o protestantismo foi fundamental também para a consolidação do capitalismo, devido à sua concepção religiosa do trabalho e à ênfase na poupança e no progresso material.

Entretanto, a agitação provocada pela reforma também poderia re-sultar em anarquismo social. Em função disso, a preocupação em justifi-car o Estado e a obediência civil ao governo tornou-se central. Por que se deve obediência ao Estado? De onde ele retira sua autoridade e sua razão de ser? Para pensar esse problema, que não é próprio nem exclusivo desse tem-po, é claro, mas que então exigia maior atenção dos filósofos, apareceu Robert Firmer, quem reafirmou e defendeu a concepção sa-grada da autoridade.

O livro Patriarca, ou o poder natural dos reis, de Robert Firmer, foi publicado em 1860, embora tenha sido escrito algum tempo antes. Nessa obra, o autor defendia sua tese de que o poder dos reis não deriva de nenhum contrato ou acordo entre os homens e nem ainda de considerações sobre o bem público, mas unicamente de uma autoridade sagrada semelhante àquela que um pai tem sobre o filho. Ele era adepto, portanto, da doutrina do direito divino.

De acordo com essa doutrina, os reis são descentes diretos de Adão, o primeiro pai da humanidade, e por isso o dever para com eles é um dever não apenas civil, mas também religioso. O rei é como um pai para os seus súditos, que lhe devem obediência vitalícia, tal como um filho. É certo que hoje isso nos soa estranho, visto que não supomos ser o poder dos pais vitalício, ou seja, após completar a maioridade, os filhos não es-

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tão mais sujeitos ao poder dos pais, e mesmo antes disso, a autoridade que os pais têm sobre os filhos é limitada pelo Estado e pelos direitos que os jovens vão gradualmente adquirindo.

Contudo, era essa a defesa de Firmer. Segundo ele, a humanidade não é livre para escolher qual forma de governo mais lhe agrade. Pelo con-trário, foi justamente a liberdade a causa do pecado de Adão e por isso ela é um desejo ímpio. Deus deu o poder primeiramente a Adão, e dele o po-der foi transmitido a seus herdeiros até alcançar os monarcas modernos.

Sendo assim, o povo não deve ter a pretensão de questionar a auto-ridade real, visto que ela repousa sobre a vontade de Deus. Segue-se disso que a autoridade do rei é absoluta e irrevogável. Ele governa sozinho, concentrando em si as funções executiva, legislativa e judiciária. Porém, embora seja ele quem faça as leis, não está sujeito a elas e nem precisa prestar contas de quaisquer de suas ações ou decisões.

Ora, essas ideias já não convenciam o homem moderno. A Reforma Protestante, a crescente autoridade da ciência – e o consequente desprestí-gio da Igreja – assim como o desenvolvimento industrial e do capitalismo prepararam o advento de uma nova mentalidade, não mais facilmente sujeita a essa tipo de doutrina. Assim, uma nova forma de pensar a origem do poder do soberano se fez necessária. É nesse contexto que aparece a Teoria do Contrato Social.

3.6 Teoria do Contrato Social

A teoria do contrato social teve como principais representes os filó-sofos Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Inicialmente, essa teoria lança mão de um conceito muito importante, que é o conceito de estado de natureza. Consiste esse conceito, grosso modo, em imaginar uma época da humanidade em que os homens ainda não estavam sujeitos a nenhuma autoridade entre eles, vivendo, pois, na condição de selvagens. Assim expressou-se sobre isso John Locke: “Os homens vivendo juntos segundo a razão, sem um superior comum na Terra, com autoridade para julgar entre eles, constituem propriamente o estado de natureza.”2 Não se tem certeza se esse estado de natureza, para os filósofos em questão, realmente teve lugar historicamente ou se se trata apenas de uma forma de ilustrar a origem do Estado de acordo com a leitura que disso eles fizeram.

2 Citado a partir de RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Trad. Breno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v.III, p.156.

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Em todo caso, o modo de pensar esse estado de natureza não era o mesmo entre eles, como veremos a seguir.

Segundo Hobbes, o estado de natureza caracteriza-se por ser um estado de constante conflito e guerra de todos contra todos. Com efeito, o homem nasce livre, mas exerce a sua liberdade através do prejuízo à liberdade do outro. Isso porque é natural ao homem a inveja, o ciúme e a maldade, de onde segue que “o homem é lobo do próprio homem”. Sendo assim, caso não exista Estado que proteja os mais fracos e garanta a justiça, a vida humana será marcada pelo conflito e pela discórdia. Sem governo, pois, não há lei, não há ordem e nem justiça.

Os homens, tendo percebido a impossibilidade de viver sem gover-no, teriam como que se reunido e decidido que seria melhor escolher entre eles um soberano, responsável por garantir a ordem social e impor a lei. A invenção do Estado, portanto, deu-se com o intuito de evitar a guerra generalizada e promover a paz. Contudo, essa escolha do soberano trouxe também algumas limitações à liberdade individual, que foi o preço pago pela paz e pela justiça. Assim, o soberano, uma vez estabelecido, deve ter poder absoluto e irrevogável, governar sozinho acima de tudo e de todos. Ele faz as leis, mas não está sujeito a elas. Por sua vez, o povo não tem direitos, pois abdicou de todos eles no momento em que “assinou” o contrato social que instituiu o poder do soberano. Assim, o povo não pode associar-se e nem protestar contra o governo, o qual tem o direito, por seu turno, de vigiar de perto os cidadãos, inclusive monitorando o que os pro-fessores ensinam nas escolas.

Distanciando-se de Hobbes, John Locke não considerava o estado de natureza uma fase em que a vida humana era repulsiva, brutal e cur-ta. Pelo contrário, mesmo que ainda não existisse lei humana alguma, aí já imperava contudo a “lei da natureza”, que são as normas de conduta consideradas de origem divina, tal como o imperativo de não roubar ou não matar. Assim, no estado de natureza essa lei natural já orientava o comportamento humano, de onde segue que o estado de natureza não tem aqui a conotação de vida selvagem propriamente, mas descreve uma co-munidade imaginária de anarquistas virtuosos, não necessitados de polícia ou tribunais, visto que obedeciam à razão, isto é, a lei natural. Ouçamos as palavras do próprio Locke:

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Mas, embora este (o estado de natureza) seja um estado de liber-dade, não é um estado de licença; embora o homem, nesse estado, tenha incontrolável liberdade para dispor de sua pessoa ou bens, não tem, no entanto, liberdade para destruir a si mesmo ou qualquer outra criatura que esteja sob seu poder, devendo empregá-la de ma-neira mais nobre do que a que tenha em vista apenas a sua simples preservação. O estado de natureza tem uma lei da natureza para governá-lo, a qual obriga a todos; e a razão, que é essa lei, ensina a toda a humanidade, que não tem senão de consultá-la, que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve fazer mal a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou bens. (Idem, p.157)

Sendo o estado de natureza assim tão agradável, de onde surgiu a necessidade do Estado? Ora, embora a lei natural seja válida para todos, não é possível garantir que todos a obedecerão. E de fato, é de se supor que no estado de natureza muitos a desrespeitem. Nesse caso, o homem está entregue a si mesmo e deve ser juiz em causa própria. Se um ladrão, por exemplo, invadir uma propriedade, é seu dono que deve persegui-lo e puni-lo. Uma tão condição de vida é insustentável, e para resolver esse problema o remédio foi a criação do Estado, ainda que se trate aqui de um remédio não natural.

Assim, o Estado surgiu para proteger os mais fracos e sobretudo para garantir o direito de propriedade. Com efeito, essa é para Locke a principal razão para o fato de os homens terem se reunido em comunidade e se sujeitado a um governo. Entretanto, ao contrário de Hobbes, Locke não entende que o soberano deva ter autoridade absoluta e muito menos governar sozinho. Ele previa, então, a divisão dos poderes executivo e legislativo, sob pena de o soberano se tornar, caso governe sozinho, um tirano.

Por sua vez, Rousseau concebia o estado de natureza como uma con-dição de vida possível e caracterizada mesmo pela tranquilidade e paz, visto que, de acordo com ele, o homem é naturalmente bom e solidário, mas se corrompe devido às instituições. Embora sem afirmar que o estado de natu-reza tenha alguma vez efetivamente existido, ele entende ser importante a clareza quanto a ele para que seja possível julgar melhor a condição do ho-mem civilizado. Com efeito, quando começou a sociedade civil e foi supe-rado o estado de natureza? Para Rousseau, quando foi criada a propriedade:

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O primeiro homem que, tendo cercado um pedaço de terra, pensou em dizer “isto é meu” e encontrou gente suficientemente simples que acreditasse nisso, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. (Idem, p. 228)

Assim teria surgido a sociedade civil e a desigualdade social. Com a invenção da propriedade, surgiu a distinção entre os proprietários e os não proprietários. Aos poucos, o estado de natureza tornou-se insustentável e a civilização desenvolveu-se, tendo lugar a cria-ção da metalurgia e da agricultura. Para sua própria conservação, os homens decidiram unir-se e formar uma sociedade, construí-da de tal forma que essa associação pro-tegesse e defendesse os bens de cada um e em que cada um, embora unido a todos, ainda pudesse obedecer apenas a si mes-mo, conservando a liberdade primitiva. O contrato social é a solução para esse problema.

Através do contrato, cada associado aliena todos os seus direitos à comunidade, colocando sua pessoa e todo o seu poder em comum sob a direção da vontade geral, de tal modo que cada indivíduo passa a ser concebido como uma parte indivisível do todo.

Por fim, vimos que, apesar de suas diferenças, os três filósofos analisados entendem que a origem do Estado e a justificação de sua au-toridade não residem no caráter sagrado do poder do soberano, mas em uma livre associação entre os homens, com o objetivo de evitar os in-convenientes do estado de natureza. É certo que eles entendem de modos diferentes o poder do soberano. Hobbes defende que esse poder deve ser absoluto e exercido pelo soberano sozinho. Locke entende que o poder deve ser dividido, sob pena de tornar-se o soberano um tirano. E Rousseau ora parece inclinado para o absolutismo do rei, ora para uma visão política que garanta o respeito a direitos inalienáveis do homem.

3.7 Política e educação

Nas discussões realizadas anteriormente tratamos do modo como a política foi pensada, desde Platão e Aristóteles, passando por Maquiavel e pelo Direito Divino até alcançar os contratualistas. Em todas as concepções

Conexão:

Para um exame mais profundo desse tema, consulte o

texto de Rousseau “Do Contrato So-cial”, acessível no endereço eletrônico a seguir, que apresenta também alguns elementos de sua biografia: http://www.

cfh.ufsc.br/~wfil/contrato.pdf

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Hannah Arendt (1906-1975) foi um filósofa

política alemã, de origem judaica. Perseguida pelo regime nacional-socia-

lista, emigrou para os Estados Unidos, onde morreu. É mais conhecida por sua teoria do totalitarismo e suas análises sobre a banali-dade do mal, além de ser lembrada também por suas relações afetivas com o seu então

professor Martin Heidegger.

de política estudadas se fez presente o problema do poder. Em Platão, o poder está associado ao grupo seleto de homens que receberão educação para, através da virtude, assumir o comando da cidade. Em Aristóteles, a mais perfeita forma de governo é a monarquia, em que o poder é exercido por um rei virtuoso. Todas as demais formas de governo previstas por ele são também definidas a partir de quem exerce esse poder, seja um tirano, seja um grupo virtuoso ou rico de homens ou seja o conjunto dos cidadãos. Maquiavel, por sua vez, preocupou-se justamente em mostrar como se conquista e se mantém o poder. Por fim, a doutrina do direito divino, assim como a teoria do contrato social procuram justi-ficar o poder do soberano, lançando mão de ideias religiosas, no primeiro caso, ou de concepções meramente civis, no segundo. Meditaremos a seguir sobre esse problema do poder e da autoridade e sobre as formas como ele se concretiza, a partir das ideias de Hannah Arendt.

Desde Aristóteles, que defi-ne o homem como um animal po-lítico, que se tem a impressão de que todos os homens são políticos por natu-reza, e que a política está presente onde quer que exista convívio humano. Contrariando essa tese, Arendt entende que a política só é própria na verdade, mesmo e justamente entre os gregos, do espaço público, comum, e não de todo convívio humano. O espaço do-méstico da casa, portanto, não pertence ao que é político, caracterizando o espaço privado.

Por outro lado, o espaço propriamente político, ou seja, o público e comum, é pensado a partir do conversar um com o outro, do diálogo entre os cidadãos e como uma relação de iguais. As decisões políticas, portanto, não são decretadas de cima para baixo, mas concebidas em comum acordo.

Hoje a concepção corrente de política entende o político como o es-paço do exercício do comando. Isso não apenas entre as pessoas comuns, como entre a própria teoria política moderna. Em Marx, por exemplo, o Estado é a legitimação da violência, ou o lugar em que se legitima o domí-nio do homem sobre os outros, um espaço, pois, a serviço da classe domi-nante. Essa ideia estaria presente também em Weber, para quem o poder

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está ligado ao domínio do homem sobre o homem através do uso legítimo da violência. Arendt não concorda com essa posição, visto que torna difí-cil diferenciar, por exemplo, a ordem dada por um policial daquela dada por um pistoleiro.

Para sustentar sua posição, Arendt usa os conceitos de isonomía e de civitas, próprios dos gregos e latinos, e mostra que entre eles o poder não estava ligado à relação entre ordem e obediência e, pois, o poder não significa domínio. As decisões eram tomadas não através da força, mas da palavra e da persuasão. Ser livre significa então não se sujeitar ao coman-do de outro, mas também não comandar. O espaço da ordem era o espaço pré-político, ou seja, o espaço doméstico, em que não há igualdade – seja entre o homem e a mulher, seja entre o pai e os filhos. De acordo com essa leitura, o uso da violência só se dá quando o poder estiver em perigo.

A autora faz uma leitura semelhante do conceito de autoridade. Ela exige obediência, e por isso é facilmente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, o uso da violência é sintoma não de au-toridade, mas de sua perda. A autoridade existe, pelo contrário, onde há o reconhecimento incondicional daqueles que devem obedecer. Nesse sen-tido, a autoridade do pai ou do professor está ligada ao reconhecimento do filho ou do aluno da função e importância de cada um na relação. Essa autoridade pode ser comprometida seja com o uso da violência seja com o uso da palavra, isto é, o pai ou o professor pode perder sua autoridade seja comportando-se como um tirano seja tratando a criança como um igual.

No que diz respeito ao problema educativo propriamente, Arendt enten-de que a educação não pode desempenhar nenhum papel na política, visto que na política lidamos com pessoas já educadas. Tendo em mente o mundo gre-go, Arendt diferencia a esfera pública da privada, e diz que na família o que está em jogo são as necessidades de sobrevivência e as carências. A superação dessas necessidades e carências seria a condição para o ingresso na vida livre da cidade. Portanto, a família é o espaço da necessidade, e a cidade é o espaço da liberdade; o chefe da família só era livre na medida em que tinha a prerro-gativa de deixar o lar e entrar na esfera política, em que todos eram iguais. Vê-se, pois, que liberdade então pressupunha igualdade, e esta carregava consigo a desigualdade. A desigualdade é própria do lar, a igualdade se dá no espaço livre do que é público, em que não existem comandantes e comandados. De acordo com isso, toda tentativa de assimilar o Estado à família, entendendo o soberano como um pai, e assim dissolvendo as diferenças entre o público e o privado, significa, na verdade, a destruição de todo pensamento político.

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Se na família o que está em jogo são as necessidades e carências, como se disse antes, a educação não pode ser objeto da política, pois o es-paço público é o espaço de convivência entre iguais. No caso da criança, há uma nítida relação de desigualdade entre ela e o adulto, de tal forma que tomar a educação como formadora significa correr o risco de torná-la um instrumento da política. A criança é um ser humano recém-chegado ao mundo, e quando se fala em construção de um “mundo novo”, é natural que se pense que esse mundo novo deva se iniciar com os mais novos. Porém, não existe para a criança a possibilidade de um juntar-se com seus iguais para assumir o risco da palavra e do fracasso, mas o que se dá é uma intervenção ditatorial, que ao invés de permitir o surgimento impre-visível do novo, já o pressupõe, cabendo à criança tornar concreto esse novo imposto pelo adulto.

Por isso, soa mal falar em educação na política. A criança é já um ser apto para a produção do novo, e mesmo o adulto também o é. A políti-ca deve ser o espaço da liberdade, não da coerção. Tornar a educação um tema da política seria transformá-la em doutrinação. A criança já nasce com algo de novo e revolucionário, em um mundo que, por mais inovador que seja, já é, do ponto de vista da próxima geração, obsoleto e a caminho da destruição.

Atividades

01. Como deve ser o comportamento moral do príncipe, segundo Maquiavel?

02. Diferencie a Doutrina do Direito Divino da Teoria do Contrato Social.

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Reflexão

Vimos nesta unidade algumas das principais concepções políticas da história da filosofia. Observamos que em todas elas a questão do exer-cício do poder ocupou de maneira especial a atenção dos filósofos. Con-tudo, Hannah Arendt mostrou que o poder, ao menos na Grécia clássica, não se identificava com violência ou coerção, mas era exercido através do diálogo próprio de um espaço de liberdade. A história parece ir contra aquilo que a pensadora alemã defendia, pois o poder frequentemente foi e é exercido através da força e violência. Mesmo sua concepção de edu-cação, que nega seu espaço na política, parece não estar de acordo com o que assistimos na prática. Com efeito, no mundo técnico em que vivemos, a educação o mais das vezes é entendida não como o espaço de formação do caráter ético e da virtude, mas como um instrumento de manipulação e controle. Cabe aos estudantes e futuros profissionais da filosofia a decisão de pensar essa relação complexa entre educação, ética, técnica e política e encontrar caminhos para o advento pleno da liberdade e da justiça.

Leitura Complementar

ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

Nessa obra, que contém fragmentos de seus textos publicados postu-mamente, a filósofa sintetiza suas ideias sobre política e a relação inerente que ela possui, ao menos entre os gregos, com a questão da liberdade. É um texto importante, na medida em que apresenta uma maneira de pensar a política distinta da usual compreensão do assunto, centrada no problema do poder e da violência.

Referências

ARISTÓTELES. Política. Trad. Mário Kury. 2 ed. Brasília: Editora da UnB, 1988.

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CASAGRANDA, Edison. Educação e política: o problema da legiti-midade do poder em Hannah Arendt. In.: DALBOSCO, Cláudio; CA-SAGRANDA, Edison; MÜHL, Eldon (org.) Filosofia e Pedagogia: aspectos históricos e temáticos. Campinas: Autores Associados, 2008.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Trad. Maurício Dias. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2010.

PLATÃO. A República. Trad. Ciro Mioranza. 2 ed. São Paulo: Escala, 2007.

RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Trad. Breno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

No próximo capítulo

Os mecanismos de poder não são exclusivos da política. De fato, são diversos os modos em que o poder é exercido pelos homens, e muitas são as suas esferas. Entre elas, uma das mais fortes é a religião. As ma-nifestações religiosas estão presentes em todas as comunidades humanas conhecidas, e exercem uma força de coesão bastante significativa. De onde vem a crença em Deus? Por que a religião exerce tamanho fascínio sobre os homens? Discutiremos a seguir esses problemas, mostrando tam-bém, ao mesmo tempo, que a própria religião pode se render ao caráter técnico do mundo moderno, e o conceito de Deus pode se tornar um con-ceito instrumentalizado, a serviço de determinada visão de mundo. Há de se reconhecer ainda a relação da religião com a ética, visto que a funda-mentação dos valores morais sempre esteve e ainda está frequentemente ligada a crenças religiosas.

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Minhas anotações:

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Cap

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4 O Compromisso Ético

na Construção do Conhecimento:

Trabalharemos nesse capítulo o problema das relações entre técnica e ciência. Com efeito,

esses dois saberes distintos são entendidos hoje, dentro da mentalidade comum, como indistinguíveis.

E de fato, a proximidade contemporânea entre tecnologia e conhecimento científico favorece essa visão usual, visto

que tanto a técnica moderna não pode ser concebida sem a ciência experimental, como nem esta continuar o seu progresso

sem os avanços tecnológicos. Enfim, conheceremos ainda a lei-tura que Heidegger fez sobre esse problema, e saberemos por que

ele enfatiza a necessidade de pensar não a técnica, mas a essência da técnica.

Objetivos de sua aprendizagemVocê deverá ser capaz de diferenciar o tipo de saber que se pode consi-derar científico do tipo de saber próprio da técnica. Além disso, deverá ser capaz de pensar o problema moderno da técnica a partir das críticas feitas ela por Martin Heidegger.

Você se Lembra?De alguma inovação tecnológica recente como um novo tipo de celular ou aparelho para comunicação? Como essa descoberta foi apresentada na mídia? Como uma descoberta científica ou meramente tecnológica?

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4.1 Introdução

Segundo Gilles-Gaston Granger, desde a segunda metade do sécu-lo XX vivemos no que ele denomina de Idade da Ciência. Pode causar estranheza essa denominação, que parece desconsiderar os avanços e significativas mudanças que as ciências provocaram em séculos anterio-res. Contudo, o autor entende que o século XX conheceu renovações e desenvolvimentos sem precedentes, e sobretudo repercussões nunca antes sentidas com tamanha intensidade, seja na vida individual seja na vida social dos homens. Portanto, por mais que a segunda metade do século XX não tenha conhecido propriamente experiências cientificamente re-volucionárias, e seja em grande medida tributária de ideias e descobertas anteriores, foi a partir da metade do século passado que assistimos a de-senvolvimentos e aplicações inéditas dos saberes científicos, o que mudou radicalmente o modo de vida do homem moderno.1

Contudo, a penetração da ciência no seio da vida humana é feita de modo silencioso, porque mediado por avanços técnicos. O desenvol-vimento significativo das mídias, como a televisão e especialmente o microcomputador, além da telefonia móvel, é o que salta à vista quando se fala em avanço científico hoje. Isso demonstra que a ciência desse século assumiu um caráter essencialmente aplicado, de onde resulta sua íntima ligação com a técnica. Essa ligação é de tal forma presente e característica da ciência de nossos dias, que a grande maioria das pessoas confunde com facilidade um avanço científico com um avanço técnico. Esse é um as-pecto importante e próprio de nosso período histórico, visto que para um homem antigo, grego ou romano, por mais engenhoso que pudesse ser um instrumento técnico, quase nunca ele estava associado a um conhecimento científico qualquer. Sobre isso discutimos no capítulo anterior, ao mencio-narmos o desapreço que toda atividade manual possuía entre os gregos e mesmo entre os romanos.

A penetração da ciência através dos avanços técnicos tem ainda ou-tra consequência, que é a universalização de representações científicas no imaginário popular. Isso se deve à divulgação de ideias ou pesquisas cien-tíficas realizada por jornais, revistas ou outros meios e destinada aos mais diversos públicos. Divulgar trabalhos científicos requer algum cuidado,

1 GRANGER, Gilles Gaston. A ciência e as ciências. trad. Roberto Ferreira. São Paulo: Editora UNESP, 1994.

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sob pena de apresentar pesquisas acadêmicas com excessiva facilidade, propiciando uma imagem equivocada de ciência.

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Com efeito, a imagem da ciência apresentada frequentemente por veículos de comunicação de massa pode trazer à ciência um caráter de fantasia e magia que ela não possui. Pode também dar uma imagem exa-gerada sobre os avanços científicos, prometendo mais do que eles podem efetivamente cumprir. Por outro lado, a presença de representações da ciência no imaginário coletivo inclui também a posição de recusa da ci-ência, uma espécie de temor direcionado a ela, que pode resultar em sua negação apaixonada em nome de um irracionalismo não refletido. Daí a necessidade de cautela diante de divulgações científicas, como salienta René Thom:

É cientificamente culto aquele que, diante da notícia de um sucesso científico recente, é capaz de avaliar a sua amplitude real e de des-contar a parte do exagero demasiado frequente com o qual os pe-riódicos de vulgarização (e às vezes até as publicações científicas) anunciam a importância de uma descoberta. 2

Outro problema que também ocupa a comunidade científica contemporânea são as consequências éticas dos saberes, ou ainda, das aplicações dos saberes científi-cos. É frequente ouvir hoje debates sobre o caráter ético ou não ético de determina-das pesquisas científicas, especialmente provocados por grupos religiosos não raro

2 Citado a partir de GRANGER, Gilles Gaston. A ciência e as ciências, p. 18-19.

Conexão:

Para o aprofundamento da discussão acerca da relação entre ética, ciência e tecnologia

consulte o artigo a seguir, escrito para uma revista de filosofia da

UFMG: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100

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conservadores. É o caso da discussão sobre reprodução humana artificial, pesquisa com células-tronco ou mesmo o debate sobre a energia nuclear. Seria o caso de impedir o avanço de determinadas pesquisas? A quem ca-beria esse controle? Até onde vai a liberdade da ciência?

Enfim, a ciência, com todos os seus avanços e problemas, está pre-sente hoje de forma muito significativa no seio de nossa civilização, o que justifica a atenção especial que a filosofia deve dispensar a ela.

4.2 Ciência e Técnica

O que significa ciência e o que significa técnica? Quando podemos considerar determinado conhecimento como sendo científico ou técnico? Procuremos em primeiro lugar nos gregos o significado desses termos, hoje frequentemente entendidos como indistintos.

Antes de mais nada, é preciso ter em vista que tanto a ciência quanto a técnica são tipos de saber. Dizer que as descobertas tecnológicas não são científicas não implica em desvalorização da produção técnica. Voltemo-nos a Aristóteles para entender que tipos de saber são uma e outra.

A primeira forma de saber é a sensação, com a qual temos contato imediato com o mundo. Trata-se daquilo que temos acesso através dos cinco sentidos. A sensação não está ligada à linguagem ou a qualquer outro tipo de representação simbólica. Contudo, sensações unidas entre si e ligadas à memória formam o juízo, o qual contém em si a imagem ge-nérica de algo, por exemplo, a imagem genérica de “cachorro”, formada a partir das diversas sensações de cachorro que obtemos através dos sen-tidos, como quando vemos um. Ao vermos um cachorro, temos dele uma sensação, a qual, como dito antes, não vem acompanhada de nenhuma representação simbólica, mas apenas a sensação como tal, o cachorro tal como apreendemos. Depois de repetidas sensações de cachorro, forma-mos então a representação desse animal, e a isso Aristóteles denomina de experiência de algo. A experiência é o que possibilita tanto a ciência quan-to a técnica. Como estas últimas se caracterizam?

Imaginemos que determinado remédio curou a cabeça de um indi-víduo qualquer, por exemplo, Sócrates. Ora, observar que dado remédio curou a cabeça de Sócrates é uma experiência. Porém, se observamos que esse remédio curou também a cabeça de outros tantos indivíduos, e depois de todas essas experiências concluímos que esse remédio curará todos que sofram de sintomas iguais – unidos então sob um conceito único, como,

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Em filosofia, quando se diz que algo é ne-

cessário pretende-se dizer que algo é ou existe, e não poderia não ser ou

não existir, ao passo que algo é contingente quando ele é ou existe, mas poderia muito

bem não ser ou não existir.

por exemplo, o conceito de fleu-máticos – então utilizamos a arte.

Temos, portanto: sen-sações, para o que usamos os nossos sentidos; expe-riências, que resultam de muitas sensações e perfa-zem a imagem genérica de algo e por fim conceitos, que são fruto de diversas experiên-cias precedentes. Ora, a criação de conceitos é uma característica da arte ou técnica, mas e a ciência?

A ciência caracteriza-se por ser capaz de expressar-se de modo mais completo através da linguagem e é passível de ser ensinada. E sobretudo diferencia-se da arte na medida em que o seu objeto necessariamente é, ou seja, é invariável e constante. Com efeito, só existe ciência do que é cons-tante e imutável, não sendo possível um conhecimento científico daquilo que está sempre mudando.

Pelo contrário, a arte visa aquilo que é contingente e mutante no indivíduo, na medida em que se aplica a objetos que, sendo, poderiam não ser, e cujo princípio de existência reside não em si mesmos, mas em seu criador. De fato, imaginemos um artigo qualquer de artesanato. Ele existe não por si mesmo, mas em função daquele que o criou. Sendo assim, ele existe mas poderia muito bem não existir.

Assim, embora a técnica seja uma forma de conhecimento, é uma forma inferior de saber em relação à ciência, visto que esta aspira ao que é necessário e é além disso passível de ensino.

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Temos, portanto, de um lado a arte ou técnica, que embora lide com conceitos, trabalha com o que é contingente, e de outro lado a ciência, pas-sível de expressão na linguagem e direcionada ao que é necessário. Outra característica da ciência é que ela é desinteressada, ao contrário da técni-ca. Como visto no capítulo anterior, a atividade tida como a mais elevada e digna na Antiguidade era o exercício teórico da filosofia. Compreende-se assim por que Aristóteles considerava a metafísica a maior e mais im-portante de todas as ciências, embora muitos outros saberes fossem mais uteis do que ela. A metafísica é a mais digna das ciências também porque seu estudo é desinteressado e voltado à contemplação da verdade.

Glossário: Metafísica foi o nome dado aos tratados de Aristóte-les que sucediam seus textos sobre física. Grosso modo, a metafísica é a filosofia em primeiro lugar, a filosofia propriamente dita, a ciência voltada para o estudo das causas últimas do ser.

Vejamos agora como se deu ao longo da história a relação entre téc-nica e ciência.

4.3 Breve histórico da relação “Técnica e Ciência”

Como já dito, o trabalho manual era considerado na Antiguidade como de menor dignidade e geralmente associado a atividades servis. O ofício dos artesãos, portanto, recebe forte descrédito e nesse contexto as invenções técnicas raramente possuem alguma relação com conhecimen-tos científicos.

Contudo, isso não impediu o desenvolvimento de diversas técnicas voltadas seja para o trabalho público, seja no trabalho com os metais ou mesmo em programas militares. Assim, observa-se nesse período a exis-tência de técnicas diversas para a construção de máquinas de guerra, o uso de espelhos parabólicos para a concentração de raios solares, além da construção de aparelhos menos uteis voltados para o entretenimento po-pular ou criados com o objetivo de causar espanto.

Nesse primeiro momento o trabalho dos matemáticos é o que recebe maior destaque, sobretudo quanto à construção de instrumentos de medi-da e mira ou outros destinados ao cálculo de distâncias. Observa-se tam-bém que em alguns artefatos as práticas de construção permanecem longo

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tempo as mesmas, sendo transmitidas através das gerações em forma de receitas de procedimentos. As evoluções nesse caso se deviam ao gênio de algum grande inventor, capaz de revolucionar os procedimentos técnicos utilizados em determinado artefato.

Durante o Renascimento, porém, uma importante mudança se deu no modo como o trabalho dos artesãos era visto socialmente. Isso porque muitos deles eram também artistas e cortesãos, respeitados por suas obras e bem posicionados na vida social. É o caso do mais importante deles, Le-onardo da Vinci, um dos maiores inventores de toda a história.

O prestígio de que os artistas desfrutavam foi importante para apro-ximá-los gradativamente da ciência e dos cientistas, retirando do trabalho dos artesãos o descrédito de que tinham sido alvo, raro exceções, durante a Antiguidade e Idade Média. Disso resultou a tendência cada vez maior de aplicação de saberes científicos à construção de objetos, ao mesmo tempo em que possibilitou também que a própria ciência se beneficiasse dos avanços tecnológicos.

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Outra contribuição importante para o desenvolvimento da técnica durante o Renascimento foi a invenção da imprensa, responsável por di-vulgar e popularizar os tratados técnicos já existentes ou que eram fruto do período.

Contudo, apesar dessas primeiras aproximações, os laços entre técnica e ciência só iriam se estreitar de modo mais decisivo e definitivo a partir da Revolução Industrial do século XVIII. Desde então o impera-tivo de Descartes de tornar o homem senhor e proprietário da natureza irá gradativamente ganhar corpo, até atingir sua plena maturação em nosso tempo.

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Descartes foi um filósofo e

matemático francês que viveu entre 1596 e 1650 e que é consi-

derado o pai da filosofia moderna. Ele introduziu uma visão da relação entre ho-

mem e natureza pensada a partir da figura do homem como senhor da terra e que também se expressa em Francis Bacon, filósofo inglês que viveu entre os séculos XVI e XVI e para

quem deveríamos arrancar, sob tortura, os segredos da natureza.

Em todo caso, vê-se que nem sempre técnica e ciên-cia andaram juntas, mas ao contrário sua história inclui períodos de distanciamen-to e estranhamento mútuo, como vimos ao tratar de Aristóteles e sua concep-ção de ciência. À medida em que nos aproximamos de nosso tempo, a ligação entre as duas torna-se mais estreita, de maneira que hoje é difícil conceber um avanço tecnológico completamente independente de alguma teoria cien-tífica, assim como é difícil conceber o avanço científico sem pensar nas máquinas e aparelhos que povoam hoje os laboratórios de pesquisa.

Por fim, cabe lembrar que o avanço tecnológico não depende exclu-sivamente do desenvolvimento científico, como ainda de necessidades ou condições sociais e econômicas. A televisão, por exemplo, embora tenha se beneficiado de saberes científicos, tornou-se possível e ganhou a impor-tância que hoje possui devido a condições econômicas de cada sociedade, bem como a circunstâncias culturais favoráveis ou desfavoráveis.

4.4 Os efeitos da técnica

A presença cada vez mais incisiva da técnica no mundo contem-porâneo não trouxe consigo apenas o aumento do conforto e bem-estar dos homens. Algo de nocivo instaura-se também no modo de pensar e no estilo de vida das pessoas. Para perceber isso, basta observar o que de diferente há no trabalho do artesão e naquele executado pelo operário ou técnico em uma indústria.

Com efeito, o artesão não meramente repetia gestos exteriores e re-petitivos para a produção de um objeto qualquer. Além dos procedimentos básicos necessários para a fabricação de um produto, ele podia também acrescentar outros que tornassem o seu trabalho algo individuado, ou seja, ele podia se ver no produto fabricado. Além disso, um mesmo produto poderia ser fabricado a partir de técnicas diferentes e ao expor o que fabri-cou, o artesão podia com orgulho dizer: “fui eu quem fez”.

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Frederick Taylor viveu entre

1856 e 1915, na Filadélfia. Inicialmente técnico em mecânica e

operário, tornou-se engenheiro mecânico e é considerado um dos pais da Administra-ção Científica. Ele pretendia aplicar métodos cartesianos de controle e planejamento na

produção, mas gerou considerável insatisfa-ção entre seus subordinados, a despeito do

bom desempenho das indústrias em que trabalhou.

Entretanto, as necessidades sociais de mais produtos, isto é, o au-mento da demanda, exigiu um outro modo de fabricação, que diminuísse o tempo gasto na montagem do produto e ao mesmo tempo aumentasse a produção, com vistas a maiores lucros. Disso resultou a normalização das técnicas e procedimentos de fabricação de objetos, tornando o trabalho operário enfadonho e humanamente não gratificante. Em outras palavras, o antigo artesão é substituído pelo engenheiro e pelo operário.

Nisso também se observa a presença da ciência na técnica moderna, visto ser tendência da ciência a redução dos objetos a esquemas abstratos, o que os torna substituíveis e dispensáveis. Com efeito, o que significa abstração? Grosso modo, trata-se de um procedimento racional que retira o que há de próprio e individual nos objetos para considerar o que neles há de comum e universal. Por exemplo, considerando o que há de comum em todos os cavalos existentes, forma a partir daí o conceito abstrato de “cavalo”. Com isso, o que há de individual neste cavalo específico, o que ele tem de próprio e singular, é desconsiderado em nome de seu conceito abstrato.

O símbolo dessa tendência de racionalização encontra-se, por exemplo, na invenção da Teoria Geral da Admi-nistração, que encontra em Frederick Taylor uma expressão emblemática. O que ele propunha era a racionalização da produção através da fragmentação das tarefas e um controle rigoroso no tempo de sua execução. O obje-tivo era garantir o maior rendimento pos-sível, suprimindo todo gesto não necessário, sob a pressuposição de que o operário não precisa pensar, senão apenas executar movimentos. Como se pode supor, isso tornava o trabalho extremamente enfadonho e desgastan-te, como que “robotizando” as ações dos trabalhadores.

A pretensão de Taylor representa um caso extremo de como a téc-nica aliada à ciência pode resultar também em prejuízo para o homem, ao menos para os trabalhadores. É certo, contudo, que hoje a relação do homem com a máquina ganha outros contornos, e as operações repetitivas

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antes realizadas pelos operários podem ser executadas hoje pelas máqui-nas, o que pode levar à esperança de que o desenvolvimento tecnológico seja capaz um dia de tornar o trabalho algo de prazeroso e moralmente gratificante.

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Entretanto, o esplendor da técnica não deve desviar nossa atenção da ciência, coisa que, pelo contrário, percebe-se cada vez com maior intensidade. O nível de especialização que a técnica moderna exige pro-duz sujeitos que, embora eficientes na manipulação das ferramentas, são completamente ignorantes das bases científicas sobre as quais elas se as-sentam. O conhecimento dessas bases torna-se ainda mais difícil devido à evolução e rápida mudança por que os instrumentos passam, exigindo que, ao lado da especialização, as pessoas sejam flexíveis o suficiente para se adaptarem às novas tecnologias. Por consequência, vivemos em um período em que muito se faz, mas pouco se pensa.

Enfim, feita essa leitura do lugar atual da técnica moderna e sua íntima ligação com a ciência experimental, resta agora ainda pensar mais profundamente a questão da técnica e o lugar que ela ocupa no pensamen-to contemporâneo. Em outras palavras, perguntamos: o que significa dizer que vivemos na “era da técnica”?

4.5 A técnica e a essência da técnica

Discutimos anteriormente como a técnica foi vista ao longo do tem-po, destacando os períodos antigo e medieval como épocas de dissociação

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Heidegger conceitua o que é

a verdade a partir da ideia de desencobrimento ou desocultamento: a

verdade consiste em desencobrir, tirar o véu que encobre alguma coisa. Essa concepção de verdade ele encontra entre os gregos, expressa

através da palavra grega para a verdade, ou seja, aletheia. Segundo Heidegger, o homem é um

ser que abre e desencobre o mundo, sempre de maneiras diferentes ao longo da história. Por isso

o homem é um guardião da verdade, ou seja, desse desencobrir-se do mundo em suas

diversas formas.

entre trabalhos técnicos e pesquisas científicas e o período moderno como tendo por característica a unidade entre técnica e ciência por meio tanto da aplicação de saberes científicos em artefatos técnicos quanto do uso de aparelhagem tecnológica por parte da ciência. Agora pensaremos de forma mais profunda e filosófica o problema da técnica a partir das ideias de um pensador que sobre isso dedicou grande esforço de pensamento: Martin Heidegger.

O que é, pois, a técnica? Essa questão, tipicamente filosófica, Hei-degger a faz já no começo de seu trabalho A questão da técnica. Inicial-mente, o filósofo observa que o entendimento vulgar sobre o que é a téc-nica afirma ser ela uma “atividade do homem”, em primeiro lugar, e ainda “um meio para um fim”, ou seja, um conjunto de ações ou procedimentos realizados com a finalidade de atingir um objetivo qualquer, a saber, a produção de um objeto. Essa forma de entender o que é a técnica é sem dúvida correta, observa ele, mas caracteriza-se por ser uma determinação demasiado instrumental e antropológica da técnica.

Ora, esse entendimento do que é a técnica é correto, mas não neces-sariamente verdadeiro. Pois trata-se de pensar, segundo Heidegger, não a técnica propriamente, mas a essência da técnica. Pois bem, a essência da técnica reside na verdade, o que ele denomina também de desencobrimento.

Heidegger, pois, afirma que a essência da técnica é o desenco-brimento (verdade). Mas o que significa essência? Ora, a essência de algo significa aquilo que ele é. Por isso a pergunta: o que é a técni-ca? Afirmar que a técnica é uma atividade humana ou um meio para um fim não diz a essência da técnica, o que ela é, mas apenas como ela se faz ou se processa, ou seja, através do homem, que utilizando-se de determinados meios atinge um fim qualquer. Mas a essência mesmo da técnica, aquilo que ela é, reside não nesse entendimento comum, mas no fato de que a técnica é uma forma de desencobrimento, de tirar o véu do mundo e vê-lo sob determinada perspectiva.

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Sendo assim, a técnica moderna, ao tirar o véu do mundo (desenco-brir), o que faz ver? Ela faz ver o mundo como um reservatório de ener-gias que deve ser explorado. Portanto, a técnica moderna faz ver o mundo como algo que está disponível para o homem, disponível para que seja ex-plorado. Com isso a natureza perde seu encantamento para se transformar em objeto de manipulação do impulso humano de dominar o mundo. Em outras palavras, um rio qualquer, por exemplo, deixa de ser o que encanta e fascina a arte e se torna um dispositivo da usina hidroelétrica. Não é mais a usina que está instalada no rio, mas antes o rio que está instalado na usina, rio que pode ser também, por outro lado, um objeto exposto à visitação turística por uma agência de viagens ligada à indústria de férias. Com isso o que se pretende dizer é que toda a natureza apresenta-se agora, na técnica moderna, como algo que está lá à disposição dos homens para ser manipulado e dominado.

Por outro lado, não apenas a natureza encontra-se assim disposta, como também o próprio homem descobre-se a si mesmo como aquilo que está à disposição para ser explorado e dominado. Assim é o lenhador na floresta, entendido como estando à disposição da indústria madeireira, que fornece celulose para as revistas. Assim é também o homem consumidor dessas revistas e jornais, entendido como à disposição da manipulação de opiniões que elas levam a cabo.

Entretanto, o homem, mesmo estando também à disposição, como de resto toda a natureza, possui a peculiaridade de se perceber nessa condição e voltar-se contra isso. Não o faz, porém, na maioria das vezes, visto que essa maneira de desencobrir o real como exploração, próprio da técnica moderna, já está de tal modo internalizada que é frequentemente naturalizada, isto é, interpreta-se como “natural” essa maneira de se rela-cionar com a natureza.

Com efeito, a própria modernidade nasce a partir dessa nova con-cepção de mundo, apoiada na exploração e dominação da natureza. Essa foi a defesa apaixonada da ciência, ou seja, a ideia de que se deve torturar a natureza para arrancar seus segredos, tornando o homem o senhor da terra. De acordo com isso, a ciência, já enquanto teoria pura, encara a na-tureza como um reservatório de energia, ou ainda, como um sistema ope-rativo e calculável de forças, que pode ser manipulado e posto à serviço do homem. Nesse sentido, a física moderna não é experimental porque se utiliza de experimentos, pois já enquanto teoria ela expõe a natureza como

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esse sistema calculável de forças – o que torna, em seguida, possível ou justificável o uso de experimentos.

Dizer isso significa afirmar que a física ou a ciência moderna de modo geral não preparou o caminho para a técnica moderna propriamente, mas para a essência da técnica moderna. Mesmo porque a técnica moder-na surgiria quase dois séculos após o surgimento da ciência experimental. O que a física preparou, portanto, foi o caminho para a essência da técnica entendida como esse desencobrir o mundo a partir da exploração e domi-nação, isto é, a física predispôs o homem a um tipo de atitude ou de rela-cionamento com a natureza que a encara como estando à disposição dos interesses humanos.

Em função de tudo isso vivemos, se-gundo Heidegger, um tempo de perigo. E que perigo é esse? Será que esse perigo reside nas possibilidades nocivas de uso das novas tecnologias? Sem dúvida, o pro-gresso técnico já se revelou danoso nesse sentido, basta considerar os prejuízos cau-sados pela bomba nuclear. Além disso, vozes já podem ser ouvidas criticando as tecnologias da informação e comunicação, acusando-as de faci-litar a manipulação de opiniões e por consequência de diminuir o senso crítico dos homens de nosso tempo. Contudo, não é desse perigo de que Heidegger fala. Então de qual é?

O perigo reside no fechamento do homem nesse modo de desenco-brir o mundo que é próprio da técnica. Isso porque esse modo de desen-cobrir o real enquanto aquilo que está disponível para exploração encobre e pode impedir outros modos também possíveis de desencobrir o mundo e mais ainda: pode fazer o homem esquecer-se de que ele é o guardião da verdade, ou seja, do desencobrimento do mundo, e que deve zelar pela verdade. O homem pode entregar-se aquilo que se desencobre – no nosso caso, o mundo como disponibilidade – e esquecer-se do próprio desenco-brimento, esquecer-se da abertura em que consiste a verdade.

Com efeito, em nosso tempo em que o próprio homem se abre como disponibilidade, é a essência humana que se esconde e se afasta. O homem distancia-se cada vez mais de si mesmo e se entrega à ditadura do fazer e da exploração do mundo e de si mesmo. Encontrar-se consigo mesmo, por outro lado, significa em Heidegger reconhecer-se como o guardião da ver-

Conexão:

para o aprofundamento da discussão a respeito do modo

como Heidegger entende a técnica moderna e sua essência, consulte o artigo a seguir, que trabalha essa questão abordando-a no contexto geral da filosofia do autor: http://

www.pucsp.br/margem/pdf/m16dc.pdf

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dade, isto é, do desencobrimento, e manter-se aberto para outros modos possíveis de desencobrir o mundo. Quem poderá abrir o mundo de outro modo que não o desencobrimento explorador? A sugestão de Heidegger é a poesia, que deve atravessar todas as artes e toda a vida humana e colocar o homem a caminho de um novo desencobrimento. Talvez seja necessário que a humanidade ainda mais se entregue ao domínio da técnica para que só então apareça a urgência de uma outra abertura do mundo, que supere a figura do senhor da terra, hoje tão arraigada no imaginário coletivo, e nos faça aproximar da natureza de um modo mais imediato e menos utilitário.

Atividades

01. De acordo com Granger, pode-se considerar que vivemos, desde a segunda metade do século XX, na Idade da Ciência. Que razões o autor apresenta para caracterizar assim o nosso tempo?

02. O que caracteriza o conhecimento científico para Aristóteles e como ele se diferencia da arte ou técnica?

03. A íntima relação entre ciência e técnica, que caracteriza o mundo mo-derno, teve início no Renascimento. Que fatores favoráveis contribuíram para essa aproximação?

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04. A forte presença da técnica no mundo contemporâneo, além dos bene-fícios que trouxe, acarretou também problemas sociais, especialmente em relação ao trabalho operário. Que consequências o domínio da mentalida-de técnica trouxe para o mundo do trabalho proletário?

05. Segundo Heidegger, o que é mais decisivo não é pensar a técnica em si, mas a essência da técnica. Qual é, segundo o filósofo alemão, a essência da técnica moderna?

Reflexão

Vimos neste capítulo como o nosso tempo é caracterizado por uma forte presença da técnica e por sua íntima relação com a ciência, o que as torna para o senso comum indistinguíveis. Contudo, o conhecimento científico e o saber técnico possuem suas peculiaridades, as quais é preci-so atentar. A história desse casamento é, por outro lado, recente, visto que durante a Antiguidade e Idade Média os desenvolvimentos tecnológicos seguiam geralmente caminhos distantes daqueles trilhados pela ciência. Enfim, é preciso ter presente também que os benefícios que a técnica trou-xe consigo não podem esconder o que de nocivo ela pode representar. O desejo desenfreado de dominar a natureza, expresso na figura do homem como senhor da terra, que desde a alvorada da modernidade acompanha o pensamento ocidental, pode desviar o homem de sua essência e entregá-lo ao domínio cego da ação. É imperativo, de acordo com isso, que o estudante e futuro profissional da filosofia seja capaz de pensar e discutir sobre esse importante caráter de nossa atual civilização, característica que não só é importante como central para a compreensão de nosso tempo.

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Leitura Complementar

HEIDEGGER, Martin. Ciência e pensamento do sentido. In.: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Car-neiro Leal; Gilvan Fogel; Márcia Sá C. Schuback. 5 ed. Petrópolis: Vozes; Editora Universitária São Francisco, 2008.

Nesse texto Heidegger expõe sua interpretação filosófica sobre o conhecimento científico, entendendo a ciência como uma teoria do real que, além de teoria, possui uma proposta de intervenção sobre a realidade, proposta ausente na antiga concepção grega de teoria. Sua visão de ciên-cia liga-se diretamente a sua filosofia geral, que visa determinar o sentido do ser.

Popper, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cul-trix, 1972.

Nesta obra Popper faz uma aguda análise do conhecimento científi-co e seus modos de evolução ou progresso, discutindo ainda temas impor-tantes como o clássico problema da indução, que ele interpreta de modo muito próprio. É uma obra fundamental para a epistemologia contemporâ-nea, apesar das vozes críticas que se levantaram contra o autor.

Referências

BACHELARD, Gaston. Epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977 a.

_______. A formação do espírito científico: a contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.

GRANGER, Gilles Gaston. A ciência e as ciências. trad. Roberto Fer-reira. São Paulo: Editora UNESP, 1994.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In.: HEIDEGGER, Mar-tin. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leal; Gilvan Fogel; Márcia Sá C. Schuback. 5 ed. Petrópolis: Vozes; Editora Uni-versitária São Francisco, 2008.

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O Compromisso Ético na Construção do Conhecimento – Capítulo 4

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RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Trad. Breno Silveira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

No próximo capítulo

Vimos neste capítulo que uma característica decisiva e fundamental de nosso tempo é a proximidade entre técnica e ciência, que as torna para a mentalidade popular indistinguíveis. Mencionamos também os proble-mas que o domínio da técnica podem trazer consigo, seja em relação à mecanização do homem seja em relação ao distanciamento de si mesmo em função da entrega cega à ação. Tendo discutido isso, trabalharemos no próximo capítulo o problema da responsabilidade social.

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Minhas anotações:

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Cap

ítulo

5 Responsabilidade

SocialNeste capítulo vamos refletir sobre as

questões ética no mundo contemporâneo e a responsabilidade social, especialmente no

Brasil.

Objetivos de aprendizagem: • Compreender as questões éticas no mundo contem-

porâneo; • Compreender as relações entre ética e responsabilidade

social;• Analisar a ética no Brasil.

Você se lembra?Você se lembra do caso da clonagem da ovelha Dolly? Para que os

cientistas conseguissem realizar todo o processo que culminou com o nascimento de um clone tiveram que submeter o projeto e todos os procedimentos metodológicos que seriam utilizados a diferentes comitês de ética em pesquisa e, mesmo assim, ainda hoje não se chegou a um consenso quanto ao conflito ético imposto por tal quebra de paradigmas científicos. O caso Dolly perece que não foi moralmente aceito pela so-ciedade.

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5.1 Definição e disseminação do conceito no mundo e no Brasil

Você já deve ter realizado alguma boa ação ou gestos de caridade em toda a sua vida. Já deve ter praticado filantropia, ajudado alguém ne-cessitado de recursos financeiros ou até mesmo recursos para a própria so-brevivência. Já deve ter atuado como voluntário em algum projeto social ou ambiental. É comum, portanto, que a maioria das pessoas confunda o termo responsabilidade social e ambiental com boas ações como as des-critas acima. Na verdade, esse é um engano comum.

Primeiramente, é preciso compreender que o termo responsabilidade social vinculou-se gradativamente ao mundo corporativo e, atualmente, tra-duz-se em uma forma ética de conduzir os negócios. Seja a responsabilida-de social voltada a projetos ambientais, educacionais ou de outra natureza, o fato é que o conceito de responsabilidade social é abrangente, justamente pela diversidade de comportamentos e ações que uma organização pode as-sumir, esses voltados a assegurar o bem-estar dos indivíduos ou dos grupos sociais relacionados direta ou indiretamente com suas atividades.

As denominações dadas às intervenções sociais empresariais são muitas: responsabilidade social, cidadania empresarial, filantropia em-presarial e assim por diante. Assumir a denominação responsabilidade social empresarial é adotar um rigor não necessariamente conceitual, mas ético, na medida em que a palavra responsabilidade pressupõe critério e acompanhamento rigoroso dessas ações sociais. Em definição dada pelo dicionário Aurélio, responsabilidade é: situação de um agente consciente com relação aos atos que ele pratica voluntariamente. Por definição do Instituto Ethos de responsabilidade social, o conceito é definido:

Responsabilidade social empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento susten-tável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais. (Disponível em: <http://www.ethos.org.br>).

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O despertar da responsabilidade social das empresas não apresenta um histórico cronologicamente definido justamente por fazer parte de uma evolução da postura das organizações em face da questão social, pro-vocada por uma série de acontecimentos socio-políticos determinantes e também pela própria trajetória histórica do capitalismo mundial.

Na busca da garantia de espaço no mercado globalizado, na po-tencialização do seu desenvolvimento, as empresas inteligentes, incansáveis na redefinição de seus valores como forma de adequá-los às necessidades mercadológicas vigentes, desenvolvem um novo comportamento voltado para o seu estabelecimento no mundo competitivo: responsabilidade social de empresas (RSE), esta é a nova forma de “como fazer” adotada pelas empresas modernas. (PESSOA, 2005).

É possível dizer que evolução do conceito de RSE foi marcante a partir da década de 1970, sendo o desemprego um dos pontos mais corro-sivos para a política dos países industrializados e de desastrosas consequ-ências sociais.

Historicamente, a Grande Depressão econômica e os efeitos do pós-guerra foram fatos marcantes para o capitalismo, capazes de demonstrar as fragilidades do sistema e de gerar um dos maiores impactos sentidos pelos próprios “donos do capital” como afirma o historiador Eric Hobs-bawn:

Curiosamente o senso de catástrofe e desorientação causado pela Grande Depressão foi talvez maior entre os homens de negócios, economistas e políticos do que entre as massas. (HOBSBA-WN,1995 p. 98).

O cenário internacional e, inclusive, o brasileiro, até o final da déca-da de 1960 e início dos anos de 1970, demonstravam que ainda não havia condições de consumo no mercado interno que acompanhassem o nível de produção alcançado. Os percentuais de lucro caíram, dentre outros motivos, pelo aumento nos custos da força de trabalho; o modelo fordista/taylorista começava a esgotar-se por não conseguir interromper a retração de consumo que se intensificava permanentemente.

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Todas essas transformações foram analisadas por estudiosos de diversas nações que anunciavam o início da sociedade pós-industrial ou pós-capitalista, a civilização pós-moderna e o sistema neocapitalista, as-sim como a preconização do fim da história pelo avanço do livre mercado, vinculando tais predições ao êxito relativo do neoliberalismo e às surpre-sas convulsivas do mundo pós-Guerra Fria, como afirma Srour (1998).

Diante de tantas transformações no mundo, Srour (1998) realiza uma análise iluminadora sobre os paradigmas do mundo pós-moderno, esclarecendo que as preconizações da literatura econômica e adminis-trativa exaltam os conhecimentos técnicos e científicos como fontes de valor agregado e relacionam a globalização econômica à supremacia definitiva do mercado, descartando qualquer planejamento econômico. Há uma plêiade de autores que visualizam no liberalismo econômico a superação de todas as formas concorrentes de exercer o poder predizendo, desta forma, a reinvenção do Estado e entendendo a qualidade total e a gestão participativa como pontos de inflexão nas arquiteturas organiza-cionais. Portanto, mais do que um turbilhão de constatações, Srour chama a atenção para esta avalanche de transformações que são muito menos enfrentadas pelas forças administrativas e econômicas do que pelas forças sociais que recebem essa variedade de processos de maneira impactante.

Por meio de profundos questionamentos com propósito social, Srour (1998) indaga: quais os fios que costuram tantas descontinuidades? Haverá algum espaço para os atuais modos de pensar e de fazer, de gerir e de se associar?

Em suas palavras:

Ora, o que confere sentido à chamada crise da sociedade indus-trial? Seria o domínio do setor terciário que delineia uma nova sociedade de serviços? Ou ainda: o caráter volátil do capital es-peculativo, à procura de lucros fáceis em qualquer quadrante do planeta, dada a instantaneidade das comunicações globais? A con-versão da produção padronizada, destinada a mercados de massa, em produção flexível, voltada para mercados segmentados? O vertiginoso declínio do operariado na população economicamente ativa, a exemplo do campesinato em vias de extinção? A generali-zada perda da importância relativa da força de trabalho física para a força de trabalho mental? A absorção generalizada das mulheres no mercado de trabalho? A passagem da remuneração da mão de

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obra calculada em horas despendidas para a remuneração variável vinculada aos resultados obtidos? A redução dos postos de traba-lho em função da informatização, da automoção e da robotização dos processos produtivos? A globalização do fornecimento de insumos e de componentes, compondo produtos mundiais e trans-cendendo fronteiras? As tendências à ”precarização” do trabalho – explosão do mercado informal, emprego em tempo parcial, tra-balho temporário, trabalho autônomo complementar ou eventual – levando à dissociação entre crescimento e emprego? (SROUR, 1998, p.16-17).

A partir do século XX, diversos fatores de ordem política, econô-mica e social levaram ao reconhecimento e à legitimação de algumas necessidades e demandas sociais decorrentes de diversas mudanças ocor-ridas no mundo do trabalho, como, por exemplo, a revolução tecnológica, informacional e produtiva.

O próprio desenvolvimento da organização dos trabalhadores nas primeiras décadas do século XX contribuiu para reavaliar a perspectiva de atuação do empresariado frente às questões sociais. A pressão da classe trabalhadora, concretizada em inúmeras greves e aliada a fatores de or-dem econômica e política, levou diversos capitalistas a atuar no sentido de modelar o sistema formal de proteção social.

Essas mudanças provocaram alterações no modelo do desenvolvi-mento econômico, ocasionando altos índices de desemprego. Exatamente por tantas transformações ocorridas no século XX, a década de 90 foi pre-conizada com ações organizadas e estrategicamente voltadas para o tema responsabilidade social empresarial.

Por serem importantes agentes de promoção do desenvolvimento econômico e do avanço tecnológico, a qualidade de vida da humanidade passou a depender cada vez mais de ações cooperativas de empresas que foram incorporando, de maneira progressiva, o conceito de responsabi-lidade social empresarial, tornando-o um comportamento muitas vezes formalizado em projetos de atuação na sociedade civil.

A ética e a cidadania passaram a permear, com maior frequência, discussões sobre o que é ser politicamente correto no mundo empresarial. Nessa pauta de discussão, as relações do homem com o meio ambiente e suas responsabilidades com o futuro da humanidade face as desigualdades sociais ganharam força.

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Foi também na década de 1990 que as empresas no Brasil au-mentaram os investimentos em projetos sociais, em práticas ambientais sustentáveis e passaram a defender padrões mais éticos de relação com seus públicos de interesse (fornecedores, funcionários, clientes, governo e acionistas). Sob o rótulo de “responsabilidade social”, foi incluído um conjunto de normas e práticas que se tornou condição para garantir lucra-tividade e sustentabilidade aos negócios.

Uma das hipóteses é de que tais mudanças não decorrem apenas de condicionamentos infligidos pelo consumidor ou pelo mercado, mas da interpretação que os gestores fazem do cenário e do que entendem ser a melhor conduta para a empresa.

O perfil dos gestores e os fatores estruturais que facilitaram a difu-são das normas de responsabilidade social no ambiente corporativo são indícios de que as normas presentes no ambiente institucional penetram nas empresas e influem na sua estrutura organizacional e na maneira como se relacionam com seus públicos de interesse.

Muitas vezes, tem-se a ideia de que para fazer e gerir um projeto social basta fazer o bem e ter boa vontade. O que se busca, atualmente, é o equilíbrio do processo entre fazer o bem e fazer bem feito através de trans-parência nas decisões e nas negociações, além de maior profissionalismo, consolidando os projetos sociais como uma ação realmente eficiente.

É possível detectar, no âmbito empresarial, que falar em responsabi-lidade social, para muitas empresas, representa agir de forma estratégica por meio de metas que são traçadas para atender às necessidades sociais de forma que o lucro da empresa seja garantido, assim como a satisfação do cliente e o bem-estar social. Portanto, nesse discurso, também é possí-vel dizer que há envolvimento e comprometimento sustentável.

A noção de responsabilidade social atrelada ao mundo empresarial como forma de gestão pode ser considerada recente, visto que o que havia antes dessa incorporação do conceito ao mundo dos negócios era a prática da filantropia, que se diferencia em vários aspectos das práticas de respon-sabilidade social empresarial (RSE).

As ações de filantropia, motivadas por razões humanitárias, são isoladas e reativas, enquanto o conceito de responsabilidade social possui uma amplitude muito maior, por fazer parte do próprio planejamento estra-tégico da empresa, sendo, portanto, instrumento de gestão. A filantropia, no entanto, configura-se como doação, não estabelecendo vínculos efetivos da empresa com a comunidade e, dessa forma, a empresa não é responsável

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por nenhum processo contínuo capaz de tornar a ação social uma ação per-manente, contínua, que se configure de maneira autossustentável.

A relação estabelecida entre um projeto e os cidadãos usuários não pode ser vista de forma assistencialista. Em um projeto social também se faz necessário, como em qualquer outro projeto, a potencialização de talentos e o desenvolvimento da autonomia de seus atores. As empresas, atualmente, são consideradas grandes polos de interação social, tanto com os fornecedores como com a comunidade e seus próprios funcionários. Exatamente por isso, o processo de elaboração de projetos sociais, bem como os investimentos sociais de origem privada destinados a esses pro-jetos, deve ser encarado com muita lógica, desmistificando a ideia de que esse campo de atuação requer apenas ações voluntariosas.

As primeiras manifestações sobre o tema responsabilidade social descritas estão em um manifesto subscrito por 120 industriais ingleses no início do século XX. Tal documento definia que a responsabilidade dos que dirigem a indústria é manter um equilíbrio justo entre os vários inte-resses dos públicos, dos consumidores, dos funcionários, dos acionistas.

Outro momento histórico importante para a disseminação do con-ceito de responsabilidade social empresarial foi a década de 1960. Os mo-vimentos jovens e estudantis dessa época questionavam com veemência o capitalismo excludente. Nesse período, o tema se manifestou na pauta de grandes empresas de diversos países da Europa e dos Estados Unidos.

Outro fato que intensificou a reflexão sobre o papel das empresas na sociedade foi o período de Guerra Fria. Nesse momento, as preocupações estavam voltadas ao futuro do sistema econômico no Ocidente. Os altos déficits públicos, a revolução informacional, a transformação produtiva, o desemprego e as desigualdades sociais vinham demonstrando que o cená-rio mundial requeria novas posturas tanto do setor público quanto do pri-vado. Não é possível, portanto, demarcar um único fato para estabelecer a responsabilidade social empresarial como comportamento assimilado nas corporações, mas a bibliografia sobre o tema aponta o Conselho Em-presarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, no ano de 1998, na Holanda (Instituto Ethos, 2005), como um marco para a formalização do conceito de responsabilidade social. Esse evento apresentou o conceito de responsabilidade social como sendo um dos pilares para o desenvolvi-mento sustentável e contou com a presença de sessenta representantes de diversos países. Em debate realizado, foi discutida a atuação das empresas no âmbito social.

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O Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sus-tentável abriu espaço para o questionamento da relação entre empresa e cidadão. Gradativamente, as empresas incorporam práticas e dinâmicas voltadas aos anseios da comunidade na qual estão inseridas, assumindo, dessa forma, o atributo da responsabilidade social como mais um requisi-to indispensável para as organizações empresariais.

A divulgação do balanço social também foi uma prática originada das demandas éticas envoltas na discussão sobre a responsabilidade social empresarial desenvolvida mundo afora. A transparência como valor agre-gado às mudanças do mundo globalizado passou a exigir das empresas a publicação dos relatórios anuais de desempenho das atividades sociais e ambientais desenvolvidas, além dos impactos de suas atividades e das me-didas tomadas para prevenção ou compensação de acidentes. Essa dife-renciação inicia-se com a própria noção de que essas ações de RSE devem envolver atitudes planejadas que vislumbrem resultados, visto que o me-lhor desempenho nos negócios está além da relação com a lucratividade.

Essa nova postura das empresas está longe de substituir o papel do Estado e sua responsabilidade com o progresso social de uma nação, mas é fato que, a partir dos anos 1990, as empresas, inclusive no Brasil, aumen-taram os investimentos em projetos sociais, passando a defender padrões mais éticos na relação com seus públicos de interesse (fornecedores, fun-cionários, clientes, governo e acionistas) e práticas ambientais sustentáveis.

Para os brasileiros, essa questão ganhou evidência maior após o período de redemocratização e abertura econômica do país na década de 1990, como afirma Alessio (2008, p. 100).

[...] a responsabilidade social das empresas, cuja projeção nos EUA e na Europa aconteceu em meados da década de 1960, passou a ser pauta na agenda dos empresários brasileiros, com mais visibilidade, na década de 1990, incentivada pelo período de redemocratização e abertura econômica do País, pelos direitos conquistados com a Constituição Federal de 1988, pela aprovação do Estatuto da Crian-ça e do Adolescente (ECA) e do Código de Proteção e Defesa do Consumidor em 1990, pela aprovação da Lei Orgânica da Assis-tência Social (LOAS) em 1992, que contribuíram para uma maior conscientização e organização da sociedade civil sobre seus direi-tos, também favorecendo a fundação de ONGs e o fortalecimento do terceiro setor.

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No Brasil, a ação das empresas no âmbito não lucrativo de função social tornou-se significativa entre as décadas de 1980 e 1990. Foram de-tectadas, a partir das duas últimas décadas do século XX, ações mais orga-nizadas sistematicamente e estrategicamente voltadas para o tema respon-sabilidade social empresarial. É possível dizer, portanto, que esse período marca a inserção do tema responsabilidade social empresarial (RSE) na agenda de interesses da população brasileira. Por outro lado, o caminho não está totalmente consolidado para que as empresas se beneficiem ime-diatamente da divulgação de suas ações de responsabilidade social. Ainda é necessário enfrentar a desconfiança do consumidor em relação à atuação empresarial nesse âmbito. Esse é o principal desafio para as empresas que incorporam os princípios da RSE em suas práticas.

Dimensionar as ações de responsabilidade social no Brasil torna-se tarefa difícil levando-se em consideração o fato de que essas ações se iniciaram informalmente na sociedade por meio de entidades eclesiásticas e empresariais. Historicamente atrelado à prática da filantropia, o movi-mento de responsabilidade social no país traz consigo, desde o período colonial, a presença das igrejas cristãs atuando direta ou indiretamente, prestando assistência à comunidade.

No ano de 1980, professores do departamento de administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP) se uniram para criar uma instituição conveniada à escola – a Fundação Instituto de Administração (FIA). Dessa fundação, surgiu o Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Tercei-ro Setor (CEATS).

O CEATS é considerado no Brasil um espaço pioneiro na geração e disseminação de conhecimento sobre a gestão das organizações da sociedade civil e a responsabilidade social empresarial. Professores, pes-quisadores e estudantes interessados em compreender e estimular o desen-volvimento social sustentável no Brasil – viabilizado pelas empresas, pela sociedade civil organizada e em alianças estratégicas reunindo empresas, terceiro setor e Estado – desenvolvem pesquisas e análises acerca do empreendedorismo social, da responsabilidade socioambiental, da avalia-ção de programas e projetos sociais e das formas de atuação e parcerias. Além disso, o CEATS publica suas conclusões no Brasil e no exterior, e também promove cursos e ações de aplicação experimental na comunida-de. (Disponível em: <http://www.ceats.org.br>)

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Outro fato que abriu caminho para as práticas de responsabilidade social no Brasil foi a criação do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Criado em 1981, surgiu como proposta de democra-tização da informação sobre as realidades econômicas, políticas e sociais no Brasil. Instituição de caráter suprapartidário e suprarreligioso, o Ibase divulga ser sua missão o aprofundamento da democracia, seguindo os princípios de igualdade, liberdade, participação cidadã, diversidade e so-lidariedade. Contribuindo para a construção de uma cultura democrática de direitos, no fortalecimento do tecido associativo, no monitoramento e na influência sobre políticas públicas, o Ibase foi fundado pelo sociólogo Herbert de Souza.

Conhecido como Betinho, Herbert de Souza lançou em 1993 a Campanha de ação da cidadania contra a miséria e pela vida, popular-mente conhecida como “Campanha do Betinho”, essa foi uma grande mobilização da sociedade brasileira e das empresas em busca de solu-ções para as questões da fome e miséria. Para esse fim, o sociólogo fala-va em co-responsabilização da sociedade na luta pelas questões sociais do país.

Em 1990, ano de promulgação do Estatuto da Criança e do Adoles-cente no Brasil pela Lei n° 8.069, foi fundada a Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq). Pautada no Estatuto da Criança e do Adolescente na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ONU, 1989) e na Constituição Federal Brasileira (1988), adota como missão promover a defesa dos direitos e o exercício da cidadania de crianças e adolescentes por meio de ações que garantam esses direitos. (Disponível em: <http://www.fundabrinq.org.br>)

A criação, em 1992, do Prêmio ECO-Empresa e Comunidade da Câmera Americana de Comércio de São Paulo destaca o prêmio como um marco para o reconhecimento dos esforços realizados por empresas que desenvolvem projetos sociais em busca da promoção da cidadania. O Prêmio ECO-Empresa, desde sua criação, já segmentava as ações realiza-das por meio de projetos sociais em cinco categorias: cultura, educação, participação comunitária, educação ambiental e saúde.

Em termos legais, uma ação estimuladora para que as empresas re-alizassem responsabilidade social no Brasil foi a autorização do Governo Federal às empresas tributadas em regime de lucro real de deduzir até 2%

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do lucro operacional bruto em doações, desde que destinadas a entidades sem fins lucrativos, pela Lei das OCIPS n° 91/35. (GIFE, 2002 apud Ales-sio 2008, p.112).

A criação e a atuação do Grupo de Instituições, Fundações e Em-presas (GIFE), como grupo de trabalho instituidor do embasamento do conceito de “cidadania empresarial” iniciado em 1995 no Brasil, é ponto altamente relevante para consolidação das práticas de responsabilidade social no país. Organizado em torno da Câmara de Comércio Brasil – EUA em São Paulo (Amcham), o GIFE destaca o termo terceiro setor, com enfoque especial para as organizações sociais de origem empresarial. O mesmo grupo que originou o GIFE deu um passo adiante criando, em 1998, do Instituto Ethos de empresas e responsabilidade social. Sua cria-ção, deu ao movimento de responsabilidade social empresarial um perfil semelhante ao já existente no exterior, baseado na ética, na cidadania, na transparência e na qualidade das relações da empresa. Para cumprir sua missão, o instituto desenvolve uma série de atividades que vão desde a disseminação de informações sobre responsabilidade social empresarial, conferências, debates e encontros nacionais e internacionais, orientação através de consultoria, elaboração de manuais para o auxílio das empresas no processo de gestão que incorpore o conceito de responsabilidade so-cial, elaboração de ferramentas de gestão que orientem as práticas social-mente responsáveis, até a área de comunicação, articulação e mobilização para facilitar a participação da ação articulada de empresas, organizações não governamentais e poder público na promoção de iniciativas que pro-movam o bem-estar social.

Embora o engajamento de empresas em ações sociais já venha ocorrendo no Brasil há muito tempo, vem crescendo, nos últimos anos, a preocupação com um envolvimento mais sistemático da iniciativa pri-vada com o tema da responsabilidade social. Esse fenômeno reflete uma percepção, cada vez mais generalizada na sociedade, de que a solução dos problemas sociais é uma responsabilidade de todos, e não apenas do Estado; de que é imperativo garantir a todos o acesso a alimentação, mo-radia, educação, saúde, emprego, meio ambiente saudável e a outros bens sociais fundamentais; de que não é mais possível conviver com a exclusão de uma larga parcela da população desses bens sociais, como até agora ocorre no Brasil.

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5.2 Global Compact

O mundo não é estático, e nossa era revela uma velocidade nos pro-cessos de mudança organizacional com efeitos poderosos sobre pessoas e sobre a sociedade de forma geral. Se compararmos o cenário vivido no mundo há cinquenta anos, verificaremos uma enorme alteração de condi-ções ambientais e importantes mudanças no desempenho organizacional.

Se antes verificávamos estabilidade, definição, certeza, abundância, pouca sofisticação tecnológica e baixos níveis de consciência social, hoje passamos por períodos de turbulência, ambiguidade, incertezas, escassez, sofisticação tecnológica e melhoria significativa dos níveis de consciência social devido aos próprios impactos da globalização.

Segundo o engenheiro e professor universitário Eugênio Maria Gomes (2005), o foco das organizações, em relação à comunidade, até pouco tempo atrás estava direcionado apenas para o mercado, analisando exclusivamente os desejos e a capacidade de compra. Na atualidade, essa análise também se volta para os aspectos sociais, avaliando aquilo que a comunidade necessita além dos produtos ou serviços que a instituição oferece.

Pode-se concluir, então, que há uma mudança significativa na relação das organizações empresariais com a sociedade. Nas ações de responsabilidade social, uma das exigências básicas é a condução dessas ações de forma ética, por meio de práticas que demonstrem que a cultura organizacional da empresa está focada nos princípios de solidariedade e compromisso social.

Sintonizado com todas essas transformações, em 31 de janeiro de 1999 o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi A. Annan, desafiou os líderes empresariais mundiais a “apoiar e adotar” o Global Compact.

O Global Compact, traduzido para a língua portuguesa como Pacto Global, foi um pacto proposto pela Organização das Nações Unidas com diretrizes voltadas para a promoção do desenvolvimento sustentável e da cidadania, medidas a serem adotadas pelos líderes empresariais de manei-ra voluntária.

O Pacto Global visa a mobilizar a comunidade empresarial inter-nacional para a promoção de valores fundamentais nas áreas de direitos humanos, trabalho e meio ambiente, como afirma Ponchirolli (2007 p. 89).

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Não é possível caracterizar o Pacto Global como um código de con-duta legalmente obrigatório, instrumento regulatório ou fórum de verifi-cação e policiamento de políticas ou práticas gerenciais. Na verdade, esse pacto é uma iniciativa voluntária no sentido de que visa a conscientizar e estimular o crescimento sustentável e de cidadania por lideranças corpo-rativas que se mostrem comprometidas e inovadoras. A força desse pacto está justamente na força institucional e no apelo da sua própria instituição propositora, a Organização das Nações Unidas.

O pacto, além de dar complementaridade às práticas de responsabi-lidade social empresarial, é visto como um compromisso mundial e suas diretrizes estão embasados na ISO 26000.

ISO 26000 será a norma internacional de responsabilidade so-cial e está prevista para ser concluída em 2010. O grupo de trabalho de responsabilidade social da ISO (ISO/TMB WG) – responsável pela elaboração da ISO 26000 – é liderado em conjunto pelo Instituto Sueco de Normalização (SIS – Swedish Standards Institute) e pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Assim, em decisão histórica, o Brasil, juntamente com a Suécia, passou a presidir de maneira comparti-lhada o grupo de trabalho que está construindo a norma internacional de responsabilidade social.

(Disponível em: < http://www.inmetro.gov.br>). Para o Pacto Global foram escolhidas quatro áreas de atuação que

possuem forte apelo mundial e potencial para mudanças efetivas e posi-tivas, sendo elas: direitos humanos, trabalho, meio ambiente e combate à corrupção. A partir das quatro áreas, surgiram dez princípios fundamen-tais que orientam o pacto. (Ver figura 10.)

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Figura 10: princípios do Pacto Global

Uma empresa que queira aderir ao Pacto Global deverá preencher uma carta modelo, que serve como termo de adesão, além de fazer um cadastramento organizacional. A partir desse cadastramento no site http://www.unglobalcompact.org, a empresa deverá informar aos acionistas, funcionários e consumidores sobre sua adesão ao pacto. Dessa forma, ela deverá declarar os princípios na missão da empresa e em diversos de seus documentos oficiais. O compromisso deverá se tornar público. Para isso, será necessário emitir comunicado à imprensa e, a partir dessas ações, assumir os dez princípios nos programas de desenvolvimento corporativo da empresa.

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Link para a InternetINSTITUTO ETHOS DE RESPONSABILIDADE SOCIAL: http://

www.ethos.org.br.

Assista ao filme: Erin Brochovich – Filme com Júlia Roberts, conta a história real de

uma mulher que descobre uma ação ilegal geradora de alto impacto am-biental de uma grande e poderosa corporação. Por ser uma história real, é indispensável que você assista a esse filme para compreender o que a falta de responsabilidade de uma empresa com o meio ambiente e a comunida-de ao seu redor pode causar.

5.3 Ética no mundo contemporâneo

Contemporaneamente, surge a crítica ao pensamento moderno. Dentre os críticos, destaca-se o filosofo alemão Jürgen Habermas (1929). Segundo ele, o que marca a modernidade é uma razão instrumental que, caracterizada pela instrumentalização do conhecimento pelo poder, deve ser transformada numa razão comunicativa, responsável pela criação de um espaço público no qual o diálogo, como condição de possibilidade, deve permitir a construção de uma sociedade eticamente responsável. O projeto de Habermas, que se tornou conhecido como pragmática univer-sal, consiste numa reconstrução da razão através do diálogo, partindo da capacidade que os sujeitos têm de coordenar mútua e consensualmente as suas ações a partir de um entendimento intersubjetivo. Esse consenso é considerado racional na medida em que existe uma aceitação comum das “melhores” razões, escolhidas para justificar enun-ciados e comportamentos.

As instituições sociais aparecem aos olhos de muitos, como expressão de inte-resses das classes dominantes, justificados por ideologias e sujeitas a severas críticas.

E o conteúdo da ética no mundo contemporâneo tem também seus desdo-bramentos e aplicações numa pluralidade de normas e orientações de comportamento. Tem-se também impressão de certo de relativismo cultu-

Conexão:

Saiba mais sobre o pensamento do filósofo J.

Habermas, acesse:http://www.cadernocrh.ufba.br/include/getdoc.

php?id=942&article=153&mode=pdf

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ral: cada cultura tem suas normas éticas, que seriam válidas em relação ao respectivo contexto.

Segundo o documento: Ética: pessoa e sociedade (CNBB, 1993, p.5, 7ss). A ética não saiu reforçada nessa situação: a ela se segue uma cri-se. O relativismo se afirma, pelo menos, teoricamente. A própria filosofia parece renunciar a uma reflexão ética para deixar lugar a uma “sociologia dos costumes”, a uma mera descrição dos comportamentos éticos, sem valor normativo.

Enquanto se desenrolava a crítica dos princípios éticos, amadurecia uma outra transformação, conexa com a evolução da economia moderna: o capitalismo.

Ao longo do processo histórico, as esferas da sociedade, como a po-lítica, a religião, a arte, a ciência, vão adquirindo sua própria autonomia. Já nesta fase, a ética e a religião perdem a hegemonia que exerciam sobre a sociedade tradicional. Mais radicalmente, com o avançar do processo, a economia assume papel dominante e subordina a seus interesses as outras esferas sociais, inclusive a ética.

A única regra é a procura do “melhor” produto, no sentido do mais eficiente, do ponto de vista estritamente econômico; em resumo: o que dá mais lucro. Não o “melhor” produto com relação a valores humanos (logo, éticos) ou com relação a um tipo de sociedade. É a supressão práti-ca da ética.

Em síntese, a tendência inscrita nessa sociedade é a de organizar e administrar a vida social segundo regras meramente técnicas, de acordo com os interesses do sistema econômico, reduzindo o ser humano a algo “fabricado” por esse mesmo sistema. A pessoa, muitas vezes, não percebe claramente o controle exercido sobre ela, enquanto o sistema lhe garante bem-estar e uma “liberdade” aparente no âmbito privado.

Porém, já dizia Aristóteles em “Ética a Nicômano”: “A vida empe-nhada no ganho é uma vida imposta, e evidentemente a riqueza não é o bem que buscamos, sendo ela apenas útil e no interesse de outra coisa”. Embora Aristóteles discorra sobre o papel do Estado nos assuntos eco-nômicos e políticos, postula que o fim, ou objetivo maior do Estado é a promoção comum de uma boa qualidade de vida.

Ou seja, não há margem para dissociar o estudo da política do estu-do da ética, e na contemporaneidade, também da economia.

Aparece aqui uma questão crucial: o problema da motivação hu-mana ligado à questão amplamente ética de “como devemos viver?”, ou

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seja, reconhecer que as deliberações éticas não podem ser completamente irrelevantes para o comportamento humano real.

Surge também outra questão importante, que se refere à avaliação da realização social. Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, afirma que essa concepção de realização social, relacionada à ética, “não pode deter a avaliação em algum ponto como ‘satisfazer a eficiência’. A ava-liação tem que ser mais inteiramente ética e adotar uma visão mais abran-gente do ‘Bem”1 (1999, p.20).

Porém, na busca de um conteúdo universal do imperativo “faça o bem!”, chega-se à constatação de que “fazer o bem” é, antes de tudo, dar prioridade efetiva às exigências do ser humano. Estas não são apenas as necessidades materiais, relativas à sobrevivência, mas também as aspira-ções profundas, voltadas para a realização da dignidade e das potenciali-dades das pessoas.

Na sua obra clássica “Sobre ética e economia”, Sen afirma que o valor fundamental da ética é a realização dos interesses racionais das pes-soas: o bem humano, que inclui uma pluralidade de aspectos valiosos da vida humana, tais como: satisfações, direitos, liberdades, oportunidades reais, etc, ou seja, não é possível, nem ético, reduzir o bem-estar apenas a utilidades.

Isso pode ser constatado historicamente: à medida que cresce a organização política de determinados grupos humanos, cresce também a consciência de que “agir bem” é procurar o bem de todos os seres huma-nos em todas as suas dimensões.

Neste sentido, é possível afirmar que a liberdade humana só se efe-tiva quando não se reduz à interioridade subjetiva, mas se realiza nas leis, nos costumes e nas instituições que compõem a vida concreta das pessoas, conciliando valores fundamentais da ética tradicional, com as exigências modernas de racionalidade e liberdade,

É relevante, portanto, para a questão ética, compreender a situação atual.Na verdade, há uma ruptura entre o indivíduo, que se fecha sobre

si mesmo, e a vida pública e os valores comuns, sobre os quais se ergue a sociedade. A dimensão comunitária é enfraquecida e prevalece a visão do ser humano como “indivíduo consumista”. Hoje, a consciência das pessoas se sente, muitas vezes, confusa, fragmentada, manipulada e submetida aos impulsos do momento, por falta de uma visão mais consistente e objetiva.

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A crise ética da nossa sociedade tem gerado a falta de honestidade, a corrupção, o abuso do poder, a exploração institucionalizada e a violência, mas também a deformação e a incerteza das consciências. A sociedade parece não apenas pluralista, mas desagregada, marcada por segregação social, descrédito da ação política, falta de solidariedade (CNBB, 1993).

Evitando generalizações na análise de uma situação tão complexa, deve-se notar, especialmente, as contradições que marcaram a história do País e que a modernidade vem reforçar.

5.4 Ética e Política no Brasil

Há, em nossos dias, uma desconfiança cada vez mais crescente em relação à prática política em voga na nossa sociedade. E há, sem dúvida, uma descrença pertinente de que os segmentos dirigentes possam resolver os problemas fundamentais da nação, pela sua subserviência à vontade das elites e do capital transnacional.

Se por um lado, são constantes as denúncias de fraudes, esquemas de corrupção envolvendo agentes políticos e funcionários públicos do alto escalão, “compra” de votos ou de atos administrativos, abusos e falta de decoro, lobbies, financiamentos de campanhas por interesses escusos, etc. Por outro, percebe-se uma passividade conivente da maioria da população que se traduz, sobretudo, no desinteresse pelos assuntos políticos, numa atitude típica de “não comprometimento pessoal” presente em expres-sões como: “todo político é igual”, “política é coisa suja”, “voto porque é obrigatório” ou na pouca participação popular nos partidos políticos e nas sessões das câmaras municipais, assembleias legislativas, etc. A bem da verdade, a grande maioria da população não considera a política como assunto de seu interesse e de sua competência.

Existe uma espécie de consenso presente na média da população brasileira de que a política é um espaço restrito a poucos e um espaço proibido para a grande maioria.

Não há uma formação suficiente a respeito da natureza e do funcio-namento do processo democrático e não há uma consciência clara de que a ação política, como braço do poder, administra a “res pública” para o conjunto da sociedade. Nas eleições, quando o sistema político obriga a uma consulta popular, é comum a atitude de “tirar proveito pessoal”. O voto é tratado como uma espécie de mercadoria: quem dá mais ou quem fizer a melhor propaganda, leva.

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Para melhor compreensão deste contexto, três aspectos relevantes precisam ser considerados:

1) o primeiro está nas raízes da organização da sociedade brasileira, inicialmente escravagista e agrária, cuja modernização é relativamente recente e realizada de modo muito acelerado conservando, como herança, valores da “Casa Grande” com a sua arrogância do poder. Esta cultura atribui aos poderosos privilégios e mordomias, o que, na constatação resignada e complacente do povo, se traduz na expressão popular “quem pode, pode”. Independente dos critérios da lei e da justiça é prática, implí-cita e de certa forma até aceita como comum, os poderosos usufruírem de bens públicos e tirarem proveito do seu poder, reduzindo a coisa pública à subordinação de interesses particulares.

Esta privatização do público é tão comum à sociedade brasileira que, muitas vezes vem amparada em leis, elaboradas por legisladores comprometidos com grupos corporativos e não com a maioria da popula-ção. Soma-se a isso a famosa prática da esperteza, do “jeitinho” ou até da malandragem estimulada pelas elites, inclusive pela mídia, como se fosse isso uma “característica” do brasileiro, o que leva o povo brasileiro a acei-tar com normalidade a prática do clientelismo que, na essência, trata-se de uma forma de apadrinhamento por parte dos políticos com benefícios em troca de favores.

2) O segundo aspecto reside na submissão do poder político aos interesses do capital cuja hegemonia encontra-se hoje nas mãos de setores articulados com os centros mundiais de decisão. Os países emergentes são forçados a adotar políticas econômicas neoliberais, planejadas em institui-ções financeiras internacionais. É o impacto da globalização que, embora geral, não é uniforme. Trata-se de uma institucionalização de um processo de reestruturação completa das instituições políticas e econômicas inter-nacionais, destinado a assegurar a hegemonia dos países ricos numa nova etapa do capitalismo planetário. Se o liberalismo, em termos políticos, proporcionou alguma contribuição à democracia, ao longo da história, ao opor-se a variadas formas de absolutismo e autoritarismos, o neoliberalis-mo, por sua vez a destorce, ao alimentar sua crença cega na economia de mercado, como único caminho possível e reduzindo demasiadamente o papel do Estado no zelo, defesa e tutela de certos bens coletivos, como o ambiente natural e o ambiente humano. O agravamento da questão social, da miséria, das desigualdades na distribuição das rendas e riquezas, exclui uma imensa massa da população da possibilidade de alcançar, com seu

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trabalho, um nível de consumo necessário à sobrevivência. Neste caso, esta parcela da população sente-se “por fora”, marcada pela segregação (“apartheid”) social, e acaba excluído de uma dimensão mais comunitária e participativa, por não sentir-se apto ao exercício da cidadania, pois o modelo neoliberal considera cidadão o “indivíduo consumista”.

Neste sentido, o Estado neoliberal não é efetivamente democrático porque, além de injusto e omisso, não valoriza nem permite mecanismos de real participação da sociedade, como um todo, na definição dos rumos da nação.

E não é ético porque alimenta o gritante contraste entre a abundân-cia de recursos econômicos e tecnológicos, e a miséria e a fome que des-troem a vida humana – bem maior do planeta.

3) Por fim, um último, porém, não menos importante aspecto a se considerar: o individualismo que marca a contemporaneidade.

Há uma ruptura entre o indivíduo, que se fecha sobre si mesmo e a vida pública e os valores comuns, sobre os quais se ergue a sociedade. A dimensão comunitária está enfraquecida e prevalece afirmação da cha-mada “liberdade individual” que enfatiza as opções ou decisões pessoais. Diante do pluralismo de comportamentos e de teorias éticas que preten-dem legitimá-los, cada um é solicitado a fazer sua escolha, segundo um critério ou um “gosto” pessoal. A sociedade moderna concede uma liber-dade ilimitada na esfera da vida privada ou particular como compensação à sujeição, de cada um, ao sistema econômico e político.

As consequências disso, muitas vezes, é a indiferença ou a aceitação da desigualdade e da segregação como algo natural à organização humana e alheia à vontade de cada um. Há um descompromisso com um projeto po-lítico que garanta igualdade de oportunidade e a dignidade da vida humana.

Como se a responsabilidade moral da ação política repousasse so-mente na ação de seus agentes e não também naqueles que os escolhem. O individualismo alimentado pela sociedade consumista embaça a cons-ciência de que a liberdade humana só se efetiva quando não se reduz à interioridade subjetiva ou a práticas egoístas de satisfação de necessidades pessoais de consumo. Mas se realiza nas leis, nos costumes e nas institui-ções, que configuram a vida concreta das pessoas.

Ou seja, no “ethos” – hábitos, costumes, instituições – produzidos pela sociedade. Segundo Aristóteles, o ser não se manifesta apenas na natureza, mas também na ação ou práxis humana. O “ethos”, portanto, “se refere à ‘morada’ e à organização de um povo ou de toda sociedade”. Pode

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ser considerado também um espaço de liberdade, de diferença. Esta liber-dade não é apenas subjetiva, mas consiste me buscar a própria realização; logo, o que é bom, o que é conforme a natureza humana. Como o indiví-duo pode discernir o que é bom, o que o tornará verdadeiramente feliz? Num primeiro momento, é o próprio “ethos” da sociedade em que vive (seus costumes, suas leis, suas instituições) que aponta o que é ‘bom’. (CNBB, 1993.5,6, 7,).

Neste sentido, é possível concordar com a filosofia antiga e com a tradição cristã que afirmam que a pessoa humana só se realiza na “polis”, na ordem social.

O que pode levar à afirmação de que ética e política (governo da cidade) estão intimamente ligadas. Mas, se teoricamente esta afirmação é procedente, na prática, é muito diferente.

No Brasil, a prática política leva a constatação de um esvaziamento ético não apenas no exercício da atividade política por parte de seus agen-tes, mas infelizmente, no posicionamento dos cidadãos, que na concepção clássica, podem ser definidos como aqueles que têm direitos e deveres em relação à “polis”.

Há uma grande parcela da população (talvez, a maioria!) excluída do processo de modernização e de suas vantagens materiais e sem efetivas possibilidades de participação política. Sente-se, de fato, “fora” da socie-dade moderna. Para boa parte dela vale o “salve-se quem puder”. Essa situação a leva a recorrer mais à magia e ao maravilhoso do que às formas de conteúdo ético, ou pior, submete-se a outros poderes, que não aos do Estado de Direito...

Ela também não consegue reconhecer o que é “público”, pois não se sente vinculada à sociedade como um todo, mas está em busca da sobre-vivência, da solução de problemas imediatos e inadiáveis. O que explica, muitas vezes, o descuido e até vandalismo da parte da população com os bens públicos. E a compreensão dos programas sociais como atributos de “bondade” de determinado governo, e não como direito. O que, sem dúvi-da, favorece a matriz populista que marca a política no Brasil.

É necessário, portanto, investir na formação da consciência crítica da população e na sua formação política para que o cidadão comum se sinta realmente integrado a uma democracia e participante do processo de gestão do Estado através da delegação de poderes aos eleitos a cargos públicos e de cobrança de atitudes pertinentes ao “bem público” ou bem comum.

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Este papel cabe, primeiramente, às instituições de caráter público ou de maior abrangência, tais como: o próprio poder executivo, o legislativo, o judiciário, o Ministério Público, a Magistratura, etc., mas também à mí-dia, a Igreja, o movimento sindical e o movimento popular.

Neste sentido, percebe-se um esforço positivo de alguns organis-mos, que investem contínua e coerentemente na formação, na análise de conjuntura e elaboração de parâmetros e propostas para a ordem política, norteadas pela ética e por valores essenciais à vida humana.

Assumindo um corajoso posicionamento em favor da dignidade humana, há organizações e movimentos sociais que alertam para a su-premacia da vida humana sobre qualquer outro valor e estimulam a par-ticipação crítica e consciente dos cidadãos na vida política da nação e na necessidade da elaboração de um projeto de sociedade que tenha a justiça e solidariedade como base.

Hoje já é possível identificar o posicionamento de Centrais Sindi-cais que, ao invés de se prender unicamente a interesses coorporativos, buscam participação política ativa, clara e definida, investindo na for-mação de quadros, na informação dos trabalhadores e na fiscalização constante dos agentes políticos. O movimento popular, em suas múltiplas facetas, também procura fortalecer a cidadania e exercer a defesa dos di-reitos constitucionais.

Muitas ONGs, institutos e centros de estudos, de pesquisas e de informação organizam-se em torno de valores éticos e da defesa intransi-gente de direitos sociais. A sociedade civil está se organizando e buscando garantir e fortalecer a democracia e a defesa dos direitos humanos e so-ciais. Nesse campo, destaca-se a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o CFESS/CRESS e outros conselhos e associações profissionais, dentre tantos, que a nível nacional procuram conscientizar seus associados e a sociedade, em geral, sobre a necessidade de fiscalização do poder público e de se pressionar para a elaboração de políticas voltadas às demandas so-ciais e para a prática da lisura e probidade administrativas.

Porém, embora meritórias e imprescindíveis, tais ações não bastam para que a política, norteada pela ética universal e inerente à condição hu-mana, seja realmente um instrumento na construção do bem comum.

Uma das razões reside no fato de que, embora o sujeito coletivo es-teja comprometido eticamente com a política, o sujeito individual muitas vezes, não assume uma postura mais eficaz. Em sua práxis enfraquece ou omite-se de assumir pessoalmente um papel interventivo, fiscalizador

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ou educativo ou, o que é pior: reproduz, no individual, comportamentos questionáveis e viciados em autoritarismo, esperteza, falta de compromis-so, alienação ou submissão.

Ao reconhecer a ética no aspecto de ciência da ação comunitária ou da ação política, é possível vislumbrar racionalmente a lei ou a ordem social que possa ser aceita livremente e reconhecida por todos como justa.

Mas, quando se considera a ética como ciência da ação (ou práxis) individual o problema maior é o da razão que deve iluminar a liberdade do individuo e levá-lo à realização plena. Este aspecto deve ser considerado como “moral” ou como problema da “moralidade” (CNBB, 1993,18).

Mesmo onde se procura uma ética pública mais coerente, reco-nhecida efetivamente pelo conjunto dos cidadãos, muitas vezes o problema da ética ou moralidade individual é esquecido e colocado entre parênteses, como se fosse possível construir uma ética social sólida sem uma ética pessoal adequada. (idem, 35).

Neste sentido, é importante que cada cidadão se descubra como respon-sável (chamado a dar resposta) e capaz de, pela mediação com outros homens, procurar o bem e dar prioridade efetiva às exigências do ser humano em todas as suas dimensões. Inclusive, na dimensão comunitária participativa.

A ética deve manifestar-se em todas as dimensões da vida humana e abranger todo agir do ser humano com outro ou de uma comunidade de pessoas com outro ser humano ou outra comunidade humana. No plano político funda-se na percepção de um destino comum. O cidadão deve se responsabilizar com os demais, porque a qualidade de sua vida depende da “proteção” que lhe dá o Estado nacional a que pertence, compreen-dendo que esse Estado não poderá oferecer-lhe esta proteção se ela não se estender a todos os outros cidadãos. Isso não significa a eliminação da competição e o conflito de interesses no interior da unidade nacional, mas coloca limites nesta disputa, como uma condição necessária para a sobre-vivência desta nação (CNBB, 1996. 18,19).

Sem estes limites, que podem ser chamados de éticos, porque dizem respeito a valores e à escolha do que é “bom” para o conjunto da nação, não subsiste o Estado democrático e se torna retórica vazia a expressão contida no preâmbulo da Constituição Brasileira de 1988: que fala na “construção de uma sociedade fraterna”.

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Apesar destas considerações, é válido afirmar que existe hoje um significativo avanço na formação da consciência crítica da nação e uma exigência crescente da massa popular em relação à ética na política.

Levando-se em conta a história do povo brasileiro, marcada pela violência de períodos ditatoriais, lembrando aqui os mais recentes: a di-tadura de Vargas e dos militares; e ainda, a carência educacional e a forte influência e manipulação da mídia em favor de projetos políticos anti-populares forjados pelas elites dominantes, é possível vislumbrar, com esperança, mudanças qualitativas na estrutura de poder.

Lentamente, mas de modo constante, o povo se organiza, cresce a consciência de cidadania. Avanços e recuos, naturais nesse proces-so, se a direção da marcha é correta, apresentam um saldo positivo, de modo que a proliferação de movimentos reivindicadores, alguns mais outros menos estruturados, dos sindicatos, alguns mais outros menos combativos, e partidos na perspectiva de mudanças de estru-turas, formam, em conjunto, um embrião de organização popular. Esta força já não pode mais ser completamente descartada, espe-cialmente nos momentos das eleições (CNBB, 1996, 21).

Na questão das eleições, o mais significativo avanço é sem dúvida a apresentação do projeto de Iniciativa Popular de Lei, combatendo a corrup-ção eleitoral, proposta em 1998 pela CNBB e mais 60 outras entidades, que conseguiu reunir 1.039.175 (um milhão, trinta e nove mil e cento e setenta e cinco) assinaturas, no Brasil todo, e culminou na aprovação da Lei 9840 de 29 de setembro de 19992. E que mais tarde, veio contribuir para a aprova-ção da recente Lei Complementar 135/2010, a Lei da Ficha Limpa.

Além do processo pedagógico de coleta das assinaturas quando foi possível discutir, em âmbito nacional, os danos causados pela corrupção eleitoral e a necessidade de mecanismos eficientes para seu combate pelos cidadãos, o que por si só é bastante positivo, a Lei 9840 traz dois grandes avanços. O primeiro, diz respeito à compra de votos que passa a ser pu-nido – além da esfera do processo penal – dentro do processo eleitoral, garantindo assim maior agilidade e eficácia porque cria a possibilidade da aplicação imediata da sanção prevista. O segundo trata dos crimes de uso

2 Sobre isso, conheça o Projeto “Combatendo a corrupção eleitoral” e a história da elaboração e aprovação da Lei 9840, de 28 de setembro de 1999 e a Lei Complementar 135/2010 (Ficha Limpa), bem como, as entidades que coordenaram o processo de projeto de lei de iniciativa popular acessando: http://www.mcce.org.br/node/6

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da máquina administrativa em benefício de algum candidato, e cuja san-ção era apenas de multa; após o advento da Lei 9840, passa a ser de multa e cassação do registro do candidato, dentro da esfera do processo eleitoral, portanto imediata.

A compra de votos, prática muito comum na política brasileira, embora moralmente condenável, está incorporada, de forma sutil, no comportamento do brasileiro. Trata-se de um ato do candidato que pro-põe ao eleitor algum bem ou vantagem, em troca de seu voto. Sobre isso é ilustrativo o texto que se segue:

A inventividade para conseguir o voto do eleitor é sem limites, quanto aos bens pessoais oferecidos, especialmente diante de tantas carências populares. Foi o que se constatou em pesquisa realizada em 1997, sobre a compra de votos nas eleições de 1996. Além das promessas de emprego e da compra de votos diretamente com di-nheiro, foi identificada a mais ampla variedade de ofertas. A lista é longa: cestas básicas, alimentos básicos diversos (...), pagamento de fiança de presos, (...), insumos agrícolas, uniformes para clube esportivos (...), casas, lotes de terreno, remédios, exames de labora-tório, pagamento de consultas médicas e de atendimento hospitalar, de esterilizações e abortos, (...) caixões de defunto e transporte para enterros, remoções gratuitas em ambulância, som para festas, fi-nanciamento de festas(...), etc., etc.,etc., de uma lista infindável que expõe todas as dificuldades vividas pelo povo brasileiro. (COMIS-SÃO BRASILEIRA DE JUSTIÇA E PAZ. 2000, 15).

Embora a lista seja longa, todo brasileiro conhece pelo menos uma dessas situações de compra de votos ou de aliciamento de eleitores. So-bretudo, no passado recente. Mas, passados 15 anos da pesquisa citada, fica a pergunta: mudou muita coisa?

A compra de votos e a manipulação do eleitor passam a ser condenada, porém não está erradicada. Mudam-se os meios, os modos operacionais, mas os princípios éticos e democráticos ainda não foram plenamente atingidos.

Outro aspecto é o que diz respeito ao uso da máquina administrativa em favor de determinado candidato ou grupo político que é uma prática comum e igualmente condenável, porém, mais difícil de ser identificada e, portanto, punida. Mesmo porque a prática aponta para uma ampliação dos serviços públicos e uma busca maior de eficácia, durante os períodos elei-

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torais. Passados estes períodos, tanto a fiscalização como a gestão desses serviços, ficam relaxadas.

É usual também o uso comum da máquina administrativa no favore-cimento de empresas que prestam serviços aos governos, através de direcio-namento de licitações, superfaturamentos e pagamentos antecipados, assegu-rando a formação de caixas de campanha com recursos repassados por essas empresas. Essa prática é muito difícil de ser controlada porque a sociedade civil não dispõe ainda de instrumentos eficazes para coibi-los diretamente.

A superação deste problema exige do cidadão uma maior rigidez na escolha de seus representantes para ocuparem cargos nos poderes executi-vo e legislativo e um controle mais apurado da sociedade nas ações do Es-tado e seus agentes, para que esses se comportem como verdadeiros “ho-mens de Estado”, compenetrados em sua alta vocação ética de trabalhar para o bem comum e não omissos e coniventes com jogadas mesquinhas com os negociantes do poder. O processo político democrático adminis-tra um “negócio” de todo o povo não negócios privados, ou seja, faz-se necessário quebrar os laços que unem a política aos negócios, segundo o viés patrimonialista do Estado brasileiro e romper com o vício da mentira, prática tão habitual, no país.

Outra exigência ética diz respeito à recuperação da lei como ins-trumento de justiça, pois há uma constatação, de ordem prática, de que o legal frequentemente não corresponde com o legítimo. Além da insusten-tável a situação de impunidade em nosso país que leva o cidadão comum a um descrédito em relação ao sistema legal e às instituições encarregadas de zelar pelo seu cumprimento.

Porém, uma questão delicada diz respeito à ética do serviço público. Deve causar indignação a todo cidadão o descaso, a morosidade, a irrespon-sabilidade, o parasitismo, o excesso de corporativismo e o irrisório valor dado à pessoa humana, presentes no serviço público, de maneira geral, no Brasil.

Uma postura ética deve impelir para a formação permanente dos servidores para o espírito público, para o senso de responsabilidade com o serviço ao público/cidadão/pessoa humana.

Os serviços públicos, para serem éticos, devem ser acessíveis, eficientes, com critérios humanos, com sensibilidade social. O pa-rasitismo, o mau atendimento ao usuário, a irritante morosidade, a irresponsabilidade, o descaso... desfiam uma educação para o ‘sen-so de serviço’ ao nosso povo já tão necessitado. (...) É fundamental superar a distância entre ética pública e ética privada, isto é, entre a

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responsabilidade pelo bem comum e a realização pessoal. Não são dois caminhos, não são duas éticas, mas um único projeto pessoal e social (CNBB. 1993).

Quanto às políticas públicas, a exigência ética impele à superação do assistencialismo e do clientelismo; à abertura de canais de participação comunitária, especialmente do segmento usuário, desde a proposição, du-rante a implantação e no processo de avaliação e implementação. Exige-se também uma constante fiscalização da sociedade como um todo e dos Conselhos, em particular, assim como dos próprios técnicos envolvidos, para que os recursos investidos sejam realmente empregados eficazmente na melhoria da qualidade de vida da população usuária, em especial, dos mais pobres. Para que se configurem como elementos de justiça social e não como medidas compensatórias ou clientelistas, e não se prestem uni-camente para fins eleitoreiros ou prática de empreguismo.

Note-se, porém, que esfera pública não é sinônimo de esfera gover-namental. O conceito de público aqui adotado analisa também o destino ou destinatário e não a fonte de recurso para estabelecer seu caráter. Mesmo programas ou projetos desenvolvidas com recursos de organizações e entida-des privadas e desenvolvidos pelo terceiro setor tornam-se públicos e com tal severidade deve ser tratado ou seja, política pública ou projeto social deve ter caráter de universalidade, inclusão e, sobretudo, lisura de gestão.

O desafio é muito grande porque cabe aqui a revisão de paradigmas quanto às políticas públicas e, mais, especificamente, à elaboração e ges-tão de projetos sociais, na atualidade.

Enfim, a sociedade atual vive um momento de crise e de reconstru-ção de valores, de paradigmas e até de identidade, o que vem despertando uma reflexão mais ampla sobre a ética nos mais diversos da vida humana e da sociedade.

Parece ser esse um momento propício para alimentar um processo de resgate e fortalecimento dos valores éticos e de se construir novas re-lações, baseadas em outra lógica. Neste sentido, é importante reforçar o primado ético do qual decorrem os outros valores: o respeito à pessoa hu-mana, que é um valor em si e por si, é a autora, centro e o fim de toda vida social, política e econômica da sociedade. Decorrente disso, a emergência da vida humana como valor fundamental, o que significa naturalmente, a satisfação das necessidades básicas, como: alimentação, saúde, moradia, trabalho, transporte, educação, e liberdade de participar ativamente da

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vida de sua comunidade, uma vez que a pessoa humana é um ser social, um ser relacional.

Este processo de reconstrução e de resgate dos valores éticos pode ser desencadeado em duas dimensões:

• A primeira diz respeito à perspectiva pessoal e passa, neces-sariamente, pelo desenvolvimento de uma sensibilidade para o humano, embora o agir político esteja voltado para o bem comum, para a “polis”; não se pode relegar a subjetividade e a necessidade de reformular a ética pessoal para a expressão de seu caráter social.

• Segundo, pensar numa perspectiva pedagógica, ou seja, par-ticipar e colaborar com avanços na formação da consciência crítica das pessoas.

Neste campo, o Serviço Social tem um papel fundamental como agente fomentador e gerador do conhecimento e da conscientização na defesa e dos direitos sociais, assim como outras categorias. Os profissio-nais que atuam nas políticas públicas devem procurar um novo fazer, que estimule as comunidades a criar instrumentos de participação, auto-gestão e fiscalização do Estado.

Nesse campo, para o Serviço Social a ética profissional consiste es-sencialmente em problematizar efetivamente as atividades usuais propon-do práticas alternativas fundamentais, sempre que as atuais se mostrarem inadequadas aos objetivos de nossa profissão. Nesse sentido, é possível afirmar que a ética profissional do assistente social entende a cidadania como uma qualidade essencial da convivência humana, portanto, sua in-tervenção só poderá ser ética se colocar-se na dire-ção da construção da cidadania.

Dentro dessa nova perspectiva da ética problematizadora das práticas usuais, que se si-tuam as discussões sobre as raízes econômicas, políticas e culturais da maioria das atividades profissionais na área do Serviço Social. Nossa atuação profissional deve estar atenta à impunida-de e ao encobrimento da corrupção, ao descaso com a injustiça social, ao desrespeito aos direitos humanos, à marginalização de crianças, adolescentes e idosos e especialmente, à precariedade dos serviços públicos. Mas é preciso entender que o fundamental não são os discursos, mas as atitudes e ações concretas baseadas em valores éticos fundamentais.

Conexão:

A fim de uma maior re-flexão sobre ética e política,

acesse:http://dx.doi.org/10.1590/

S0102-64451992000100006

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