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UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

UMA TOPOGRAFIA DE INTERESSES: A PRODUO DO PROGRAMA DE PSGRADUAO EM HISTRIA DA UNB (1979-2006)

ERIC DE SALES

BRASLIA 2010

UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

Uma Topografia de interesses: a produo do programa de ps-graduao em histria da UnB (1979-2006)

ERIC DE SALES

BRASLIA 2010

UNIVERSIDADE DE BRASLIA INSTITUTO DE HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

Uma Topografia de interesses: a produo do programa de ps-graduao em histria da UnB (1979-2006)

Eric de Sales

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria rea de Concentrao: Histria Social, Linha de Pesquisa: Sociedade, Instituies e Poder da Universidade de Braslia para obteno do ttulo de Mestre em Histria.

Orientadora: Prof. Dr. Diva do Couto Gontijo Muniz

BRASLIA 2010

Uma Topografia de interesses: a produo do Programa de Ps-Graduao em Histria da UnB (1979-2006)

28/10/2010

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr. Diva do Couto Gontijo Muniz PPGHIS/UnB

Prof. Dr. Ernesto Cerveira de Sena - UFMT

Prof. Dr. Lea Maria Carrer Yamashita Consultora Externa

Prof. Dr. Vanessa Brasil PPGHIS/UnB (suplente)

RESUMO

Um esforo de exame crtico da produo acadmica do Programa de PsGraduao em Histria da Universidade de Braslia foi o que procuramos realizar na presente dissertao. Sob o ttulo Uma topografia de interesses: a produo do Programa de Ps-Graduao em Histria da UnB (1979-2006), enfocamos a dimenso quantitativa das dissertaes e teses produzidas naquele espao institucional em seus trinta anos de funcionamento. Ao lado disso, tambm procedemos localizao dessa produo nas respectivas reas de concentrao e linhas de pesquisa do PPGHIS/UnB. O propsito em conhecer a histria da histria produzida no programa exigiu-nos ainda uma leitura atenta s relaes de poder, s regras e tcnicas que presidiram a elaborao das dissertaes e teses, em cada um dos 03 (trs) momentos do PPGHIS/UnB: 1976 a 1993; 1994 a 2003 e 2004 a 2006. Na topografia de interesses tericos, metodolgicos, temticos, espaciais e cronolgicos qie compem o desenho do programa, as evidencias de uma cultura historiogrfica singular, marcada pela diversidade e, ao mesmo tempo, tambm pela unidade que igualmente a identifica. Esta se anuncia em alguns padres temticos, como a permanncia da histria poltica, vocao primeira do programa, e o predomnio da histria do Brasil. Palavras-chave: histria historiografia ps-graduao em histria

Universidade de Braslia.

ABSTRACT

An effort of critical examination of academic production of the Post-Graduate Program of the University of Braslia was what we have tried to perfom in this dissertation. Under the title A topography of interests: the scientific production of the quantitative dimension of dissertations and thesis produced at that institucional space in his thirty years of operation. Besides, it was also proceeded the location of these production in their respective concentration area and research lines of PPGHIS/UnB. The purpose in knowing the history of history produced in the program required us yet a careful reading of power relations, rules and techniques that oriented the preparation of thesis and dissertations in each of the 03 (three) moments of PPGHIS/UnB: 1976 to 1993; 1994 to 2003 and from 2004 to 2006. In the topography of theorical, methodological, thematic, spatial and chronological interests that compose the program design, the evidence of unique culture historiography, bathed by the diversity and at the same time also bathed by the unity that identifies it too. This is announced in some thematic patterns, such as the permanence of political history, the primary vocation of the program, and the predominance of Brazils history. Key-words: history historiography Post-Graduate in History University of Braslia.

AGRADECIMENTOS Ao longo de dois anos de trabalho rduo, com altos e baixos pessoais, contei com o apoio de muitas pessoas, que estiveram envolvidas com minha dissertao e que sem as quais no teria concludo essa etapa to importante de minha formao. Desta forma, gostaria de agradecer-lhes, pois foram fundamentais nesse perodo de minha vida. Quero agradecer aos colegas do Programa, que contriburam com momentos riqussimos de discusso e convvio, em especial aos membros do corpo editorial da Revista Em Tempos de Histrias, no perodo de 2008/2010. A professora Ione Oliveira, do Departamento de Histria, que sempre conversou comigo e contribuiu para que enriquecer intelectualmente, com discusses profcuas. Aos professores Anderson Oliva e Albene Mrian Ferreira Menezes, que participaram da defesa do projeto de dissertao, colaborando com suas sugestes, para que pudesse ter novos olhares sob meu projeto de pesquisa. Agradeo a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES pela bolsa que me foi concedida, possibilitando a realizao desta pesquisa. Em especial, h trs agradecimentos importantssimos, sendo o primeiro para minha namorada, Suellen Neto Pires Maciel, que foi um porto seguro, dando foras para a concluso da dissertao e superao de dificuldades pessoais. Sem sua fora no sei como estaria hoje. minha famlia, em especial minha me e sobrinha, que sem o amor delas no sonharia um tero do que sonho e conquisto hoje. Mas, o mais importante de todos os agradecimentos para minha orientadora, professora Diva do Couto Gontijo Muniz, que acreditou em meu trabalho e em mim, vendo todos os meus altos e baixos, dando carinho e sendo enrgica quando necessrio. Uma pessoa que me ensinou, com sua dedicao pelo ofcio de professora/historiadora, como me portar em sala de aula, com meus alunos e orientandos. Estar sob sua orientao foi um privilgio que guardarei por toda a minha vida. A ela devo conselhos, crticas e sugestes para essa dissertao. Sem sua crena em mim, este trabalho no ocorreria. Muito obrigado, professora. E, acima de tudo, agradecer a Deus por conseguir concluir essa etapa da vida acadmica.

SUMRIO Introduo ..............................................................................................7

Captulo 01 Histria, Historiografia e crtica historiogrfica ................................11 Captulo 02 O Programa e sua produo: uma topografia de interesses ...........34

Captulo 03 Na pluralidade, alguns padres temticos e discursivos.................70

Consideraes Finais .........................................................................97

Referncia bibliogrfica ..................................................................... 99

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IntroduoConhecer a histria da histria produzida no espao acadmico do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia (PPGHIS/UnB) foi desafio a ns colocado como alunos da disciplina Historiografia do Brasil, durante o curso de graduao, ao sermos interpelados pela proposta de pesquisar as dissertaes e teses daquele programa. Embora na condio de pesquisador iniciante, at mesmo um pouco inseguro diante dos grossos volumes que me couberam na partilha daquela produo, no h como no reconhecer que a pesquisa possibilitou-nos acessar diferentes temas, objetos, recortes temporais e espaciais, modos de pesquisar e de escrever histria. Tratava-se, certo, de um conhecimento e reconhecimento superficiais, decorrentes de nossas condies de produo quele momento. Foi justamente essa limitao que nos motivou a querer aprofundar a pesquisa sobre a produo do PPGHIS/UnB e que resultou na monografia de final do curso de graduao centrada nessa temtica, defendida em 2007. O trabalho de graduao resultou em mapeamento primeiro da produo, com a identificao do quantitativo de dissertaes e teses, bem como sua localizao em cada uma das reas de concentrao/linhas de pesquisa do PPGHIS/UnB em trs momentos de seu percurso: de1976 a 1993, perodo de sua criao e de sua primeira reestruturao; de 1994 a 2003, perodo de sua segunda reestruturao e de criao do doutorado; de 2004 a 2006, perodo em que completou 30 (trinta) anos de funcionamento, com a transformao das antigas linhas de pesquisa em 04 (quatro) reas de concentrao, reduzidas logo depois em trs. A vontade de melhor conhecer a histria da histria do PPGHIS/UnB respondeu pelo ingresso no mestrado desse programa, com o projeto de pesquisa que dava continuidade aos estudos j realizados. Nessa continuidade, o aprofundamento da pesquisa sobre tal produo, com o propsito de avanar no sentido de uma anlise qualitativa, um esforo de exame crtico da historiografia produzida naquele espao acadmico. Trata-se de vontade de saber, de proposta de pesquisa acerca de uma temtica inscrita nas preocupaes do campo historiogrfico brasileiro

contemporneo. Proceder ao exame crtico de historiografia, atentando para as

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relaes de poder, as regras, os padres temticos que informam a escrita da histria e a cultura historiogrfica de um dado lugar social e em um dado momento constituem um dos desafios colocados aos do ofcio e uma exigncia do campo disciplinar da histria. Afinal, toda escrita da histria encontra-se ancorada em um tempo social e institucional, submetida s regras e convenes da comunidade de historiadores e das instituies cientficas. Toda escrita da histria encontra-se, enfim, atravessada pela historicidade e cabe a ns, historiadores, acess-la, traduzila, seja em termos quantitativos, seja em termos qualitativos, seja em ambos. Entendemos que na produo acadmica h uma cultura historiogrfica com seus padres temticos e discursivos, at porque no se encontra fora da cultura histrica do pas e nem desatrelada da cultura historiogrfica, nacional e internacional. As teses e dissertaes do programa apontam-nos prticas de pesquisa e de escrita da histria arbitradas e reconhecidas pela/na comunidade. Alm disso, obedecem aos procedimentos difundidos institucionalmente para a obteno da titulao de mestre/doutor em histria. Nesse sentido, no h como no reconhecer a universidade, com seus programas de ps-graduao, como principal espao, embora no exclusivo, de produo de conhecimento histrico. Algumas questes iniciais orientam nosso trabalho de pesquisa e de avaliao das fontes priorizadas, ou seja, as referidas teses e dissertaes do programa. Dentre elas: como se d a relao entre histria, historiografia e poder? qual percurso da produo do PPGHIS/UnB? nesse percurso, quais as aproximaes e distanciamentos com o da historiografia brasileira? o que essa produo apresenta de singular e de comum? quais interesses e necessidades nortearam as duas reestruturaes do PPGHIS/UnB? essa produo responde pela configurao de uma cultura historiogrfica? O recorte temporal priorizado 1976/2006 pareceu-nos significativo, pois demarca os trinta anos de funcionamento do programa, criado em 1976. O perodo de trs dcadas aponta-nos para a consolidao de reas de pesquisa, de constituio de alguma tradio, de engendramento do sentimento de pertencimento e de reafirmao simblica do mesmo, do lao que une os do ofcio. Construmos o objeto de estudo, orientados pelo entendimento da historiografia como a escrita da histria e, ao mesmo tempo, tambm como a histria da histria, ou seja, reconhecendo a historicidade do conhecimento histrico produzido. Reconhecer essa dimenso do conhecimento da histria, implcita no

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movimento que liga uma prtica interpretativa a uma prtica social, exigncia colocada ao campo disciplinar e aos do ofcio. Pensar a historiografia, a escrita da histria, a partir da relao paradoxal entre dois termos antinmicos o real e o discurso e responder ao desafio de articul-los, e onde esse lao no possvel, fazer como se os articulasse, apresenta-se como tarefa incontornvel ao historiador, como nos ensina Michel de Certeau. Escrever histria, como assinala esse autor, essa operao que estabelece uma relao com o tempo que no nem primeira nem a nica possvel, implica gerar um passado, circunscrev-lo, organizar o material heterogneo dos fatos para conseguir no presente uma razo 1 Pensar, enfim, a histria em sua dimenso plural e relativa, assim como o passado que narra, irredutvel, portanto, a uma nica forma e contedo, so modos de pensar e de se escrever a histria que nortearam a elaborao da presente dissertao. A pesquisa feita mostrou-nos uma topografia de interesses tericos, metodolgicos, temticos, espaciais e cronolgicos compondo o desenho da produo acadmica do programa. Nela, as evidncias de uma cultura historiogrfica singular, marcada pela diversidade e heterogeneidade de

temas/objetos/perspectivas. Acrescente-se, ainda, a percepo de um percurso que acompanha o da historiografia brasileira, com o predomnio das dimenses poltica, social e cultural, nas dcadas 1970, 1980 e 1990, respectivamente. Alm disso, tambm os traos de unidade que igualmente identificam aquela produo acadmica, expressos nas permanncias da histria poltica, marca de sua vocao primeira, e ainda o predomnio da histria do Brasil em todos os momentos do PPGHIS/UnB. Para o desenvolvimento do tema, estruturamos a dissertao em trs captulos. No primeiro Histria, historiografia e Crtica Historiogrfica discutimos as relaes entre histria, historiografia e poder, mobilizados pela preocupao em evidenciar as estreitas relaes entre saber e poder e assinalar que o saber histrico, como qualquer campo de conhecimento, no um saber neutro, mas localizado, submetido as regras que definem o que pode e o que no pode ser aceito como verdade em cada momento histrico. No segundo captulo O Programa e sua produo: uma topografia de interesses , procedemos a um mapeamento quantitativo da produo, com a1

CERTEAU, Michel de. A Escrita da histria. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 2007. P.32.

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identificao das reas de concentrao/linhas de pesquisa e de seus recortes temporais, espaciais, temticos e objetos considerados em cada um dos trabalhos. Nessa anlise, procuramos traduzir os principais interesses, disputas e

necessidades que informaram a produo das dissertaes e teses nos trs momentos do PPGHIS/UnB, marcados por duas reestruturaes: 1976-1993; 19942003; 2004-2006. No ltimo captulo Na pluralidade, alguns padres temticos e discursivos procedemos a uma anlise mais detalhada de algumas teses/dissertaes de cada um daqueles trs momentos no esforo em identificar alguns de seus principais padres temticos e discursivos. Na leitura feita, o propsito de reconhecimento dos traos configuradores da cultura historiogrfica constituda no espao do programa.

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Captulo 01 Histria, Historiografia e crtica historiogrficaComo proceder ao exame crtico de uma obra histrica, ou de um conjunto de obras, sem pensar a relao histria e historiografia? Como realizar esse exerccio sem buscar as conexes entre teoria, histria e historiografia? Entre saber e poder? Refletir sobre o fazer histrico, remete-nos s reflexes de Michel de Certeau para que em histria como em qualquer outra coisa, uma prtica sem teoria desemboca necessariamente, mais dia menos dia, no dogmatismo de valores eternos ou na apologia de um intemporal2. Compartilhando dessa idia, entendemos que a teoria indispensvel operao historiogrfica, ela funciona como a lente que usamos para realizar a anlise, o fio com que tecemos a trama, a diretriz que seguimos para construir o objeto. Com efeito, ao pesquisar sobre o passado no o resgatamos, mas dele fazemos uma leitura a partir das verses que nos chegam, das vises produzidas sobre ele, sendo que tais leituras variam conforme a lente terica utilizada pelo historiador. Essa lente indica o lugar social e histrico em que o autor e texto se localizam. Naquelas condies esto tambm as regras, os modelos e relaes de poder que direcionam e assujeitam o historiador em seu ofcio. Se, para Certeau, a histria uma operao, um discurso produzido sobre um determinado acontecimento passado, e no esse passado, todavia nem todos da comunidade tm, porm, essa mesma concepo. Alguns historiadores dos Annales, por exemplo, at h bem pouco tempo entendiam que era possvel escrever uma histria total das experincias humanas passadas. Ora, no apenas o passado irrecupervel, pois j passou, mas tambm sua totalidade jamais poder ser alcanada visto que, em si, ela ilimitada, o que inviabiliza de antemo a pretenso do historiador de recuper-lo e muito menos totalmente. O historiador constri uma narrativa sobre uma parcela do passado que seleciona, organiza e significa, a partir da anlise dos vestgios desse, das leituras deixadas por outros, sobre a experincia passada. O passado ento re-criado, re-significado segundo

2

Idem, Ibidem. P. 66.

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sua viso, segundo os cdigos culturais que informam sua localizao no mundo. 3 A narrativa que o historiador constri a partir de sua pesquisa e de sua anlise assujeita-se s regras da comunidade e das instituies que autorizam e legitimam o fazer historiogrfico. Escrever histria compreende, na perspectiva dada por Certeau, uma operao cientfica que envolve um lugar social, uma prtica e um produto. Trata-se de operao que inclui atribuio de sentidos e esta significao depende de um sistema de referncia que, conforme Certeau,permanece uma filosofia implcita particular; que infiltrando-se no trabalho de anlise, organizando-o sua revelia, remete subjetividade do autor [...] Os fatos histricos j so constitudos pela introduo de um sentido na objetividade. Eles enunciam, na linguagem da anlise, escolhas que lhes so anteriores, que no resulta, pois, da observao [...] sobre o fundo de uma totalidade histrica, se destaca uma multiplicidade de filosofias individuais, as dos pensadores que se vestem de historiadores.4

Jurandir Malerba5, embora compartilhe da acepo de histria como narrativa, defende, porm, que a histria se diferencia de outras formas do gnero de narrao por possuir um mtodo prprio para sua escrita. Para ele, no permitido ao historiador devanear sobre um determinado assunto, visto que deve seguir regras e procedimentos para a formulao e apresentao dos resultados de sua pesquisa. Alm de tal caracterstica, deve-se ter em considerao prpria historicidade que preside o conhecimento histrico, tributria das contribuies que o antecedem, direta ou indiretamente. J, segundo Chartier, a histria diferencia-se de outros gneros da narrao, pois, a prtica historiogrfica se desloca para outras estruturas narrativas at ento desconsideradas pela histria, em especial aquelas vinculadas literatura. Ainda, no entender do historiador, a busca por um conhecimento inerente histria, fundindo operaes particulares da disciplina, como a anlise de dados, formulao de3

REIS, Jos Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. P.09-10.4 5

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. P. 66.

MALERBA, Jurandir (org.). A Histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006. P. 18.

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hipteses, a critica e verificao de resultados, a articulao entre o discurso do historiador e seu objeto de pesquisa. Assim, como ressalta o historiador,mesmo que escreva de uma forma literria, o historiador no faz literatura, e isso pelo fato de sua dupla dependncia. Dependncia em relao ao arquivo, portanto em relao ao passado do qual ele vestgio [...] Dependncia [...] em relao aos critrios de cientificidade e s operaes tcnicas que so as do seu oficio. Reconhecer suas variaes (a histria de Braudel no a de Michelet) nem por isso implica concluir que esses constrangimentos e critrios no existem, e que as nicas exigncias que refreiam a escrita da histria so as que governam a escrita da fico.6

Alguns historiadores entendem que a histria no tem objeto especifico nem mtodo prprio, j que trata das aes humanas, comuns s reas das Ciencias Humanas e Sociais e utiliza conceitos e procedimentos de outros campos do conhecimento, como a Literatura, a Sociologia, a Antropologia, dentre outros. Nesse sentido, como bem atenta ngela Maria de Castro Gomes, a histria no nem muito fiel nem muito frtil, mas pode ser extremamente instigante do ponto de vista terico e metodolgico, justamente porque, assim procedendo, promove uma srie de encontros.7 Para a historiadora, embora objetos e mtodos no sejam especficos da histria, esta disciplina distingue-se das demais pelos encontros disciplinares que promove sob o signo da temporalidade. Para a historiadora,o trabalho por excelncia do historiador o do narrador. E um trabalho extremamente consciente do poder da narrativa como estratgia de interpretao entre teoria e empiria. Eu realmente penso que o trabalho do bom historiador caminha por a.8

6

CHARTIER, Roger. A histria hoje: dvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 1994. P. 110-111.7

GOMES, ngela Maria de Castro. A Reflexo terico metodolgica dos historiadores brasileiros: contribuio para pensar a nossa histria. In: GUAZELLI, Csar Augusto Barcellos e outros (orgs). Questes de teoria e metodologia da histria. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000. P. 20.8

Idem, Ibidem. P. 22.

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O mtodo, segundo Certeau, muito mais que indicao de caminho, tem a funo de iniciao de um grupo, ou seja, para que se possa escrever sobre histria e ser reconhecida pelos pares, deve-se seguir regras, escolher tcnicas e estratgias discursivas. Os mtodos tm uma funo social de proteger, diferenciar e manifestar o poder de um corpo de mestres e de letrados. 9 Desta forma, fazer o exame crtico da produo do PPGHIS buscar localiz-la no campo historiogrfico e reconhec-la a partir de uma combinao de lugar social, de prticas cientificas e de uma escrita.10 Entretanto, para muitos historiadores, o que vai diferenciar o trabalho do historiador de um mero narrador a questo do mtodo. Sua exigncia para a Histria se afirmou no sculo XIX, com o estabelecimento dessa como disciplina, com estatuto de cincia. Segundo Carla B. Pinsky, no sculo XIX foram estabelecidos parmetros metodolgicos cientificistas rgidos orientadores da crtica interna e externa das fontes escritas, arqueolgicas e artsticas, priorizando investigaes sobre a importncia da autenticidade documental.11 Sob tal lgica cientifica, estabeleceu-se que o nico testemunho credenciado para comprovar a experincia passada seriam os documentos escritos e oficiais. A escrita da histria estava presa a uma viso de que seria possvel recuperar o passado, tal como ele ocorrera, atravs das fontes escritas e oficiais, a prova confivel do que ocorrera. Afinal, entendia-se que as fontes falavam por si prprias e que seriam a traduo exata do ocorrido, por se considerar a linguagem como transparente, e no atravessada por camadas de textos e de sentidos. Tributaria do pensamento rankeano, tal perspectiva tem uma longa permanncia na forma de se pensar e de se escrever a histria, com ressonncia at os dias atuais. Resulta, desse entendimento, a tradio metdica de valorizao do documento escrito como prova verdica e nica dos acontecimentos, do entendimento do emprico como sinnimo de realidade. Trata-se de importncia construda, conferida pelos historiadores que pensavam a histria a partir da perspectiva positivista de se escrever histria, de se produzir conhecimento. No livro A Pesquisa em histria, Yara Maria Aun Khoury e outras autoras ressaltam essa

9

CERTEAU, Michel de. Op. Cit. P. 73. Idem. Ibidem. P. 66. PINSKY, Carla Bassanezi (org.) Fontes histricas. So Paulo: Contexto, 2005. P. 11.

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marca positiva, a da valorizao do documento conferida pelos historiadores, integrantes da chamada escola metdica. Segundo aquelas:A valorizao do documento como garantia da objetividade, to presente entre os positivistas, exclui a noo de intencionalidade contida na ao estudada e na ao do historiador [...] Apreender o real seria conhecer os fatos relevantes que se impem por si mesmos ao conhecimento do historiador. Em decorrncia, s consideravam relevantes para a histria aquilo que estava

documentado e da a importncia dos fatos da poltica institucional: atos do governo, atuao de grandes personalidades, questes de poltica internacional, etc.12

Entendemos que por mais neutro e imparcial que o historiador pretendesse e julgasse ser, tal objetividade jamais poderia ser alcanada, considerando-se a impossibilidade de uma total renncia da subjetividade, dimenso constitutiva de todo sujeito, pois informa sua viso de mundo e se desdobra em sua forma de pensar e organizar o passado e de escrever a histria. Subjetividade, essa, que historicamente engendrada, pois desde seu nascimento o historiador j chega ao mundo cercado por signos e termos que conformam seu modo de pensar e agir. Tais significaes expressam-se na escolha de seus amigos, de seu curso de graduao, do tema de sua monografia, de suas preferncias historiogrficas. Com efeito, o historiador sempre vai falar de seu lugar social e de seu mirante temporal, ou seja, vai carregar consigo valores, conceitos e preconceitos produzidos e transmitidos culturalmente, seja nas relaes pessoais, seja nas impessoais. A escrita da histria desde a escolha do tema concluso da dissertao ou tese est atravessada pela subjetividade, que aspecto de sua historicidade, das condies de produo do autor, de seu tempo e lugar social e institucional. Nas redes da escola metdica, o historiador acabou enredado exigncia de verificar a autenticidade de suas fontes, o que acabou por aprision-lo aos documentos oficiais, ignorando outras formas de vestgios, e de possibilidades de dilogo com o passado, que ns acessamos tambm por meios de registros outros, como fontes iconogrficas, moedas, msica, oralidade, cartografia e literatura.12

KHOURY, Yara Maria Aun, Et al, A Pesquisa em histria. So Paulo: tica, 2003. P. 13-14.

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Somente com o movimento de reviso da Histria, de abertura para novas abordagens, objetos, problemas e ampliao do conceito de fontes, efetivado principalmente, mas no exclusivamente, pelos historiadores dos Annales, que o estatuto de onipotncia do documento foi abalado. Com a Escola dos Annales os historiadores exercitam a abordagem interdisciplinar, ampliando o dilogo com outras disciplinas tais como Antropologia, Psicologia e Economia , alm de ampliar seu conceito de fontes e de introduzir novos temas, abordagens e problematizaes. Para os seguidores dos Annales, o documento j no falava por si mesmo13, como acreditavam os positivistas, mas necessitava de perguntas definidas como adequadas, do levantamento de questes a partir do presente. A intencionalidade passa a ser alvo de preocupao por parte do historiador, em um duplo sentido: a inteno do agente histrico presente no documento e a inteno do pesquisador ao se acercar desse documento.14 Os trabalhos que utilizam fontes sobre economia, trabalho, sociedade se multiplicam. A Histria vista como movimento profundo do tempo, como processo atravessado por mltiplas temporalidades e diferentes duraes temporais concomitantes: estrutura, conjuntura e acontecimento. Embora tais contribuies para a produo do conhecimento histrico sejam inegveis, a historiografia produzida pelos Annales ficou durante muito tempo atrelada idia de uma histria total, pretenso de abarcar a totalidade das experincias humanas do passado, que, de antemo, opunha-se idia de uma histria-problema, defendida pelo projeto dos Annales. O re-direcionamento para uma histria plural, voltada para tudo e no para o todo, ocorreu com os novistoristas, a terceira gerao15 dos Annales, acusada por Dosse de ter trado os fundadores e sua proposta totalizadora. Este historiador, ao fazer a crtica da

13 14 15

Idem. Ibidem. P. 15. Idem. Ibidem. P. 15.

O conceito de gerao utilizado nesta dissertao foi retirado da sociologia, mais especificamnte do socilogo Karl Mannheim, que define gerao como o grupo de pessoas nascidas na mesma poca, que viveu os mesmos acontecimentos sociais durante a sua formao e crescimento e que partilha a mesma experincia histrica, senda esta significativa para todo o grupo, originando uma conscincia comum, que permanece ao longo do respectivo curso de vida. A ao de cada gerao, em interao com as imediatamente precedentes, origina tenses potenciadoras de mudana social. Neste sentido, cada gerao de historiadores, e para exemplificar podemos citar a primeira gerao dos Annales, ou o grupo de Le Goff, Marc Ferro, entre outros, viveu momentos especficos, partilhando experincias e fazendo leituras do mundo.

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pluralizao ocorrida na histria, lamenta o fato de ela ter sido estilhaada pela proposta de se pens-la mltipla relativa e diferentemente.16 Contemporaneamente, novos conceitos, perspectivas, abordagens e

problemas vo sendo incorporados ao trabalho do historiador. Como bem ressalta Carla B. Pinsky, as mudanas ocorridas aps a 2 Guerra, dentre elas, a maior complexidade do social, o processo de globalizao e fragmentao, as demandas dos novos movimentos sociais, dos movimentos ecolgicos, feministas e tnicos, a derrocada do socialismo, exigiram do historiador um instrumental terico e metodolgico mais afinado e apropriado para apreender esse mundo mltiplo e plural, em rpido processo de mudana e de crescente complexidade e diferenciao. Segundo a autora,

Como em cultura nada permanece imutvel, mediante novas realidade nos finais dos anos 60 do sculo XX constestao da legitimidade do poder em todas as suas formas, revolta estudantil na Frana, ditaduras patrocinadas pelos Estados unidos na Amrica Latina, represses nas repblicas socialistas do Leste europeu, crticas ao stalinismo e a todas as violaes de direita e de esquerda aos direitos humanos, recrudescimento de movimentos neoanarquistas, reivindicaes do movimento feminista e muitos outros , os historiadores so chamados a voltar-se para as questes candentes do tempo presente.17

A partir dos anos 1960, a emergncia de novos movimentos sociais, formados por grupos de negros, mulheres, indgenas, idosos, ecologistas, ex-combatentes, minorias tnicas e raciais, com suas pautas e demandas pela igualdade de direitos civis e polticos, adquiriu tambm visibilidade no espao pblico que no mais podia continuar ignorada pela histria. Nesse campo, verifica-se um redirecionamento quanto a abordagens, objetos, temas, problemas e perspectivas de modo a incorporar sujeitos/objetos at ento excludos do discurso historiogrfico. Mulheres, operrias, quilombolas, minorias tnicas, cotidiano, privacidade, sensibilidade,16

MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Sobre gnero, sexualidade e o segredo de Brokeback Mountain: uma histria de aprisionamento. In STEVENS, Cristina M. T.; NAVARRO-SWAIN, Tania (orgs). A construo dos corpos: perspectivas feministas. Florianpolis: Editora Mulheres, 2008. P. 123.17

PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Op. Cit. P. 14

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mentalidade, sociabilidade, imaginrio, corpo, sexualidade, gnero, escolaridade, religiosidade, oralidade, identidade, poderes e saberes ganham visibilidade e centralidade historiogrficas, abrigadas em diferentes domnios da histria. Essa pluralizao foi objeto de adoo e tambm de crticas e lamentaes, como fez Dosse. Na rea da histria social, sobretudo a vertente de tradio marxista, ocorre igualmente uma reviso, onde visvel a preocupao no apenas com a sociedade, mas tambm com a cultura. Permanece a preocupao com os conflitos sociais, mas alarga-se o espectro, enfocando-os como experincias que no se reduzem aos choques de interesses de classes, mas incluem tambm o conflito de valores. Classe vista em sua historicidade, a partir da viso de processos e no das estruturas, enfoque at ento predominante, sob a lgica marxista ou dos estruturalistas dos Annales. Essa releitura do social, atenta experincia constitutiva dos sujeitos histricos, sejam eles classes sociais ou individuais, e dimenso simblica da cultura, entendida como sistema de significados, incorporada nas anlises de vrios historiadores sociais, seguindo, assim, a trilha iniciada por E. P. Thompson e Christopher Hill, dentre outros. Ocorre, portanto, a valorizao da experincia humana, da experincia vivida e percebida pelos atores sociais e traduzida, pelos historiadores, na sua condio como cultura valores, tradies, idias, instituies, arte, religio etc.18 Jos Carlos Barreiro19 foi um dos primeiros historiadores brasileiros a insistir na importncia do exame crtico da historiografia e na necessidade de reviso de obras consideradas clssicas. Pensando luz das reflexes de E. P. Thompson sobre a importncia da experincia e cultura na constituio da classe operria inglesa, Barreiro prope uma releitura de obras j sacralizadas, como as de Emilia Viotti e Caio Prado Jnior. Na opinio desse autor, no possvel repensar a Histria do Brasil sem discutir os trabalhos dos clssicos, sob pena de se ver alimentado o paradoxo de se fazer uma histria sem memria. Neste sentido, parece-nos que igualmente no possvel conhecer a histria da historiografia brasileira sem um exame crtico das produes acadmicas dos programas de ps18 19

THOMPSON, E. P. Apud KHOURY, Yara Maria Aun, et al. Op. Cit. P. 18

BARREIRO, Jos Carlos. E. P. Thompson e a historiografia brasileira: revises crticas e projees. In Revista Projeto Histria, n. 12, So Paulo: Editora Unesp, 1995.

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graduao das universidades brasileiras, instituies que ocupam o lugar hegemnico, embora no exclusivo, de produo da histria e do conhecimento histrico no pas. Com a pluralizao ocorrida no campo, observada a partir dos anos 1980, abrem-se as portas para mltiplas possibilidades de uso de fontes, de levantamento de problemas, de escolhas de temas, de definies de mtodos, de adoo de perspectivas, de construo de objetos. O cotidiano passa a ser uma das dimenses do social contempladas pelos historiadores, pois ali justamente o espao privilegiado para a vivncia das experincias sociais. Para enfrentar tal desafio, torna-se mister que o historiador saiba interpretar diversas outras linguagens artstica, musical, potica, lingstica, etc. , materializaes de diferentes criaes e leituras do mundo. O historiador, ao analisar uma fonte, independente da perspectiva adotada, vai produzir uma leitura possvel e no a leitura. Trata-se de leitura marcada pelo lugar social do historiador, informado no s pelas condies socioeconmicas e polticas, mas tambm pelo sistema de valores, idias, imagens, regras, significaes que presidem sua viso de mundo. Assim, a produo do conhecimento histrico, que se d atravs da pesquisa e escrita da histria, essa operao cognitiva que torna dizvel e visvel a profunda experincia temporal 20, encontra-se ancorada em um tempo social e cultural, traz as marcas de um dado autor e de um dado tempo social e histrico em que a histria escrita, ou seja, encontra-se atravessada por um regime de historicidade. Nessa perspectiva, percebemos historiografia, tal como a concebe Koselleck, como a escrita da histria e, ao mesmo tempo, como uma histria da histria. Tratase, porm, de concepo percebida de forma diferente por diversos autores. Assim, para Frank Ankersmit historiografia vista

como um dique coberto por uma camada de gelo no final do inverno, o passado foi coberto por uma fina crosta de interpretaes narrativas; e o debate histrico muito mais um debate sobre os

20

KOSELLECK, Reinhart. Uma Histria dos conceitos: problemas tericos e prticos. In Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 135.

20

componentes da crosta do que propriamente sobre o passado encoberto sob ela.21

Igualmente prxima concepo de Koselleck a do historiador Charles Olivier Carbonell. Este define a historiografia como a histria do discurso: um discurso que, ao ser escrito, se afirma verdadeiro; um discurso que os homens sustentariam sobre seu passado. Portanto, um produto da cultura e, como tal, atravessado de historicidade. Nas palavras de Carbonell:O que historiografia? Nada mais que a histria do discurso um discurso escrito e que se afirma verdadeiro que os homens tm sustendado sobre seu passado. que a historiografia o melhor testemunho que podemos ter sobre as culturas desaparecidas, inclusive sobre a nossa supondo que ela ainda existe e que a semiamnsia de que parece ferida no reveladora da morte. Nunca uma sociedade se revela to bem como quando projeta para trs de si a sua prpria imagem.22

Em outra direo reflete Jurandir Malerba. Para ele, a historiografia seria, a retificao das verses do passado histrico, operada a cada gerao 23; ou seja, a busca que cada gerao empreende no entendimento de como foi interpretado o passado e na identificao das razes de determinadas perguntas ou enfoques terem tido mais peso do que outros em dada sociedade e poca. O autor compartilha a perspectiva de Rsen, a de que a historiografia seria parte integrante da pesquisa histrica, cujos resultados se enunciam, pois, na forma de um saber redigido.24 A produo historiogrfica, segundo Malerba, torna-se, ao mesmo tempo, objeto e fonte histrica, uma fonte que faz referncia s prticas culturais do perodo em que se insere. Durval Muniz Albuquerque Junior define historiografia como o trabalho de produo do passado, de atribuio de sentido aos eventos, como um discurso que21 22 23 24

ANKERSMIT, Frank Apud MALERBA, Jurandir. Op. Cit. 2006. P. 19. CARBONELL, Charles Olivier Apud MALERBA, Jurandir. Op. Cit. 2006. P. 21. MALERBA, Jurandir. Ibidem. P. 17.

RSEN, Jrn, Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: EdUnB, 2001. P. 46.

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produz um passado, ao produzir verses, interpretaes, sentidos para os eventos, os acontecimentos do passado. Segundo esse autor,

a historiografia produto de um trabalho, de um trabalho de atribuio de sentido aos eventos, aos acontecimentos do passado. Concordo que o historiador exerce um trabalho de produo do passado, que este o fabrica como um artefato. Concordo que este exerce uma tarefa de produo de verses para aquilo que se passou, que produz sentido para os tempos, que d a eles existncia e consistncia. Mas considero que o trabalho que realizamos no tem carter maqunico, o carter fabril. O carter plenamente moderno, que as imagens e metforas usadas tanto por Certeau quanto por Marx parecem indicar. O trabalho do historiador me parece ter mais analogias com o trabalho artesanal do que com o trabalho na grande indstria.25

Para Durval Muniz de Albuquerque Junior, independente do momento, do mtodo e perspectiva em que foi escrita, a narrativa historiogrfica no perdeu seu carter artesanal, com sua dimenso artstica e potica, por mais que diversas escolas tentassem ou quisessem neg-los e/ou apag-los. E seria esse justamente um dos pontos positivos para o historiador, pois o que diferencia seu trabalho de outras reas das cincias humanas, assim como o carter auto-reflexivo do conhecimento. Tal dimenso se reafirma com o exame crtico da historiografia, no esforo em perceber que modelos, regras e relaes de poder presidem a operao historiogrfica. Da ser exigncia aos do ofcio e colocada ao prprio campo da histria, de se proceder analise crtica da historiografia. Analisar o que foi produzido e como foi produzido, ou seja, em que lugar social e temporal encontra-se inserida qualquer obra cria a exigncia de instrumentalizao terica apropriada para a crtica historiogrfica, bem como para a prpria atividade de escrever histria e de produzir conhecimento histrico. Analisar de que forma e em que mirante temporal o historiador se apropria de elementos,

25

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. O tecelo dos tempos: o historiador como arteso das temporalidades. In Revista Eletrnica Boletim do Tempo, Rio de Janeiro, ano 04, n. 19, 2009. P. 02-03.

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perspectivas, fontes e mtodos para proceder a uma leitura das verses que nos chegam do e sobre o passado exigncia incontornvel a todo o historiador. Refletir sobre as relaes entre histria e historiografia demanda-nos repensar as concepes da histria, da disciplina histria na contemporaneidade. Assim, por exemplo, para Keith Jenkins26 a histria no sinnimo de passado, uma categoria distinta dele, um discurso sobre o passado. Tal distino se evidencia quando se atenta para o fato de que o passado j aconteceu e no pode mais ser ressuscitado, resgatado, nem sequer recuperado tal como aconteceu, como pretendeu o projeto positivista. Recupera-se no o passado, mas vises dele e sobre ele, sendo que tais vises dependem do lugar social, do tempo histrico e da lente que o historiador usou. Recupera-se a dimenso que o historiador, de seu mirante temporal e de seu lugar social e institucional, prioriza sua leitura do social poltica, econmica, social ou cultural , bem como a significao por ele conferida experincia passada, embora todas elas sejam constitutivas das leituras produzidas sobre o passado e no passado e no o passado mesmo. Trata-se de forma de conceber a histria, de escrever a histria, semelhante que concebe Paul Veyne, segundo a qual a histria o que , no por causa de algum jeito de ser especial ao homem, mas porque um certo modo de conhecimento.27 Para o historiador, toda escrita da histria subjetiva, poisa escolha de um assunto de histria livre, e todos os assuntos ao iguais em direito; no existe Histria e nem sentido da histria, o curso dos acontecimentos (...) no caminha nua rota traada. O historiador escolhe, livremente, o itinerrio para descrever o campo factual, e todos os escolhidos so vlidos (mesmo que no sejam interessantes).28

Nessa mesma direo reflete Chartier, ao defender que a histria, por estar inscrita no gnero narrativo, no tem sentido estvel, universal, congelado, como foi considerado por muito tempo e como ainda pensada por alguns. Ao contrrio, ela est investida de significaes plurais e mveis, construdas na negociao26 27

JENKINS, Keith. A Histria repensada. So Paulo: Contexto, 2005.

VEYNE, Paul. Como se escreve a histria e Foucault revoluciona a histria. Braslia: EdUnB, 2008.28

Idem.Ibidem. P. 44-45.

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entre uma proposio e uma recepo, no encontro entre as formas e motivos que lhes do estrutura e as competncias ou expectativas dos pblicos que delas se apoderam29; ou seja, a histria negociao resultante de uma proposio construda pelo autor, a partir dos suportes prprios da disciplina, das tcnicas e regras arbitradas pelos pares, e da recepo dos leitores, que faro uma leitura e daro sentido e significado a obra conforme seu repertrio cultural. Tal como reflete Michel de Certeau que, ao pensar sobre a escrita da histria define-a como uma operao. Para esse autor,o gesto que liga as idias aos lugares , precisamente, um gesto de historiador. Compreender, para ele, analisar em termos de produes localizveis o material que cada mtodo instaurou inicialmente segundo seus mtodos de pertinncia. (...) Encarar a histria como uma operao ser tentar, de maneira

necessariamente limitada, compreende-la como a relao entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profisso, etc.),

procedimentos de anlise (uma disciplina) e a construo de um texto (uma literatura). admitir que ela faz parte da realidade da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada enquanto atividade humana, enquanto prtica. Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operao histrica se refere combinao de um lugar social, de prticas cientificas e de uma escrita. (...) A escrita histrica se constri em funo de uma instituio cuja organizao parece inverter: com efeito, obedece a regras prprias que exigem ser examinadas por elas mesmas.30

Compartilhando desse modo de conceber a histria, consideramos a produo do PPGHIS como um conjunto de narrativas, de relatos sobre o passado, produzidos pelos mestrandos e doutorandos do Programa, no perodo de 1976 a 2006. Nesse sentido, a preocupao no foi a de estabelecer qual narrativa histrica qualificou-se como mais importante no sentido de mais verdadeira, mais prxima do que ocorreu no passado, mas de perceb-la em sua historicidade, em suas29

CHARTIER, Roger. A histria hoje: dvidas, desafios e propostas. In Revista Estudos Histricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 1994. P. 108.30

CERTEAU, Michel. Op. Cit. P. 66.

24

condies de produo. Considerando a produo, portanto, como trabalhos resultantes de prticas de pesquisa e de escrita de histria realizadas em um programa de mestrado e doutorado, com tempo de durao previsto, abrigados em reas de estudos e arbitrados segundo os critrios institucionais e regras da comunidade de historiadores. Um produto resultante de uma prtica de pesquisa e de escrita de histria em um espao institucional, vincado pelo tempo e lugar social de sua produo, sujeito a regras e constrangimentos e tambm aberto a possibilidades. Cada obra, cada interpretao, uma leitura dentre as vrias possveis, uma trama na intrincada teia das vrias possibilidades existentes, uma manifestao da escolha e das perspectivas do historiador como narrador. Como assinala Jenkins:

o mundo ou o passado sempre nos chegam como narrativas e que no podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem a realidade (...) Socilogos e historiadores diferentes interpretam de maneira distinta o mesmo fenmeno, por meio de outros discursos que esto sempre mudando, sempre sendo decompostos e recompostos, sempre posicionados e sempre posicionando-se, e que por isso precisam que aqueles que os usam faam uma autocrtica constante (...) no importando o quanto a histria seja autenticada, amplamente aceita ou verificvel, ela est fadada a ser um constructo pessoal, uma manifestao da perspectiva do historiador como narrador.31

Escrever sobre a histria do campo de sua produo, fazer o exame crtico da produo historiogrfica de um programa institucional de modo a conhecer a histria de sua histria, exigncia do campo disciplinar que tem adquirido visibilidade na historiografia brasileira e contempornea e compreende uma rea de estudos em configurao. Segundo Carlos Fico32, esse movimento expande-se por volta da dcada de 1990 com a quebra dos modelos macroestruturais de explicao, como o marxismo. Para esse historiador, diferentemente do que ocorreu na dcada de 1980,31 32

JENKINS, Keith. Op. Cit. P. 28-32.

FICO, Carlos. Algumas anotaes sobre a historiografia, teoria e mtodo no Brasil dos anos 90. In GUAZELLI. C. A. B. et al (orgs). Questes da teoria e metodologia da histria. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000.

25

quando um forte antiteoricismo prevalecia nos trabalhos desenvolvidos, observa-se a partir daquele perodo, na produo histrica brasileira, a relativamente grande produo de trabalhos de reflexo terico-conceitual, metodolgica e historiogrfica.33 Como ressalta Fico, ao enfocar tais dimenses, ao produzir uma reflexo crtica e terica sobre o campo disciplinar, o silncio historiogrfico que durante muitos anos, foi apontado por diversos analistas como caracterstica da Histria brasileira a ausncia de reflexo sobre a disciplina deixa aos poucos de existir.34 Durval Muniz de Albuquerquer igualmente ressalta a ausncia dessa reflexo e seu aparecimento no final dos anos 80, em movimento de constituio do campo da crtica historiogrfica. Para esse historiador,

a maneira como os profissionais do campo historiogrfico se debruam sobre o saber j produzido na rea e como submete a uma avaliao crtica, penso que diz muito dos cdigos que delimitam a prtica historiadora ou mesmo as prticas acadmicas e cientificas, neste campo, num dado contexto histrico e social.35

Aquele historiador ressalta que uma das caractersticas marcantes das anlises sobre as obras historiogrficas a abusiva adjetivao. Segundo ele,

Um dos traos marcantes, em boa parte dos textos que se propem a avaliar o estado da arte no campo historiogrfico, em nosso pas, a abusiva adjetivao. Em grande medida, as anlises que se fazem das obras ou de dadas correntes historiogrficas no so feitas em termos substantivos, isso , no estabelecem um dilogo com os conceitos, com os pressupostos, com a metodologia que estruturam as obras analisadas, no dialogam com o pensamento do autor ou com as concluses a que chegou em sua pesquisa, mas procuram desqualificar a obra ou o autor brandindo contra ele meia dzia de adjetivos, que pretensamente o localizam no debate historiogrfico e33 34 35

Idem.Ibidem. P. 36. Idem.Ibidem. P. 38.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. O historiador naf ou a anlise historiogrfica como prtica de excumunho. In GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da histria. Rio de Janeiro: Letras, 2006. P. 01.

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avaliam o valor de sua contribuio. Termos como ps-modernos, conservadores, neoconservadores, idealistas, populistas,

ideolgicos, irracionalistas, narrativistas, reacionrios, de direita, perspectivistas, ultrapassados, marxistas, realistas, racionalistas, so brandidos sem que nunca sequer se discuta o que significam, como se fossem auto-evidentes ou se houvesse consenso sobre seus significados, sendo usados, portanto, como meras pechas

desqualificadoras que, ao invs de instaurarem o debate, o desestimulam de sada.36

A tradio adjetiva, aos poucos, vai sendo substituda por outra, a que se preocupa em substantivar, isto , em significar a obra a partir do dilogo estabelecido com os conceitos, pressupostos, abordagens e perspectivas tericas disponveis no campo historiogrfico. Nesse sentido, no podemos deixar de estabelecer uma analogia entre a produo histrica no Brasil e a de um edifcio em constante construo, em que as geraes atuais e as futuras, ao procederem a uma reflexo sobre o conhecimento produzido, esto tambm fazendo uma reflexo sobre a histria da histria, sobre o ofcio e sobre a disciplina, buscando o refinamento de teorias mtodos e tcnicas, construindo, enfim, uma epistemologia. Analisar o que foi escrito e produzido por seus predecessores, identificar a localizao das obras nas diversas tradies e/ou vertentes historiogrficas, historicizar suas condies, so desafios que exigem dos historiadores uma instrumentalizao terico-metodolgica e tambm historiogrfica, da o necessrio dilogo entre histria e historiografia. A escrita da histria desde a escolha do tema, seleo de fontes, de definio do quadro terico-metodolgico, uso de conceitos, interpretao e concluso, encontra-se localizada em uma topografia de interesses, inscreve-se nas condies de produo do autor, de seu tempo e lugar social e institucional. Como adverte Lucien Febvre:

Toda histria escolha. porque existiu o azar que aqui destruiu e l preservou os vestgios do passado. porque existe o homem: quando os documentos abundam, ele abrevia, simplifica, reala isso, releva aquilo a segundo plano. E , principalmente, pelo fato de que

36

Idem.Ibidem. P. 01-02.

27

o historiador cria seus materiais ou recria-os, se quiser: o historiador no vai rondando ao azar atravs do passado, como um maltrapilho em busca de despojos, mas parte com um projeto preciso em mente, um problema para resolver, uma hiptese de trabalho para verificar. (...) O essencial de seu trabalho consiste em criar, por assim dizer, os objetos de sua observao, com ajuda de tcnicas

freqentemente muito complicadas. E depois, uma vez adquiridos esses objetos, em ler suas provetas e seus preparados. Tarefa singularmente rdua; porque descrever o que se v, mais fcil, mas ver o que se deve descrever, isso sim difcil. 37

A proposta de se fazer o exame crtico da produo historiogrfica do Programa de Ps-Graduao em Histria da UnB, uma escolha dentre as vrias possveis. Ela tem sua pertinncia e relevncia histricas, pois , afinal, o esforo em conhecer a histria da histria produzida por diferentes geraes e em diferentes contextos e a partir de um tempo e de um lugar social e institucional. Trata-se de escolha que nos permitiu conhecer a histria do prprio programa, as prticas de integrantes, suas regras, procedimentos e polticas. So, ambas, exigncias colocadas histria e aos historiadores. Assim, nosso estudo inscreve-se no movimento recente de constituio do campo da crtica historiogrfica, cujo percurso bem recente. Conforme assinala Malerba, ao se pensar o volume de material produzido e a qualidade da historiografia brasileira, a histria desta historiografia reponta como um campo praticamente virgem no Brasil38. Pesquisar e analisar a produo historiogrfica do Programa de PsGraduao em Histria da UnB (PPGHIS/UnB) foi desafio a que no recusamos ante o interesse despertado na graduao quando cursamos a disciplina Historiografia do Brasil, ministrada pela professora Diva do Couto Gontijo Muniz. Nesse curso, foram discutidas as relaes entre histria, historiografia, e poder, bem como as exigncias interpostas aos do ofcio, como a de se proceder ao exame historiogrfico. Tal exigncia inscreve-se em um debate maior, da necessidade da crtica historiogrfica colocada por esse campo de estudos, j que nos permite37

FEBVRE, Lucien apud CAINELLI, M. e SCHMIDT, M. A. Ensinar histria. So Paulo: Spicione, 2004. P. 93-94.38

MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre (orgs). Historiografia contempornea em perspectiva crtica. Bauru/SP: EdUSC, 2007. P. 11.

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conhecer as condies de produo que presidem a escrita da histria, em um dado momento e em dada sociedade. Trata-se de anlise que nos possibilitar conhecer, portanto, os padres temticos e discursivos da cultura historiogrfica engendrada, ou seja, as dimenses constitutivas dos seus prprios parmetros a partir de problemticas do tempo presente39. Realizar o exame crtico da produo de dissertaes e teses do Programa de Ps-Graduao de Histria (PPGHIS) da Universidade de Braslia demandou, assim, o levantamento quantitativo dessa produo e, tambm, sua anlise qualitativa, considerando suas reas de Concentrao / Linhas de Pesquisa e as duas reestruturaes do programa, realizadas em 1993/93 e 2003/04, em seus trinta anos de funcionamento (1976-2006). Nesse perodo foram produzidas 256 dissertaes e 73 teses, abrigadas em 06 (seis) diferentes reas de Concentrao e 10 (dez) Linhas de Pesquisa, perfazendo um total de 329 trabalhos. Essa produo se d em trs momentos do Programa: o de sua criao (1973-1993), da primeira reestruturao e criao do doutorado (1994-2003) e o da segunda reestruturao (2004-2006). Entendemos que tal quantitativo exige e justifica a pesquisa e exame crtico dessa produo. As historiadoras Maria de Lourdes Mnaco Janotti e Mrcia Mansur DAlessio, ao realizarem o exame crtico da produo historiogrfica do Programa de PsGraduao da PUC-SP, ressaltam que a produo acadmica se constitui em um campo particular da historiografia medida que cria prprios padres temticos, discursivos, tericos, metodolgicos e crticos40. Compartilhando dessa idia, entendemos que o exame da produo acadmica do PPGHIS possibilita o conhecimento de seus padres temticos e discursivos, orientaes tericas, abordagens metodolgicas, reas e domnios e relaes de poder que presidem a escrita da histria naquele espao institucional. Nesse sentido, exigncia colocada ao campo da histria e aos do ofcio, uma possibilidade de se conhecer a histria da escrita da histria do PPGHIS/UnB.

39

DIEHL, Astor Antnio. Teoria historiogrfica: dilogo entre tradio e inovao. In Revista Varia Histria, Belo Horizonte, vol. 22, n.36, jul/dez 2006. P. 369.40

JANOTTI, Maria de Lourdes Mnaco e DALESSIO, Mrcia Mansur. Produo acadmica da PsGraduao em Histria da PUC-SP. In Revista Projeto Histria. So Paulo, n. 10, dez. 1993. P. 5960.

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Jurandir Malerba41 defende que a historiografia comporta a operao de retificao das verses do passado histrico, operada a cada gerao, ou seja, a busca que cada gerao de historiadores empreende no entendimento de como foi interpretado o passado e quais as regras, tcnicas, modelos de anlise dominantes em cada gerao, quais os padres temticos e discursivos que estabeleceram como predominantes, que ocuparam posio de centralidade em cada um dos movimentos da historiografia brasileira. Trata-se de reflexo que compartilhamos na realizao do presente estudo. Nosso propsito de conhecer o percurso da historiografia especifica do PPGHIS/UnB inclui o entendimento de que este no se encontra desatrelado do percurso da historiografia brasileira. No trabalho proposto, a historiografia passa a ser, desse modo, parte integrante da pesquisa histrica, cujos resultados se enunciam, pois, na forma de um saber redigido42. A produo historiogrfica , assim, e ao mesmo tempo, objeto e fonte histrica, e desse modo, nos remete s prticas historiogrficas do perodo e espao institucional em que se inscreve. 43 Um produto que nos fala do lugar social e do tempo histrico, da gerao de autores, bem cmodos procedimentos e regras, prprios do campo, das prticas historiogrficas. Desta forma, o presente trabalho tem como foco a pesquisa das teses e dissertaes do PPGHIS, no perodo de 1976 a 2006, investigadas a partir de alguns questionamentos iniciais. Dentre eles os seguintes: Qual o quantitativo dessa produo, por rea de concentrao e por linha de pesquisa? Quantitativamente, quais reas e linhas de pesquisa se destacaram no conjunto? Que demandas, interesses e relaes de poder presidiram as duas reestruturaes feitas? H sintonia entre os movimentos observados na historiografia do Programa e os da historiografia brasileira? Quais as temticas predominantes em cada um dos trs momentos dessa produo? Quais as abordagens priorizadas nas leituras da experincia passada naquele espao? Quais os principais padres temticos e discursivos? Como se deu o percurso historiogrfico do programa? Alguns dados sobre as teses e dissertaes produzidas no referido perodo foram coletados e sistematizados a partir de uma ficha/roteiro elaborada e preenchida pelos alunos da graduao em trabalho de pesquisa realizado no curso41 42 43

MALERBA, Jurandir. Op. Cit. 2006. P. 17. RSEN,Jrn. Op.Cit. 2001. P. 46. MALERBA, Jurandir. Op. Cit. 2006. P. 18.

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de Historiografia do Brasil, ministrado pela professora Diva do Couto Gontijo Muniz, no 1 semestre de 2006. Deles fizemos uso para o presente estudo, aprofundando, porem, a pesquisa, com a leitura de um conjunto de teses e dissertaes. Na monografia que elaboramos como trabalho final de curso, realizamos uma primeira anlise quantitativa dos dados, o que nos possibilitou construir o mapeamento preliminar da produo do Programa. Nesta, foram identificados o quantitativo da produo, as reas de Concentrao e Linhas de Pesquisa, o nmero de mestres e doutores capacitados, os temas priorizados e os autores mais citados. No mestrado, demos continuidade ao estudo, buscando aprofund-lo com uma anlise mais detalhada dessa produo. Escolhemos, aleatoriamente, 08 (oito) trabalhos de cada rea de Concentrao / Linhas de Pesquisa, em trs momentos do programa: o de sua criao (1976-1993), o de sua primeira reestruturao (19932003) e o de sua ltima reestruturao (2003-2006). O conjunto selecionado totaliza 24 trabalhos no conjunto das dissertaes e teses do Programa. Trata-se de amostra que consideramos possvel, j que se mostrou invivel a avaliao de toda a produo no curto espao de tempo de um mestrado, cuja metade do tempo encontra-se praticamente comprometido com o cumprimento dos crditos exigidos como disciplinas/seminrios. Entendemos que tal amostragem possibilitou-nos acessar as prticas de pesquisa e escrita da histria naquele espao, pois em cada uma das reestruturaes do PPGHIS apreendemos a emergncia do novo, ou coexistindo com o antigo, ou rompendo com orientaes historiogrficas existentes e iniciando outras. So mudanas que justificam inclusive a reorganizao do programa, nos referidos momentos, uma em 1993/94 e outra em 2003/04. Dessa forma, consideramos esses trs momentos/fases especficos para a seleo das teses e dissertaes consideradas na pesquisa: a) 1976-1993, que vai da abertura do PPGHIS at sua primeira re-estruturao, perodo em que h somente o curso de mestrado; b) 1994-2003, que vai da primeira at a segunda re-estruturao, com a criao do doutorado; c) 2004-2006, que o perodo de sua segunda reestruturao, at o marco final da pesquisa realizada, quando o programa completou trinta anos. Buscamos historicizar tal produo, atentando para as linhas de fora, para suas caractersticas marcantes, suas marcas, sua especificidade no conjunto da historiografia brasileira, de modo a conhecer a histria da histria do programa. Foi

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esse o objetivo a que procuramos atender com o presente estudo. Dessa forma, o propsito de conhecer a histria da histria do PPGHIS demandou realizar no apenas o levantamento quantitativo, mas tambm a anlise de sua produo, atentando para as orientaes tericas, para os temas, enfoques e recortes priorizados pelos autores das dissertaes e teses naqueles trs diferentes momentos do programa. Para se proceder ao exame crtico da historiografia, o dilogo entre histria e historiografia se revelou necessrio, pois os conceitos de histria/historiografia so importantes anlise pretendida. Segundo Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, historiografia seria o exame dos discursos de diferentes historiadores, tambm de como estes pensam o mtodo histrico. 44 Entendendo a histria como um discurso construdo a partir de uma operao que envolve um lugar e um tempo social, uma prtica disciplinar e um produto/uma escrita, como nos ensina Michel de Certeau, pensamos cada dissertao/tese como uma narrativa sobre o passado, sobre a experincia temporal, inscrita na histria e no fora dela. Assim, cada uma dessas obras, dessas narrativas sobre determinada experincia do passado, arbitrada pelos pares, consoante s regras da comunidade e da instituio. O conhecimento produzido um produto que poder ser, tambm, fonte para estudos posteriores ao perodo em que os autores escreveram e viveram. Conhecer a histria da histria do PPGHIS/UnB exigiu-nos historicizar sua produo para compreender a paisagem historiogrfica45 ali configurada, ou seja, demandou-nos buscar identificar as principais vertentes historiogrficas, padres temticos e discursivos, dentre esses, algumas regras e concepes de histria que nortearam a produo de dissertaes e teses durante seus trinta anos de funcionamento. Esse conhecer envolveria, segundo Malerba, o estudo compreensivo e comparativo das transformaes que experimentam conceitos, teorias, mtodos, perspectivas e os produtos resultantes do ofcio dos historiadores.46 Segundo este autor, o esforo em realizar o exame crtico da historiografia incluiria, ainda, as filiaes intelectuais dos diversos autores dentro de

44

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionrio de conceitos histricos. So Paulo: Contexto, 2005. P. 189.45 46

MALERBA, Jurandir; ROJAS, Carlos Aguirre (orgs). Op. Cit. P. 08 Idem. Ibidem. P. 09.

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uma determinada tendncia ou corrente, as matrizes intelectuais (...) que impactam nas diversas prticas historiogrficas ao longo do tempo.47 A compreenso da paisagem historiogrfica exigiu-nos identificar o lugar social de fala, ou seja, o local de fala dos autores, que no se restringe ao lugar de produo scio-econmico e poltico. Ele inclui as reas de concentrao, as linhas de pesquisa, objetos de estudos, regras do programa e da comunidade. O conceito de lugar social de fala, tal como pensado por Michel de Certeau, requer pensar a dimenso relacional de toda construo discursiva. Segundo o autor:

Toda pesquisa histrica se articula com um lugar de produo scioeconmico, poltico e cultural. (...) Ela est, pois submetida a imposies, privilgios, enraizada em uma particularidade. em funo deste lugar que se instauram os mtodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questes, que melhores sero propostas, se organizam.48

No dilogo com Certeau sobre o lugar social de fala, sobre as imposies, privilgios, interesses, mtodos que submetem e organizam a pesquisa e a escrita da histria, no h como no deixar de associar as reflexes desse autor com as de Foucault sobre a ordem do discurso, sobre a relao entre saber e poder. Segundo esse filosofo,

em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certo nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade.49

Tais perspectivas mostram-se valiosas para o trabalho que realizamos de exame da produo do PPGHIS, uma vez que entendemos que no se pode desconhecer o lugar de fala dos autores e tambm do PPGHIS/UnB na ordem do47 48 49

Idem. Ibidem. P. 09. CERTEAU, Michel. Op. Cit. P. 67.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2005. P. 0809.

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discurso historiogrfico brasileiro; ou seja, no h como ignorar, na produo acadmica pesquisada, suas articulaes com o campo historiogrfico brasileiro, suas imposies e privilgios, suas aproximaes e distanciamentos, suas incluses e excluses. Nessa articulao, a identificao da posio de fala da historiografia produzida no PPGHIS, hierarquizada em relao ao centro, posio de fala do sujeito do discurso historiogrfico, posio de referncia como lugar de produo de conhecimento histrico, localizado no eixo Rio/So Paulo. Essa posio de localizao fora do centro da produo do PPGHIS/UnB na ordem do discurso nos aponta para a topografia de interesses, para as disputas em torno do controle do campo do significado social que envolve a produo de qualquer conhecimento, no sendo o histrico exceo. Assim, na leitura compreensiva e interpretativa da produo do PPGHIS, buscamos identificar sua localizao historiogrfica e tambm refletir sobre a cultura historiogrfica engendrada em tal espao institucional. Afinal, o exerccio de identificao e de reflexo condio de possibilidade de acesso a suahistoricidade, subsumida nos modelos, regras, tcnicas e relaes de poder que informam as prticas de pesquisa e de escrita da histria naqueles espao e temporalidade.50

A pesquisa feita acerca da produo acadmica do PPGHIS/UnB permitiu-nos perceb-la na ordem do discurso historiogrfico como uma cultura historiogrfica especfica, com seus padres temticos e discursivos prprios, cujo trao marcante o da heterogeneidade. Embora compreenda uma cultura historiogrfica com a marca de sua especificidade, caracterstica que a diferencia das demais, no deixa, porm, de ter aquelas que a identificam, que a integram ao campo historiogrfico brasileiro. No caso, os direcionamentos imprimidos durante seu percurso: da histria poltica para a histria social e desta para a histria cultural, tal como ocorrido na historiografia brasileira, no perodo considerado na presente pesquisa.

50

MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; SALES, Eric. Cultura historiogrfica e histria: a produo acadmica do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de Braslia (1976-2006). In Textos de Histria: Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria da UnB: Dossi: A Escrita da Histria: os desafios da multidisciplinaridade. Braslia, UnB, vol. 15, n. 1/2 , 2007 (2008). P. 11.

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Captulo 02 O Programa e sua produo: uma topografia de interessesComo assinalado, o exame crtico da historiografia exigncia colocada, contemporaneamente, ao campo disciplinar da histria e aos do ofcio pois, por meio dele, acessa-se a historicidade da histria, refinam-se os mtodos e procedimentos, constri-se uma epistemologia prpria. Fernanda Mendes Queiroz e Daisy Pires Noronha, ao realizar o levantamento da produo de dissertaes e teses em cincia da informao do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Comunicao da USP, referem-se a esta prtica de anlise crtica do campo como sendo referencial sobre o que vem sendo efetivado em termos de produo cientifica em uma determinada rea do conhecimento.51 Por meio da crtica possvel explicitar muito do no dito no discurso histrico, ou seja, a teoria que informa e as regras e tcnicas que o conformam. Como ressalta Malerba, o exame crtico da historiografia responde ao desafio e a exigncia de se

pensar o estatuto do texto histrico, produto da arte ou da cincia dos historiadores, de qualquer modo resultado do seu lavoro, do seu ofcio, fez-se mister no cotidiano dos profissionais da histria, particularmente vinculados a instituies acadmicas.52

Alm disso, continuando com o autor, a crtica historiogrfica permite-nos identificar o percurso da historiografia, com suas tendncias, orientaes e tradies, com o repertrio conceitual das diferentes geraes em diferentes momentos e movimentos. Para Malerba

desde h muito, alguns deles j haviam percebido a riqueza potencial insondvel acumulada na obra de inmeras geraes de

historiadores que construram, cada qual sob as luzes de seu tempo e de acordo com a maquinaria conceitual disponvel, um patrimnio

51

QUEIROZ, Fernanda Mendes; NORONHA, Daisy Pires. Temticas das dissertaes e teses em cincia da informao no Programa de Ps-Graduao em Cincia da Comunicao da USP. In Cincia da Informao, Braslia, vol. 33, n. 2, maio/ago., 2004. P. 133.52

MALERBA, Jurandir. Op. Cit. 2006. P. 11.

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prprio

da

memria

das

sociedades,

constitudo

por

sua

historiografia.53

Assim, a proposta de exame crtico da produo historiogrfica do PPGHIS/UnB, de reflexo sobre ela, alm de pertinente, apresenta-se como condio que abre possibilidade de acesso a sua historicidade, subsumida nos modelos, regras, tcnicas e relaes de poder que informam as prticas de pesquisa e de escrita da histria54 naquele espao acadmico. Afinal, como assinala Carlos Fico, nos cursos de ps-graduao que se verificam maior constncia de produo e significativa diversidade que possibilitam a visualizao de tendncias, permanncias e rupturas.55 Desde os anos 1980, vm sendo realizados estudos sobre a produo dos programas de ps-graduao no pas. Inicialmente, com preocupao em elaborar um balano geral de sua produo e, mais tarde, em fazer a crtica historiogrfica. No primeiro caso, destacam-se estudos como os de Da Ribeiro Fenelon (1983) sobre o Programa de Ps-Graduao em Histria da Unicamp; de Jos Flvio de Oliveira (1983), sobre a Ps-Graduao da Unimep; de Altiva Pilatti Balhana (1983), sobre o programa de ps-graduao da Universidade Federal do Paran. Estes inventrios foram objeto de publicao, em maro de 1983 na Revista Brasileira de Histria, que reuniu quinze artigos sobre alguns programas de ps-graduao no pas e tambm reflexes sobre os caminhos da historiografia brasileira nos anos 1980. Nos anos 1990, com o redirecionamento para o cultural observado no campo, a prtica do exame critico da historiografia avana, com a incluso de anlises qualitativas da produo dos programas de ps-graduao. Nesses estudos, teses e dissertaes vo receber dos historiadores uma reflexo mais atenta no sentido de ultrapassar o enfoque meramente descritivo ou quantitativo. Esto centrados em identificar e analisar os caminhos terico-metodolgicos que os autores seguiram, quais as tradies, vertentes, repertrio conceitual, padres temticos e discursivos predominantes em cada conjunto analisado.53 54 55

Idem. Ibidem. P. 11. MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; SALES, Eric. Op. Cit. P. 11.

FICO, Carlos; POLITO, Ronald. Teses e dissertaes de histria defendidas em 1995.In Estudos Histricos, vol. 09, n. 17, 1996. P. 190.

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Nesta perspectiva, inscreve-se o estudo de Maria de Lourdes Mnaco Janotti e Mrcia Mansur (1993) sobre a produo acadmica da Ps-Graduao em Histria da PUC-SP. A pesquisa feita pelas autoras mostra os percursos da historiografia brasileira, expressos nos textos das dissertaes que integram aquela produo, no perodo de 1945 a 1990. Os trabalhos foram classificados segundo temas e objetos, agrupados em 17 ttulos. Outro aspecto da pesquisa foi o da identificao da bibliografia utilizada, de modo a mostrar os dilogos da histria com os autores de seu campo e tambm com outros campos do conhecimento, dentre eles, a Sociologia e a Cincia Poltica. No estudo feito, as temticas abordadas apontam para questes e abordagens abrigadas no Programa e tambm outras fora dele, de suas linhas de pesquisa e reas de concentrao. Realizando um estudo parecido com o de nossa proposta, h o trabalho de autoria coletiva, produzido por Euclides Marchi, Maria Igns M. de Boni, Mrcia D. Siqueira e Srgio Nadalin, Nele, os autores fazem um exerccio de avaliao de 30 anos de produo historiogrfica da Universidade Federal do Paran. O recorte que utilizam o de 1959 a 1989. Na palavra dos autores,

Esta periodizao leva em conta dois momentos: 1959 representa a afirmao da autonomia do Departamento, substituindo a

organizao fundamentada em ctedras, congregando nele diversos professores de Histria que atuavam na Universidade, enquanto 1989 representa o inicio de um processo acelerado de

aposentadorias, fruto da instabilidade gerada por uma poltica nacional que ameaava as conquistas sociais dos trabalhadores. A sada de muitos docentes/pesquisadores dos quadros ativos do Departamento e a contratao de novos altera, evidentemente, o perfil da produo.56

Tal como o estudo feito sobre a produo da Universidade Federal do Paran, o que realizamos sobre a produo do PPGHIS/UnB abrange trinta anos de existncia, de 1976 a 2006, ou seja, do momento de sua criao at o de sua ltima reestruturao. Embora esta tenha ocorrido em 2003/04, com o retorno das reas

56

MARCHI, Euclides et al. Trinta anos de historiografia: um exerccio de avaliao. In Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v.13, n.25/26, set. 92/ago. 93 (1993). P. 133.

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de Concentrao, extintas em 1994, ainda existiam em 2006 algumas teses e dissertaes elaboradas segundo as referncias das linhas de pesquisa existentes at aquela data: LP Histria das Relaes Internacionais, LP Histria Social e das Idias. LP Histria: Discurso, Imaginrio e Cotidiano. Alm disso, em 2006, j existiam as primeiras dissertaes abrigadas nas quatro reas de estudo criadas: AC Histria Cultural, AC Histria Social, AC Histria e Historiografia das Idias, AC Estudos Feministas e de Gnero. O esforo de exame critico das produes acadmicas dos programas de ps-graduao explicita-se tambm no artigo de Carlos Fico, de 1993, em que o autor faz uma reflexo sobre a historiografia brasileira nos ltimos vinte anos, a partir da anlise da produo acadmica da regio sudeste do pas. Recusando a abordagem estritamente quantitativa, o autor enfoca o percurso historiogrfico dessa produo, buscando identificar as principais correntes/vertentes da historiografia brasileira nos anos 1990. Segundo Fico, um dos traos marcantes dessa produo o da crescente profissionalizao dos historiadores57, movimento que se d com a expanso dos programas de ps-graduao no pas, ocorrida a partir dos anos 1980.58 Em outro estudo, Carlos Fico, juntamente com Ronald Polito, os dois fazem o balano da produo de diversos programas, como o da UFRJ, da USP e da UFMG, no perodo de 1980-1989. Trata-se de avaliao que inclui a descrio quantitativa, apresentando quadros com os dados da produo de cada programa, assim como a anlise qualitativa da produo, ressaltando o repertrio conceitual e temtico, limites e perspectivas da historiografia brasileira.59 H ainda o estudo de Flvio Sombra Saraiva60, de 1996, relativo aos 20 anos do PPGHIS/UnB. Nesse, h uma descrio do Programa, identificao de suas linhas de pesquisa e reas de concentrao e das dissertaes defendidas at aquele momento. visvel, nesse estudo, o propsito em conferir visibilidade acadmica ao PPGHIS/UnB, por ocasio da comemorao de seus vinte anos de57

Nas palavras de Fico, entenda-se aqui por profissionalizao crescente a forma moderna atravs da qual as cincias humanas passam a ser praticadas nos quadros de bens culturais e sistemas de informao complexos. (1996: 205)58

FICO, Carlos. Algumas anotaes sobre a historiografia, teoria e mtodo no Brasil dos anos 90. IN GUAZELLI, C. A. B. et al (orgs). Questes da teoria e metodologia da histria. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000. P. 27-40.59

FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A histria no Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliao historiogrfica. Ouro Preto: UFOP, 1992.60

SARAIVA, Jos Flvio Sombra. Histria na UnB: vinte anos d ps-graduao: 1976-1996.Braslia: Departamento de Histria.

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existncia. Diversos dados desse estudo foram por ns utilizados na presente dissertao. Estes so alguns dos trabalhos que iniciaram a discusso sobre a necessidade de exame critico da produo acadmica dos programas de psgraduao. Todavia, eles no esgotam o assunto, e nem poderiam, pois a histria no matria estanque, dinmica, encontra-se permanentemente em mudana. Se fosse fixa e imutvel, a tese de Fukoyama, de que a histria encontrou seu fim com a queda do muro de Berlim, seria incontestvel.61 Assim, a produo historiogrfica permanece aberta a leituras e re-leituras, pois a cada gerao de historiadores novas ferramentas conceituais, novas perspectivas tericas e metodolgicas, novos objetos e problemas estaro disponveis, interpelando os historiadores e requisitando-os para a tarefa de pensar o passado e de escrever a histria e tambm a histria da histria. Buscamos, no presente estudo, identificar a cultura historiogrfica do PPGHIS/UnB, ou seja, suas prticas de pesquisa e de escrita da histria, atentando para as principais orientaes tericas e alguns padres temticos e discursivos presentes nos trabalhos acadmicos produzidos em cada um dos trs momentos do programa que entendemos significativos, haja vista as reestruturaes realizadas. A escrita da histria entendida como uma operao cientifica, tal como postula Certeau:

Encarar a histria como uma operao ser tentar, de maneira necessariamente limitada, compreend-la como a relao entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profisso, etc),

procedimentos de anlise (uma disciplina) e a construo de um texto (uma literatura). admitir que ela faz parte da realidade da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada enquanto atividade humana, enquanto pratica. Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operao histrica se refere combinao de um lugar social, de prticas cientificas e de uma escrita.62

61

O artigo de Francis Fukuyama, com o ttulo "The end of history apareceu em 1989, na revista norte-americana The national interest. Em 1992, Fukuyama lanou o livro The end of history and the last man, editado no Brasil com o ttulo: O fim da histria e o ltimo homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.62

CERTEAU,Michel. Op. Cit. P. 67.

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No resta duvida de que a produo do PPGHIS/UnB compreende um conjunto discursivo que se encontra localizado a partir da relao estabelecida entre um lugar social, uma prtica disciplinar prpria da comunidade de historiadores e uma escrita. A escrita da histria percebida, portanto, como uma operao cientfica presidida por um conjunto de regras que permitem controlar operaes, isto , organizar procedimentos destinados produo de objetos determinados, como defende Certeau. Compartilhando dessa concepo encontra-se Durval Muniz Albuquerque Junior, para quem

O campo historiogrfico, como qualquer campo cientifico, regido por regras que so definidas pelo conjunto das instituies e dos profissionais da rea. Existem leis de grupo, regras definindo o que pode e o que no pode ser aceito como verdade, em cada momento histrico. O saber histrico no relativista, ele relativo s suas regras de produo. O saber histrico no arbitrrio, mas arbitrado pelos pares, como diz Michel de Certeau.63

A

articulao

entre

lugar

social,

prtica

e

escrita

responde

pelo

engendramento de uma cultura historiogrfica, que no est fora da cultura histrica. Segundo Jos Jobson Arruda:

Pensar a cultura histrica pensar historiograficamente. Pensar a cultura histrica atravessar os vrios momentos de cristalizao historiogrfica com a instaurao de linhas mestras interpretativas hegemnicas e hegemonizantes. ser capaz de pairar sobre os vrios momentos historiogrficos sem se identificar com nenhum deles em particular e procurar entender por que aquelas linhagens interpretativas se tornaram dominantes. (...) a cultura histrica no se reduz a um exerccio diletante de erudio vazia, puro texto, puro discurso, pura literatura, pois remete ao objeto central da Histria, que a produo de conhecimento.6463

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. O historiador naf ou a anlise historiogrfica como prtica de excumunho. In GUIMARES, Manoel Luiz Salgado. Estudos sobre a escrita da histria. Rio de Janeiro: Letras, 2006. P. 204.64

ARRUDA, Jos Jobson. Cultura histrica: territrios e temporalidades historiogrficas. In Saeculum: revista de histria, n. 16, Joo Pessoa, jan/jun 2007. P. 30.

40

Pensar a cultura historiogrfica a partir do locus privilegiado de sua produo, o PPGHIS, pens-la inscrita na cultura histrica do pas que no se restringe produo dos programas de ps-graduao, mas no pode desconsider-la. Nesse sentido, no h como ignorar a exigncia de exame crtico da produo historiogrfica brasileira e, nessa, a produo acadmica dos programas de psgraduao. Tal exame,

nos permite ampliar o conhecimento acerca do que produzimos e do nosso prprio espao de atuao. Trata-se de ampliao que se inscreve em outra, a do conhecimento da historiografia brasileira, considerando-se que h nessa, em seu interior, uma cultura acadmica, intrinsecamente solidria s suas regras e modelos. Estes so interpelados no dilogo que se estabelece com os conceitos, pressupostos e metodologias compartilhados pela

comunidade de historiadores, nacionais e internacionais. Como qualquer produo discursiva, tal cultura constituda luz das regras e constrangimentos, das relaes de poder, das disputas polticas e ideolgicas, dentro e fora da academia, que so as condies histricas que possibilitam a ela tornar-se visvel e dizvel, isto , inteligvel.65

A pesquisa em torno das teses e dissertaes do PPGHIS/UnB permitiu-nos identificar desde aspectos pontuais, especficos do programa, como a criao do doutorado, em 1993/94, as duas reformulaes ocorridas em seus 30 anos de funcionamento, em 1993/1994 e 2003/04, at aqueles mais difusos, como os redirecionamentos tericos e metodolgicos que marcam a historiografia brasileira em seus diversos momentos que tambm aparecem na produo do programa. Tal como aquela, o percurso historiogrfico da produo do programa, em seu desenho, mostra-nos alinhamentos com tradies e tendncias que se tornaram

predominantes em cada um dos momentos e movimentos do campo historiogrfico brasileiro: anos 50/60, histria poltica; anos 60/70, histria econmica e social; anos 80/90, histria social e cultural; depois dos anos 90, histria cultural. Sob65

MUNIZ, Diva do Couto Gontijo; SALES, Eric. Op. Cit. p. 12

41

perspectivas diversas, histria global ou trabalhos monogrficos, no se pode ignorar que por mais especifico, por mais delimitado que seja o objeto estudado, uma anlise crtica sobre ele envolve conhecer desde as condies materiais de sua produo at as construes e tradies historiogrficas sobre as quais se fundamenta.66 Segundo Janotti e DAlessio, a produo acadmica se constitui em campo particular da historiografia medida em que cria uma tradio, com um perfil identificvel quanto a padres temticos, tericos e metodolgicos do campo historiogrfico em geral. Como se trata de produto engendrado no espao da universidade, encontra-se respaldado em instituies reconhecidas pela sociedade e pelo Estado como detentoras do saber, dentre aquelas, o universitrio. No h dvida de que as universidades conquistaram uma posio hegemnica, embora no exclusiva, como lugar de produo do conhecimento, incluindo-se o histrico.67 Segundo Malerba, a disciplina histria distingue-se, de outras reas do campo das humanidades por possuir mtodo prprio para a formulao e apresentao dos resultados de sua pesquisa. 68 J, segundo ngela Castro Gomes, a histria no se distingue de outras reas das Cincias Humanas, nem pelo mtodo, pois este ela toma por emprstimo de outras disciplinas, nem pelo objeto, que so as aes humanas, igualmente tratadas pelas Cincias Humanas e Sociais. A histria, segundo a autora, se distingue por promover encontros singulares com outras disciplinas, na abordagem feita aos objetos comuns s cincias humanas e sociais, sob o signo da temporalidade.69 Se no h um consenso quanto especificidade dos objetos e mtodos histricos no h como no reconhecer que a temporalidade, o tempo histrico, dimenso e domnio especficos da histria. Sua escrita traz a marca dessa relao constante e instvel que o historiador estabelece com o passado, a partir do presente, seu mirante temporal. Tempo histrico pensado, portanto, a partir da

66 67 68

JANOTTI, Maria de Lourdes Mnaco e DALESSIO, Mrcia Mansur. Op. Cit. P. 59. Idem. Ibidem. P. 59.

MALERBA, Jurandir (org.). A Histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006. P. 17.69

GOMES, ngela Castro. A reflexo terico-metodolgica dos historiadores brasileiros: contribuio para pensar a nossa histria. IN GUAZELLI, C. A. B. et al (orgs). Questes de teoria e metodologia da histria. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 2000. P. 20.

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relao assimtrica entre espao de experincia e horizonte de expectativa, como postula Koselleck.70 Se entendemos que h uma cultura historiogrfica acadmica e que esta, no obstante sua especificidade, apresenta traos comuns ao campo historiogrfico brasileiro, j que submetida aos modelos e regras da comunidade de historiadores em suas prticas de pesquisa e de escrita da histria, no desconsideramos essa relao no exame crtico realizado. Com efeito, aquela cultura, explicitada ou sinalizada nos objetos, temas, metodologias, autores e problematizaes

considerada em algumas das teses e dissertaes do PPGHIS/UnB no se encontra desatrelada do campo historiogrfico, encontra-se igualmente arbitrada pelas suas regras e submetida aos seus procedimentos. Afinal, toda escrita de histria ocorre atravessada por relaes de poder, por disputas em torno do estabelecimento de regimes de verdade acerca do relato da experincia do passado e da relao que o historiador estabelece com o passado, com nfase na mudana ou na permanncia.71 O Programa de Ps-Graduao em Histria da UnB foi criado em 1976 e em seus trinta anos de funcionamento foi objeto de duas reestruturaes: uma, em 1993/94 e outra, em 2003/04. Sua criao e suas duas reestruturaes marcam 03 (trs) momentos distintos do percurso do programa, relativamente sintonizados com os da historiografia brasileira. Assim, ao ser criado, em 1976, ele foi organizado com duas reas de concentrao Histria Poltica do Brasil e Histria das Relaes Exteriores do Brasil. Tal definio explcita a prioridade dada histria poltica na orientao dos estudos e pesquisas desenvolvidos naquele espao institucional e momento. De 1976 a 2006, visvel o crescimento do programa, que capacitou 329 profissionais de histria, nveis mestrado (256) e doutorado (73), com o correspondente quantitativo de dissertaes e teses, como demonstrado no Quadro 01, a seguir. O crescente interesse pela capacitao para atuar em pesquisa e ensino superior movimento que acompanha o dos programas de ps-graduao

70

KOSELLECK, Reinhart. Futura passado: contribuies semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. P. 31.71

REIS, Jos Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. P. 11.

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do pas, a partir dos anos 1980 e que se traduz na ampliao de quadros docentes e de discentes, bem como de teses e dissertaes produzidas. Quadro 1 Programa de Ps-Graduao em Histria/UnB Quantitativo de Dissertaes e Teses 1976 2006 Ano/perodo 1976-77 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993* 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002** 2003*** 2004 2005 2006 Total Total Geral Dissertaes 00 02 06 03 01 03 07 02 03 06 05 08 04 07 03 09 09 09 10 11 04 11 11 13 11 27 13 08 20 30 256 329 Teses 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 00 02 03 01 13 09 09 05 10 08 13 73

Fonte: Autor * Ano em que foram adotadas as Linhas de Pesquisa (LP) no lugar das reas de Concentrao (AC) e criado o doutorado. ** No ano de 2002 foram realizadas 14 dissertaes de mestrado institucional em convnio com a universidade do Estado de Gois (UEG). Modalidade que deixou de existir a partir do ano seguinte. *** Ano que foram novamente adotadas as reas de Concentrao

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Como os dados do Quadro 1 demonstram, h uma visvel desproporo entre o quantitativo de teses (73) e dissertaes (256). Duas razes devem ser levadas em considerao para tal assimetria: 1) o cronograma para a criao e implementao do mestrado e do doutorado diferenciado, sendo que o primeiro corresponde ao perodo de 1975/76 e o segundo a 1993/94; 2) prazos diferenciados para cumprimento do programa de doutorado (mximo de 10 semestres) e o de mestrado (mximo de 5 semestre). Como assinalam Muniz e Sales:

Percebe-se, ainda, a ocorrncia de perodos com maior nmero de produo de teses e dissertaes 1997 a 2001 e 2005/06, excetuando-se 2002, ano em que foram includas 14 (quatorze) dissertaes concernentes ao mestrado institucional, desenvolvido em parceria com a Universidade do Estado de Goiais/UEG. So expresses numricas carregadas de historicidade, por tanto localizadas no contexto das profundas mudanas operadas no campo disciplinar e de duas reestruturaes realizadas no programa. Traduzem, assim, os redirecionamentos terico-metodolgicos, epistemolgicos, institucionais e polticos imprimidos ao PPGHIS a partir de 1993 e de 2003.72