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REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2015 44 FIO DA HISTÓRIA A política do leite Artigo analisa o esforço do governo Vargas em aumentar o consumo do produto no país, incentivado pela ciência da nutrição REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2015 44

FIO DA HISTÓRIA A política do leite...RM 33 - PARTE GUTO - HELP.pmd 44 11/12/2015, 16:37 REVISTA DE MANGUINHOS | DEZEMBRO DE 2015 45 A Ricardo Valverde nutrição, ciência intro-duzida

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FIO DA HISTÓRIA

A política do leite

Artigo analisao esforço dogoverno Vargasem aumentar oconsumo doproduto no país,incentivado pelaciência da nutrição

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ARicardo Valverde

nutrição, ciência intro-duzida no Brasil nosanos 30, difundiu tam-bém a convicção deque o leite de vaca

constituía o mais importante dos ali-mentos básicos. A partir daí, impulsi-onado por profissionais da saúde, ogoverno de Getúlio Vargas promoveuum esforço para melhorar o até en-tão precaríssimo sistema de abaste-cimento do produto no Rio de Janei-ro, na época capital da República. Oepisódio está dissecado em artigo dopesquisador Sören Brinkmann publi-cado na revista História, Ciências,Saúde – Manguinhos, da Casa deOswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Até o início do século 20 o leiteera consumido no Brasil sem nenhumtipo de tratamento, o que poderia cau-sar uma série de doenças. O transpor-te do leite, que antes da Abolição erafeito por escravos, em latão, passou aser feito por vaqueiros que o produzi-am nas periferias das cidades, em ge-ral em condições insatisfatórias de hi-giene e qualidade.

Em 1918, o bioquímico america-no e pioneiro da vitaminologia ElmerVerner McCollum havia declarado oleite de vaca o mais importante dos“alimentos protetores”, que não de-viam faltar na nutrição cotidiana decrianças e adultos. Segundo McCo-llum, devido ao seu extraordinárioconteúdo de sais minerais, vitaminase proteínas de alto valor, não existiaalimento melhor do que o leite paracorrigir as deficiências nutritivas daalimentação.

Ainda segundo McCollum, paraalém dos conselhos nutricionais, o con-sumo de leite revelou-se quase fator“eugênico” na formação de uma na-ção moderna, posto que os distintosníveis do consumo ao longo dos sécu-los pareciam explicar não só o progressocivilizador do mundo ocidental, espe-cialmente dos EUA, mas também osuposto atraso material e cultural de“chineses, japoneses e dos povos dostrópicos em geral”. Seguindo o cami-nho aberto pelo americano, na déca-

da de 1920 as novas hipóteses sobre ovalor sanitário do leite de vaca conquis-taram os círculos médicos e nutricio-nistas de praticamente todos os paísesocidentais, gerando uma verdadeira“ideologia do leite” que, por sua vez,daria nova orientação não só às políti-cas de nutrição, mas também ao fo-mento da agropecuária.

No Brasil, porém, a situação esta-va muito distante desse ideal propostonos EUA e na Europa. A propagandado alimento, no começo dos anos1930, apesar dos esforços do prefeitodo Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, emaumentar o consumo do produto, ocul-tava o fato de que a maioria das gran-des cidades, incluindo a capital fede-ral, não dispunha de oferta comercialde leite fresco apropriada para cum-prir a exigência dos nutricionistas deampliar a ingestão diária.

Em 1935, o consumo havia alcan-çado não mais do que 130ml diáriosentre a população carioca, o que fica-va muito aquém dos níveis dos cha-mados países desenvolvidos e das re-comendações da ciência da nutrição.A Comissão Técnica de Nutrição da Or-ganização de Higiene da Sociedade dasNações, que encabeçava a padroniza-ção internacional do que deveria seruma alimentação “racional” e saudá-vel, exigia o consumo mínimo diáriode 500ml por adulto e de 1.000ml porcriança até 14 anos.

O leite consumido na capital fe-deral provinha de duas fontes, se-gundo Brinkmann: cerca de 15% daoferta era do produto cru, produzi-do nos estábulos da cidade sob pre-cárias condições higiênicas, o que háanos vinha provocando violentos pro-testos por parte de médicos e pedi-atras, que consideravam o “leite dovaqueiro” um perigo para a saúdepública e pediam pelo imediato fe-chamento desses estabelecimentos.O restante da oferta comercial com-punha-se de leite pasteurizado vin-do por vias férreas de distintas zo-nas pecuárias dos estados de MinasGerais e Rio de Janeiro, a maior par-te de qualidade deficiente. O ali-mento era transportado em precári-as condições, pois as companhias

ferroviárias não dispunham de va-gões frigoríficos para o adequado ar-mazenamento. Além da baixa qua-lidade, o leite era um produto caropara a maior parte dos cariocas.

Em 1937, o governo criou o Ser-viço de Alimentação da PrevidênciaSocial (Saps). Esse fato coincidiu como estabelecimento do salário-míni-mo, que ampliou o poder de com-pra dos trabalhadores e consequen-temente a possibilidade de adquiriremmais e melhores alimentos. Assim, oleite recebeu mais uma vez umstatus extraordinário ao ser o único ali-mento na lista de gêneros básicos doregulamento designado como “essen-cial e imprescindível”, o que, segun-do o nutricionista Alexandre Mosco-so, citado por Brinkmann, deveriaenfatizar “sua inestimável valia”.

Visando à solução para o “proble-ma do leite” na capital brasileira, ogoverno federal decidiu então moder-nizar o conjunto do sistema de abas-tecimento. Em julho de 1940, poucoantes da criação do Saps, Vargas assi-nou decreto estabelecendo a Comis-são Executiva do Leite (CEL). O novoórgão era constituído por um repre-sentante do Ministério da Agriculturae três delegados dos governos do Riode Janeiro, de Minas Gerais e do Dis-trito Federal. Cabia à Comissão reor-ganizar tecnicamente o sistema deabastecimento para melhorar assim aqualidade higiênica e o sabor do pro-duto e estimular a produção de leitenas zonas de abastecimento para sa-tisfazer a crescente demanda e garan-tir preços acessíveis.

Brinkmann relata que a Comissãoesbarrou em problemas sérios, como abaixa produtividade na maioria das fa-zendas. O leite que vinha de fora nãoera o produto de fazendas especializa-das com rebanho de vacas leiteiras dealto rendimento, mas, em sua quasetotalidade, de agricultores de subsistên-cia com vacas de pouca produção, paraos quais a venda de leite constituíanegócio secundário. Para o consumi-dor urbano, o mais importante, alémdo preço do produto, era a sua melho-ria, o que a Comissão do Leite preten-dia alcançar com a construção de um

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novo entreposto central. Seria umacolossal e moderna usina de pasteuri-zação e engarrafamento, com capaci-dade diária de até 500 mil litros, quedeveria substituir não só os entrepos-tos de leite na cidade, mas também asvelhas usinas de pasteurização nas zo-nas leiteiras.

A Comissão também foi res-ponsável pela abertura de lojas coma marca CEL, diretamente adminis-tradas e cujos desenho moderno eaura de limpeza e higiene estabe-leceram também novo critério paraa comercialização de leite. As an-tigas leiterias da cidade funciona-vam em lojas mal cuidadas em quese vendia todo tipo de alimentos eque, com frequência, nem mesmodispunham de um simples refrige-rador. As leiterias CEL eram novas,com pisos e paredes azulejadas,dotadas de geladeiras elétricas,balcões refrigerados e envidraça-dos e que tinham em oferta não sóleite fresco, como creme de leite,manteiga, queijos, ovos e mel. Osbalconistas vestiam-se de branco,o que também se inspirava na es-tética de laboratório, mais do quena do empório habitual. No entan-to, no início, só existiam nove lo-jas CEL, a maioria no Centro e nosbairros abastados – Catete, Bota-fogo, Copacabana, Ipanema –, en-quanto os bairros dos subúrbios pra-ticamente não eram atendidos.

Quando teve início a construção deum grande entreposto de comerciali-zação de leite, na Zona Norte do Rio,o projeto da CEL já tinha começado aentrar em decadência devido a dificul-dades financeiras. De acordo comBrinkmann, a culpa se devia ao au-mento de preços de maquinaria e ma-terial de construção, decorrentes daSegunda Guerra Mundial, o que ele-vou drasticamente os custos da obra,invalidando o planejamento original. Nofinal de 1945, a Comissão do Leitehavia acumulado enormes dívidas –razão pela qual os trabalhos foram sus-pensos. Os produtores também não sebeneficiaram da política do leite, poisapesar de o preço para o produto cruter sido duplicado, a receita para amaioria dos fazendeiros só melhoroutemporariamente. Situação que foi atri-

buída ao encarecimento provocadopela guerra, que aumentara os custosde produção.

Para a Comissão, foi um retum-bante fracasso o fato de que, em vezde crescer, desde o início de 1943 aprodução de leite diminuiu. Ainda em1942 o consumo na capital aumenta-ra 4% em relação ao ano anterior. Navirada de 1942 para 1943 – em meioà época das chuvas, quando a ofertado leite cru normalmente alcançavao apogeu – o abastecimento de leitesofreu drástica queda, levando a mé-dia anual à redução de 5,5% em re-lação ao ano anterior.

Para Brinkmann, a medida maispolêmica foi o sucessivo aumento do

Ilustração 2: Loja daComissão Executiva doLeite (CEL)

preço do leite ordenado pela CEL, oque batia de frente com as promessasoriginais de abastecer a cidade comleite bom e barato. Embora esse passotivesse sido praticamente inevitável,devido ao drástico aumento dos custosde produção, serviu de “lenha na fo-gueira” para os críticos da política doleite do governo Vargas.

Logo depois da deposição do pre-sidente Vargas, em outubro de 1945,a CEL foi dissolvida e todas as lojas,junto com o esqueleto do futuro entre-posto central, em Triagem, passarampara a Cooperativa Central. Assim aconclusão e inauguração do projetadoentreposto foram adiadas até o finaldos anos 1950.

Loja da Comissão Executiva do Leite (CEL) instalada no Rio de Janeiro

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