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Ricardo Abramovay Finanças sociais O acesso da população carente aos bancos tem o efeito equivalente ao das políticas públicas contra a pobreza SEM ALARDE, de forma quase imperceptível e vin- das de onde menos se pode- ria esperar, o Brasil está construindo uma das mais importantes políticas sociais de sua história. Trata-se do acesso de milhões de pes- soas a serviços financeiros formais dos quais estavam completamente excluídas até muito recentemente. De um ano para cá, foram abertas nos bancos comerciais pertencentes ao governo 3,8 milhões de contas simplificadas: são contas que não exigem de seu detentor declaração de endereço ou apre- sentação de comprovante de renda e tampouco são oneradas com tarifas bancárias. Além disso, de agosto de 2003 até no- vembro deste ano foram celebrados quase 3 milhões de con- tratos de crédito de baixo montante (até R$ 1 mil), com forte participação do Bradesco, além dos bancos estatais. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro está facilitando a criação de coo- perativas de crédito e criando condições para que os bancos privados possam financiar atividades – até aqui mantidas numa escala quase experimental – das inúmeras organizações de microcrédito existentes no País. O retrato da exclusão bancária brasileira, mostrado em estudo divulgado pelo Banco Mundial no ano passado (“Bra- zil: Access to Financial Services”,Anjali Kumar – World Bank - Washington, 2003), é impressionante e coincide com pes- quisa realizada mais ou menos no mesmo período pelo Uni- banco: apenas 40% da clientela potencial possuía uma conta bancária no início da atual década. É verdade que os corres- pondentes bancários, como as lotéricas, oferecem a possibili- dade de pagamentos de contas e mesmo, no caso dos Correios, de depósitos de poupança. Apesar de sua importância, esses correspondentes não têm como oferecer serviços financeiros completos para as populações que a eles recorrem: não po- dem substituir os bancos. Não têm como fazer empréstimos e, sobretudo, não conseguem construir uma relação com seus clientes em que conta bancária, seguros, poupança e crédito – as práticas correntes de qualquer pessoa, independente- mente de seu nível de renda – possam integrar-se de forma a favorecer segurança econômica e geração de renda, sobre- tudo para os que atualmente vivem em situação de pobreza. Mas por que razão pessoas que estão em situação de po- Ricardo Abramovay é professor da FEA-USP, pesquisador do CNPq e organi- zador de Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza Julio Vilela/FOCO ECONOMIA breza necessitam de serviços financeiros? Em outras palavras, o que há de tão importante no acesso aos bancos – ou às coo- perativas de crédito – quando se trata da luta contra a po- breza? Tudo levaria a crer que primeiro fosse necessário me- lhorar a capacidade de geração de renda dos mais pobres para que, só então, pudessem demandar aquilo que os bancos têm a oferecer. Sob essa ótica, mais importante que um con- junto diversificado de serviços financeiros, seria oferecer cré- dito – e, de preferência, subsidiado – para permitir a geração de riqueza, que, uma vez alcançada, seria canalizada, ao me- nos em parte, para o setor financeiro formal. Não é o que mostra a atual literatura internacional e bra- sileira sobre o tema. Mesmo quem vive em situação muito precária é obrigado, o tempo todo, a utilizar serviços finan- ceiros variados: mas o faz em condições que tornam ainda mais difíceis sua condição de vida e aprofundam as formas localiza- das de dominação que respon- dem, em grande parte, por sua própria pobreza. No Brasil, existem poucos es- tudos sobre as finanças informais dos indivíduos e das famílias que vivem em situação de pobreza. Stuart Rutheford coordena um programa de pesquisa nesse sen- tido, na Universidade de Man- chester, que investiga, há vários anos, o comportamento das famí- lias em sua relação com o di- nheiro. Além disso, ele próprio dirige uma organização de microfinanças em Bangladesh, SafeSave. Seus trabalhos mos- tram que os pobres precisam muito mais de serviços financei- ros que os ricos. As entradas financeiras das famílias pobres são, freqüentemente, muito irregulares, sobretudo quando se trata daquelas que vivem do trabalho por conta própria. O fluxo de renda, durante o ano, não é contínuo. Se já é compli- cado enfrentar os gastos correntes (alimentação, transporte, energia), a situação fica ainda mais séria quando se trata de uma despesa imprevista ou quando surge a oportunidade de algum investimento promissor. Nessas condições, as pessoas podem não fazer o gasto em questão, fazê-lo vendendo algum bem que possuam ou então – o que ocorre com imensa fre- qüência – podem recorrer a empréstimos ou a sua própria 28 Brasil pensa foco | 30 de novembro, 2004 A falta de acesso aos bancos aprofunda as formas de dominação e a pobreza

Finanças sociais

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Artigo de Ricardo Abramovay para a revista Foco, em 30 de novembro de 2004.

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Ricardo Abramovay

Finanças sociais

O acesso da população carente aos bancos tem o efeito equivalente ao das políticas públicas contra a pobreza

SEM ALARDE, de formaquase imperceptível e vin-das de onde menos se pode-ria esperar, o Brasil estáconstruindo uma das maisimportantes políticas sociaisde sua história. Trata-se doacesso de milhões de pes-soas a serviços financeirosformais dos quais estavam

completamente excluídas até muito recentemente. De um anopara cá, foram abertas nos bancos comerciais pertencentes aogoverno 3,8 milhões de contas simplificadas: são contas quenão exigem de seu detentor declaração de endereço ou apre-sentação de comprovante de renda e tampouco são oneradascom tarifas bancárias. Além disso, de agosto de 2003 até no-vembro deste ano foram celebrados quase 3 milhões de con-tratos de crédito de baixo montante (até R$ 1 mil), com forteparticipação do Bradesco, além dos bancos estatais. Ao mesmotempo, o governo brasileiro está facilitando a criação de coo-perativas de crédito e criando condições para que os bancosprivados possam financiar atividades – até aqui mantidasnuma escala quase experimental – das inúmeras organizaçõesde microcrédito existentes no País.

O retrato da exclusão bancária brasileira, mostrado emestudo divulgado pelo Banco Mundial no ano passado (“Bra-zil: Access to Financial Services”, Anjali Kumar – World Bank- Washington, 2003), é impressionante e coincide com pes-quisa realizada mais ou menos no mesmo período pelo Uni-banco: apenas 40% da clientela potencial possuía uma contabancária no início da atual década. É verdade que os corres-pondentes bancários, como as lotéricas, oferecem a possibili-dade de pagamentos de contas e mesmo, no caso dos Correios,de depósitos de poupança. Apesar de sua importância, essescorrespondentes não têm como oferecer serviços financeiroscompletos para as populações que a eles recorrem: não po-dem substituir os bancos. Não têm como fazer empréstimose, sobretudo, não conseguem construir uma relação com seusclientes em que conta bancária, seguros, poupança e crédito– as práticas correntes de qualquer pessoa, independente-mente de seu nível de renda – possam integrar-se de forma afavorecer segurança econômica e geração de renda, sobre-tudo para os que atualmente vivem em situação de pobreza.

Mas por que razão pessoas que estão em situação de po-

RicardoAbramovay éprofessor daFEA-USP,pesquisador doCNPq e organi-zador de LaçosFinanceiros naLuta contra a Pobreza

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breza necessitam de serviços financeiros? Em outras palavras,o que há de tão importante no acesso aos bancos – ou às coo-perativas de crédito – quando se trata da luta contra a po-breza? Tudo levaria a crer que primeiro fosse necessário me-lhorar a capacidade de geração de renda dos mais pobrespara que, só então, pudessem demandar aquilo que os bancostêm a oferecer. Sob essa ótica, mais importante que um con-junto diversificado de serviços financeiros, seria oferecer cré-dito – e, de preferência, subsidiado – para permitir a geraçãode riqueza, que, uma vez alcançada, seria canalizada, ao me-nos em parte, para o setor financeiro formal.

Não é o que mostra a atual literatura internacional e bra-sileira sobre o tema. Mesmo quem vive em situação muitoprecária é obrigado, o tempo todo, a utilizar serviços finan-ceiros variados: mas o faz em condições que tornam ainda

mais difíceis sua condição de vidae aprofundam as formas localiza-das de dominação que respon-dem, em grande parte, por suaprópria pobreza.

No Brasil, existem poucos es-tudos sobre as finanças informaisdos indivíduos e das famílias quevivem em situação de pobreza.Stuart Rutheford coordena umprograma de pesquisa nesse sen-tido, na Universidade de Man-chester, que investiga, há váriosanos, o comportamento das famí-lias em sua relação com o di-

nheiro. Além disso, ele próprio dirige uma organização demicrofinanças em Bangladesh, SafeSave. Seus trabalhos mos-tram que os pobres precisam muito mais de serviços financei-ros que os ricos. As entradas financeiras das famílias pobressão, freqüentemente, muito irregulares, sobretudo quando setrata daquelas que vivem do trabalho por conta própria. Ofluxo de renda, durante o ano, não é contínuo. Se já é compli-cado enfrentar os gastos correntes (alimentação, transporte,energia), a situação fica ainda mais séria quando se trata deuma despesa imprevista ou quando surge a oportunidade dealgum investimento promissor. Nessas condições, as pessoaspodem não fazer o gasto em questão, fazê-lo vendendo algumbem que possuam ou então – o que ocorre com imensa fre-qüência – podem recorrer a empréstimos ou a sua própria

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A falta deacesso aosbancosaprofunda asformas dedominação ea pobreza

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poupança. A poupança é tão importante que Rutheford desco-briu em favelas de Bangladesh uma captadora informal de re-cursos das famílias que passava diariamente pelas casas reco-lhendo algumas moedas e recebia por isso um pagamento: aspessoas não obtinham qualquer remuneração por sua pou-pança e ainda pagavam para quem guardava seu dinheiro.Como não tinham acesso a bancos, esse era o meio pelo qualpodiam guardar diariamente alguns trocados, o que lhes per-mitia, no fim do ano, comprar o uniforme escolar de um fi-lho ou mesmo enfrentar a doença de um familiar.

Clientelismo caroNum trabalho realizado para o Serviço Brasileiro de Apoio àsMicro e Pequenas Empresas (Sebrae) e para a Agência de De-senvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores(“Laços Financeiros na Luta Contra a Pobreza” – Anna-blume/FAPESP, 2004), pesquisadores brasileiros encontraramtambém modalidades informais e não remuneradas de pou-pança no interior do Nordeste brasileiro. Mas não se trata deuma particularidade local: caixinhas e fundos rotativos são al-gumas das modalidades de serviços financeiros que se organi-zam e que mostram a importância dos laços financeiros infor-mais na reprodução dos indivíduos e das famílias por todo oBrasil, inclusive nas regiões metropolitanas.Além disso, outrosserviços financeiros como os seguros de saúde (que hoje co-meçam também a ser oferecidos pelos bancos a populações po-bres) são fundamentais na vida de segmentos de baixa renda.Portanto, como bem lembra John Kenneth Galbraith, o di-nheiro é tão importante para quem o tem, como para quemnão o tem. Em sua luta pela sobrevivência, os pobres recorrem,o tempo todo, a serviços financeiros: procuram fazer pou-pança, seguros e estão sempre dependentes de quem lhes ofe-reça o crédito necessário a sua reprodução.

Se é tão rica a vida financeira de quem vive próximo à li-nha de pobreza, se encontram meios de satisfazer sua demandade crédito, de poupança e de seguro, por que então os pobresnecessitam de aceder aos bancos? Por que não permanecernestes mercados já existentes? É que subjacente às finanças in-formais encontram-se formas de dominação personalizadas eclientelistas que bloqueiam as possibilidades de as famíliasexercerem suas liberdades no uso dos recursos de que dis-põem. As finanças informais são sempre de curtíssimo prazo eenvolvem compromissos, reciprocidades e contrapartidas queencarecem enormemente o uso dos recursos por parte dos quedelas dependem. Apóiam-se sobre redes locais de confiança, éverdade, mas exprimem situações sociais em que não surgemmercados concorrenciais e em que as iniciativas dos indivíduose das famílias ficam confinadas a um horizonte rotineiro e tra-dicional. Mesmo a oferta, por parte de financeiras, de créditosem comprovante de renda compromete seriamente a capaci-dade de geração de renda dos indivíduos em função de seuscustos. Da mesma forma, o sistema de crediário oferecido pelogrande varejo trabalha com taxas de juros exorbitantes.

A grande virtude da bancarização é que ela pode abrir ca-minho para a supressão destes vínculos personalizados e

clientelistas de dominação e permitir o acesso a mercadosmelhores e mais competitivos para os que estão em situaçãode pobreza. O mais importante no processo atual de bancari-zação dos pobres é a intenção que o acompanha de se estabe-lecer um cadastro positivo com base no qual serão oferecidosdiversos serviços financeiros, a começar pelo crédito. Os in-divíduos poderão não só entrar no banco como clientes, masconstruir uma reputação de bons pagadores, o que será im-portante na obtenção de recursos para a satisfação de neces-sidades vindas da reprodução das famílias (reforma da casa,estudos, etc.) ou de seus negócios.

Em 1997 o IBGE divulgou um estudo sobre a “EconomiaInformal Urbana”, definida como um conjunto de estabeleci-mentos comerciais de base fundamentalmente familiar, dosquais a maioria vivia em situação muito precária. Das 9,5 mi-lhões de unidades estimadas pelo IBGE em todo o Brasil, a me-tade não chegava a faturar anualmente o que hoje correspon-deria a R$ 10 mil reais. Um aspecto deste estudo chama aatenção: 3,5 milhões de estabelecimentos declararam ao IBGEque gostariam de ampliar seus negócios e 1,5 milhão fizeramalgum tipo de investimento durante os três meses que prece-deram a pesquisa (outubro de 1997). Entretanto, apenas 74mil investiram com base em empréstimos bancários. Seria ab-surdo imaginar que estes milhões de pequenos negócios nãose interessem por uma relação permanente com os bancos. Oacesso ao sistema financeiro é uma das condições essenciaispara que possam melhorar a produtividade de seu trabalho eo rendimento de seus negócios. Financiar as atividades econô-micas dos mais pobres e estimular seu acesso a melhores mer-cados é um dos mais importantes caminhos na luta por suaemancipação social. ••

Banco como sinônimo de política social na luta contra a pobreza

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