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 05/05/13 FIFA.com pt.fifa.com/classicfootball/matches/w or ld- cup/match=1343/index.html 1/3 Em sua última crônica da revista Manchete Es po rtiva  a ntes da estreia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo da FIFA de 1958, o jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues apresentou uma teoria. Mais do que isso, um conceito. O de que, desde a dolorosa e inesperada derrota para o Uruguai no Maracanazo de 1950, o Brasil se tornara uma nação tomada pelo "complexo de vira-latas" – uma tendê ncia a se colocar em inf eriori dad e em relação ao res to do mundo. "Qualquer jogador brasil eir o, quando se desamarra de suas ini biç ões e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excess o", e xpli cava o cr onista. "O problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnic a, nem de tátic a. Absolutamente . É um problema de fé em si mesmo. O brasil eiro preci sa se convencer de que não é um v ir a-latas e de que tem futebol para da r e vender, lá na Suécia. (…) Para o es cr ete, ser ou não se r vi ra-latas , eis a que stão.” Como acontecia com frequência, Nelson Rodrigues acertou em cheio. Um mês depois, quando o Brasilderrotou os anfitriões suecos por 5 a 2 na final, era como se todos soubessem que o que acabara de ser decidido não era só o titulo d aque le Mundial, m as o des tino de um país. O complexo de vi ra-latas, oficialmente, acabou. E a Seleção, para não dizer a nação, nunca mais foi a mesma. O FIFA.com relembra agora aquela tarde de verão sueco em que um país começou a ser o país do futebol e um m enino de 17 anos, o seu Rei. O contexto O ano de 1958 não se tratava apena s de fut ebol par a o Brasil. Não foi só por causa do primeiro titul o mundial que aqueles 365 dias se tornaram um título de livro como "1958: O ano que não devia terminar", de Joaquim Ferrei ra dos Santos. O ges to de Bellini levantando a taça Jules Ri met era só mais um elemento para comprovar que aquele era, para todos os efeitos, o país do futuro. O presidente Juscelino Kubitscheck incensava um crescimento que parecia magia, com os projetos de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa para a nova capital, Brasília, que seria inaugurada dois anos depois, ou os primeiros carros produzidos 100% em território nacional. Enquanto isso, João Gilberto gravava a batida de violão revoluci onária p ara acompanhar Chega de Saudade, LP de Elizete Cardoso que fundava form almente a bossa nova – a música brasil eira que faria sucesso mundo afora. Mas nada daquilo faria sentido se, no processo, um trauma não tivesse sido devidamente soterrado. Não só com um primeiro títul o mundial de futebol, mas por esse ter vindo da maneira como veio: com

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final de 58

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  • 05/05/13 FIFA.com

    pt.fifa.com/classicfootball/matches/world-cup/match=1343/index.html 1/3

    Em sua ltima crnica da revista Manchete Esportiva antes da estreia da Seleo Brasileira na Copa do

    Mundo da FIFA de 1958, o jornalista, e scritor e dramaturgo Nelson Rodrigues apresentou uma teoria.

    Mais do que isso, um conceito. O de que, desde a dolorosa e inesperada derrota para o Uruguai

    noMaracanazo de 1950, o Brasil se tornara uma nao tomada pelo "complexo de vira-latas" uma

    tendncia a se colocar em inferioridade em relao ao resto do mundo.

    "Qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibies e se pe em estado de graa,

    algo de nico em matria de fantasia, de improvisao, de inveno. Em suma: temos dons em

    excesso", explicava o cronista. "O problema do escrete no mais de futebol, nem de tcnica, nem de

    ttica. Absolutamente. um problema de f em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que no

    um vira-latas e de que tem futebol para dar e vender, l na Sucia. () Para o escrete, ser ou no ser

    vira-latas, eis a questo.

    Como acontecia com frequncia, Nelson Rodrigues acertou em cheio. Um ms depois, quando

    o Brasilderrotou os anfitries suecos por 5 a 2 na final, era como se todos soubessem que o que

    acabara de ser decidido no era s o titulo daquele Mundial, mas o destino de um pas. O complexo de

    vira-latas, oficialmente, acabou. E a Seleo, para no dizer a nao, nunca mais foi a mesma.

    O FIFA.com relembra agora aquela tarde de vero sueco em que um pas comeou a ser o pas do

    futebol e um menino de 17 anos, o seu Rei.

    O contexto

    O ano de 1958 no se tratava apenas de futebol para o Brasil. No foi s por causa do primeiro titulo

    mundial que aqueles 365 dias se tornaram um ttulo de livro como "1958: O ano que no devia

    terminar", de Joaquim Ferreira dos Santos. O gesto de Bellini levantando a taa Jules Rimet era s mais

    um elemento para comprovar que aquele era, para todos os efeitos, o pas do futuro.

    O presidente Juscelino Kubitscheck incensava um crescimento que parecia magia, com os projetos de

    Oscar Niemeyer e Lcio Costa para a nova capital, Braslia, que seria inaugurada dois anos depois, ou

    os primeiros carros produzidos 100% em territrio nacional. Enquanto isso, Joo Gilberto gravava a

    batida de violo revolucionria para acompanhar Chega de Saudade, LP de Elizete Cardoso que fundava

    formalmente a bossa nova a msica brasileira que faria sucesso mundo afora.

    Mas nada daquilo faria sentido se, no processo, um trauma no tivesse sido devidamente soterrado.

    No s com um primeiro ttulo mundial de futebol, mas por esse ter vindo da maneira como veio: com

    Getty Images

  • 05/05/13 FIFA.com

    pt.fifa.com/classicfootball/matches/world-cup/match=1343/index.html 2/3

    uma vitria na casa do adversrio como em casa fora a derrota de 1950 -, com uma goleada

    inquestionvel e com o coroamento de dois heris to aclamados internacionalmente quanto

    autenticamente brasileiros. Um ponta-direita baixinho e atarracado, de pernas explicitamente tortas, e

    um adolescente negro, ainda relativamente tmido - a no ser quando a bola estava em seus ps.

    Garrincha e Pel haviam comeado a Copa do Mundo de 1958 no banco de reservas. Assim passaram

    os dois primeiros jogos, at a hora de enfrentar a Unio Sovitica. A partir daquela vitria por 2 a 0, os

    dois se tornaram parte fundamental do time que venceu Pas de Gales por 1 a 0 nas quartas de final

    (golao de Pel) e a Frana por 5 a 2 (com trs de Pel), na semifinal.

    quela altura, os brasileiros j eram sensao por toda a Sucia. Evidentemente que os mais de 50 mil

    torcedores presentes ao estdio Rasunda torceram, sim, para os donos da casa. Mas no foi difcil

    entender a maneira plcida, quase alegre, com que assistiram comemorao dos brasileiros.

    O jogo

    O momento determinante para atestar que aquele era o dia de o Brasil acabar com todos os seus

    complexos aconteceu cedo, aos quatro minutos. Ou, na realidade, aos quatro minutos e alguns

    segundos. Porque, aos quatro, o que aconteceu foi o gol que abriu o placar para a Sucia, do craque

    do Milan Nils Liedholm. E, ento, o que tinha tudo para ser o estopim de uma crise de nervos

    despertada pelo medo de perder mais uma final de Copa, se esvaneceu numa caminhada lenta e

    serena de 50 metros.

    Foi s o chute cruzado de Liedholm entrar no gol de Gilmar que Didi, maestro do meio-campo brasileiro,

    veterano com seus 30 anos, foi at as redes buscar a bola. Colocou-a debaixo do brao, fez um gesto

    para que os brasileiros se acalmassem e levou-a tranquilamente at o meio do campo para que o time

    desse a sada. Era o tipo de gesto que, at ento, se poderia esperar de um lder da equipe uruguaia,

    italiana ou alem, mas jamais de um brasileiro. Ali o complexo de vira-latas comeou a ser exorcizado.

    Tanto foi, que bastaram cinco minutos para chegar o troco. Jogada tpica de Garrincha pela direita, bola

    at a linha de fundo e cruzamento rasteiro para o centroavante Vav, o "peito de ao", marcar o gol,

    na entrada da pequena rea. Aos 32, mais um lance, cuja sequncia, fotograma a fotograma, os jornais

    suecos colocaram lado a lado com a do primeiro gol, de to impressionados com a semelhana das

    duas jogadas. Mais Garrincha pela direita, mais um cruzamento que Vav entra como uma bala para

    mandar para as redes. O Brasil garantia a ida ao intervalo com vantagem no placar.

    Devidamente tranquilizada e confiante, o que era uma vitria comeou a ser o recital mais famoso

    daquela equipe. Comeando pelo gol mais famoso. Afinal, no todo dia que um adolescente recebe

    uma bola dentro da rea numa final de Copa do Mundo, aplica um tremendo chapu no defensor e, sem

    deixar a bola cair no cho, marca um dos gols mais bonitos da histria dos Mundiais. Foi o quePel fez,

    aos dez minutos da segunda etapa. Aos 23, Zagallo dividiu uma bola com a defesa no lado esquerdo

    da rea e tirou qualquer possibilidade de virada: 4 a 1. A Sucia descontou aos 35, mas s

    at Pel marcar seu segundo do dia, no ltimo minuto do tempo regulamentar, para j ento cair num

    choro descontrolado o nico sinal perceptvel de seus apenas 17 anos. A partir dali, falar em "Seleo

    Brasileira" nunca mais significou a mesma coisa.

    O que eles disseram

    Depois do quinto gol eu j no queria mais marcar Pel. Queria aplaudi-lo." Sigge Parling, zagueiro

    da seleo sueca

    "Quando dei a bola para o Didi, fiz que ia para a frente, mas voltei para trs. Por isso que o beque

    ficou meio em dvida e deixou a bola passar. A matei no peito, ele achou que eu ia chutar. Veio com o

    p e eu dei o chapu. Era uma coisa qua los europeus no estavam acostumados. Eles estavam

    acostumados a vir prensar, porque todo mundo chutava direto. A eu nem deixei a bola cair, bati e fiz o

    gol. Para mim foi um dos mais bonitos da minha carreira." Pel, descrevendo o o lance do terceiro

  • 05/05/13 FIFA.com

    pt.fifa.com/classicfootball/matches/world-cup/match=1343/index.html 3/3

    gol

    "Quando a Sucia marcou 1 a 0, o Didi pegou a bola e veio conversando conosco, dizendo que ns

    tnhamos fora para ganhar o jogo. Aquilo deu mais confiana para ele e para ns todos. Ns sabamos

    que podamos vencer o jogo, mas foi uma partida que acho que o brasileiro mesmo no acreditava.

    Havia aquela ideia: ah, brasileiro chega na final e treme, por causa de 1950. O que o Didi fez foi

    fundamental." Djalma Santos, sobre a atitude de Didi aps o primeiro gol sueco

    E depois?

    Desde aquele 29 de junho, tornou-se voz corrente considerar o Brasil a priori como um dos favoritos em

    toda Copa do Mundo da FIFA que disputa. Quatro anos depois, no Chile, a mesma base campe

    na Sucia com apenas duas mudanas no time titular; a dupla de zaga conseguiu algo que s havia

    sido feito pela Itlia de 1934/38 e que nunca mais se repetiria: defendeu o ttulo mundial.

    O tricampeonato de 1970 consagrou definitivamente o futebol brasileiro, que ganhou a posse definitiva

    da taa Jules Rimet, e tambm a genialidade de Pel nico homem do planeta a conquistar trs ttulos

    mundiais como jogador. A histria da Seleo Brasileira, hoje recordista de trofus, com cinco, ganhara

    na Sucia seu primeiro e talvez mais brilhante pargrafo.