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ısica Moderna para iniciados, interessados e aficionados Ivan S. Oliveira Ph.D. Oxford Departamento de Mat´ eria Condensada e F´ ısica Estat´ ıstica Centro Brasileiro de Pesquisas F´ ısicas

Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

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Fısica Modernapara iniciados, interessados e aficionados

Ivan S. Oliveira

Ph.D. Oxford

Departamento de Materia Condensada e Fısica Estatıstica

Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas

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Notas do Autor

Escrever um livro sobre fısica moderna como este exige um bocado deespırito de risco em relacao ao proprio trabalho. Alguns colegas poderaoachar este esforco fatalmente inutil, por considerarem quase impossıvelpara o “pedestre comum” compreender as estranhas ideias da rainhadas ciencias no seculo XX. Discordo frontalmente; nao e preciso serum Villa-Lobos para “arrancar” alguns acordes. A minha motivacaoao abracar tal empreitada e muito simples: tenho certeza que meni-nos e meninas ao final do ensino medio, com um certo esforco, saocapazes de entender os conceitos da fısica do seculo XX somente com amatematica que ja aprenderam. Esta certeza nasceu, em parte, do meubreve convıvio com alguns destes estudantes no chamado Programade Vocacao Cientıfica, iniciado na Fiocruz, e adotado no CBPF aofinal de 1997, e em parte devido a um interesse particular por desafiosdeste tipo. Apos algum tempo trabalhando somente com estudantes demestrado e doutorado, foi uma agradavel surpresa descobrir a curiosi-dade cientıfica, ainda sem vıcios, e o desembaraco de estudantes taojovens. Assistı-los apresentando seminarios ou em frente a um painel,explicando sem cerimonia o que aprenderam para uma audiencia de ci-entistas profissionais, foi uma surpresa que me causou grande estımulo.

Contudo, o texto nao e dirigido somente para alunos do ensinomedio, mas tambem para todos os que se consideram iniciados, in-teressados ou aficionados. Dentre estes incluem-se alunos no inıcio degraduacao em engenharias, quımica, e qualquer pessoa que tenha in-teresse em fısica moderna, e que conheca a matematica do segundograu. Acredito que o texto sera particularmente util para professoresdo segundo grau, e alunos dos cursos em licenciatura. Aqui uma cons-tatacao: o livro nao e um livro texto no sentido usual, mas tambem naoe um livro de divulgacao como outros tantos. Tentei atingir um balancoentre as duas abordagens. A razao e que com pouquıssima matematicapode-se ir muito alem do que se conseguiria sem nenhuma.

A matematica e a linguagem natural da fısica. Qualquer pessoa quedeseje conhecer fısica com alguma profundidade, nao podera ignorar amatematica. A razao e tao simples quanto fascinante: os fenomenosda Natureza obedecem a equacoes matematicas! Um buraco negro euma solucao de um conjunto de equacoes matematicas; um eco de spins

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tambem, ondas eletromagneticas idem. Podemos lancar satelites, ex-trair energia dos nucleos dos atomos, conhecer a idade do Universo, ob-servar as imagens de um cerebro humano em funcionamento, ou aindasonhar com computadores quanticos e computadores biologicos, gracasa compreensao matematica que temos dos fenomenos naturais.

Acredito que a abordagem matematica utilizada neste texto o tornaacessıvel a todos aqueles que tenham interesse pela fısica e seus fasci-nates problemas no seculo XX. O leitor precisara ter nocao do que sejauma funcao e conhecer algumas operacoes algebricas elementares, aonıvel do que se aprende no segundo grau de nossas boas escolas. Al-guns capıtulos sao mais tecnicos do que outros, e podem parecer maisdifıceis. Aqueles que nao se impressionarem com sımbolos, e tiverem umpouco de paciencia, nao encontrarao dificuldades em seguir os argumen-tos. Aqueles outros que possuırem apetite especial para matematica,encontrarao material suplementar em alguns dos paineis inseridos aolongo do texto. Aos que “odeiam” matematica, mas possuem inter-esse por certas areas da fısica, recomendo que simplesmente ignorem asformulas e sigam adiante. O aproveitamento dependera neste caso docapıtulo e da experiencia do leitor em achar o “caminho das pedras”!

O seculo XX foi o seculo da fısica. Avancos espetaculares na com-preensao dos fenomenos naturais (se e que podemos realmente afir-mar que “compreendemos” o que significa o tempo dilatar ou umafuncao de onda colapsar!) desaguaram em tecnologias nunca antessonhadas, e em discussoes filosoficas tao infindaveis quanto interes-santes. Nosso conhecimento sobre a Natureza avanca vertiginosamente,e e impossıvel dizer como ele, e a tecnologia que dele decorre, vao es-tar ao final do seculo XXI! Computadores quanticos realizando tele-porte e calculando com velocidade inimaginavel, gerando codigos crip-tograficos indecifraveis; todas as maravilhas prometidas pela chamadananociencia decorrente da manipulacao de materiais em escala atomica,como circuitos eletronicos moleculares; transporte de energia sem dis-sipacao em supercondutores; novos dados observacionais sobre a ex-pansao do Universo, desafiando modelos cosmologicos; novas teoriassobre os constituintes elementares da materia. Estas sao apenas algu-mas das tendencias mais atuais.

Acredito que nossos cursos, tanto introdutorios quanto intermediarios,devessem “concentrar fogo” sobre essa “nova fısica”, e nao estagnar

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sobre conceitos formulados ha 300 anos que, de certa forma, ficaram“soterrados” no inıcio do seculo XX. A maioria dos nossos jovens soconhece Einstein pela explorada fotografia da careta, e o associam aformula E = mc2. E preciso separar os resultados das suas deducoes.Deduzir a expressao matematica E = mc2 como consequencia logica dealguns postulados simples, e consideravelmente tecnico para um estu-dante em fase inicial. Mas isso nao quer dizer que ele nao possa com-preender o que esta formula significa, e quais sao as suas implicacoes! Omesmo se pode dizer sobre a mecanica quantica, sobre a fısica nuclear,sobre o magnetismo, sobre a supercondutividade, etc. Obviamente naoe preciso que um estudante de medicina seja Ph.D. em fısica para iralem dos botoes dos equipamentos, e entender um pouco dos princıpiosda ressonancia magnetica nuclear, fenomeno fısico que o auxiliara comos seus pacientes!

Resumindo, este livro e um laboratorio. Inevitavelmente muitostopicos importantes ficaram de fora, como em qualquer outro livro comum numero manuseavel de paginas. Ao me convencer de que ele naopoderia ser um livro texto como os usuais, me senti livre para experi-mentar um estilo descontraıdo, que em geral funciona nos meus cursosna pos-graduacao do CBPF. Afinal, para um carioca incorrigıvel comoeu, ficar longe do bom humor e do sarcasmo pode ser sintoma de doencagrave. Espero que esta combinacao pouco ortodoxa seja util para oleitor.

Ivan S. Oliveira

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer aos seguintes amigos e companheiros de labuta:Dr. Luis A. C. P. da Mota do Instituto de Fısica da Universidade doEstado do Rio de Janeiro (companheiro infalıvel de muita pizza e muitafısica nos gelidos sabados de Oxford); ao meu querido amigo Dr. Edi-som Moreira Jr., do Departamento de Matematica e Computacao doInstituto de Ciencias da Escola Federal de Engenharia de Itajuba; Dr.Jose Abdalla Helayel Neto, do Departamento de Campos e Partıculasdo Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas, ao ex-aluno, agora amigo ecolaborador, Engenheiro Salvador Barreto Belmonte e ao Dr. AlbertoPassos Guimaraes, amigo e mentor de longa data, do Departamentode Materia Condensada e Fısica Estatıstica do Centro Brasileiro dePesquisas Fısicas. Checou todas as vırgulas, colocou todas as tremas ecorrigiu todas as crases! Ao meu bom amigo alemao, Dr. Stefan Jorda,e ao amigo Dr. Vitor Luiz Bastos de Jesus, a quem pude sugerir algu-mas ideias e de quem aprendi outras tantas. Aos colegas do Instituto deFısica Gleb Wataghin da UNICAMP, Drs. Marcelo Knobel e LeandroR. Tessler, pelo encorajamento e incentivo. Quero tambem agradecera minha esposa, Dra. Rosinda Martins Oliveira, entusiasmada neuro-psicologa. Enquanto muitos autores agradecem as respectivas esposaspela “compreensao”, “paciencia”, “estımulo”, etc., tenho a sorte de tertido o mesmo, e ainda contar com algo mais. Crescemos juntos, e esta-mos ambos familiarizados com as belezas desta estrada, mas tambemcom seus “buracos” e “pedagios”. Foi ela quem primeiro leu o livro efez as primeiras crıticas e sugestoes. E gostou!

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ParaJulio e Maurıcio

meu melhor incentivo

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Ganhadores do Premo Nobel de Fısica1

1901. Wilhelm Konrad Rontgen - pela descoberta dos raios-X.1902. Hendrik Antoon Lorentz e Pieter Zeeman - pelas suas pesquisas

sobre radiacao.1903. Antoine Henri Becquerel e Pierre Curie - pela descoberta da

radioatividade espontanea.1904. John William Strutt (Lord Rayleigh) - pela descoberta do argonio.1905. Philipp Eduard Anton von Lenard - pelos seus trabalhos sobre os

raios catodicos.1906. Joseph John Thompson - pelos seus trabalhos sobre a condutividade

eletrica dos gases.1907. Albert Abraham Michelson - pelos seus trabalhos com instrumentos

opticos de precisao.1908. Gabriel Lippmann - pelos seus trabalhos com cores e fenomenos de

interferencia.1909. Guglielmo Marconi e Carl Ferdinand Braun - pelas suas con-

tribuicoes ao desenvolvimento do telegrafo sem fio.1910. Johannes Diderik van der Waals - pelos seus estudos sobre a equacao

de estados de gases e lıquidos.1911. Wilhelm Wien - pelos seus estudos sobre radiacao de calor.1912. Nils Gustaf Dalen - pela invencao de reguladores automaticos utiliza-

dos na iluminacao de farois.1913. Heike Kamerlingh Onnes - pela liquefacao do helio.1914. Max von Laue - pela descoberta da difracao de raios-X por cristais.1915. William Henry Bragg e William Lawrence Bragg - pelos seus

estudos sobre a estrutura de cristais utilizando difracao de raios-X.1917. Charles Glover Barkla - pela descoberta dos raios-X caracterısticos

dos elementos.1918. Max Plank - pela descoberta do quantum de energia.1919. Johannes Stark - pelos seus trabalhos com o Efeito Doppler.1920. Charles-Edounard Guillaume - pelos seus trabalhos em medidas de

precisao.1921. Albert Einstein - pelos seus trabalhos em fısica teorica, em particular

pela explicacao do efeito fotoeletrico.1922. Niels Bohr - pelas suas investigacoes sobre a estrutura do atomo.1923. Robert Andrews Millikan - pelos seus trabalhos sobre a carga ele-

mentar e sobre o efeito fotoeletrico.1924. Karl Manne Georg Siegbhan - pelas suas pesquisas sobre espectro-

scopia de raio-X.

1Parcialmente compilado de: Fundamentals of Physics, D. Halliday e R. Resnick,3a. Ed., John Wiley & Sons (Nova Iorque, 1988)

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1925. James Frank e Gustav Hertz - pelos seus trabalhos sobre o impactode eletrons em atomos.

1926. Jean Baptiste Perrin - pelos seus trabalhos sobre a estrutura damateria.

1927. Arthur Holly Compton e Charles Thompson Rees Wilson - pelometodo de condensacao de vapor para tornar trajetorias de partıculas visıveis.

1928. Owen Willans Richardson - pelos seus trabalhos sobre o efeito ter-moionico.

1929. Louis-Victor de Broglie - pela descoberta da natureza ondulatoriado eletron.

1930. Chandrasekhara Venkata Raman - pelos seus trabalhos sobre es-palhamento de luz.

1932. Werner Heisenberg - pela criacao da Mecanica Quantica.1933. Erwin Schrodinger e Paul Adrien Maurice Dirac - pelos seus

trabalhos sobre a teoria atomica.1935. James Chadwick - pela descoberta do neutron.1936. Victor Franz Hess e Carl David Anderson - pela descoberta do

positron.1937. Clinton Joseph Davisson e George Paget Thompson - pelos seus

trabalhos sobre a difracao de eletrons por cristais.1938. Enrico Fermi - pela descoberta dos elementos transuranicos.1939. Ernest Orlando Lawrence - pela invencao do acelerador cıclotron.1943. Otto Stern - pela descoberta do momento mangetico do proton.1944. Isidor Isaac Rabi - pelos seus estudos em ressonancia magnetica

nuclear.1945. Wolfgang Pauli - pela descoberta do Princıpio de Exclusao.1946. Percy Williams Bridgeman - pelos seus trabalhos em fısica de alta

pressao.1947. Edward Victor Appleton - pelos seus trabalhos sobre fısica at-

mosferica.1948. Patrik Maynard Stuart Blackett - pelas suas descobertas em fısica

nuclear e radiacao cosmica.1949. Hideki Yukawa - pela previsao teorica da existencia do meson.1950. Cecil Frank Powel - pelo desenvolvimento de metodos fotograficos no

estudo de processos nucleares.1951. John Douglas Cockcroft e Ernest Thomas Sinton Walton - pelos

seus trabalhos sobre a transmutacao de nucleos atomicos utilizando aceleradores departıculas.

1952. Felix Bloch e Edward Mills Purcell - pelos suas descobertas emressonancia magnetica nuclear.

1953. Fritz Zernike - pela invencao de novas tecnicas de microscopia.1954. Max Born - pela interpretacao estatıstica da funcao de onda.1955. Willis Eugene Lamb - pelos seus trabalhos sobre a estrutura fina do

atomo de hidrogenio. Polykarp Kush - pela determinacao precisa do momento

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magnetico do eletron.1956. William Shockley, John Bardeen e Walter Houser Brattain -

pelos seus trabalhos em semicondutores e transistores.1957. Chen Ning Yang e Tsung Dao Lee - pelos seus trabalhos sobre as

leis de paridade em partıculas elementares.1958. Pavel Aleksejevic Cerenkov, Il’ja Michajlovic Frank e Igor’Evegen’

evic Tamm - pela descoberta do efeito Cerenkov.1959. Emilio Gino Segre e Owen Chamberlain - pela descoberta do

antiproton.1960. Donald Arthur Glaser - pela invencao da camara de bolhas.1961. Robert Hofstadter - pelos seus trabalhos sobre espalhamento de

eletrons por nucleos. Rudolf Ludwig Mossbauer - pela descoberta do efeitoMossbauer.

1962. Lev Davidovic Landau - pelos seus trabalhos em materia condensada.1963. Eugene P. Wigner - pelas suas contribuicoes a teoria nuclear e de

partıculas. Maria Geoppert Mayer e J. Hans D. Jensen - pela descoberta daestrutura de camadas nuclear.

1964. Charles H. Townes, Nikolai G. Basov e Alexander M. Pro-chorov - pelos seus trabalhos em eletronica quantica.

1965. Sin-Itiro Tomonaga, Julian Schwinger e Richard P. Feynman -pelos seus trabalhos em eletrodinamica quantica.

1966. Alfred Kastler - pela descoberta e desenvolvimento de metodos opticospara o estudo de ressonancias em atomos.

1967. Hans Albrecht Bethe - pelas suas contribuicoes a teoria das reacoesnucleares.

1968. Luis W. Alvarez - pelos seus trabalhos em partıculas elementares.1969. Murray Gell-Mann - pelos seus trabalhos em partıculas elementares.1970. Hannes Alven - pelos seus trabalhos em magnetohidrodinamica. Louis

Neel - pelas suas descobertas sobre antiferromagnetismo e ferrimagnetismo e suasaplicacoes ao estado solido.

1971. Dennis Gabor - pela descoberta dos princıos da holografia.1972. John Bardeen, Leon N. Cooper e J. Robert Schrieffer - pelo

desenvolvimento da teoria da supercondutividade.1973. Leo Esaki - pela descoberta do tunelamento em semicondutores. Ivar

Giaever - pela descoberta do tunelamento em supercondutores. Brian D. Joseph-son - pela descoberta da supercorrente atraves de juncoes em supercondutores.

1974. Antony Hewish - pela descoberta dos pulsares. Martin Ryle - peloseu trabalho em radio-astronomia.

1975. Aege Bohr, Ben Mottelson e James Rainwater - pelos seus tra-balhos sobre a estrutura nuclear.

1976. Burton Richter e Samuel Chao Chung Ting - pelas suas descober-tas de uma partıcula fundamental.

1977. Philip Warren Anderson, Nevill Francis Mott e John Has-brouck Van Vleck - pelas suas investigacoes em materiais magneticos e sistemas

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desordenados.1978. Peter L. Kapitza - pelos seus trabalhos em fısica a baixas temper-

aturas. Arno A. Penzias e Robert Woodrow Wilson - pela descoberta daradiacao de fundo do Universo.

1979. Sheldon Lee Glashow, Abdus Salam e Steven Weinberg - pelateoria unificada da interacao eletrofraca.

1980. James W. Cronin e Val L. Fitch - pela descoberta de violacoes emprincıpios fundamentais de simetria no decaimento de mesons K.

1981. Nicolaas Bloembergen e Arthur Leonard Schawlow - pelas suascontribuicoes a espectroscopia de laser. Kai M. Siegbahn - pelas suas con-tribuicoes a espectroscopia de eletron.

1982. Kenneth Geddes Wilson - pelos seus estudos sobre fenomenos crıticosna materia.

1983. Subrehmanyan Chandrasekhar - pelos seus estudos sobre a evolucaodas estrelas. William A. Fowler - pelos seus estudos sobre a formacao de elemen-tos quımicos no Universo.

1984. Carlo Rubia e Simon van der Meer - pelas suas contribuicoes adescoberta das partıculas W e Z.

1985. Klaus von Klitzing - pela descoberta do efeito Hall quantico.1986. Ernst Ruska - pela descoberta do microscopio eletronico. Gerd Bin-

nig - pela descoberta da varredura de tunelamento. Heinrich Rohrer - pelainvencao do microscopio eletronico por varredura de tunelamento.

1987. Karl Alex Muller e J. George Bednorz - pela descoberta dossupercondutores de alta temperatura crıtica.

1988. Leon M. Lederman, Melvin Schwartz e Jack Steinberger - pelassuas pesquisas sobre a estrutura dos leptons.

1989. Norman F. Ramsey, Hans G. Dehmelt e Wolfgang Paul - pelodesenvolvimento da tecnica de aprisionamento de ıons.

1990. Jerome I. Friedman, Henry W. Kendall e Richard E. Taylor -pelas suas investigacoes sobre o espalhamento inelastico de eletrons em protons eneutrons.

1991. Pierre-Gilles de Gennes - pelos seus estudos em cristais lıquidos epolımeros.

1992. Georges Charpak - pela invencao de detectores de partıculas.1993. Russell A. Hulse e Joseph H. Taylor Jr. - pela descoberta de um

novo tipo de pulsar.1994. Bertramin N. Brockhouse e Clifford G. Shull - pelas suas con-

tribuicoes ao desenvolvimento de tecnicas de difracao de neutrons.1995. Martin L. Perl e Frederick Reines - pelas suas contribuicoes a fısica

dos leptons.1996. David M. Lee, Douglas D. Osheroff e Robert C. Richardson -

pela descoberta da superfluidez no 3He.1997. Steven Chu, William D. Phillips e Claude Cohen-Tannoudji -

pelos seus trabalhos sobre as interacoes entre radiacao e materia.

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1998. Robert C. Laughlin, Horst L. Stoermer e Daniel C. Tsui - peladescoberta de novas propriedades eletronicas a baixas temperaturas e altos camposmagneticos.

1999. Gerardus ’t Hooft e Martinus J.G. Veltman - pelos seus trabalhosteoricos sobre a estrutura e movimento de partıculas subatomicas.

2000. Zhores Alferov, Herbert Kroemer e Jack Kilby - por suas pesquisasem semicondutores que permitiram o desenvolvimento de computadores ultra-rapidos.

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Lista de Paineis por Capıtulo

Capıtulo 1Painel I - “A Vida e a Obra de Dois Genios” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pg. 5Painel II - “Quantidades Escalares e Vetoriais” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Painel III - “Derivada de uma Funcao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14Painel IV - “Integral de uma Funcao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Painel V - “Numeros Imaginarios, Numeros Complexos e

Funcoes Complexas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

Capıtulo 2Painel VI - “A Experiencia de Michelson” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98Painel VII - “Casamento Conturbado” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

Capıtulo 3Painel VIII - “Funcoes de Distribuicao de Probabilidades” . . . . . . . . . . . . . . . 148Painel IX - “A Equacao de Schrodinger” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

Capıtulo 4Painel X - “ Coordenadas Retangulares vs. Esfericas” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209

Capıtulo 5Painel XI - “Alan Turing” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 302

Capıtulo 6Painel XII - “RMN e Computacao Quantica” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343

Capıtulo 7Painel XIII - “O Projeto Manhattan” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 386Painel XIV - “Espelhos Magneticos e Tokamaks” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .394

Capıtulo 8Painel XV - “O Efeito Mossbauer” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 420Painel XVI - “Relatividade e Imposturas Intelectuais” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435

Capıtulo 9Painel XVII - “A Camara de Wilson” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 457Painel XVIII - “Vida e Obra de Cesar Lattes” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 460Painel XIX - “Vida e Obra de Jose Leite Lopes” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 466Painel XX - “O Laboratorio Nacional de Luz Sıncrotron . . . . . . . . . . . . . . . . . 475Painel XXI - “O Modelo Padrao” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 478

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Contents

1 A Fısica ate 1905: uma Casa de Gigantes 11.1 A Mecanica Classica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

1.1.1 As Leis do Movimento;Newton, Espaco e Tempo Absolutos . . . . . . . . 3

1.1.2 Movimento de Objetos sob a Acao deForcas Mecanicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

1.1.3 Gravitacao Universal: da Queda da Maca a Quedada Lua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

1.1.4 O Movimento dos Planetas . . . . . . . . . . . . . 331.1.5 Massa Inercial vs. Massa Gravitacional . . . . . . 391.1.6 Movimento Relativo . . . . . . . . . . . . . . . . 401.1.7 Fısica Termica: dos Planetas aos Gases . . . . . . 441.1.8 E Possıvel o Tempo andar para Tras? . . . . . . . 471.1.9 O Relogio Cosmico . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

1.2 O Eletromagnetismo Classico . . . . . . . . . . . . . . . 521.2.1 Fenomenos Eletricos e Magneticos . . . . . . . . . 521.2.2 Fenomenos Ondulatorios: Difracao e Interferencia 621.2.3 Ondas Eletromagneticas . . . . . . . . . . . . . . 701.2.4 Afinal, o que e a Luz? . . . . . . . . . . . . . . . 751.2.5 Afinal, Porque o Ceu e Azul? . . . . . . . . . . . 791.2.6 Acabou a Fısica?! . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

2 A Teoria da Relatividade 852.1 Einstein: um Genio Desempregado . . . . . . . . . . . . 862.2 Maxwell nao Concorda com Newton . . . . . . . . . . . . 892.3 Os Postulados da Relatividade:

a Implosao do Velho Templo . . . . . . . . . . . . . . . . 104

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2.4 O Tempo pode ser Esticado! . . . . . . . . . . . . . . . . 1082.5 O Espaco pode ser Encolhido! . . . . . . . . . . . . . . . 1152.6 E = mc2: Energia que da Gosto! . . . . . . . . . . . . . 1172.7 Viagens no Tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124

3 A Mecanica Quantica 1293.1 Havia uma Pedra no Caminho . . . . . . . . . . . . . . . 1293.2 Max Plank: Pacotes de Luz?! . . . . . . . . . . . . . . . 1333.3 Louis de Broglie: Ondas de Materia?! . . . . . . . . . . . 1403.4 Erwin Schrodinger e o Misterio ψ(r, t) . . . . . . . . . . 1443.5 A Dubia Vida de um Pobre Gato . . . . . . . . . . . . . 1593.6 Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1613.7 O Princıpio de Exclusao de Pauli . . . . . . . . . . . . . 1703.8 Einstein: “Deus nao Joga Dados” . . . . . . . . . . . . . 1783.9 Correlacoes Estranhas: Afinal, Deus Joga Dados? . . . . 1823.10 Existe um Mundo la Fora? . . . . . . . . . . . . . . . . . 1873.11 Teletransporte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

4 Como Construir um Atomo 1974.1 A Estrutura do Atomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1984.2 Orbitais Quanticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2034.3 A Materia do Universo em uma Tabela . . . . . . . . . . 2174.4 Esticando a Tabela Periodica . . . . . . . . . . . . . . . 2204.5 Ligacoes Quımicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2234.6 ADN: uma Molecula muito Especial . . . . . . . . . . . . 2284.7 Magnetismo do Atomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2344.8 Forca Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2394.9 O Indivisıvel pode ser Dividido! . . . . . . . . . . . . . . 242

5 Dos Atomos aos Computadores 2475.1 Objetos Macroscopicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2495.2 Periodicidade na Natureza . . . . . . . . . . . . . . . . . 2515.3 Porque a Lata Difere do Diamante? . . . . . . . . . . . . 2555.4 Autoestados em uma Caixa Periodica . . . . . . . . . . . 2565.5 O Mundo e Quantico! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2645.6 Metais, Isolantes e Semicondutores . . . . . . . . . . . . 2695.7 Juncoes, Diodos e Transistores . . . . . . . . . . . . . . . 272

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5.8 O que sao Computadores? . . . . . . . . . . . . . . . . . 2835.9 Bits & Bites: o Basico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2875.10 A Internet . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2915.11 O ADN Computa! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2945.12 Computadores podem Pensar? . . . . . . . . . . . . . . . 297

6 Magnetismo 3076.1 Origem do Magnetismo na Materia . . . . . . . . . . . . 3076.2 Tipos de Ordem Magnetica . . . . . . . . . . . . . . . . 3196.3 Magnetismo Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3236.4 Ressonancia Magnetica Nuclear . . . . . . . . . . . . . . 3276.5 O Sistema Girante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3356.6 Ecos de Spin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3406.7 Imagens do Corpo Humano;

uso Medico da RMN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3456.8 A Fauna Quantica: Fotons, Fonons,

Magnons, Plasmons, e outros ‘ons’ . . . . . . . . . . . . 3496.9 Trens que Flutuam! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 353

7 Energia Nuclear 3657.1 Instabilidade Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3667.2 Alfa, Beta e Gama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3687.3 Fissao Nuclear: Xo Satanas! . . . . . . . . . . . . . . . . 3747.4 Energia de Fissao: Quantos Nucleos Fervem uma Piscina?3787.5 Reatores-N & Bombas-A . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3827.6 Lixo Atomico: um Sub-Produto Indesejavel . . . . . . . 3897.7 Fusao Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3917.8 Como Funciona o Sol? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3967.9 Efeitos Biologicos da Radiacao . . . . . . . . . . . . . . . 3977.10 Medicina Nuclear . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402

8 Relatividade Geral 4098.1 Einstein Ataca de Novo! . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4098.2 O Princıpio da Equivalencia . . . . . . . . . . . . . . . . 4108.3 Geometria e Gravitacao . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4238.4 Nascimento e Morte das Estrelas:

Buracos Negros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427

xv

Page 17: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

8.5 Novos Desafios a Relatividade . . . . . . . . . . . . . . . 4308.6 O Universo teve um Inıcio?

A Grande Explosao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4388.7 O Universo tera um Fim?

O Grande Colapso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 441

9 O Sonho da Unificacao 4459.1 As Quatro Damas da Criacao . . . . . . . . . . . . . . . 4469.2 Newton:

Unificacao do Ceu com a Terra . . . . . . . . . . . . . . 4499.3 Maxwell:

Unificacao da Eletricidade com o Magnetismoe com a Otica Fısica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452

9.4 Partıculas Elementares:A Ducha Cosmica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453

9.5 Unificacao Eletrofraca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4649.6 E Possıvel Recriar o Universo em um Laboratorio? . . . 4689.7 Gravitacao: outra Pedra no Caminho! . . . . . . . . . . . 4769.8 Teorias de Tudo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 480

xvi

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Chapter 1

A Fısica ate 1905: uma Casade Gigantes

1.1 A Mecanica Classica

No inıcio tudo era o caos. Primeiro criou Deus o Ceu e a Terra. A Terra

era vazia e sem forma. O Espırito de Deus pairava sobre as aguas. E

Deus disse:

- Haja Luz!

Notando no entanto que nada acontecera, o desapontado Criador

deu um longo suspiro, e balbuciou distraıdo:

- Haja Paciencia!

Um de seus Arcanjos entao, constrangido com o que ocorrera, cochichou-

Lhe algo nos ouvidos. . .

- Ah, sim. Claro! Haja, antes, Espaco e Tempo!

E depois repetiu animado:

- Haja Luz!

E um aberto sorriso iluminou Sua face.

1

Page 19: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

2

O Livro do Genesis descreve de maneira poetica o momento da

Criacao do Universo. Embora alguns cientistas ainda discutam se houve

realmente um “inıcio”, as evidencias mais recentes apontam para o

fato de que o Universo em que vivemos teve seu nascimento em algum

momento, ha cerca de 15 bilhoes de anos atras. A adulteracao das

primeiras palavras da Bıblia feita acima, serve para enfatizar (de forma

bem humorada) o que intuimos a respeito da estrutura mais basica do

Universo: o espaco e o tempo. E difıcil imaginarmos o espaco e o tempo

como objetos fısicos em sı, que foram criados com os outros objetos do

Universo. O sentimento que temos e de que o espaco e o tempo devem

ter pre-existido a criacao das outras coisas.

No entanto, parece nao ser assim. Como veremos ao longo deste

livro, a Natureza muitas vezes nao corresponde as nossas intuicoes

ingenuas. No primeiro quarto do seculo XX o edifıcio cientıfico cons-

truıdo durante mais de 300 anos por gigantes da Ciencia como Galileu

Galilei, Isaac Newton, e James Clerk Maxwell, viu as suas bases ruırem

diante das ideias revolucionarias de homens como Albert Einstein, Max

Planck, Niels Bohr, Louis de Broglie, Wolfgang Pauli, Werner Heisen-

berg, Erwin Schrodinger, entre outros.

Nos dias de hoje estamos habituados a usar computadores, e ouvir

coisas sobre energia nuclear, bombas atomicas, buracos negros, tomo-

grafia computadorizada, lixo atomico, viagens interestelares, etc. Es-

tas coisas aparecem em jornais, revistas, romances, filmes, poemas,

etc. Fazem parte do nosso dia-a-dia, e ocupam o centro da producao

cientıfica e tecnologica dos paıses industrializados, onde o uso deste co-

nhecimento gera riqueza e desenvolvimento. No entanto, muitas vezes

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES3

nao nos damos conta de que este conhecimento e o produto de uma

revolucao cientıfica (talvez a maior da historia da humanidade), que

ocorreu ha menos de 100 anos atras! As bases desta revolucao sao duas

teorias fısicas espetaculares: a Teoria da Relatividade e a Mecanica

Quantica. E sobre estas duas teorias e suas consequencias de que trata

este livro. Antes, contudo, para melhor apreciarmos a devastacao feita

por estes dois furacoes, e necessario que nos coloquemos na situacao

dos fısicos do inıcio do seculo XX, que tiveram que assistir perplexos

ao desabamento do Templo que habitavam.

1.1.1 As Leis do Movimento;Newton, Espaco e Tempo Absolutos

O que hoje chamamos de Fısica Classica e basicamente o conteudo da

obra de dois homens: o ingles Isaac Newton, e o escoces James Clerk

Maxwell. O primeiro unificou as leis da mecanica, que descrevem o

movimento de objetos sob a acao de forcas que sobre ele atuam. O

segundo unificou as leis que regem os fenomenos eletricos e magneticos,

incluindo a propagacao de ondas eletromagneticas no espaco, como on-

das de radio e a luz. Na fısica, esses dois monumentos teoricos sao

conhecidos como Mecanica Classica e Eletrodinamica Classica.

Nesta secao vamos revisar os fundamentos da mecanica, seus pos-

tulados, e suas leis do movimento: as tres leis de Newton. Na segunda

parte deste capıtulo estudaremos os fenomenos eletromagneticos. Al-

guns conceitos matematicos, como a “derivada” e a “integral” de uma

funcao sao introduzidos nos paineis, por razoes de complementaridade.

Ter conhecimento previo destas tecnicas nao e, contudo, necessario para

Page 21: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

4

acompanhar o texto.

A obra Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, ou Princıpios

Matematicos da Filosofia Natural, publicada em 1687, e um marco na

Historia da Ciencia, que perpetua o nome de Isaac Newton como um

dos maiores, senao o maior genio cientıfico que ja existiu. Nesta obra,

Newton estabelece os fundamentos da mecanica. O espaco e o tempo

absolutos sao conceituados como estruturas estaticas, homogeneas, in-

alteraveis, que nada tem a ver com as outras coisas. Para Newton,

as nocoes vulgares de espaco e tempo que temos decorrem da nossa

experiencia de movimento dentro dessa estrutura absoluta.

Page 22: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES5

PAINEL I

A VIDA E OBRA DE DOIS GENIOS

O ingles Isaac Newton nasceu no dia de Natal de 1642, em uma cidade chamada

Woolsthorpe ao centro-norte da Inglaterra. No mesmo ano morria o italiano Galileu

Galilei. Newton bacharelou-se pela Universidade de Cambridge em 1665, ano que

retornaria para Woolsthorpe, fugindo da Grande Peste que assolava a Europa. Os

dois anos que se seguiram foram, segundo o proprio Newton, os mais ferteis de sua

vida. Durante este perıodo desenvolveu o Calculo Diferencial e Integral (que ele

denominava calculo das fluxoes), fez importantes estudos de otica, e comecou a sua

Teoria da Gravitacao Universal. Tornou-se membro da Royal Society (a academia

de ciencias inglesa) em 1672. Sua obra mais importante, o Philosophiae Naturalis

Principia Mathematica foi publicada em 1687, com duas edicoes posteriores, em

1713 e 1726. Newton morreu em 1727.

James Clerk Maxwell nasceu em Edinburgo, capital da Escocia, no dia 13 de

junho de 1831, e portanto quase 100 anos apos a morte de Newton. Ainda muito

jovem ja revelava aptidoes especiais para a ciencia. Aos 19 anos produziu alguns

trabalhos originais que foram apresentados a Royal Society de Edinburgo. Em 1847

Maxwell ingressou na Universidade de Edinburgo, terminando sua graduacao em

janeiro de 1854. Seus trabalhos mais importantes sobre Teoria Cinetica dos Gases e

Eletrodinamica foram desenvolvidos durante os anos de 1860 e 1865, perıodo em que

esteve no Kings College, em Londres. Em 1871 tornou-se professor de eletricidade

e magnetismo em Cambridge, onde durante os primeiros anos deu retoques em seu

grande trabalho sobre a eletrodinamica. Em 1879 caiu doente e faleceu no dia 5 de

novembro, com a idade de apenas 49 anos.

Page 23: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

6

A famosa expressao matematica1

F = ma (1.1)

define a relacao entre a forca resultante F que atua sobre um objeto

de massa m, e a aceleracao a que este adquire sob a acao da forca.

Esta equacao dinamica e o coracao da mecanica classica. Ela descreve

o movimento de qualquer objeto: pode tanto ser uma bola que rola

ladeira abaixo, quanto o movimento de um planeta em torno do Sol.

A equacao 1.1 e a expressao matematica da conhecida Segunda Lei de

Newton. Newton postulou mais duas leis de movimento. Sao elas:

Primeira Lei: Todo corpo permanece em estado de re-

pouso ou de movimento retilıneo uniforme, a menos que

atuem sobre ele forcas externas que alterem este estado;

Terceira Lei: A toda acao existe sempre uma reacao

igual em modulo, e em sentido contrario.

Com essas tres Leis, Newton revolucionou o Mundo!

E importante lembrar que a equacao 1.1 e uma equacao vetorial.

As quantidades F e a nao sao numeros puros: sao vetores, e portanto

possuem modulo, direcao e sentido. Vetores, de uma maneira geral, pos-

suem tres componentes, que correspondem as tres dimensoes do espaco.

No caso da forca F, por exemplo, representamos essas componentes por

Fx, Fy e Fz. Em problemas unidimensionais so havera uma componente

1Adotaremos a notacao em negrito ‘F’, ao inves da mais usual ‘F ’, para repre-sentar vetores.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES7

e podemos omitir o negrito da notacao vetorial, observando, contudo,

o sentido do movimento.

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8

PAINEL II

QUANTIDADES ESCALARES E VETORIAIS

Em fısica, numeros servem para quantificar propriedades relacionadas a objetos ou

ao movimento de objetos. Por exemplo, quando afirmamos que um objeto possui

uma massa de 5 kg, associamos a propriedade de massa, o numero 5, vezes o padrao

quilograma. Algumas propriedades, no entanto, nao ficam completamente caracte-

rizadas apenas com um numero. Por exemplo, se alguem disser ‘passou por aqui um

carro a 100 km/h’, nos ocorre a pergunta: ‘em que direcao?’ Neste caso, somente

o numero ‘100 km/h’ nao completa a informacao. Quantidades que ficam caracte-

rizadas apenas por um numero sao chamadas escalares, e quantidades associadas a

direcoes no espaco sao chamadas vetoriais.

Vetores possuem modulo, direcao e sentido. Usamos os vetores unitarios (ou

seja, de modulo 1, tambem chamados de versores) i, j e k, tambem chamados de

vetores de base, para representarmos as 3 direcoes do espaco. Com isso podemos

escrever qualquer vetor como uma combinacao dos vetores de base. Por exemplo,

F = Fxi+ Fyj+ Fzk

representa um vetor F cujas componentes sao Fx, Fy e Fz. Embora nao seja es-

tritamente necessario, os vetores de base sao em geral perpendiculares entre si, ou

seja, formam angulos de 90 graus uns com os outros.

O modulo de um vetor F, representado por |F| ou F , e uma medida da inten-sidade da grandeza fısica que ele representa. O modulo e dado por:

|F| =√F 2

x + F 2y + F 2

z

Por exemplo, o modulo do vetor posicao r = 3i−2j+5k e igual a √9 + 4 + 25 ≈ 6, 2unidades de distancia (por exemplo, o metro). O modulo do vetor velocidade v =

4i+ j − 5k e √16 + 1 + 25 ≈ 6, 5 unidades de velocidade (por exemplo, kilometrospor hora).

A soma de dois vetores e outro vetor cujas componentes sao as somas das

componentes dos vetores originais. Se

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES9

F1 = F1xi+ F1yj+ F1zk

e

F2 = F2xi+ F2yj+ F2zk

entao:

F1 + F2 = (F1x + F2x)i+ (F1y + F2y)j+ (F1z + F2z)k

Por exemplo, se F1 = 3i− 2j+5k, e F2 = i+4j−k, entao, F1+F2 = 4i+2j+4k.

Graficamente, o vetor soma e dado pela diagonal do paralelogramo cujos lados sao

formados pelos vetores originais.

A direcao de um vetor e dada pelo vetor unitario obtido dividindo-se cada

componente do vetor pelo seu modulo. Por exemplo, a direcao de F = 3i− 2j+5k,a qual vamos representar por eF , e igual a:

eF =3i− 2j+ 5k

6, 2= 0, 48i− 0, 32j+ 0, 81k

Note que |eF | = 1, como requer um vetor unitario.

Existem tipos diferentes de produtos entre vetores. Por exemplo, o produto

escalar, cujo resultado e uma quantidade escalar, e o produto vetorial, cujo resultado

e outro vetor, perpendicular aos dois vetores originais. Se F1 e F2 sao dois vetores,

e θ o menor angulo entre eles, seu produto escalar sera dado por:

F1 · F2 = |F1||F2|cosθ

E o modulo do produto vetorial sera dado por:

|F1 × F2| = |F1||F2|senθ

Os produtos escalar e vetorial podem tambem ser expressos em termos das

componentes dos vetores, sendo o primeiro dado por:

F1 · F2 = F1xF2x + F1yF2y + F1zF2z

Page 27: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

10

e o segundo:

F1 × F2 = (F1yF2z − F1zF2y)i+ (F1zF2x − F1xF2z)j+ (F1xF2y − F1yF2x)k

Essas duas relacoes podem ser obtidas a partir do fato de que os unitarios i, j e k

possuem as propriedades:

i · i = j · j = k · k = 1

i · j = j · k = k · i = 0

i× j = k; j× k = i; k× i = j

i× i = j× j = k× k = 0

e notando que o produto vetorial troca de sinal sob uma permuta dos vetores:

i× j = −j× i, etc.

A partir do que foi dito acima, fica facil calcular o angulo entre dois vetores;

este sera dado pelo angulo entre os vetores unitarios correspondentes, ou seja:

cosθ = eF1 · eF2

Por exemplo, se eF1 = 0, 48i−0, 32j+0, 81k e eF2 = 0, 24i−0, 94j+0, 24k, o anguloentre F1 e F2 e igual a:

cosθ = 0, 11 + 0, 30 + 0, 19 = 0, 61⇒ θ = 52, 4o

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES11

A aceleracao a e definida como a taxa de variacao da velocidade v,

por intervalo de tempo. A velocidade, por sua vez e definida como a

taxa de variacao da posicao r do objeto por intervalo de tempo. Neste

ponto aparece uma certa dificuldade nessas definicoes. Para exempli-

fica-la, considere uma situacao simples em que um motorista e obrigado

a percorrer uma distancia de 80 km em 1 hora. Obviamente isto pode

ser feito de diversas maneiras. A mais simples consiste em manter uma

velocidade constante, exatamente igual a 80 km/h, e apos 1 hora ele

tera percorrido a distancia desejada. Neste caso, nao ha variacao da

velocidade durante o percurso, e consequentemente a aceleracao sera

igual a zero.

Uma segunda opcao seria acelerar o carro uniformemente ao longo

do percurso. Por exemplo, se a carro iniciar o movimento com uma ve-

locidade de 20 km/h, e o motorista for capaz de manter uma aceleracao

constante de 120 km/h2 (isto e, a cada hora a velocidade aumentar de

120 km/h), apos exatamente 1 hora ele tera percorrido os 80 km.

Nesses casos simples (de aceleracao nula ou uniforme), v e a podem

ser definidos por:

v =r − r0

t− t0=

∆r

∆t(1.2)

a =v − v0

t− t0=

∆v

∆t=

∆t

(∆r

∆t

)≡ ∆2r

(∆t)2(1.3)

onde o sımbolo ∆2r foi introduzido para representar ∆(∆r), ou seja, a

variacao da variacao da posicao do objeto2 r0 e t0 sao respectivamente

2No presente contexto, a expressao mais a direita, ∆2r/∆t2, deve ser vista como

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12

a posicao e o instante iniciais. No nosso exemplo do carro, |∆r| = 80

km, e ∆t = 1 h. Embora estejamos usando unidades do nosso dia-

a-dia para expressar velocidade e distancia, no sistema internacional

(SI) as unidades de r e v sao respectivamente o metro (m) e o metro

por segundo (m/s). A aceleracao se mede em metro por segundo ao

quadrado (m/s2), e a forca em newtons (N=kg · m · s−2).

Estamos de acordo que estas nao sao as duas unicas maneiras de se

percorrer 80 km em 1 h. De um modo geral, a aceleracao e a velocidade

irao variar de uma forma arbitraria com o tempo ao longo do percurso,

e as definicoes 1.2 e 1.3 nao serao validas, pois consideram os valores de

r e v apenas no inıcio e fim do movimento. Newton se deparou com este

problema, e para resolve-lo teve que inventar uma nova matematica!

Imagine que ao inves de medir a variacao de r e v entre o inıcio

(t0) e o fim (t) do movimento, o intervalo de tempo ∆t seja dividido

em 1000 intervalos menores, cada um com 3,6 segundos. Se para cada

um destes sub-intervalos calcularmos as razoes dadas por 1.2 e 1.3,

teremos uma especie de velocidade e aceleracao “instantaneas”. Para

sermos ainda mais precisos, poderıamos dividir ∆t em 10000 ou em

1000000 de sub-intervalos. Quanto menor for o sub-intervalo, mais as

definicoes 1.2 e 1.3 refletirao os valores instantaneos de v e a. Nada

nos impede de imaginarmos intervalos infinitamente pequenos de r e t.

Em matematica esses intervalos infinitesimais sao representados por dr

e dt. Com isso as definicoes 1.2 e 1.3 se tornam:

ummero sımbolo matematico, e nao uma operacao propriamente dita. Somente paraintervalos de tempo muito pequenos de ∆r e ∆t e que este “sımbolo” se transformaem uma operacao.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES13

v =dr

dt(1.4)

a =dv

dt=d2r

dt2(1.5)

O leitor iniciado em matematica avancada reconhecera imediata-

mente as expressoes acima como as derivadas dos vetores r e v em

relacao a t (dizemos que a velocidade e igual a derivada primeira da

posicao em relacao ao tempo, e que a aceleracao e a sua derivada se-

gunda). O leitor nao iniciado em Calculo Diferencial , nao precisa se

preocupar, pois nao faremos uso desta ferramenta neste livro (algumas

nocoes basicas sao descritas no Painel III). O importante e lembrar que

as definicoes 1.2 e 1.3 estao restritas a situacoes particulares.

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14

PAINEL III

DERIVADA DE UMA FUNCAO

Seja r uma funcao de t: r = r(t). Esta poderia ser, por exemplo, a posicao

de um objeto que se move com o tempo. Como calcular a velocidade do objeto,

tambem como funcao de t? Tomemos dois intervalos de tempo, t e t + ∆t. As

posicoes correspondentes a esses instantes serao, respectivamente, r(t) e r(t+∆t).

Por definicao, a velocidade media neste intervalo sera:

v =r(t+∆t)− r(t)

∆t

A derivada de r em relacao a t e definida como o limite da razao acima quando o

intervalo de tempo ∆t for infinitamente pequeno, ou seja, ∆t → 0 (le-se ‘delta t

tende a zero’). Simbolicamente escrevemos:

v =drdt= lim

∆t→0

r(t+∆t)− r(t)∆t

Suponha por exemplo que a funcao r(t) seja proporcional ao quadrado de t:

r(t) = a0t2, onde a0 e constante. Entao:

r(t+∆t) = a0(t+∆t)2 = a0(t2 +∆t2 + 2t∆t) =

= r(t) + 2a0∆t+ a0(∆t)2

Consequentemente:

r(t+∆t)− r(t) = 2a0t∆t+ a0∆t2

Dividindo esta expressao por ∆t teremos:

r(t+∆t)− r(t)∆t

= 2a0t+ a0∆t

Tomando o limite ∆t→ 0, o segundo termo do lado direito se anula e ficamos com:

lim∆t→0

r(t+∆t)− r(t)∆t

= v(t) = 2a0t

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES15

Este processo pode ser repetido para qualquer funcao, escalar ou vetorial. Pode-

mos, por exemplo, calcular a aceleracao a partir do resultado acima:

a =d2rdt2

= lim∆t→0

v(t+∆t)− v(t)∆t

= 2a0

.

A velocidade instantanea em um tempo t e obtida dividindo-se o intervalo infinite-simal δx por δt.

Page 33: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

16

Outras quantidades importantes da mecanica sao o momento linear

(ou quantidade de movimento) p, definido por

p = mv

onde m e a massa do objeto, e o momento angular L, definido como o

produto vetorial entre r e p, tambem chamado de torque do momento

linear:

L = r × p

onde o sımbolo ‘×’ representa o produto vetorial. Enquanto p e uma

medida da quantidade de movimento de translacao, L e uma medida da

quantidade de movimento de rotacao. Por exemplo, um carro pesando

1 tonelada (1000 kg) se deslocando a 100 km/h (aproximadamente 28

m/s) possui uma quantidade de movimento com modulo igual a p =

28000 kg m/s. Se ao inves do carro fosse um passaro, com apenas 0,5

kg, o modulo da quantidade de movimento seria de 14 kg m/s. Se por

outro lado o nosso carro estivesse descrevendo uma curva circular com

raio de 50 m, ele teria um momento angular cujo modulo seria 1, 4×106

kg m2/s.

A variacao de p esta ligada a aplicacao de forcas externas sobre o

sistema, assim como a variacao de L esta ligada a torques externos.

Portanto, essas quantidades se conservarao (ou seja, nao mudarao com

o tempo) se nao houver forcas e torques atuando sobre o sistema.

Outra variavel dinamica importante e a energia cinetica do objeto,

definida por:

T =1

2mv2 =

p2

2m

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES17

onde v e p sao os modulos dos vetores v e p, respectivamente. T e uma

medida da energia associada ao movimento do objeto, e sua unidade

no SI e o joule (J). Se houver um campo de forcas atuando sobre o

objeto, como por exemplo o campo gravitacional (veja adiante), havera

tambem uma energia potencial, que representamos genericamente por

V .

Ao contrario da energia cinetica, que e zero se o objeto estiver

parado, a energia potencial nao se anula para v = 0. Se, por exem-

plo, segurarmos uma pedra a uma altura h do solo, sabemos que se a

soltarmos ela caira. Antes de ser solta, a pedra possuıa uma energia

potencial igual a V = mgh, onde m e a massa e g a aceleracao da

gravidade. Ao tocar o solo, h = 0 e consequentemente V = 0, mas a

velocidade nesse instante sera maxima, e portanto a energia cinetica

tambem sera maxima. O que ocorreu ao soltarmos a pedra foi uma

transformacao da energia potencial em cinetica. Usando o fato de que

a energia total se conserva, a velocidade do objeto ao chegar ao solo

pode ser calculada simplesmente igualando as duas formas de energia:

ENERGIA CINETICA MAXIMA = ENERGIA POTENCIAL

MAXIMA

mv2max

2= mgh⇒ vmax =

√2gh

Por exemplo, se h = 10 m, e g = 10 m/s2, vmax ≈ 14 m/s, ou aproxi-

madamente 4 km/h.

Note deste resultado que a velocidade maxima independe da massa

da pedra, embora a energia dependa! Ou seja, tanto pode ser uma

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18

pedra de 50 g quanto uma de 10 kg que a velocidade ao tocar o solo

sera a mesma. Falaremos mais sobre isto adiante.

Em qualquer situacao a energia total do objeto, E, e a soma das

energias cinetica e potencial:

E = T + V

Em uma grande classe de problemas importantes, como o caso da queda

de objetos, a energia total se conserva (note que isso nao quer dizer

que T e V se conservam separadamente, mas apenas sua soma). Tais

sistemas sao chamados de conservativos.

1.1.2 Movimento de Objetos sob a Acao deForcas Mecanicas

Para conhecermos a trajetoria e a velocidade de um objeto temos que

resolver a equacao 1.1. Um exemplo bem conhecido de aplicacao pratica

daquela equacao e o calculo da trajetoria de um projetil disparado de

um canhao. Podemos tambem calcular a velocidade com que gotas

d’agua caem do ceu em um dia de chuva, as posicoes de uma massa

oscilando presa a uma mola, a trajetoria do cometa de Halley, etc.

Qualquer que seja o caso, e preciso conhecermos a natureza da forca

F que comparece em 1.1, e sua forma funcional. Forma funcional e

a expressao matematica que descreve a dependencia da forca com as

variaveis do problema, como a posicao, a velocidade, o tempo, etc. Se

o amigo leitor entender este ponto, ja tera ganho o dia! Matematica-

mente, podemos escrever a forca com qualquer forma. Por exemplo,

podemos inventar uma forca do tipo

Page 36: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES19

F =a√x

onde x e a posicao do objeto. Podemos inventar o que quisermos:

F = bx2/7,−c/x2, dsen(kx), etc. Formalmente qualquer coisa serve!

F pode tambem depender explicitamente da velocidade e do tempo.

Matematicamente e uma festa! Acontece que para descrevermos os

fenomenos da Natureza temos que encontrar a F correta para cada um

deles. Isso e o que faz a diferenca. Movimentos de planetas, quedas

de objetos, movimentos de partıculas carregadas em campos eletro-

magneticos, etc., obedecem a forcas com formas funcionais especıficas.

Sao leis imutaveis estabelecidas pela Natureza. O trabalho do fısico

e precisamente descobrir quais sao estas leis a partir da observacao do

movimento causado por elas. Matematicamente este trabalho se traduz

em escrever corretamente o lado esquerdo da equacao 1.1, e depois re-

solve-la a fim de encontrar os vetores r(t) e v(t) (o que nem sempre e

possıvel, mesmo conhecendo-se a lei correta!). O leitor pode estar se

perguntando que metodos sao utilizados para se descobrir a forma fun-

cional correta da forca em um dado problema. E o analogo a perguntar

que metodos Chico Buarque utiliza para escrever os seus versos, ou

que metodos Pele utilizava para chegar ate o gol! As vezes e possıvel,

atraves de experimentos, deduzir uma forma funcional para F em uma

dada situacao. Outras vezes se consegue bons resultados por tentativa

e erro, ou seja, “chuta-se”. Obviamente quanto melhor informado es-

tivermos acerca do problema, maiores serao nossas chances de darmos

um bom “chute”. Mas, assim como na musica e no futebol, na fısica

Page 37: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

20

havera sempre os “Peles”, os “Chico Buarques”, e os outros.

O caso mais trivial de movimento ocorre quando a forca que atua

sobre o objeto e nula, ou seja, F = 0. A equacao 1.1 neste caso se

torna:

ma = 0

Mas na medida em que m = 0, a unica solucao possıvel para a esta

equacao e:

a = 0

Por simplicidade vamos considerar o movimento em 1 dimensao e

omitir o negrito da notacao vetorial da aceleracao. Nesse caso escreve-

mos:

a = 0

Consequentemente, utilizando a definicao simplificada da aceleracao

obtemos:

∆v

∆t=v − v0

t− t0= 0

Para que a fracao se anule, e suficiente que o seu numerador se anule.

Logo:

v − v0 = 0 ⇒ v = v0

ou seja, a velocidade do objeto neste caso permanece igual a sua ve-

locidade inicial. Isso quer dizer que se o objeto estiver inicialmente

Page 38: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES21

parado, assim permanecera indefinidamente. Se por outro lado o ob-

jeto estiver se movendo, continuara nesse estado de movimento ad eter-

num. Observe que obtivemos matematicamente aquilo que e enunciado

da primeira lei de Newton! Na literatura secundarista este problema

aparece com o nome - na minha opiniao excessivamente burocratico -

de movimento retilıneo e uniforme, ou MRU.

Podemos levar o calculo adiante e obter a posicao do objeto no

tempo. Basta escrevermos:

v =x− x0

t− t0= v0 ⇒ x = x0 − v0t0 + v0t

Como sabemos, x0 e v0 sao condicoes iniciais arbitrarias. Seus va-

lores sao obtidos em t0, o instante do inıcio do movimento. Em geral

escolhemos t0 = 0, e a equacao acima se torna:

x = x0 + v0t

A proposito, temos aqui uma daquelas situacoes embaracosas que o

leitor atento ja deve ter percebido. O que ocorre com a definicao de v

acima se fizermos t = t0? Em princıpio deverıamos obter a velocidade

em t = t0, que por sua vez e igual a v0, ja que nao ha forcas atuando

no sistema. Mas vemos que para t = t0 o denominador da expressao

para v se anula. Uma fracao com denominador muito pequeno e um

numero muito grande. Por exemplo, 1/0, 01 = 100; 1/0, 001 = 1000; e

1/0, 0000001 = 1000000. Extrapolando, dizemos que se o denominador

da fracao tender para zero, a fracao tendera para infinito (ocasional-

mente o leitor estara lembrado que 1/0 = ∞). Mas, por definicao, em

t = t0, o objeto se encontra exatamente em x = x0, o que tambem

Page 39: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

22

anula o numerador. Teremos entao o estranho resultado 0/0. Mate-

maticamente o resultado da divisao de zero por zero e indeterminado.

Indeterminado?! Como, se sabemos de inıcio que a velocidade e cons-

tante e igual a v0? Deixo para o leitor o desafio deste paradoxo!

Voltando ao problema, vemos que a posicao do objeto em um ins-

tante t qualquer pode ser obtida calculando-se a area sob a curva em

um grafico de v versus t. O problema foi resolvido. Passado e futuro

estao plenamente determinados! Por exemplo, se x0 = 0, e v0 = 50

km/h, em 5 minutos o objeto estara a uma distancia de 4,2 km da

origem. Ha 100 anos atras (ou seja, t = −100 anos), o objeto estava a

−43800000 km da origem, e assim por diante.

Um segundo exemplo, ligeiramente mais complicado, e o caso de

uma forca constante, igual a F0, atuando sobre o objeto. Teremos

neste caso:

ma = F0 ⇒ a =F0

m

ou seja, a aceleracao tambem e constante e igual a F0/m. Vamos ba-

tizar de a0 essa quantidade. Usando a definicao simplificada de a, e

considerando novamente t0 = 0, obtemos a velocidade (que e numeri-

camente igual a area sob a curva de a versus t):

v = v0 + a0t

A posicao sera novamente dada pela area sob a curva de v versus t, e

pode ser facilmente obtida:

x = x0 + v0t +1

2a0t

2

Page 40: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES23

O exemplo do motorista que deve percorrer 80 km em 1 h, com v0 = 20

km/h, e a0 = 120 km/h2 , pode agora ser trivialmente verificado da

expressao acima:

x− x0 = 20 +120

2= 80

E o que ocorre no caso geral em que a forca e uma funcao arbitraria

de t? Ainda aqui podemos interpretar v(t) e x(t) geometricamente

como as areas sob as curvas de a versus t e v versus t, respectivamente.

A diferenca esta no fato de que neste caso o calculo da area se torna

mais complicado.

A tecnica matematica para se calcular areas sob curvas com formas

arbitrarias e chamada de integracao, e foi inventada (“pra variar”) por

Newton3

3Esta tecnica faz parte do que chamamos atualmente em matematica de CalculoDiferencial e Integral, ou simplesmente Calculo. O Calculo foi inventado simultane-amente por Newton e pelo matematico alemao Gottfried Wilhelm Leibniz.

Page 41: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

24

PAINEL IV

INTEGRAL DE UMA FUNCAO

Seja uma funcao arbitraria f(x). E interessante sabermos calcular a area sob

a curva descrita por f . Somente em situacoes muito simples, como no caso de

uma funcao constante, ou linear, e que podemos fazer isso usando as formulas da

Geometria Plana. Em um caso geral, para sabermos a area temos que integrar a

funcao.

A integracao de uma funcao pode ser visualizada como um processo de soma

de areas infinitesimais. O intervalo no qual a area sera calculada e dividido em

N subintervalos, cada um com uma largura infinitesimal ∆x. Cada um desses

subintervalos pode ser considerado como um retangulo de base ∆x e altura f(x), e

portanto possuira uma area igual a

∆S = f(x)∆x

Se somarmos todas as areas dos N intervalos, teremos a area total desejada:

S =∑N

f(x)∆x

A integral de f(x) e definida como o resultado dessa soma quando tomamos o limite

∆x → 0, que representamos por dx. Simbolicamente representamos a integral por∫(uma especie de ‘S’ esticado):

lim∆x→0

∑N

f(x)∆x ≡∫f(x)dx

Matematicamente pode ser demonstrado que a operacao de integracao de uma

funcao e o inverso da operacao de derivacao. Ou seja, se g(x) e a funcao que resulta

da derivacao de f(x),

g(x) =df(x)dx

entao, a funcao f e a integral de g:

f(x) =∫g(x)dx

Page 42: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES25

Considere, por exemplo, a funcao v(t) = a0t, a velocidade de um objeto que

se move ao longo do eixo x com aceleracao constante, igual a a0. A integral desta

funcao sera: ∫v(t)dt =

∫a0tdt

Mas como a0 nao depende de t, podemos escrever:∫v(t)dt = a0

∫tdt

A funcao a ser integrada e portanto f(t) = t. Como esta funcao e igual a derivada

da funcao g(t) = t2/2, teremos: ∫v(t)dt =

12a0t

2

Reconhecemos este resultado como a posicao de um objeto que se move em MRUA,

com velocidade e posicao iniciais iguais a zero:

x(t) =∫v(t)dt =

12a0t

2

A integral de uma funcao entre os pontos a e b e numericamente igual a soma dasareas dos trapezios, como mostrado na figura.

Page 43: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

26

Um exemplo de forca extremamente importante em fısica e aquela

em que F e proporcional ao deslocamento do objeto, mas atua em

sentido contrario ao movimento, ou seja:

F = −kx

O tipo de movimento que decorre dessa forca aparece em varios fenomenos

da Natureza, e daı a sua importancia. A solucao formal da equacao 1.1

nesse caso e consideravelmente complexa para ser apresentada aqui,

mas podemos conhecer o resultado mesmo sem realizarmos formalmente

os calculos.

Na expressao acima, k e uma constante positiva chamada de “cons-

tante de forca”, ou “constante elastica”. Sua unidade e o newton por

metro (N/m), e e uma caracterıstica intrınseca do sistema. Por exem-

plo, esse tipo de forca ocorre em uma mola que e deformada se nela

pendurarmos um objeto de massa m (por exemplo, num dinamometro).

k e uma caracterıstica intrınseca da mola, assim como m e uma car-

acterıstica intrınseca do objeto preso a ela. Quanto mais esticamos a

mola, mais difıcil se torna estica-la, porque a forca F aumenta com a de-

formacao x, e portanto tende a restaurar o estado nao deformado. Todo

mundo ja viu as oscilacoes de um objeto preso a uma mola. Se sim-

plesmente pendurarmos o objeto, a mola se deformara e ficara parada.

Mas se alem desse ponto esticarmos a mola e a soltarmos, o objeto

passa a oscilar em torno da posicao de equilıbrio. Esse movimento de

“vai-vem” e descrito pelas funcoes periodicas seno e cosseno:

x(t) = xmaxcos(ω0t)

Page 44: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES27

ou

x(t) = xmaxsen(ω0t)

onde xmax e a deformacao maxima alcancada pela mola. A quantidade

ω0, chamada de frequencia angular, e uma medida da “rapidez” das

oscilacoes. Ela e dada por:

ω0 =

√k

m

ω0 e medida em radianos por segundo (rad/s). O produto ωt possui

portanto dimensao de angulo, e se mede em radianos. Um ciclo com-

pleto do movimento corresponde a ω0t = 2π rd.

A frequencia do movimento, f0, se relaciona com ω0 atraves de:

f0 =ω0

Portanto a unidade de f0 e o s−1, ou Hertz. Dizer que a frequencia

do movimento e de 10 Hz significa dizer que a cada segundo o sistema

realiza 10 oscilacoes completas.

O inverso da frequencia e o perıodo, τ , que corresponde a um ciclo

completo do movimento:

τ =1

f0

=2π

ω0

A unidade do perıodo e o segundo (s). Se a frequencia e de 10 Hz, o

perıodo e de 0,1 s, sendo este o tempo gasto pelo sistema para completar

1 volta. Suponha por exemplo que k = 2 N/m, e m = 0, 5 kg. Entao,

ω0 =

√2

0, 5= 2

rd

s

Page 45: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

28

e consequentemente,

f0 =1

2πrd× 2

rd

s= 0, 32 Hz

e o perıodo,

τ = 3, 1 s

Ou seja, a cada segundo o sistema realiza somente 32% de seu ciclo

completo.

E importante enfatizarmos o fato de que ω0, e portanto f0 e τ sao

quantidades intrınsecas ao sistema. Estas quantidades caracterizam o

movimento do objeto, pois nos dizem o perıodo e a frequencia com que

ele oscila. O interessante e que o sistema pode estar parado, e mesmo

assim podemos caracterizar o seu movimento. Isso e possıvel precisa-

mente porque ω0 depende somente de k, uma propriedade intrınseca

da mola, e m, uma propriedade intrınseca do objeto. Chamamos ω0 de

frequencia natural do sistema, ou modo normal de oscilacao.

Todo sistema mecanico possui modos normais de oscilacao (ou seja,

possui frequencias naturais que intrinsecamente determinam como ele

vibrara caso seja posto em movimento). Conhecer os modos normais de

um sistema e de grande importancia, pela seguinte razao: se uma forca

externa variar com o tempo e atuar sobre um sistema mecanico na sua

frequencia natural [por exemplo, uma forca do tipo F (t) = F0sen(ω0t)

atuando sobre um sistema massa-mola com frequencia natural ω0], a

amplitude do movimento crescera tanto que podera haver uma ruptura

no sistema. Esse fenomeno e chamado de ressonancia. Dizemos que

a forca externa esta em ressonancia com o sistema. O caso da ponte

Page 46: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES29

Tacoma Narrows nos Estados Unidos e um exemplo dramatico de res-

sonancia em sistemas mecanicos. Ela desabou em 1 de julho de 1940,

pouco tempo apos a sua inauguracao devido a acao ressonante do vento

sobre ela4. Da proxima vez que o leitor estiver atravessando uma ponte

em uma regiao onde venta muito (como na ponte Rio-Niteroi no Rio

de Janeiro), procure NAO pensar sobre o fenomeno da ressonancia!

1.1.3 Gravitacao Universal: da Queda da Maca a

Queda da Lua

No inıcio de 1665 eu encontrei o metodo de aproximacao

de series. Em maio do mesmo ano eu encontrei o metodo

das tangentes, e em novembro eu tinha o metodo de fluxoes,

e em janeiro do ano seguinte a teoria das cores, e em maio

iniciei o metodo inverso das fluxoes. No mesmo ano come-

cei a estender a gravitacao a orbita da Lua, e da regra de

Kepler para o perıodo dos planetas, deduzi que a forca que

mantem os planetas em suas orbitas deve ser proporcional

ao inverso do quadrado da distancia. Tudo isso aconte-

ceu durante 1665-1666, os anos da Peste. Eu estava no

primor da minha inventividade para matematica e filosofia,

mais do que estaria em qualquer outra epoca da minha vida.

(The Life of Isaac Newton, Richard Westafall, Cam-

bridge 1993)

O maior feito de Isaac Newton, e talvez a maior conquista intelectual

ja alcancada por um so homem, foi o de ter sido capaz de explicar o4Existe, contudo, alguma controversia sobre a razao do desabamento da ponte.

Page 47: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

30

movimento de corpos celestes (satelites, planetas, cometas, etc.) com

base na equacao 1.1, e portanto coloca-los na mesma “categoria” dos

fenomenos que ocorrem na superfıcie da Terra, como a simples queda

de uma maca.

Newton postulou que objetos massivos se atraem, sendo a forca de

atracao proporcional ao produto das massas dos objetos envolvidos e

inversamente proporcional ao quadrado da distancia entre eles. Ou

seja, se m1 e m2 forem as massas de dois objetos separados por uma

distancia r, a forca de atracao de m1 sobre m2 sera:

F = −Gm1m2

r2er (1.6)

onde er e o vetor unitario da direcao que liga os dois objetos, com

sentido5 de m1 para m2. G e a chamada Constante de Gravitacao

Universal, e vale G = 6, 67 × 10−11 m3/s2kg.

Nos deparamos aqui novamente com um grau de generalizacao fan-

tastico, tıpico das grandes teorias fısicas: a expressao da forca em 1.6

vale para quaisquer pares de objetos no Universo6! Reflita um pouco

sobre isso: podemos tanto descrever uma pedra que cai na superfıcie

da Terra, quanto o movimento de um planeta desconhecido em torno

de um sol em uma galaxia jamais vista, usando a mesma equacao 1.6!

Que outra Ciencia possui esse poder de sıntese?! O leitor eventualmente

estara interessado em uma aplicacao curiosa da equacao 1.6, qual seja,

5E obvio que m2 atraira m1 com uma forca de igual modulo. Contudo o seusentido sera dado por um unitario oposto a er.

6De fato, a Gravitacao Universal de Newton foi generalizada na RelatividadeGeral de Einstein, a ser vista no capıtulo oito. No entanto, dentro do mundoclassico, a expressao 1.6 descreve perfeitamente o movimento de objetos celestes.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES31

avaliar a forca de atracao gravitacional entre duas pessoas separadas

por uma distancia de, digamos, 0,5 mm. E frustantemente pequena!

Certamente a gravitacao nao e a forca responsavel pela “atracao” entre

pessoas!

Newton postulou que massas se atraem com forcas radiais, que diminuem com oquadrado da distancia entre os objetos.

Page 49: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

32

A forca dada em 1.6 somente sera apreciavel se pelo menos um dos

objetos tiver dimensoes astronomicas. Por exemplo, seja m1 = 80 kg,

a massa de uma pessoa e m2 a massa da Terra: m2 = M = 5, 98× 1024

kg. Tomemos por r o raio medio da Terra: r = R = 6, 37 × 106 m.

Sustituindo esses valores em 1.6 obtemos para o modulo da forca:

F ≈ 6, 67 × 10−11 × 80 × 5, 98 × 1024

(6, 37 × 106)2≈ 786 N

Como a Terra nao e uma esfera perfeita (certa vez uma das “cobras”

de Luiz Fernando Verıssimo definiu brilhantemente a Terra como um

planeta chato nos polos e nos domingos sem futebol!), esse valor varia

ligeiramente com a posicao da pessoa no planeta. Somente para efeitos

de comparacao, vamos calcular a forca com que o Sol atrai a Terra. A

massa do Sol e igual a 1, 99 × 1030 kg, e a distancia media entre o Sol

e a Terra e de 1, 50 × 1011 m. Substituindo em 1.6 obtemos:

F ≈ 6, 67 × 10−11 × 1, 99 × 1030 × 5, 98 × 1024

(1, 50 × 1011)2≈ 35, 3 × 1021 N

ou seja, a forca do Sol sobre a Terra e cerca de 40 mil quatrilhoes (= 40

quintilhoes) de vezes maior do que aquela da Terra sobre uma pessoa.

Consideremos com mais detalhes o que acontece na superfıcie da

Terra. Tomando R como seu raio medio, podemos escrever 1.6 na

forma:

F =(GM

R2

)m

onde M e a massa da Terra, e m a de qualquer objeto em sua su-

perfıcie. Como forca e igual a massa vezes aceleracao, a quantidade

entre parenteses na expressao acima possui dimensao de aceleracao, e

Page 50: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES33

e constante, ja que G, M e R sao constantes. Essa quantidade nada

mais e do que a aceleracao da gravidade na superfıcie terrestre, que

denotamos por g. Nesse caso a forca gravitacional e o que chamamos

de peso, P :

P = mg

onde

g = GM

R2

Substituindo valores numericos paraG, M eR encontra-se g = 9, 8m/s2.

Note que no nosso dia-a-dia misturamos os conceitos de massa e

peso como se fossem sinonimos. Massa esta relacionada a quantidade

de materia, e portanto e uma propriedade intrınseca do objeto. O peso,

por outro lado, e uma propriedade extrınseca, pois depende do campo

gravitacional que atua sobre o objeto. Uma pessoa com uma massa de

80 kg pesa na Terra 786 N, mas na Lua, onde a aceleracao da gravidade

e de apenas 1,6 m/s2, seu peso seria igual a 128 N. Em Netuno, onde

g = 11 m/s2 a mesma pessoa pesaria 882 N. Contudo, isto nao significa

que uma pessoa ficara mais magra ao viajar de Netuno para a Lua!

1.1.4 O Movimento dos Planetas

Contam que certa vez o eminente fısico Edmund Halley (aquele do

cometa), intrigado com o problema das orbitas dos planetas, cuja solucao

vinha perseguindo ha anos, foi a Cambridge visitar Isaac Newton.

Chegando la, humildemente expos a sua duvida: supondo que o Sol

atrai um planeta com uma forca proporcional ao inverso do quadrado

Page 51: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

34

da distancia, qual sera a trajetoria do planeta?, a que Newton teria

respondido instantaneamente: Uma elipse. Este problema eu ja resolvi

ha muito tempo atras. Halley teria ficado tao impressionado (e pos-

sivelmente deprimido) que apos verificar a demonstracao de Newton, o

convenceu a escrever o Principia, e ainda teria pago os custos da sua

publicacao!

Como mencionamos na secao anterior, o movimento de qualquer

objeto sob a acao do campo gravitacional e descrito pela expressao

dada em 1.6. Para objetos que se movem proximos a superfıcie da

Terra a forca e dada por mg, onde g e a aceleracao da gravidade.

Algo curioso acontece aqui. Substituindo F = mg na Segunda Lei

de Newton, F = ma, obtemos

mg = ma⇒ a = g = constante

donde se conclui que

v = v0 + gt

e

z = z0 + gt+1

2gt2

onde z e a distancia do objeto ao solo. Antes de irmos adiante o leitor

seria capaz de dizer o que ha de tao extraordinario neste resultado? Nao

parece ser o mesmo ja obtido anteriormente, para o caso de aceleracao

constante? Sim, parece, mas apenas parece, pois anteriormente a ace-

leracao era dada por F0/m, e portanto dependente da massa do objeto.

Ao contrario, as expressoes para v e para z acima nao contem a massa

Page 52: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES35

do objeto! Isso quer dizer que fixados z0 e v0, desprezados os efeitos

causados pelo atrito com o ar, todos os objetos cairao ao mesmo tempo

e alcancarao o solo com a mesma velocidade final! Uma geladeira, um

caminhao com sacos de cimento, uma bolinha de papel, uma caneta,

uma pena de galinha, ou um navio! Voce acredita nisso? Va em frente

e faca o teste voce mesmo: deixe cair da mesma altura uma bolinha de

papel bem amassada (para minimizar o atrito com o ar) e um tijolo.

Como diz um velho amigo do CBPF, em toda boa teoria nos temos que

“tirar” mais do que “colocar”. Em outras palavras, se a teoria nao te

causa surpresas verificaveis experimentalmente, jogue ela no lixo!

Forcas que so dependem do modulo da distancia entre os objetos

e cuja direcao esta ao longo do raio que os liga, como a dada em 1.6,

sao chamadas de forcas centrais. E importante mencionar que forcas

centrais nem sempre sao atrativas, mas podem tambem ser repulsivas,

como e o caso da forca eletrica entre cargas eletricas com o mesmo sinal

(Secao 1.2). Quando um objeto se encontra sob a acao de uma forca

central, e descreve uma trajetoria circular com velocidade constante,

podemos igualar a expressao 1.6 a chamada forca centrıpeta, dada por:

Fc =mv2

r(1.7)

onde m e a massa, v a velocidade, e r o raio da trajetoria circular.

Igualando 1.6 a 1.7 podemos calcular, por exemplo, a distancia da Terra

ate a Lua. Para isso, obviamente temos que supor a trajetoria da Lua

como sendo circular, e supor ainda que sua velociade seja constante.

Vamos la:

Page 53: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

36

mv2

r= G

Mm

r2⇒ r =

GM

v2

onde agora M e a massa da Terra e m a da Lua (note que m desaparece

da expressao final). Mas, se r e o raio da circunferencia descrita pela

Lua em volta da Terra, a distancia que a Lua percorre em uma revolucao

completa sera igual a 2πr. Como a sua velocidade e constante e igual

a v, o seu perıodo de movimento sera:

τ =2πr

v⇒ v =

2πr

τ

Por outro lado, podemos usar a expressao para g - a aceleracao da

gravidade na Terra - e substituir o produto GM (isso obviamente nao e

estritamente necessario, apenas facilita a substituicao numerica ao final

do calculo):

GM = gR2

Com isso obtemos:

r =

(gR2τ 2

4π2

)1/3

Substituindo os valores numericos: g = 9, 8 m/s2, R = 6, 37 × 106

m e τ ≈ 27 dias, obtemos r ≈ 383 000 km para a distancia Terra-Lua.

Newton foi o primeiro a fazer este calculo (o bicho era mesmo o “cao

chupando manga”!). O valor atual, medido com tecnicas modernas e

de aproximadamente 382 000 km. A tabela abaixo resume algumas das

principais propriedades dos planetas do Sistema Solar.

Page 54: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES37

.

Podemos calcular a distancia Terra-Lua supondo que o movimento da Lua e circulare uniforme.

Page 55: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

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(198

8)

Page 56: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES39

1.1.5 Massa Inercial vs. Massa Gravitacional

Podemos escrever a segunda lei de Newton da seguinte forma:

a =1

mF

ou seja, a aceleracao que um objeto adquire e diretamente proporcional

a forca a ele aplicada, e inversamente proporcional a sua massa. Para

uma dada forca, quanto maior a massa, menor sera a aceleracao. Nesta

expressao, a massa representa a resistencia do objeto ao movimento

(ou contrariamente, se o objeto estiver se movendo, m representa a sua

resistencia a parar). Esta tendencia dos objetos massivos manterem seu

estado de movimento e chamada de inercia. Por esta razao, a massa

que aparece na segunda lei de Newton e chamada de massa inercial.

Por outro lado, vimos que a forma funcional (ou seja, o lado es-

querdo de 1.1) para a forca de gravitacao proposta por Newton de-

pende explicitamente da massa que, neste caso, e chamada de massa

gravitacional:

F = GMm

R2

Na mecanica classica nao ha nada que diga ou prove que a massa

inercial e a massa gravitacional devam ser iguais. No entanto elas sao

rigorosamente identicas! Este fato, aparentemente trivial, e consider-

ado por Newton como uma “estranha” coincidencia, levou Einstein a

um profundo “insight” a respeito da natureza da interacao gravita-

cional. Com isso ele formulou seu princıpio de equivalencia a partir

do qual desenvolveu a Teoria da Relatividade Geral, que sera tratada

Page 57: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

40

no capıtulo oito. O ilustre fısico brasileiro, professor Mario Schenberg,

costumava ensinar que em fısica nada e tao trivial quanto parece. Esta

e uma grande licao!

1.1.6 Movimento Relativo

Encerra-te com um amigo dentro do maior camarote sob

o conves de um grande navio e leva contigo moscas, bor-

boletas e outros insetos que voam; municia-te tambem de

um grande recipiente cheio de agua e com peixinhos; pegue

tambem um pequeno balde cuja agua vaze gota a gota por um

pequeno orifıcio em outra vasılha colocada abaixo. Quando

o navio estiver parado, observa cuidadosamente como os

pequenos animais que voam vao com a mesma velocidade

em todas as direcoes da cabine; veem-se os peixes nadar

insdistintamente por todos os lados, e as gotas que caem

entram todas no recipeinte colocado abaixo; se jogares al-

guma coisa a teu amigo, nao teras necessidade de atirar

mais forte numa direcao que noutra quando as distancias

sao iguais. Quando tiveres observado cuidadosamente tudo

isso faze o navio navegar com a velocidade que desejares;

desde que o movimento seja uniforme, sem balancar num

sentido ou noutro, nao perceberas a menor mudanca em to-

dos os efeitos que acabamos de apontar; nada permitira que

percebas que o navio esta em marcha ou parado.

[Galileu Galilei, em 1632. Extraıdo de Imposturas Intelectuais, Alan

Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]

Page 58: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES41

Quando afirmamos que um objeto se move com velocidade v e sua

posicao em cada instante de tempo e r, esta implıcito que estas quan-

tidades estao sendo medidas a partir de alguma posicao do espaco, em

geral onde se encontra o observador. A partir de sua propria posicao,

um observador estabelece um sistema de coordenadas do qual qualquer

grandeza fısica pode ser medida. O local onde o observador se encontra

e normalmente considerado a posicao r = 0. Como o espaco possui 3

dimensoes, tal sistema de coordenadas deve possuir 3 eixos coordena-

dos, os quais chamamos x, y e z, normalmente perpendiculares entre

si. Qualquer componente de um vetor podera, entao, ser medida inde-

pendentemente de qualquer outra. Por exemplo, se uma forca qualquer

F atua sobre um objeto de massa m, podemos medir a aceleracao que

este adquire ao longo da direcao y, digamos ay, e verificar a relacao

ay = Fy/m.

Acontece que em fısica nao nos satisfazemos somente com o que ve-

mos, mas queremos tambem “bisbilhotar” o que os outros veem. Tec-

nicamente falando, queremos expressar as leis de movimento que ob-

servamos no nosso sistema de coordenadas, em termos das coordenadas

medidas por observadores em outros sistemas. Desta forma podemos

descrever o movimento de objetos do ponto de vista de observadores

diferentes, e saber como as leis da fısica se transformam de um sistema

de coordenadas para o outro. Por exemplo, podemos descrever a tra-

jetoria de uma bomba lancada de um aviao, tanto do ponto de vista de

um observador parado na Terra, quanto do ponto de vista do piloto do

aviao. As trajetorias serao obviamente diferentes, porem o ponto onde

a bomba atinge o solo sera o mesmo para os dois observadores. For-

Page 59: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

42

malizando um pouco mais, considere um objeto cuja posicao medida a

partir de um sistema de coordenadas A seja r e a partir de um sistema

de coordenadas B seja r′. A posicao de B em relacao a A e dada por

R. E facil ver que estes tres vetores estao relacionados por:

r = r′ + R (1.8)

A expressao acima pode ser entendida como uma “regra” que nos

ensina como transformar coordenadas de um sistema de coordenadas

A para outro B. Se considerassemos apenas uma dimensao, a relacao

acima seria:

x = x′ +X

onde x e a distancia medida de uma determinada origem A, e x′ de

um outra origem B, que dista de A de X. Por exemplo, se o objeto

se encontra a x = 10 metros a direita da origem de A, e a origem

deste sistema dista X = 3 metros tambem a direita da origem de B, a

distancia do objeto a origem B sera obviamente de x′ = 7 metros.

A origem B nao necessariamente precisa estar parada em relacao

a A, mas pode estar se movendo. Alem disso, o proprio objeto pode

tambem se mover em relacao a ambas. Suponha entao que a velocidade

do objeto em relacao a A seja vx, e em relacao a B seja v′x. Suponha

ainda que B se mova em relacao a A com velocidade V . A relacao entre

essas tres velocidades sera dada por:

vx = v′x + V

Ao realizarmos esta soma, devemos levar em consideracao o sentido do

movimento. Por exemplo, suponha que o objeto se mova na direcao e

Page 60: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES43

sentido positivos de x, com velocidade vx = +5 m/s, medida em relacao

a A. Se B se afasta, na mesma direcao e sentido com velocidade V = +2

m/s, a velocidade do objeto medida de B sera:

v′x = 5 − 2 = 3 m/s

Mas se B se aproxima de A com velocidade V = −2 m/s, teremos

v′x = 5 + 2 = 7 m/s

Devemos ainda notar que se o ponto B se move em relacao ao A

com velocidade V , apos um tempo t, a sua posicao em relacao a A sera

X = V t. Com isso, a relacao entre as coordenadas x e x′ se torna:

x = x′ + V t

Em tres dimensoes teremos uma relacao vetorial tambem para as

velocidades:

v = v′ + V (1.9)

onde v e a velocidade medida no sistema A, v′ aquela medida no sistema

B, e V e a velocidade relativa entre os dois sistemas. E obvio que se o

sistema B estiver parado em relacao a A, teremos V = 0, e ambos os

observadores medirao a mesma velocidade.

Agora, se a velocidade relativa V entre os dois sistemas for cons-

tante, a aceleracao relativa dos referenciais sera nula. Nesta situacao,

se o objeto que se move estiver submetido a uma forca, ambos os ob-

servadores medirao a mesma aceleracao, ou seja,

Page 61: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

44

a = a′ (1.10)

Multiplicando ambos os lados da igualdade acima pela massa do ob-

jeto (a massa independe do sistema de coordenadas), chegamos a um

importante resultado:

ma = ma′ ⇒ F = F′

onde F e a forca medida de A, e F′ de B. Consequentemente, se V for

constante, a segunda lei de Newton tera exatamente a mesma forma

em ambos os sistemas de coordenadas. Conclui-se entao que todos

os sistemas de referencia que se movem com velocidade constante sao

equivalentes uns aos outros, perante a segunda lei. Estes sistemas sao

chamados de sistemas inerciais. Sistemas de referencia acelerados, ou

seja, que se movem com velocidade nao uniforme, sao chamados de

sistemas nao-inerciais. Transformacoes de coordenadas entre sistemas

inerciais sao chamadas de transformacoes de Galileu. Como veremos

no capıtulo seguinte, quando aplicadas a fenomenos eletromagneticos

as transformacoes de Galileu falham. Isto levou Albert Einstein (consi-

derado o “Newton” do seculo XX) a reformular a mecanica newtoniana.

O resultado desta reformulacao foi a Teoria da Relatividade Restrita.

1.1.7 Fısica Termica: dos Planetas aos Gases

A mecanica classica foi alem da descricao do movimento de planetas e

outros corpos sob a acao de forcas mecanicas. Ela tambem foi capaz

de dar um fundamento microscopico para certos fenomenos termicos.

Page 62: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES45

A termodinamica e uma tradicional area da fısica que estuda feno-

menos termicos. Estes sao fenomenos associados a sistemasmacroscopicos,

onde um grande numero de partıculas como moleculas atomos, aglo-

merados, etc., interagem entre si e com o meio externo trocando massa

e energia. A mudanca da fase lıquida para a fase de vapor da agua e um

exemplo de fenomeno termico. Outro exemplo e o aquecimento de um

fio condutor percorrido por uma corrente eletrica, ou ainda a dilatacao

de uma ponte de concreto em um dia de calor.

A abordagem da termodinamica para tratar fenomenos deste tipo e

baseada em observacoes experimentais. Nao ha nesta ciencia uma des-

cricao destes fenomenos a partir de um modelo microscopico onde os

detalhes das interacoes entre as partıculas que compoem o sistema sao

levadas em conta. Precisamente por este aspecto, alguns fısicos con-

sideram a termodinamica uma ciencia melhor fundamentada do que as

outras areas da fısica, por ela nao estar sujeita a modismos teoricos.

Einstein, por exemplo, tinha a opiniao de que no futuro todas as teo-

rias atuais da fısica provavelmente desapareceriam, com excecao da

termodinamica.

Vamos tomar como exemplo uma conhecida lei da termodinamica,

a lei dos gases perfeitos:

PV = NRT

Esta equacao descreve uma relacao observada experimentalmente en-

tre a pressao P , o volume V e a temperatura T de um gas com N

moleculas. R e a chamada constante universal dos gases, e vale 8,314

J/Mol K. As quantidades P , V , T sao chamadas de variaveis de estado

Page 63: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

46

do sistema. Termodinamica e isso: relacoes entre variaveis de estado de

um sistema. A relacao acima nos diz, por exemplo, que se quisermos

baixar a pressao de um gas temos que aumentar o seu volume e/ou

diminuir a sua temperatura. Pressao e temperatura neste contexto sao

meramente numeros que se medem com barometros e termometros,

respectivamente. Mas, quais sao os processos fısicos microscopicos que

dao origem a pressao e a temperatura? A termodinamica nao sabe

responder.

E aqui que a mecanica de Newton entra novamente em acao. Con-

siderando um gas como um objeto composto por um numero muito

grande de partıculas (atomos ou moleculas), tipicamente da ordem de

1023 partıculas por centımetro cubico, que se movem aleatoriamente

dentro de um recipiente com volume V , e descrevendo o movimento

de cada uma delas de acordo com as leis de movimento de Newton, a

equacao acima pode ser deduzida matematicamente. Note que inicial-

mente dissemos que PV = NRT era uma relacao entre as variaveis de

estado de um gas, observada experimentalmente; agora estamos dizendo

que esta relacao pode ser deduzida matematicamente aplicando-se as leis

da mecanica ao movimento das moleculas constituintes do gas. O fato

de que o movimento das moleculas deve ser considerado aleatorio e fun-

damental para a derivacao teorica da equacao. Matematicamente isto

significa que o problema deve ser tratado estatisticamente7. Com esta

abordagem, conhecida como teoria cinetica dos gases, pode ser dado um

fundamento microscopico para a equacao dos gases perfeitos. Na teoria

7Em tal tratamento, as posicoes e velocidades de cada molecula ou atomo do gasnao sao conhecidas, mas apenas as probabilidades de que cada uma delas esteja emuma posicao r com momento p.

Page 64: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES47

cinetica dos gases a pressao do gas surge naturalmente como uma me-

dida da transferencia de momento causada pelos colisoes das moleculas

nas paredes do recipiente. A temperatura, por sua vez, aparece como

uma medida da energia cinetica media das moleculas. A aplicacao bem

sucedida dos seus conceitos ao problema dos gases foi outro importante

triunfo da mecanica classica.

1.1.8 E Possıvel o Tempo andar para Tras?

Uma peculiaridade importante da segunda lei de Newton e a sua in-

variancia sob uma mudanca no sinal do tempo. Considere a definicao

simples de aceleracao:

a =v

t

onde tomamos t0 = 0. Mas, como v = r/t, no denominador da ex-

pressao de a aparecera t2, o tempo ao quadrado. Consequentemente,

se trocarmos t por −t, a aceleracao a ficara invariante, pois (−t)2 = t2.

Isso quer dizer que a segunda lei de Newton nao distingue passado de

futuro! Ou seja, fenomenos “que andam para frente” no tempo, para a

segunda lei, sao identicos aos que “andam para tras”. Esta situacao e

demasiado esquisita, pois todos nos sentimos que o tempo so “anda pra

frente” (como diria o ilustre cientista, professor e fundador do CBPF,

Jose Leite Lopes, do alto dos seus mais de 70 anos de idade: “infe-

lizmente!”). Alguem ja viu uma pessoa nascer velha e morrer jovem?!

Sera que a dinamica classica nao se aplica ao movimento das moleculas

do nosso corpo?

Certamente sabemos hoje que a dinamica das moleculas do nosso

Page 65: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

48

corpo nao e governada pelas leis da mecanica classica, mas pelamecanica

quantica, que sera tratada no capıtulo tres. Mas um organismo vivo,

como o corpo de uma pessoa, e um sistema muito complexo para servir

de exemplo no presente contexto. Tomemos um caso mais simples,

como o nosso gas perfeito da secao anterior. Inicialmente o gas ocupa

um volume V . Sabemos que se dobrarmos o volume para 2V , imediata-

mente o gas se expandira e passara a ocupar todo o volume. Imagine

que por um instante pudessemos confinar todas as moleculas do gas

em um unico ponto. Ao soltarmo-las elas novamente ocupariam todo o

volume disponıvel. Imaginar o processo reverso, ou seja, as moleculas

espontaneamente se juntarem em um unico ponto do espaco soa insano

(em fısica nao podemos ter medo de lidar com maluquices desse tipo!).

No entanto, se cada molecula se move de acordo com a segunda lei, esta

insanidade pode, em princıpio, acontecer! Podemos dar outros exem-

plos insolitos: todo mundo ja deixou algum dia na vida um copo com

agua cair no chao, e assistiu com horror o copo se quebrar, a agua se

espalhar, e fazer aquela lambanca. Contudo, ate o momento, ninguem

parece ter relatado o oposto, ou seja, a agua e os cacos se juntarem e

voltarem sob a forma de um copo para as maos de um observador es-

tarrecido. No entanto, de acordo com a mecanica classica isto poderia

acontecer!

O que ha de comum nestes processos? E o fato de eles ocorrerem

somente em uma direcao no tempo. O copo cai, quebra, e ponto final.

Ou: o gas se expande, e fica expandido. Nao ha como voltar atras. Na

fısica a funcao associada a essa flecha do tempo e chamada de entropia.

Processos fısicos como a expansao livre do gas ou o copo que se quebra

Page 66: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES49

resultam sempre em um aumento de entropia.

A entropia mede o grau de ordem de um sistema termodinamico, e

esta associada a nossa informacao (ou ignorancia!) sobre ele. No exem-

plo do gas, no estado em que todas as moleculas se encontram em um

so ponto do espaco, conhecemos todas as suas coordenadas, e portanto

nossa informacao e grande, e a entropia e pequena. No momento em

que o gas se expande, perdemos informacao, pois nao e possıvel acom-

panhar as posicoes e velocidades de 1023 moleculas ao mesmo tempo.

Desse modo a entropia aumenta. Uma vez expandido, para voltar ao

estado de entropia inicial, as moleculas teriam que retornar ao “ponto

de encontro”. De acordo com as leis da mecanica, nao ha nada que

impeca que isso ocorra, mas probabilisticamente podemos dizer que o

fenomeno e impossıvel.

Portanto, a “flecha do tempo” estaria associada a aleatoriedade ine-

rente a sistemas termodinamicos, como e o caso do gas. Deste ponto de

vista a irreversibilidade, e portanto o fluxo unidirecional do tempo, seria

uma mera ilusao causada pela nossa ignorancia (Einstein costumava

dizer que o tempo e uma ilusao)! Em um nıvel fundamental, defendem

alguns fısicos, nao ha distincao entre passado e futuro. O Premio Nobel

de Quımica de 1972, Ilyia Prigogine e um dos cientistas contemporaneos

que discordam desta posicao. Ele escreveu em seu livro recente O fim

das Certezas (Ed. UNESP 1996):

O futuro e dado ou esta em perpetua construcao? E

uma ilusao a crenca em nossa liberdade? E uma verdade

que nos separa do mundo? A questao do tempo esta na

encruzilhada da existencia e do conhecimento. O tempo e a

Page 67: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

50

dimensao fundamental da existencia, mas esta tambem no

coracao da Fısica...

Prigogine acredita que a irreversibilidade e a flecha do tempo e-

xistem mesmo em um nıvel fundamental, ou seja, nao e uma “ilusao”,

como acreditava Einstein. De fato, ele defende a ideia de que o fluxo

unidirecional do tempo e a chave para a solucao de varios paradoxos

hoje existentes na fısica. O leitor arriscaria uma solucao? A discussao

continua...

A “flecha do tempo” esta associada ao aumento da entropia. Neste exemplo do gasem uma caixa, sabemos que a situacao em C ocorre depois daquela em A porque aentropia em C e maior.

Page 68: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES51

1.1.9 O Relogio Cosmico

O quadro construıdo pela mecancia de Newton descreve o “funciona-

mento” da Natureza de uma maneira as vezes comparavel ao de um

relogio suıco. O espaco e o tempo sao estruturas absolutas e alheias

aos fenomenos fısicos que “dentro” deles se desenrolam, como atores no

palco de um teatro. O entusiasmo com o tremendo sucesso da mecanica

levou a algumas concepcoes extremas, como exemplificado nas palavras

de Pierre Laplace, um importante fısico e matematico frances do seculo

XIX:

Devemos encarar o estado atual do Universo como efeito

de seu estado anterior, e como causa do estado que se seguira.

Uma inteligencia que em determinado instante, pudesse con-

hecer todas as forcas que governam o mundo natural, que

pudesse conhecer todas as posicoes respectivas das entidades

que o compoe e que fosse capaz de analisar todas essas

informacoes, teria como abranger em uma unica formula

os movimentos dos maiores corpos do Universo e de seus

menores atomos. Para essa inteligencia nada seria incerto

e, tanto o passado quanto o futuro, estariam diretamente

presentes a sua observacao.

Obviamente a concepcao que Laplace tinha da Natureza nao deixa

espaco para caracterısticas essencialmente humanas, como livre arbıtrio.

Todos nos sentimos que “somos donos de nossos narizes”. Ou seja,

nossas decisoes nao obedecem a solucoes de equacoes matematicas!

Page 69: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

52

Sabemos (ou pelo menos pensamos que sabemos) que o futuro e cons-

truıdo por nos mesmos, e nao pre-determinado. Este conflito entre

lıvre arbıtrio e determinismo cientıfico atormenta a humanidade desde

os tempos de Epicuro, um filosofo grego que viveu cerca de 300 anos

antes de Cristo. Suas indagacoes sao espantosamente modernas, como

lembra Prigogine:

Quanto ao destino, que alguns consideram o senhor de

tudo, o sabio ri-se dele. De fato, mais vale ainda aceitar

o mito sobre os deuses do que se sujeitar ao destino dos

fısicos. Pois o mito nos deixa a esperanca de nos conciliar-

mos com os deuses atraves das honras que nos lhes rende-

mos, ao passo que o destino tem um carater de necessidade

inexoravel.

Mas, essa e apenas uma concepcao. A discussao continua, e o leitor

esta convidado a participar...

1.2 O Eletromagnetismo Classico

1.2.1 Fenomenos Eletricos e Magneticos

Todo mundo ja teve o desprazer de enfiar o dedo em uma tomada ou

segurar um fio desencapado. Aquela sensacao “agradavel” de estarmos

sendo virados pelo avesso e causada pelo fluxo de corrente eletrica pelo

nosso corpo. Choques eletricos, lampadas, eletrodomesticos e antenas

de televisao so existem por causa de uma propriedade fundamental

da materia: a carga eletrica. Cargas eletricas podem ser positivas ou

Page 70: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES53

negativas. O eletron e uma das partıculas constituintes do atomo, e

transporta o menor valor de carga eletrica na Natureza8. Ela vale

e = −1, 6019×10−19 coulombs (C). Portanto a carga eletrica e discreta

(em oposicao a “contınua”, e nao a “exibida”), ou quantizada. O choque

que sentimos ao enfiarmos o dedo na tomada e causado pela corrente

que flui devido a uma diferenca de potencial eletrico mantida entre

os seus terminais. Diferencas de potencial eletrico causam movimento

de cargas, assim como diferencas de potencial gravitacional causam

movimento de massa e diferencas de pressao na atmosfera causam o

movimento do ar (vento).

Uma outra experiencia comum que o leitor provavelmente ja viven-

ciou e a observacao do alinhamento da agulha de uma bussola com o

campo magnetico da Terra. O fenomeno e devido a interacao entre o

material do qual a agulha e feita, e o campo magnetico gerado pela

Terra; campos magneticos interagem com materiais magneticos, assim

como campos eletricos interagem com cargas e campos gravitacionais

interagem com massa.

Uma terceira experiencia que certamente todos ja vivenciaram (geral-

mente realizada aos domingos na casa da mae ou da sogra) consiste em

sentar-se em uma confortavel poltrona e assistir a um bom programa de

televisao (como por exemplo um jogo do Flamengo). O leitor saberia re-

sponder de onde vem as imagens e os sons que o deixa tao irritado? Elas

chegam atraves do espaco, sob a forma de ondas eletromagneticas, emi-

tidas por uma estacao transmissora, detectadas pela antena na nossa

8Na verdade existem partıculas subnucleares, chamadas quarks, cuja carga e umafracao da carga do eletron. No entanto, os quarks nao existem isoladamente comoo eletron. Mais sobre quarks no capıtulo nove.

Page 71: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

54

casa, e decodificadas pelos circuitos eletronicos que existem dentro do

aparelho de TV, para finalmente se tornarem sons e imagens. Ondas

eletromagneticas interagem com cargas eletricas9.

Todos estes fenomenos, e uma infinidade de outros, sao o objeto de

estudo do segundo tronco da fısica classica: a eletrodinamica classica.

Esta e a parte da fısica que trata de fenomenos eletricos, magneticos,

da geracao e propagacao de ondas eletromagneticas, etc. Aqui uma

pausa: a palavra “magnetismo”, que nao e propriedade da fısica, tem

sido usada indiscriminadamente ao longo do tempo e do espaco nos

mais variados contextos e situacoes. Parece que esta palavra exerce

um fascınio especial sobre algumas pessoas. Na fısica, em particular, o

magnetismo esta entre os fenomenos mais bem estudados e compreen-

didos. Procure entender o que e magnetismo para saber reconhecer o

que e cientıfico.

E preciso nesse ponto introduzir o conceito de campo em fısica.

Ja falamos anteriormente de campo gravitacional. Definir campo nao

e tarefa simples, mas grosso modo podemos afirmar que um campo

e uma regiao do espaco que adquire propriedades especiais, causadas

pela presenca de objetos com massas, cargas e correntes. A presenca

do campo pode ser detectada atraves de objetos que interajam com ele.

Por exemplo, o campo gravitacional interage com a massa dos corpos.

Sabemos que existe o campo porque quando largamos um objeto de

uma certa altura, ele cai.

Campos sao representados por linhas imaginarias que podem ser de-

9Ondas eletromagneticas interagem tambem com momentos magneticos, comoexplicado no capıtulo seis.

Page 72: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES55

senhadas no espaco. As linhas representam a direcao e a intensidade do

campo em cada ponto do espaco. A vantagem desta representacao esta

no fato de que olhando apenas para as linhas de campo, podemos imag-

inar o movimento de um objeto que interaja com ele, sem a necessidade

de nos referir aos detalhes da fonte que gera o campo. Por exemplo,

ao analisarmos a queda de uma pedra na superfıcie da Terra, usamos

apenas o fato de que o campo gravitacional aponta “para baixo”, e seu

valor e de aproximadamente 10 m/s2. Nao ha necessidade de fazermos

referencia a detalhes geograficos ou geologicos do planeta.

Cargas eletricas possuem a interessante propriedade de criar cam-

pos eletricos que podem interagir com outras cargas eletricas. Alem

disso, se uma carga eletrica se move, ela cria adicionalmente um campo

magnetico. Um campo magnetico tem a propriedade de interagir tanto

com cargas quanto com objetos magneticos, como a agulha de uma

bussola. Analogamente, se colocarmos um ıma em movimento ele cria

um campo eletrico a sua volta. “Epa! Esse troco ta confuso!” E isso

mesmo: um campo eletrico e sempre criado por uma carga em repouso,

mas tambem aparece quando existe um campo magnetico variando no

tempo. Por sua vez, um campo magnetico que varia no tempo cria um

campo eletrico, que cria um campo magnetico, que cria um eletrico,

que cria um magnetico...Afinal, como e que voce acha que uma onda

eletromagnetica se propaga?

Representamos o campo eletrico pela letra E - um vetor - e o campo

magnetico pela letra B, tambem um vetor. A unidade de campo eletrico

no SI e o volt por metro (V/m), e a de campo magnetico o tesla (T).

Uma lampada de 200 Watts, por exemplo, gera a 3 m de distancia um

Page 73: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

56

campo eletrico da ordem de 30 V/m e um campo magnetico da ordem

de 0, 0000001 T.

Existe uma diferenca importante entre a interacao eletrica e a gra-

vitacional: enquanto massas sempre se atraem, cargas podem se atrair

ou se repelir, dependendo dos sinais serem iguais ou opostos. A in-

teracao entre objetos magneticos pode tambem ser atrativa ou repul-

siva, como pode ser observado aproximando-se o polo norte de um ıma

ao polo norte ou sul de outro.

Agora um pouco de formalismo matematico. A forca eletrica que

atua sobre uma carga q devida a um campo eletrico E e dada pelo

produto da carga pelo campo:

F = qE (1.11)

Por exemplo, um campo eletrico de 1 V/m exerce uma forca de 1, 60×10−19 N em um objeto com carga igual a carga do eletron.

Neste ponto, as coisas podem (compreensivelmente) estar ficando

confusas para o leitor. Se nao estao, de duas uma: ou voce ja conhece

tudo o que esta sendo dito, ou nao entendeu nada ate agora! Por exem-

plo, nesta expressao da forca acima, quem gera o campo E? A propria

carga q? Nao. O campo E e considerado como sendo gerado por um

outro conjunto de cargas, mas que se encontram distantes da carga q.

Obviamente sendo q uma carga eletrica, ela gera seu proprio campo.

Contudo, consideramos que este campo sera irrelevante em comparacao

a E que aparece na expressao da forca eletrica. Nessas circunstancias

a carga q e chamada de carga de prova, ou seja, ela e usada para testar

o campo E, sem alterar as suas propriedades. O mesmo ocorre no

Page 74: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES57

caso gravitacional. Quando escrevemos P = mg, para o peso de um

objeto na superfıcie da Terra, a massa do objeto, m, tambem gera seu

proprio campo gravitacional (nossos corpos sao fontes de campo!). No

entanto, consideramos (implicitamente) que este campo nao altera as

propriedades do campo da Terra.

Suponha, por exemplo, que E seja constante, e aponte ao longo

da direcao x: E = E0i. Teremos entao de 1.11 (omitindo a notacao

vetorial):

ma = mv

t= qE0 ⇒ v =

q

mE0t

Se a partıcula for por exemplo um eletron, q/m = 1, 06× 10−19/9, 11×10−31 = 0, 176 × 1012 C/kg. Se E0 = 1 V/m, partindo do repouso,

apos 1 segundo a velocidade do eletron seria v = 0, 176 × 1012 m/s.

Como veremos no capıtulo seguinte, velocidades desta magnitude sao

proibidas pela teoria da relatividade.

Agora, como calcular o campo E devido a uma carga Q? Para isto

usamos a expressao do campo em um ponto r:

E =1

4πε0

Q

r2er (1.12)

onde ε0 e chamada de permissividade eletrica do vacuo, e vale ε0 =

8, 854 × 10−12 C/Nm2. A direcao de E e dada pelo vetor unitario er,

radial em relacao a carga Q.

Entao, a forca de interacao eletrica entre duas cargas q e Q separadas

por uma distancia r, de acordo com 1.11 e 1.12 sera:

F =1

4πε0

qQ

r2er (1.13)

Page 75: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

58

Esta expressao e chamada lei de Coulomb. O vetor unitario er esta ao

longo da linha que une as cargas. Note que se as cargas q e Q forem

da mesma ordem de magnitude, o campo eletrico total nao podera ser

aproximado como aquele devido a somente uma das cargas. Nesse caso,

em qualquer posicao r, ele sera simplesmente a soma dos campos de

cada uma delas. Repare a semelhanca entre 1.13 e 1.6. A massa foi

simplesmente trocada pela carga e a constante de proporcionalidade

mudou. Sera isto mera coincidencia?

Para efeitos de ilustracao, vamos comparar os modulos das forcas

eletrica e gravitacional entre dois eletrons. Sabemos que a forca gra-

vitacional (que vamos representar aqui por Fg) nesse caso sera dada

por:

Fg = Gm2

r2

onde m e a massa do eletron. E a forca eletrica:

Fe =1

4πε0

e2

r2

onde e e a carga do eletron. Dividindo uma expressao pela outra obte-

mos:

FgFe

=Gm2

r2

14πε0

e2

r2

=4πε0Gm

2

e2

Substituindo os respectivos valores numericos para as constantes:

FgFe

=4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × 6, 67 × 10−11 × (9, 11 × 10−31)2

(1, 60 × 10−19)2≈ 10−34

ou seja, Fg ∼= 0, 0000000000000000000000000000000001× Fe.

Page 76: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES59

Passemos agora a forca magnetica. Se uma carga q possui uma

velocidade v em uma regiao do espaco onde exista um campo magnetico

B, ela fica sujeita a uma forca magnetica dada por:

F = qv × B (1.14)

onde “×” representa o produto vetorial entre v e B. O modulo da forca

magnetica e F = qvBsenθ, onde θ e o angulo entre v e B. Vemos por-

tanto que F sera maximo se a direcao da velocidade for perpendicular

a do campo, ou seja, θ = 90o. Se, por outro lado, v for paralela a B, o

modulo da forca serra zero. Neste caso a carga nao “sente” o campo.

Entre θ = 0 e θ = π/2, a fora magnetica varia continuamente entre

seus valores extremos.

A forca magnetica possui a direcao perpendicular ao plano formado

por v e B. Esta peculiaridade da forca magnetica faz com que v mude

sua direcao continuamente. Por exemplo, se a direcao do campo e ao

longo do eixo z, B = B0k, e a direcao inicial da velocidade e ao longo

de y, v = vj, a direcao da forca magnetica sera dada pelo produto

vetorial j× k = i, ou seja estara ao longo do eixo x. Se por outro lado

tivessemos v = vi, terıamos F ao longo de i × k = −j. Note que se v

for paralela ao vetor B, a forca magnetica sera zero, ou seja, a partıcula

nao sentira a presenca do campo! Se por outro lado v for perpendicular

a B a partıcula descrevera uma orbita circular em torno da direcao de

B. Finalmente, se v possuir componentes paralela e perpendicular em

relacao a direcao de B, o movimento no plano perpendicular a B sera

circular e ao longo da direcao do campo a partıcula descrevera uma

linha reta. Ou seja, o seu movimento sera helicoidal.

Page 77: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

60

Como qualquer outro movimento periodico, o movimento circular

de uma carga eletrica em torno da direcao de B pode ser descrito pelas

funcoes seno e cosseno. Supondo que a direcao do campo seja z, teremos

as seguintes expressoes para as posicoes da carga:

x(t) = acos(ωct)

y(t) = asen(ωct)

z(t) = v‖t

onde v‖ e a componente da velocidade paralela a direcao do campo.

Esta componente se conserva, e se for nula inicialmente, o movimento

da partıcula sera uma circunferencia no plano xy. Nestas expressoes,

ωc e a frequencia angular da partıcula em torno do campo, chamada de

frequencia de cıclotron. Ela e dada por:

ωc =qB0

m

Este problema e o analogo magnetico do sistema massa-mola, men-

cionado na secao anterior. Vimos naquele caso que a frequencia angular

era dada por:

ω =

√k

m

onde k era a constante elastica da mola e m a massa da partıcula. No

presente caso o papel da constante elastica e desempenhado pelo campo

B0, e ao inves de simplesmente a massa, temos a razao carga-massa,

q/m como parametro intrınseco a partıcula. Vamos avaliar ωc para o

caso de um eletron, em um campo magnetico de 1 T.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES61

ωc =1, 60 × 10−19 × 1

9, 11 × 10−31= 0, 176 × 1012 rd/s

que equivale a uma frequencia de:

fc =ωc2π

= 2, 8 × 1010 Hz

Isso quer dizer que a cada segundo o eletron dara cerca de 28 bilhoes

de voltas em torno do campo!

Assim como no caso massa-mola, ωc so envolve parametros intrınsecos

ao sistema, e representa uma frequencia natural, ou “modo normal de

vibracao do sistema”. Podemos tambem aqui esperar que ocorra o

fenomeno de ressonancia, que neste caso tem um nome especial: res-

sonancia de cıclotron. Basta para isso que uma forca eletrica seja apli-

cada ao sistema, e oscile na sua frequencia normal. Mas como a forca

eletrica e dada pelo produto da carga pelo campo eletrico, para induzir-

mos uma ressonancia de cıclotron no sistema, bastaria em princıpio

aplicarmos um campo eletrico igual a

E = E0cos(ωct)

Na ressonancia, a carga em movimento no campo magnetico absorve

energia do campo eletrico, e aumenta a sua propria energia cinetica.

Esta discussao sera importante quando falarmos sobre aceleradores de

partıculas no capıtulo nove.

Voltemos aos campos magneticos. Dissemos que eles sao gerados

por cargas em movimento, ou seja, por correntes eletricas. Os fios

condutores que trazem energia eletrica para nossas casas, por exemplo,

Page 79: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

62

geram campos magneticos a sua volta. Em um fio condutor existem

incontaveis eletrons que se movem, e o campo magnetico total gerado

pelo fio e a soma dos campos gerados por cada um dos eletrons em

movimento. Se tivermos apenas 1 unico eletron, ou qualquer outra

carga q, movendo-se com uma velocidade v, a expressao para B em

qualquer ponto r do espaco sera igual a:

B =µ0

4πqr× v

r3(1.15)

onde µ0 e a chamada permeabilidade magnetica do vacuo e vale 4π×10−7

Ns2/C2.

Se uma partıcula estiver ao mesmo tempo sujeita a um campo E e

a um campo B, a forca total sobre ela (eletrica + magnetica ) sera:

F = q(E + v × B) (1.16)

Esta e a chamada Forca de Lorentz, e e extremamente importante em

problemas de eletrodinamica.

1.2.2 Fenomenos Ondulatorios: Difracao e Inter-

ferencia

Na proxima secao falaremos sobre a importante propriedade dos cam-

pos eletrico e magnetico que, sob certas condicoes, se destacam de

suas fontes geradoras e se propagam pelo espaco sob a forma de ondas

eletromagneticas. Nesta secao introduziremos alguns conceitos basicos

e gerais a respeito de ondas.

Dentre os mais comuns fenomenos ondulatorios esta o som, que sao

ondas que se propagam atraves do ar, lıquidos ou solidos. O som e uma

Page 80: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES63

onda mecanica que necessita da presenca de um meio material para se

propagar. Ondas podem ser facilmente observadas, por exemplo, na

superfıcie de um lago quando jogamos uma pedra na agua. Sao aquelas

perturbacoes em forma de cırculo que vao se “abrindo”, e se propagam

pela superfıcie. Ondas tambem podem ser produzidas em uma corda

prendendo-a em uma extremidade e fazendo-a oscilar na outra. A onda

e uma perturbacao que “passa” pelo meio, ou como dizemos, se propaga

atraves dele. O meio (agua, corda, ar, etc.) funciona meramente como

um sustentaculo a sua passagem.

Tomemos como exemplo o caso de uma corda presa em uma extre-

midade e posta a oscilar na outra. Se tirassemos um “instantaneo” da

corda em movimento, verıamos as ondulacoes ao longo de seu compri-

mento. A distancia entre dois pontos equivalentes consecutivos, como

por exemplo dois maximos das ondulacoes e chamado de comprimento

de onda, e representado pela letra grega λ (lambda). Por outro lado,

se fixarmos a atencao em um unico ponto da corda, veremos que ele

“sobe” e “desce”, descrevendo um movimento periodico no tempo, com

perıodo τ . Em outras palavras, uma onda deste tipo e algo que os-

cila tanto espacialmente, quanto temporalmente. Isso significa que a

funcao matematica que descreve as posicoes no espaco por onde se

propaga uma onda, dependera tanto de r quanto de t. Podemos nova-

mente utilizar as funcoes seno e cosseno para representar as oscilacoes

em uma onda, so que agora essas funcoes devem conter duas variaveis:

uma espacial e outra temporal. Se chamarmos de u(x, t) as posicoes

ao longo de uma corda orientada sobre o eixo x, podemos descrever a

onda atraves da expressao:

Page 81: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

64

u(x, t) = u0cos(

2πx

λ− 2πft

)(1.17)

onde u0 representa a amplitude maxima da oscilacao. O fator 2π re-

presenta um ciclo completo (espacial ou temporal). Em fısica e mais

comum usarmos a quantidade k ≡ 2π/λ, chamada de numero de onda.

k mede o numero de oscilacoes da onda por intervalo de comprimento,

do mesmo modo que ω = 2πf mede o numero de oscilacoes por in-

tervalo de tempo. Estas quantidades relacionam-se entre si atraves da

velocidade da onda, v:

v = λf =ω

k

Assim podemos escrever:

u(x, t) = u0cos(kx− ωt) (1.18)

Se tivermos tratando um problema em 3 dimensoes, x deve ser sub-

stituıdo pelo vetor r, e k por k, chamado vetor de onda, que nos da

a direcao de propagacao da onda. O produto kx sera nesse caso sub-

stituıdo pelo produto escalar k·r:

u(r, t) = u0cos(k · r− ωt) (1.19)

As vezes, a manipulacao matematica de funcoes trigonometricas se

torna incoveniente. Por esta razao e comum representarmos a onda de

uma outra forma, baseado na seguinte relacao entre a funcao exponen-

cial e as funcoes seno e cosseno:

eiθ = cosθ + isenθ

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES65

Esta relacao e muito utilizada na teoria dos numeros complexos (se

voce ainda nao sabe o que sao numeros complexos, de uma olhada no

Painel a seguir). Vemos que a parte real desta relacao e exatamente

a nossa expressao para a onda, com θ = k · r − ωt. Podemos entao

expressar 1.19 na forma alternativa:

u(r, t) = u0ei(k·r−ωt) (1.20)

mantendo em mente que, ao final das operacoes matematicas devemos

tomar somente a parte real da expressao.

Page 83: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

66

PAINEL V

NUMEROS IMAGINARIOS, NUMEROS COMPLEXOS E FUNCOES

COMPLEXAS

Numeros imaginarios sao definidos como o resultado de raızes quadradas de numeros

negativos. A unidade imaginaria, representada por i, e definida como:

i =√−1

De modo que se tivermos um numero negativo, como por exemplo −b2, onde b ereal, sua raiz quadrada sera:

√−b2 = √−1

√b2 = ib

Note que i× i = i2 = −1. O numero ‘ib’ e dito ser um numero imaginario10.

Um numero complexo, representado por Z, e um numero composto por uma

parte real e uma parte imaginaria:

Z = a+ ib

onde a e b sao reais. Podemos representar numeros complexos graficamente, como

se fossem vetores em duas dimensoes. Sobre o eixo horizontal colocamos a parte

real, e sobre o eixo vertical a parte imaginaria. Os numeros complexos sao entao

representados por pontos neste plano, chamado de plano de Argand-Gauss.

O conjugado de um numero complexo, representado por Z∗, e obtido trocando-

se i por −i:

Z∗ = a− ib

O modulo quadrado de um numero complexo, |Z|2, e obtido multiplicando-se onumero pelo seu conjugado:

|Z|2 = ZZ∗ = (a+ ib)(a− ib) = a2 + b2 ⇒ |Z| =√a2 + b2

10Nao se embatuque por conta desta infeliz terminologia; um numero imaginarioe tao verdadeiro quanto qualquer outro numero!

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES67

Note que o mesmo resultado pode ser obtido aplicando-se o teorema de Pitagoras

no plano de Argand-Gauss.

Se θ e o angulo entre Z e o eixo real, podemos escrever:

a = |Z|cosθ b = |Z|senθ

de modo que Z pode ser escrito como:

Z = |Z|(cosθ + isenθ)

A expressao acima, como demonstrado em textos mais avancados de matematica, e

equivalente a:

Z = |Z|eiθ ⇒ Z∗ = |Z|e−iθ

Analogamente aos vetores, a soma de numeros complexos e feita adicionando-se

as partes reais e imaginarias separadamente. Se Z1 = a1 + ib1 e Z2 = a2 + ib2 sao

dois numeros complexos,

Z = Z1 + Z2 = (a1 + a2) + i(b1 + b2)

ou, representando Z1 = |Z1|eiθ1 e Z2 = |Z2|eiθ2 ,

Z = Z1 + Z2 = |Z1|eiθ1 + |Z2|eiθ2

O produto de Z1 e Z2 sera:

Z1Z2 = |Z1||Z2|ei(θ1+θ2)

Estendendo a definicao de numeros complexos, podemos definir variaveis com-

plexas. Estas sao em geral representadas pela letra z, e sao tambem compostas por

uma parte real e outra imaginaria:

z = x+ iy

x e y sao variaveis reais.

Page 85: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

68

Uma funcao de uma variavel complexa, e chamada de funcao complexa, repre-

sentada por f(z). Assim como z possui uma parte real e outra imaginaria, funcoes

complexas podem em geral tambem ser escritas sob a forma:

f(z) = g(x, y) + ih(x, y)

onde g e h sao funcoes reais. O complexo conjugado de f(z) e obtido trocando-se i

por −i:

f(z)∗ = g(x, y)− ih(x, y)

e o modulo quadrado da funcao e dado pelo produto de f por f∗:

|f(z)|2 = f(z)f(z)∗ = g(x, y)2 + h(x, y)2

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES69

Existem dois efeitos envolvendo fenomenos ondulatorios que sao

uma especie de identidade e CPF das ondas: a difracao e a inter-

ferencia. A difracao ocorre quando uma onda incide sobre um obstaculo

que possui uma abertura com dimensoes da ordem de seu comprimento

de onda. Do outro lado do obstaculo a onda se propagara em direcoes

oblıquas a direcao de incidencia.

A interferencia ocorre quando ondas se superpoem. A onda resul-

tante e obtida somando-se as amplitudes das ondas primarias em cada

ponto do espaco. Dependendo da diferenca de fase entre elas, a ampli-

tude final pode ser maior ou menor do que as amplitudes originais, ou

nula. O fenomeno pode ser observado em uma cuba com agua, ou em

um lago, largando-se duas pedras sobre a agua.

Existe ainda um terceiro efeito importante que ocorre com ondas,

o chamado efeito Doppler, devido ao fısico austrıaco Johann Christian

Doppler, que o propos em 1842. Este efeito ocorre quando a fonte que

produz a onda se move em relacao ao observador (ou o observador em

relacao a fonte). Ele e comumente observado no nosso dia-a-dia com

ondas sonoras. Se, por exemplo, uma sirene de carro de polıcia estiver

ligada, emitindo ondas sonoras em uma determinada frequencia, um

observador que se aproximar da sirene com uma velocidade v ouvira

um som mais agudo do que outro que se afastar com a mesma veloci-

dade. Isso ocorre porque o observador que se aproxima da fonte percebe

uma frequencia mais alta do que o que se afasta. Por exemplo, se a

frequencia do som emitido for de 1 kHz (1000 Hz) para um observador

parado em relacao a fonte, e v ≈ 120 km/h, a frequencia para o obser-

vador que se aproxima sera de 1096 Hz, e para o que se afasta 904 Hz.

Page 87: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

70

Em geral, a velocidade com que o observador se move e pequena em

relacao a velocidade de propagacao da onda11. Neste caso a mudanca

em frequencia pode ser calculada da formula simples:

f ′ ≈ f(

1 ± v

V

)

Na expressao acima, f e a frequencia para o observador parado em

relacao a fonte, v a velocidade do observador, e V a da onda. O sinal

‘+’ se aplica para observadores se aproximando da fonte, e ‘−’ para

observadores se afastando. Por exemplo, a velocidade do som no ar e

cerca de 343 m/s. Se v = 120 km/h = 33 m/s, teremos da expressao

acima:

f ′

f= 1 ± 33

343= 1 ± 0, 096

Entao, se f = 1000 Hz, teremos

f ′ = 1000 ± 96 Hz

1.2.3 Ondas Eletromagneticas

Vimos na secao 1.2.1 que cargas eletricas produzem campos eletricos, e

que em movimento produzem tambem campos magneticos. Nos exem-

plos mencionados os campos eletrico e magnetico foram considerados

estaticos. Esse sera o caso sempre que as cargas que produzem os

campos estiverem paradas ou em movimento uniforme, ou seja, nao

estiverem aceleradas. Um dos resultados mais importantes da teoria

11Por exemplo, a velocidade do som no ar a 0 oC e de 343 m/s, ou cerca de 1235km/h, o que obviamente e muito maior do que a velocidade de um carro.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES71

eletromagnetica de Maxwell foi a previsao de que campos eletricos e

magneticos poderiam se “libertar” de suas fontes, e propagarem-se pelo

espaco sob a forma de ondas eletromagneticas.

Ondas eletromagneticas sao produzidas, por exemplo, em antenas

de radio e televisao fazendo-se oscilar as cargas do metal de que e feita

a antena . Elas atravessam o espaco com uma velocidade proxima a 300

000 km/s. Um dos maiores triunfos da teoria de Maxwell foi ter associ-

ado a velocidade da luz no vacuo, denotada pela letra c, as quantidades

ε0 e µ0, respectivamente, a permissividade eletrica e a permeabilidade

magnetica do vacuo, atraves de:

c =1√µ0ε0

=1√

4π × 10−7 × 8, 85 × 10−12= 299, 9 × 106 m/s

Esta conquista abriu o caminho para a interpretacao da luz como um

fenomeno eletromagnetico.

Assim como qualquer outro tipo de onda, as ondas eletromagneticas

tambem sofrem fenomenos de difracao e interferencia, mas ao contrario

das outras formas de onda, elas nao precisam de um meio especıfico

para se propagar, ou seja, tambem se propagam no vacuo. Se nao fosse

assim, a luz das estrelas nao poderia chegar ate os nossos olhos! Ate

o inıcio do seculo XX, contudo, pensava-se que ondas eletromagneticas

tambem necessitavam de um meio de propagacao. Por isso, os fısicos

da epoca imaginaram que todo o espaco era preenchido por uma subs-

tancia que eles chamaram de eter, no qual as ondas eletromagneticas

se propagavam. No proximo capıtulo veremos como esta hipotese do

eter foi derrubada pela teoria da relatividade.

Ondas eletromagneticas sao oscilacoes espaciais e temporais dos

Page 89: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

72

campos B e E, que se propagam pelo espaco. Matematicamente es-

tas oscilacoes podem ser representadas da mesma forma que em 1.19

(ou 1.20):

E(r, t) = E0ei(k·r−ωt) (1.21)

B(r, t) = B0ei(k·r−ωt) (1.22)

Nas expressoes acima, E0 e B0 representam as amplitudes maximas dos

campos eletrico e magnetico na onda.

Um fato importante a ser mencionado e que em uma onda eletro-

magnetica que se propaga pelo espaco os campos B e E sao sempre

perpendiculares entre si. Outro comentario e que em geral uma onda

nao tera um so valor de ω, mas uma mistura. Quando so existe um unico

valor de ω, como em 1.21 e 1.22, dizemos que a onda e monocromatica.

Fenomenos de interferencia em ondas eletromagneticas constituem

uma interessante manifestacao do carater vetorial dos campos E e B.

Suponha por exemplo que duas ondas com campos eletricos E1 e E2

se superponham em alguma regiao do espaco (por simplicidade vamos

omitir o campo magnetico). O campo eletrico total em um dado ponto

sera a soma dos campos individuais:

E = E1 + E2

E sabido que a energia da onda e propocional ao quadrado do campo

eletrico total. Logo:

E2 = E ·E = (E1 + E2)2 = E2

1 + E22 + 2E1 · E2

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES73

Suponha, por simplicidade, que as duas ondas possuam a mesma

amplitude: E1 = E2 = E0, e que θ seja o angulo entre os vetores E1 e

E2 no ponto em questao. Entao podemos escrever:

E2 = 2E20(1 + cosθ) ⇒ E =

√2(1 + cosθ)E0

Logo, em um ponto do espaco onde E1 e E2 sao paralelos, θ = 0,

e teremos a amplitude maxima E = 2E0, ao passo que nos pontos

onde E1 e E2 sao antiparalelos (ou seja, possuem mesma direcao e

sentidos opostos), θ = π e a intensidade se anula. Este e o fenomeno

de interferencia entre ondas eletromagneticas.

Se varias ondas com diferentes vetores de onda forem superpostas,

ocorrera interferencia construtiva ou seja, adicao das amplitudes em

certas regioes do espaco, e interferencia destrutiva (subtracao das am-

plitudes) em outras. Se representarmos por ∆x a regiao do espaco

onde ocorre interferencia construtiva (para uma onda que se propaga

ao longo da direcao x), verifica-se que quanto maior a quantidade de

ondas que se superpoem com comprimentos de onda λ (ou numeros

de onda k) diferentes, menor sera ∆x. Isto e facil de visualizar: se

tivermos uma so onda, teremos um unico valor de k, e a onda estara

distribuıda igualmente por todo o espaco. Se tivermos duas ondas se

superpondo, com numeros de onda k1 e k2, havera interferencia, como

dito acima. Se houver varias ondas com muitos valores de k distribuıdos

em um intervalo ∆k, a interferencia sera tal que ocorrera superposicao

construtiva somente em uma regiao ∆x. Quanto maior for ∆k, menor

sera ∆x. Essa interdependencia entre ∆k e ∆x e expressa pela relacao

aproximada:

Page 91: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

74

∆k∆x ≈ 1

Em fenomenos de interferencia ondulatoria, quanto maior for a dispersao ∆k, menorsera a dispersao ∆x, e vice-versa.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES75

1.2.4 Afinal, o que e a Luz?

A antologica obra de Rock The Dark Side of the Moon (O Lado Es-

curo da Lua) do grupo Pink Floyd traz na capa uma bela pintura

mostrando de modo estilizado a decomposicao da luz branca em com-

ponentes monocromaticas (isto e, de uma unica cor). A luz e composta

por uma mistura de cores, que podem ser visualizadas usando-se um

prisma de vidro como o desenhado na capa do disco. Cada cor esta

associada a um comprimento de onda e a uma frequencia.

Ondas eletromagneticas sao classificadas de acordo com o seu com-

primento de onda, λ = 2π/k, e frequencia f = ω/2π. A luz visıvel, por

exemplo, e composta por ondas eletromagneticas com comprimentos

de onda que vao de λ = 4 × 10−7 m, correspondendo ao violeta, ate

λ = 7 × 10−7 m, correspondendo ao vermelho. No centro do espectro

visıvel estao o verde e o amarelo com λ na faixa de 5, 5×10−7 m. Ondas

de radio operam na faixa de 104 a 108 Hz, com comprimento de onda

da ordem de 104 m. Microondas utilizadas em radares, por outro lado,

possuem f ≈ 1010 Hz e λ ≈ 10−2 m. Radiacao gama possui f na faixa

de 1020 a 1022 Hz, e λ entre 10−14 a 10−12 m. Nos referimos ao conjunto

de valores de f e λ como o espectro eletromagnetico.

Obviamente a descricao fısica das cores feita acima acaba nos nossos

olhos, ou mais especificamente na retina. A percepcao das cores esta

associada a complexos processos fotoquımicos envolvendo as celulas da

visao (cones e bastonetes), sua transmissao atraves dos nervos ate ao

cerebro que, sabe la Deus como, nos causa a sensacao psicologica da

cor.

Page 93: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

76

A decomposicao da luz em um prisma em suas componentes monocro-

maticas e causada por um fenomeno chamado de refracao. Quando um

feixe luminoso incide sobre uma superfıcie que separa dois meios (por

exemplo, o ar e o prisma), parte da luz e refletida, e parte e refratada,

ou seja, penetra no meio mudando a sua direcao de propagacao. O

grau de desvio da direcao de propagacao depende de uma quantidade

caracterıstica do meio chamada ındice de refracao, n. Se o feixe parte

de um meio cujo ındice de refracao e n, e incide sobre um outro meio

com ındice de refracao n′, formando um angulo θ com uma linha reta

imaginaria perpendicular a superfıcie que os separa (chamada de ‘linha

normal’), o angulo θ′ que o feixe refratado faz com a normal pode ser

obtido da expressao:

nsenθ = n′senθ′

Esta expressao e chamada de lei de Snell. O ındice de refracao do ar,

por exemplo, e n = 1, 00029 (em condicoes normais de temperatura e

pressao) e da agua (a 20 graus) e n = 1, 33. Entao, se um feixe de luz

incide sobre a superfıcie da agua com um angulo de incidencia θ = 30

graus, teremos:

senθ′ =1, 00029

1, 33sen30 = 0, 3760 ⇒ θ′ = 22, 1o

Logo, o desvio do feixe sera ∆θ = 30o − 22, 1o = 7, 9o.

E possıvel demonstrar que a decomposicao da luz ocorre porque o

valor do ındice de refracao depende tanto das propriedades do meio,

quanto da frequencia da onda, ω, segundo a expressao:

n = 1 +C

ω20 − ω2

Page 94: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES77

onde C e uma constante que depende das caracterısticas do meio, e ω0 e

uma frequencia natural, associada as vibracoes dos atomos e moleculas

que formam o meio. Se ω for muito menor que ω0, n sera constante.

De fato, se ω0 for muito grande, todo o segundo termo da expressao

para n pode ser desprezado, e teremos n ≈ 1. Este e, por exemplo,

o caso para o ındice de refracao do ar atmosferico. Por outro lado,

se ω0 nao for muito grande, a medida que ω cresce e se aproxima de

ω0, o denominador da fracao diminui, fazendo n aumentar. Ou seja, n

aumenta com o crescimento de ω. Assim, aquelas componentes da luz

que tiverem frequencia mais alta, serao mais desviadas. Por exemplo,

como a frequencia do azul e maior do que a do vermelho, o azul sera

mais desviado do que o vermelho se uma onda contendo uma mistura

dessas cores incidir em um meio como um prisma. Note como atraves

de consideracoes muito simples, podemos de fato calcular (cal-cu-lar!)

a sequencia de cores decompostas em um prisma!

Page 95: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

78

.

Ao incidir em uma superfıcie que separa dois meios com ındices de refracao difer-entes, um feixe de luz e parcialmente refletido e parcialmente refratado.

A luz visıvel e composta por ondas eletromagneticas com comprimentos de ondadiferentes, cada um associado a uma cor.

Page 96: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES79

1.2.5 Afinal, Porque o Ceu e Azul?

A luz do Sol e formada por ondas eletromagneticas cujos campos eletrico

e magnetico podem ser representados por 1.21 e 1.22. Quando a luz

do Sol incide sobre a Terra, ela e desviada de sua direcao original pelos

elementos que compoem a atmosfera terrestre. Dizemos que a radiacao

e espalhada. O fenomeno e semelhante ao de refracao. O grau de

espalhamento depende da frequencia da onda, e como a luz do Sol e

“branca”, ou seja, possui todos os comprimentos de onda, cada com-

ponente sera espalhada de um angulo diferente. A quantidade fısica

que mede o grau de espalhamento e chamada de secao de choque de

espalhamento, e representada pela letra grega σ (sigma). Os fısicos con-

seguem mostrar que σ e proporcional a quarta potencia da frequencia

da onda, ω, ou seja12: σ ∝ ω4. Isso quer dizer que uma componente do

espectro luminoso cuja frequencia e apenas duas vezes maior do que a

de uma outra, sera espalhada 16 vezes mais intensamente. E precisa-

mente o que ocorre com o azul, cuja frequencia e cerca de duas vezes

a do vermelho, e portanto e mais eficientemente espalhada. Em um

dia de sol intenso, se olharmos diretamente para o Sol o veremos com

uma aparencia amarelada, justamente porque a componente azul da

luz e mais espalhada. Se, por outro lado, olharmos para uma regiao

do ceu longe do Sol, o que veremos? justamente o que foi espalhado:

aquele azul maravilhoso! Pela mesma razao o entardecer e avermel-

hado. Quando o Sol se situa proximo a linha do horizonte, vemos a

12“∝” significa “proporcional a”. Esta proporcionalidade e valida em situacoesem que o comprimento de onda da radiacao espalhada e maior do que as dimensoesdo objeto espalhador.

Page 97: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

80

componente da luz menos espalhada pela atmosfera: o vermelho.

Da proxima vez que o leitor ou a leitora estiver “azarando” na praia

em um daqueles domingos de ceu azul e sol escaldante, tente “jogar”

essa conversa intelectual pra ver se “cola” :

- Aı mina, chega mais. Estas vendo esse ceu maneiro?

Sabias que a luz do Sol nada mais e do que radiacao eletro-

magnetica composta por varios comprimentos de onda, vi-

aja batida a trezentos mil quilometros por segundo, e porque

a secao de choque de espalhamento e proporcional a quarta

potencia da frequencia da onda, o azul e mais espalhado do

que o vermelho? Hein? O que tu achas?

- Ve se te enxerga. . .

O espalhamento da luz por pequenas partıculas gera ainda ou-

tros fenomenos importantes, sendo um dos mais espetaculares, por sua

beleza, o arco-ıris. Todo mundo ja “curtiu” um arco-ıris. Ele e causado

pelo espalhamento da luz do Sol por gotıculas de agua em suspensao

na atmosfera. Ao incidir sobre uma gota a luz e parcialmente refletida

e parcialmente refratada, como discutido na secao anterior. A parte re-

fratada, dentro da gota, e novamente refletida e refratada. O arco-ıris

e formado pelos raios que saem novamente da gota apos terem sido re-

fletidos 1 vez dentro dela. A reflexao interna depende do comprimento

de onda da radiacao incidente, justamente como no caso do prisma, o

que causa uma dispersao das cores.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES81

1.2.6 Acabou a Fısica?!

Neste capıtulo apresentamos de forma resumida o que se conhece por

fısica classica. Uma infinidade de problemas foram compreendidos

a partir da Mecanica e Eletrodinamica Classicas, duas construcoes

teoricas monumentais. Os fenomenos foram separados em duas ca-

tegorias: os mecanicos, envolvendo o movimento de partıculas sob a

acao de forcas externas, e os eletromagneticos, envolvendo campos e

propagacao de ondas eletromagneticas.

O movimento mecanico de qualquer objeto (pedras, bolas, planetas,

carros, avioes, macas. . . ) esta sintetizado na formula:

F = ma

Em particular, o movimento de partıculas carregadas sob a acao de

campos eletromagneticos e descrito pela forca de Lorentz:

F = ma = q(E + v × B)

O lado direito dessa equacao representa a eletrodinamica, enquanto que

o lado esquerdo a mecanica.

O movimento de objetos em campos gravitacionais, como planetas,

e descrito pela Lei da Gravitacao Universal:

F = ma = −GMm

r2er

e assim por diante.

A fısica classica estabeleceu um paradigma, isto e, um modelo a ser

seguido por todas as outras areas do conhecimento. Seu sucesso foi tao

Page 99: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

82

arrebatador que todas as outras ciencias tentaram se fundamentar sob

bases semelhantes. Isso levou alguns fısicos do final do seculo dezenove

a afirmarem que a fısica tinha chegado ao seu fim! Tudo que havia

para ser feito seria aplicar a mecanica e a eletrodinamica para resolver

problemas especıficos, mas que nada de mais fundamental havia para

ser descoberto. O que aconteceria entao no inıcio do seculo XX iria

provar para estes imprudentes senhores que a Natureza so havia ate

entao revelado o trivial!

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. Aneis Planetarios, Sylvio Ferraz de Mello, vol. 1, no. 4, p 16.

2. O Campo Magnetico dos Planetas, Osmar Pinto Junior, Walter D. Gonzales,Iara R.C.A. Pinto e Odim Mendes Junior, vol. 14, no. 79, p. 32.

3. Halley a Vista, Francisco Jablonski, vol. 4, no. 20, p. 6.

4. Bem-Vindo Halley!, Oscar T. Matsura, vol. 4, no. 21, p. 32.

5. Na Rota do Halley, Oscar T. Matsura, vol. 4, no. 22, p. 8.

6. Halley: Presenca no Ceu por mais 12 Mil Anos, Jose Antonio de FreitasPacheco, vol. 5, no. 25, p. 16.

7. A Origem da Lua, Oscar T. Matsura, vol. 5, no. 25, p. 26.

8. Plutao, um Planeta Peculiar, Masayoshi Tsuchida, vol. 9, no. 49, p. 14.

9. Principia Mathematica, 300 Anos, Marcio Q. Moreno, vol. 7, no. 41, p. 58.

10. Os Planetas de Upsilon Andromeda, Sylvio Ferraz Mello, vol. 26, no. 151,p. 14.

11. O Enigmatico Anel F de Saturno, Silvia M. Giuliatti Winter, vol. 26, no.151, p. 59.

12. A Busca por Novos Sistemas Planetarios, Oscar Toshiaki Matsuura, vol.24, no. 144, p. 65.

13. Netuno: 150 Anos de Historia e Ciencia, Othon Winter, vol. 21, no. 125,p. 38.

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CAPITULO 1 - A FISICA ATE 1905: UMA CASA DE GIGANTES83

Resumo - Capıtulo Um

Na fısica classica, os fenomenos da Natureza se dividem em duascategorias: os mecanicos e os eletromagneticos. O ingles Isaac Newton eo escoces James Clerk Maxwell foram os principais nomes da fısica ateo inıcio do seculo XX.

A equacao central da mecanica classica e:

F = ma

Com essa equacao Newton conseguiu explicar nao so o movimento deobjetos na superfıcie da Terra, como tambem o movimento de planetas,cometas, etc. A Gravitacao Universal de Newton e descrita pela forca:

F = −GmMr2

er

Maxwell viveu 200 anos depois de Newton, e formalizou as leis que de-screvem os fenomenos eletromagneticos. Esses envolvem cargas eletricas,campos eletricos (E) e campos magneticos (B). Campos eletricos saogerados por cargas eletricas, que em movimento geram tambem camposmagneticos. Cargas eletricas se atraem ou se repelem de acordo com alei de Coulomb:

F =14πε0

qQ

r2

Ondas eletromagneticas sao geradas por cargas eletricas aceleradas.Uma vez criadas, ondas eletromagneticas se desprendem da sua fonte ese propagam pelo espaco com uma velocidade de 300 000 km/s.

Em uma onda eletromagnetica os campos E e B oscilam tanto noespaco quanto no tempo. As oscilacoes temporais sao caracterizadas peloperıodo, τ , ou o seu inverso, a frequencia ω = 2π/τ . De modo analogo, asoscilacoes espaciais sao caracterizadas pelo comprimento de onda, λ, ouseu inverso, o numero de onda k = 2π/λ.

A luz e uma onda eletromagnetica que possui um comprimento deonda tal que a torna visıvel aos nossos olhos. Ate o inıcio do seculo XXpensava-se que a luz se propagava atraves de um meio chamado eter.

As duas “marcas registradas” dos fenomenos ondulatorios sao a in-terferencia e a difracao.

O movimento de cargas em campos eletromagneticos e descrito pelaforca de Lorentz:

F = q(E+ v ×B)

Page 101: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 2

A Teoria da Relatividade

“Nao sei o que voce quer dizer”, ponderou Alice. “Claro que nao sabe”,

redarguiu o Chapeleiro, balancando desdenhosamente a cabeca. “Ouso

afirmar que voce jamais falou com o Tempo!”

“Talvez nao”, replicou Alice cautelosamente, “mas sei que tenho

que vencer o tempo, quando aprendo musica”. “Ah! aı esta”, disse o

Chapeleiro. “Ele nao gosta de ser vencido. Se voce se mantivesse em

bons termos com o Tempo, ele obrigaria o relogio a fazer quase tudo

que voce desejasse. Suponha, por exemplo, que fossem nove horas da

manha, hora de comecar a estudar; bastaria que voce sussurrasse uma

insinuacao ao Tempo e o relogio avancaria num piscar de olhos. Treze

e trinta: hora da refeicao”. (Alice no Paıs das Maravilhas, Lewis

Caroll, 1896. Compilado de As Ideias de Einstein, J. Berstein, Ed.

USP 1975)

85

Page 102: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

86

2.1 Einstein: um Genio Desempregado

Albert Einstein e o unico fısico do seculo XX cujo genio cientıfico e com-

paravel ao de Isaac Newton. Viveu em uma epoca dramatica e fasci-

nante da Historia. Uma epoca de guerras, perseguicoes e revolucoes

polıticas e cientıficas. Alem das duas teorias da relatividade (a espe-

cial e a geral), deu outras contribuicoes fundamentais para a fısica,

como a explicacao para o efeito fotoeletrico (trabalho pelo qual ga-

nhou o Premio Nobel de Fısica de 1921), o movimento browniano e o

calor especıfico dos solidos. A enigmatica imagem do velho descabelado

mostrando a lıngua para os fotografos transformou-se numa especie de

ıcone do “cientista louco” bonachao. Judeu e pacifista fervoroso, es-

creveu sobre o exercito:

A pior das instituicoes gregarias se intitula exercito. Eu

o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em

desfilar aos sons de musica, eu desprezo esse homem...Nao

merece um cerebro humano, ja que a medula espinhal o sa-

tisfaz. Deverıamos fazer desaparecer o mais depressa possıvel

este cancer da civilizacao. Detesto com todas as forcas

o heroısmo obrigatorio, a violencia gratuita e o nacional-

ismo debil. A guerra e a coisa mais desprezıvel que existe.

Preferia deixar-me assassinar a participar dessa ignonımia.

(Albert Einstein. Como Vejo o Mundo, Ed. Nova

Fronteira, 1981)

Albert Einstein nasceu no dia 14 de marco de 1879, na cidade de

Ulm, na Alemanha. Seus pais se chamavam Hermann e Pauline Eins-

Page 103: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 87

tein, e seus avos Abraham e Hindel Einstein. Einstein destaca duas

experiencias que teve durante a infancia e que aparentemente foram

determinantes na escolha da sua carreira. A primeira teria aconte-

cido aos 4 ou 5 anos de idade, quando estava doente, e seu pai lhe

deu de presente uma bussola. O fato da agulha da bussola, isolada

e protegida dentro do vidro, obedecer a uma forca externa, invisıvel,

que a fazia sempre apontar para o Norte deixou-lhe a impressao de

que deveria haver “algo escondido nas profundezas das coisas”. Aos 12

anos veio a segunda experiencia, segundo ele, de natureza inteiramente

diferente. Ganhou de presente um livrinho de geometria plana. Apos

conseguir, com muito esforco, demonstrar o teorema de Pitagoras, ex-

perimentou, segundo ele, um tipo de certeza que nao conhecia: a certeza

matematica.

Primeira fotografia conhecida de Einstein, por volta dos 5 anos de idade.

Page 104: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

88

Quando Einstein tinha 7 anos de idade, sua mae escreveu em carta

para a avo materna: “Ontem Albert trouxe seu boletim escolar. No-

vamente ele esta no topo da turma, com notas brilhantes”. Um ano

depois o avo materno escreveu: “Albert voltou as aulas ha uma semana.

Eu adoro aquele menino, porque voce nao pode imaginar como ele se

tornou inteligente.”

Aos 16 anos Einstein prestou exames para admissao na Escola de

Engenharia do famoso Instituto Tecnologico de Zurique, na Suıca. Em-

bora tenha se saıdo brilhantemente em matematica e fısica, fracassou

nas outras materias e foi reprovado. Ironicamente, foi nesta mesma

epoca que comecou a ter os primeiros “insights” que o levariam a teo-

ria da relatividade.

Em 1896, aos 18 anos de idade, foi finalmente admitido na Politecnica

de Zurique. Havia desistido de se tornar engenheiro e decidido ganhar a

vida ensinando fısica e matematica. Contudo, as aulas em Zurique nao

o entusiasmavam muito. Preferia estudar por conta propria as coisas

que lhe interessavam. Foi durante essa epoca que tomou contato com

a eletrodinamica de Maxwell, tendo se tornardo uma autoridade no

assunto. Graduou-se em 1900.

Com o fim do curso vieram os problemas. Embora seu talento tivesse

sido reconhecido em Zurique, aparentemente nao manteve as melhores

relacoes com seus ex-professores, entre eles um influente homem chamado

Heinrich Weber, que certa vez lhe teria dito: “Voce e inteligente! Mas

voce tem um problema. Voce nao aceita nada que lhe digam. Nao

aceita nada”. Para ganhar a vida Einstein dava aulas particulares. Foi

Marcel Grossmann, um matematico e ex-companheiro da Politecnica

Page 105: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 89

quem, atraves do pai, lhe arranjou um emprego em um escritorio de

patentes em Berna. Ali naquele lugar, durante as horas vagas, Einstein

produziria o trabalho que iria detonar 300 anos de fısica!

Em suas Notas Autobiograficas (Ed. Nova Fronteira, 1982) Eins-

tein, aos 67 anos de idade, escreveu:

Perdoe-me Newton; voce descobriu talvez o unico ca-

minho possıvel em sua epoca para um homem possuidor

do mais alto raciocınio e poder criativo. Os conceitos que

criou ainda hoje orientam o nosso pensamento na fısica,

embora saibamos que deverao ser substituıdos por outros,

muito afastados da esfera da experiencia imediata, para pos-

sibilitar a compreensao mais profunda dos relacionamentos.

2.2 Maxwell nao Concorda com Newton

Segundo o proprio Einstein, aos 16 anos de idade despertou para um

problema que o deixou intrigado. Suponha que voce esteja se olhando

em um espelho. Voce ve a sua imagem porque a luz que chega ao

espelho e refletida sobre seus olhos. O que aconteceria com a sua i-

magem se voce e o espelho estivessem viajando a velocidade da luz

no vacuo, ou seja, a 300 000 km/s? Se pensarmos de acordo com a

mecanica classica, nesta situacao a luz nao alcancaria o espelho e, con-

sequentemente, a imagem desapareceria. Lembremos aqui que, como

vimos, todos os referenciais que se movem com velocidade constante

sao equivalentes perante a segunda lei de Newton. Por outro lado,

sabemos que a luz e um fenomeno ondulatorio e, em tal experiencia

Page 106: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

90

pensada, estarıamos viajando com a onda que, aos nossos olhos perde-

ria este carater de luz! No entanto, de acordo com a eletrodinamica

de Maxwell isso nao e possıvel; uma onda eletromagnetica e sempre

uma onda eletromagnetica, em qualquer referencial inercial e viaja sem-

pre com a mesma velocidade de 300 000 km/s. Einstein entao se deu

conta do paradoxo: ou a mecanica de Newton, ou a eletrodinamica de

Maxwell esta errada! O que fazer?

Page 107: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 91

.

Que imagem apareceria em um espelho que, com o seu observador, se deslocasse avelocidade da luz?

Recordemos o que foi dito na seccao 1.1.6 sobre movimento relativo.

As transformacoes de Galileu para posicao e velocidade de um objeto,

medidas de dois referenciais que se movem relativamente um ao outro

com velocidade V, sao dadas por:

r = r′ + R

v = v′ + V

No experimento do espelho imaginado por Einstein, V seria igual a

velocidade da luz.

Para explicar a propagacao da luz e de ondas eletromagneticas em

geral, os fısicos do seculo XIX imaginaram que o espaco era preenchido

Page 108: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

92

por um meio que eles denominaram de “eter”. Nesta epoca nao se

concebia a ideia de que uma onda poderia se propagar na ausencia de

um meio material que a sustentasse. O eter seria uma substancia que

permearia todo o espaco, e serviria de sustentaculo para a propagacao

da luz. A existencia dessa substancia misteriosa nunca foi detectada,

mas imaginava-se que o valor c = 300 000 km/s, da velocidade da

luz, era aquele medido de um sistema de coordenadas que estivesse

em repouso em relacao ao eter. Tal sistema ficou conhecido como o

sistema do eter. Na medida em que a Terra tambem deveria se mover

em relacao ao eter, era natural imaginar que haveria uma diferenca entre

as velocidades da luz medidas no referencial do eter (c) e no referencial

da Terra (que chamaremos c′). De acordo com as transformacoes de

Galileu, se Terra e luz se deslocassem na mesma direcao e sentido, e

a velocidade da Terra em relacao ao eter fosse V , a velocidade da luz

medida no referencial da Terra deveria ser:

c′ = c− V

E se o movimento fosse em sentido contrario, ou seja, luz para um lado

e Terra para o outro, terıamos, de acordo com as transformacoes de

Galileu:

c′ = c+ V

Se esse troco ta dando um no na sua cabeca, nao se desespere.

Pense como se a Terra fosse um carro na Rio-Sao Paulo, e o eter fosse

um outro carro, na mesma pista. Os dois motoristas querem medir a

velocidade de um terceiro carro: o “carro-luz”, e comparar os valores.

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CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 93

Suponha que voce esta no “carro-Terra”. Voce sabe de antemao que

a velocidade do “carro-luz” em relacao ao “carro-eter” e constante e

igual a c. Que velocidade voce mede? Se a velocidade relativa dos dois

primeiros carros e V , e se eles estiverem viajando na mesma direcao,

a velocidade do “carro-luz” que voce mede sera c − V , e se estiver

em sentido contrario sera c + V . Em fısica e assim: as vezes a Terra

vira carro, as vezes ela e um ponto geometrico, e as vezes tem massa

desprezıvel. Vale tudo pra entender o problema! A proposito, voce ja

ouviu falar em cavalos esfericamente simetricos?

O problema “quente” no final do seculo XIX era portanto medir

esta suposta diferenca entre as velocidades da luz no eter e na Terra.

Se voce fosse um fısico da epoca e quisesse embolsar o Premio Nobel,

como e que voce faria isso? Arrumaria dois carros, uma lanterna, e

iria pra Rio-Sao Paulo? Certamente que nao! Voce construiria um

interferometro! Interferoque?!

Um interferometro e uma ideia luminosa. E um aparelho desti-

nado a medir a velocidade da luz utilizando o fato de que ondas eletro-

magneticas apresentam o fenomeno de interferencia (secao 1.2.4). Vi-

mos que a intensidade da onda e proporcional ao quadrado do campo

eletrico, e que para dois campos que se superpoem encontramos a

seguinte expressao para o campo total em um ponto do espaco:

E2 = 2E20(1 + cosθ)

onde θ e o angulo entre os vetores de campo eletrico das ondas indivi-

duais. Usando a relacao trigonometrica

Page 110: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

94

1 + cosθ = 2cos2

2

)

e chamando de I a intensidade da onda total, proporcional a E2, pode-

mos escrever:

I = 4Imaxcos2

2

)

onde Imax e a intensidade maxima da onda.

O angulo θ e chamado de angulo de fase entre as ondas, ou diferenca

de fase. A formula acima mostra um resultado muito interessante: ela

nos diz que a intensidade da onda total depende somente da diferenca

de fase entre as ondas individuais. Por exemplo, se a diferenca de fase

for igual a π a intensidade sera zero, mas se θ for igual a 0, a intensidade

sera maxima. Em um interferometro podemos medir a velocidade da

luz controlando a diferenca de fase entre ondas luminosas que percorrem

caminhos diferentes e se superpoem. As ondas sao observadas em um

anteparo, e sua superposicao resulta em um padrao que consiste em

regioes de maximos e mınimos de intensidade luminosa, chamadas de

franjas de interferencia.

Page 111: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 95

.

Ondas eletromagneticas podem interferir construtiva ou destrutivamente, depen-dendo do angulo de fase entre elas.

O americano Albert Abraham Michelson realizou em 1881, pela

primeira vez, tal experimento e com ele faturou o Nobel de 19071 No ex-

perimento, um raio luminoso incide sobre um espelho semi-transparente

posicionado a exatos 45o com a direcao de incidencia do feixe. O fato do

espelho ser “semi-transparente” significa que metade da intensidade lu-

minosa sera refletida, e metade o atravessara. O fato de estar a 45o com

a direcao de incidencia, significa que a parte refletida fara um angulo

de 90o com a direcao original. As partes refletida e transmitida sao no-

vamente refletidas por outros espelhos e se juntam novamente em um

1Michelson foi o primeiro americano a receber o Premio. Em 1887, 6 anos aposseu experimento original, ele obteve, trabalhando com E.W. Morley, resultados maisprecisos. Foi este segundo experimento que entrou para a Historia da Fısica comoo experimento de Michelson-Morley.

Page 112: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

96

anteparo onde o padrao de interferencia pode ser analisado. A inter-

ferencia ocorrera porque os raios luminosos que se juntam no anteparo

percorrerao caminhos diferentes em tempos diferentes, e consequente-

mente terao fases diferentes. Por exemplo, considere aquela parte do

feixe que se desloca paralelamente ao deslocamento da Terra. Se c e a

velocidade do raio luminoso em relacao ao eter, e v e a velocidade da

Terra (e portanto dos espelhos) tambem em relacao ao eter, quando o

espelho se desloca no mesmo sentido do raio luminoso, o tempo para

percorrer a distancia l entre os espelhos sera igual a l/(c − v). Mas

quando o raio volta refletido e consequentemente se desloca em sentido

contrario ao deslocamento da Terra, encontra o espelho indo em sua

direcao com uma velocidade igual a c + v. Portanto o tempo de volta

sera l/(c+ v), e o tempo total de ida e volta sera entao:

t =l

c− v+

l

c+ v=

2cl

c2 − v2=

2l/c

1 − v2/c2

Agora, devido ao fato de que a velocidade da luz e muito maior do que

a do espelho, ou seja c v, podemos usar a relacao aproximada:

(1 − x)n ≈ 1 − nx

valida para x 1, e aplicar ao denominador da fracao acima, sendo

x = v2/c2, e n = −1, para obtermos o resultado:

t ≈ 2l

c

(1 +

v2

c2

)

para o tempo de ida e volta do raio luminoso que se desloca paralela-

mente ao movimento da Terra. A deducao para o tempo de ida e volta

do raio luminoso que se desloca perpendicularmente ao movimento do

Page 113: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 97

espelho, e ligeiramente mais complicada, mas nao chega a ser difıcil

(veja Painel VI).

Page 114: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

98

PAINEL VI

A EXPERIENCIA DE MICHELSON

Um esquema do interferometro de Michelson e mostrado na figura. Uma fonte

luminosa F emite um feixe de luz que incide sobre um espelho semi-transparente E,

posicionado a 45o em relacao ao raio incidente. Metade da intensidade e refletida

sobre o espelho E2, e metade atravessa E e incide sobre outro espelho E1. O feixe

refletido em E2 retorna sobre E que novamente deixa passar somente metade da

intensidade (a outra metade e refletida de volta para a fonte). Do mesmo modo,

a porcao refletida em E1 incide de volta em E que refletira metade da intensidade

do raio que retorna. A parte que incidiu sobre E1 percorre uma distancia total l1

correspondente ao trajeto E → E1 → E, e a parte que incide sobre E2 percorre

l2 no trajeto E → E2 → E. A interferencia entre os raios e observada sobre estasduas porcoes no anteparo. Suponha que a velocidade dos espelhos em relacao ao

eter seja v, paralela a direcao do raio que incide sobre E1. O tempo de percurso

E → E1 → E e facilmente obtido:

t1 =l1c− v +

l1c+ v

=2l1c

(1

1− v2/c2)

Para calcularmos o tempo de percurso E → E2 → E temos que levar em conta

que E e E2 se deslocam perpendicularmente a direcao de movimento dos espelhos.

Se t2 e o tempo total deste percurso, em t2/2 o espelho E2 tera se deslocado de uma

distancia vt2/2. A distancia percorrida pela luz nesse caso sera de ct2/2, sendo que

esta percorrera a mesma distancia ate alcancar E2 novamente. Aplicando o teorema

de Pitagoras a este trajeto do raio, obtemos:

ct22=

[l22 +

(vt22

)2]1/2

Consequentemente,

t2 =2l2c

1√1− v2/c2

A diferenca entre os tempos de transito nos dois percursos sera:

Page 115: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 99

∆t = t2 − t1 = 2c

[l2√

1− v2/c2 − l11− v2/c2

]

Page 116: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

100

.

Esquema do inteferometro de Michelson.

Trajetoria do raio luminoso com o movimento do interferometro.

Page 117: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 101

Suponha agora que todo o aparelho seja girado de 90o. Fazendo

isso, e simples ver que l2 troca de lugar com l1, e consequentemente a

“nova” diferenca nos tempos sera:

∆t′ =2

c

l2

1 − v2/c2− l1√

1 − v2/c2

Portanto, a rotacao muda as diferencas entre os intervalos de tempo

por:

∆t′ − ∆t =2

c

l1 + l2

1 − v2/c2− l1 + l2√

1 − v2/c2

Usando o desenvolvimento binomial (1 + x)n ≈ 1 + nx, valido para

x pequeno, obtemos para os denominadores dos termos entre colchetes:

1

1 − v2/c2≈ 1 +

v2

c2

1√1 − v2/c2

≈ 1 +v2

2c2

com isso:

∆t′ − ∆t =v2

c2

(l1 + l2c

)

Esta diferenca entre os intervalos de tempo de percurso causa uma

mudanca na diferenca de fase entre as ondas que, por sua vez, acarreta

em um deslocamento nas franjas de interferencia sobre o anteparo. Ou

seja, onde estava claro fica mais escuro. Esse deslocamento ∆N sera

dado pela razao entre a diferenca nos tempos ∆t′−∆t, e o perıodo das

ondas (como os raios partem da mesma fonte o perıodo (e a frequencia)

sera o mesmo para ambos):

Page 118: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

102

∆t′ − ∆t

τ= ∆N =

v2

c2

(l1 + l2cτ

)

Mas, cτ = λ, o comprimento de onda da radiacao. Na experiencia de

Michelson, l1 = l2 = 11 m, λ = 5, 5 × 10−7 m, e v/c = 10−4. Com

isso obtem-se ∆N = 0, 4 franjas. Este e o deslocamento das franjas

que deveria ser observado se houvesse alguma diferenca na velocidade

da luz medida nos dois referenciais, o da Terra e o do Eter. Como

nenhuma mudanca foi observada, a conclusao inevitavel foi de que a

velocidade da luz e a mesma nos dois referenciais.

Page 119: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 103

Na experiencia de Michelson os raios paralelo e perpendicular sao

superpostos de modo a interferirem. O que se mede em um inter-

ferometro deste tipo sao as posicoes das franjas de interferencia. Essas

posicoes dependem dos caminhos percorridos pelos dois raios luminosos.

Michelson mediu as posicoes das franjas e depois rotacionou de 90o todo

o aparelho, de modo a trocar as direcoes de propagacao entre os raios

paralelo e perpendicular. Ele calculou que se houvesse uma diferenca

entre as velocidades da luz no sistema do eter e na Terra, essa rotacao

deslocaria as franjas de interferencia de quatro decimos. Espertinho,

nao? Porque voce acha que ele embolsou o Estocolmo2?

Resultado do experimento: deslocamento das franjas igual a zero!

Isto e, nao houve mudanca nenhuma no padrao de interferencia quando

foi feita a rotacao. Polvorosa total! O Titanic comecou a afundar!

Este resultado foi tao impactante, que ate 1930 (50 anos depois do

experimento de Michelson, e 25 anos depois da Relatividade) tinha

“mane” repetindo o experimento. Todos eles confirmaram: nao existe

a diferenca entre as velocidades da luz em relacao ao sistema do eter

e da Terra, previsto pela mecanica classica. Ou seja, nao existe o tal

sistema do eter. Entao, para que o eter?!

2Estocolmo, capital da Suecia, terra natal de Alfred Nobel, um milionarioquımico e industrial que instituiu o famoso Premio Nobel para obras cientıficas,literarias e filantropicas.

Page 120: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

104

2.3 Os Postulados da Relatividade:

a Implosao do Velho Templo

“Zur Elektrodynamik Bewegter Korper”, ou “ Sobre a Eletrodinamica

dos Corpos em Movimento”. Este e o tıtulo de um dos artigos publi-

cados em 1905 no Annalen der Physik, uma influente revista cientıfica

alema da epoca. O autor do artigo: um desconhecido jovem de 26 anos

de idade, funcionario de um escritorio de patentes, chamado Albert

Einstein. Era o inıcio do fim para a fısica classica3.

Nesse artigo Einstein postula dois princıpios:

Princıpio da Relatividade: As leis da Fısica sao as

mesmas em todos os sistemas inerciais. Nao existe nenhum

sistema inercial preferencial.

Princıpio da Constancia da Velocidade da Luz: A

velocidade da luz no vacuo tem o mesmo valor em todos os

sistemas inerciais.

Com o primeiro princıpio Einstein detona a ideia do tal sistema

do eter e, de forma geral, de sistemas de referencia absolutos. Ele

afirma que nao e possıvel encontrarmos atraves de qualquer experi-

mento (mecanicos, oticos, eletromagneticos, etc.) um sistema de re-

ferencia que esteja absolutamente parado, ou absolutamente em movi-

mento. Tal sistema nao existe. Tudo o que existe e o movimento

3Na verdade, cronologicamente falando, o “fim” da Fısica Classica ja haviacomecado em 1900 com o trabalho de Max Planck (capıtulo tres). Contudo, aimportancia deste trabalho so foi reconhecida pela primeira vez pelo proprio Ein-stein, que e, na opiniao do autor, a figura central da Fısica no seculo XX.

Page 121: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 105

relativo. O segundo princıpio e um postulado consistente com os re-

sultados experimentais de Michelson. Einstein mais tarde viria a dizer

que por ocasiao de seu artigo desconhecia os resultados de Michelson4.

Vamos estudar agora as consequencias logicas dessas duas sentencas.

A velocidade da luz e a mais alta velocidade que pode ser atingida na

Natureza. E o topo. O segundo princıpio afirma que esta velocidade e

a mesma em todos os sistemas inerciais. Aqui a nossa intuicao comeca

a ir para o brejo! So para “sentir o drama”, considere novamente o

experimento da imagem no espelho, que Einstein imaginara dez anos

antes do seu artigo. De acordo com o segundo princıpio, se fosse possıvel

para o observador se mover com o espelho a velocidade da luz, ele

continuaria a ver a sua imagem como se estivesse parado! E como

se voce quisesse medir a velocidade de um carro na estrada tentando

“emparelhar” com ele, mas por mais que voce acelerasse a velocidade

dele continuasse sempre a mesma em relacao a voce. Imagine uma coisa

dessas: voce vai com seu carro pela a estrada a 80 km/h, e ve outro

carro a sua frente a 50 km/h, em relacao a voce. Entao voce acelera e

aumenta a sua velocidade para 120 km/h, mas continua vendo o carro

da frente se afastar com os mesmos 50 km/h! E ou nao e esquisito?

Obviamente uma coisa dessas nao e imediatamente aceita pelos

fısicos so porque um tal de Einstein falou. Desde seu nascimento, a

relatividade ja foi testada milhares de vezes em diferentes laboratorios

por todo o mundo, e sobreviveu a todos os testes. Um dos testes mais

espetaculares da constancia da velocidade da luz foi realizado no la-

4Ha aqui alguma controversia. Alguns autores afirmam que Einstein conheciaos resultados de Michelson, mas fazia de conta que nao, o que sugere uma certa“malandragem” sua.

Page 122: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

106

boratorio CERN, localizado na Europa, em 1964 (9 anos apos a morte

de Einstein; 35 anos apos a publicacao do artigo!). Para isso os fısicos

usaram o decaimento de uma partıcula chamada pıon, representada

por π0 (o sobrescrito “0” quer dizer que a partıcula e neutra, ou seja

sem carga eletrica). No capıtulo nove falaremos com mais detalhes so-

bre partıculas elementares e decaimentos. Por agora e suficiente saber

que o π0 se desintegra, ou decai, em duas partıculas gama, que nada

mais sao do que ondas eletromagneticas. Representamos o processo de

decaimento de maneira semelhante aquela usada pelos quımicos para

representar reacoes quımicas:

π0 −→ γ + γ

Estes sımbolos significam que o pıon “some” para dar lugar a ondas

eletromagneticas (tambem chamadas de partıculas gama, ou fotons,

como veremos no proximo capıtulo), representadas pela letra grega

gama (γ).

Pıons podem ser fabricados em laboratorios. No experimento de 64

no CERN, pıons foram produzidos com uma velocidade muito proxima

a velocidade da luz: v = 0, 99975c (ou seja, 99,975% da velocidade

da luz). O objetivo do experimento era medir a velocidade dos gamas

emitidos no decaimento no referencial do pıon. Ou seja, realizar na

pratica a experiencia do espelho de Einstein! O resultado da medida

foi:

c = 2, 9977 × 108 m/s

ou seja, identico a velocidade da luz medida no laboratorio (obviamente

em repouso em relacao ao pıon). A conclusao deste experimento foi a

Page 123: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 107

de que o pıon se movendo com uma velocidade muito proxima a da luz,

“ve” a onda eletromagnetica se propagar com uma velocidade que seria

a mesma que ele “veria” se estivesse parado.

Obviamente os princıpios postulados por Einstein invalidam as trans-

formacoes de Galileu. Mas, se aquelas transformacoes estao erradas,

quais sao as certas? Antes de responder vamos considerar uma situacao

simples onde dois referenciais A e B se deslocam relativamente um ao

outro ao longo do eixo x com uma velocidade v. De acordo com as

transformacoes de Galileu, as relacoes entre as coordenadas medidas

nos dois sistemas sera:

x′ = x− vt

y′ = y

z′ = z

t′ = t

Ou seja, somente a coordenada x sofrera neste caso alteracao quando

passarmos de um sistema para outro. A ultima equacao, t′ = t e uma

mera afirmacao de que o tempo e absoluto, um postulado da mecanica

newtoniana. A relatividade afirma que essas transformacoes nao sao

corretas, ou pelo menos nao sao gerais (por exemplo, elas estao em con-

flito com o resultado do experimento de Michelson). As transformacoes

encontradas por Einstein, e que devem ser usadas sao chamadas trans-

formacoes de Lorentz, dadas por5:

5Essas expressoes nao foram deduzidas por Einstein, mas pelo fısico holandesHendrik Antoon Lorentz, que, no entanto, as utilizou em um contexto fısicodiferente.

Page 124: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

108

x′ =x− vt√1 − v2/c2

y′ = y (2.1)

z′ = z

t′ =t− vx/c2√1 − v2/c2

Note que a ultima equacao afirma que intervalos de tempo medidos pelo

observador em movimento dependem da velocidade relativa entre os

sistemas de coordenadas. Ou seja, cai por terra o absolutismo do tempo

newtoniano, implıcito nas transformacoes de Galileu! Se a velocidade

v for muito pequena, ou seja, v c, os termos v2/c2 e v/c2, podem

ser desprezados e o que obtemos sao precisamente as transformacoes de

Galileu. Portanto, a relatividade estabelece um limite de validade para

as transformacoes de Galileu (e de certa forma para a nossa percepcao

do mundo!). Quando v for muito grande, comparavel a velocidade da

luz, a fısica “muda”, e temos que usar as transformacoes de Lorentz.

Quanto mais proximo v for de c, mais a razao v2/c2 tendera para o

valor 1, e consequentemente a expressao√

1 − v2/c2 tendera para zero,

fazendo as fracoes em 2.1 “explodirem” para infinito. E nesse limite que

coisas estranhas acontecem com o tamanho dos objetos e os ponteiros

dos relogios!

2.4 O Tempo pode ser Esticado!

Simultaneidade: “Qualidade do que e simultaneo; existencia ao mesmo

Page 125: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 109

tempo de duas ou mais acoes, fatos ou coisas.” (Koogan/Houaiss, En-

ciclopedia e Dicionario Ilustrado, Ed. Delta 1998).

Um dos conceitos chaves em relatividade e o de simultaneidade.

O dicionario define a palavra sem dizer contudo como julgar se dois

eventos sao simultaneos ou nao. Nas palavras de Einstein: Quando

digo, por exemplo, ‘o trem chega as 7’, significa que a passagem do

ponteiro do relogio sobre o lugar marcado 7 e a chegada do trem sao

eventos simultaneos. Esta afirmacao trivial para o senso comum, nao e

tao trivial assim em relatividade.

Suponha que um observador meca dois eventos, que vamos chamar

de evento 1 e evento 2 (como por exemplo a passagem de um aviao e o

espirro de uma pessoa). O nosso senso comum nos diz que se os eventos

ocorrem ao mesmo tempo para um observador sentado no banco de um

jardim, ou seja, se eles sao simultaneos, tambem o serao para alguem,

por exemplo, passando em um onibus. Acontece que simultaneidade

tambem e um conceito relativo. Ou seja, se o observador sentado no

banco observa o evento 1 e o evento 2 ocorrerem ao mesmo tempo, o

observador em movimento pode chegar a conclusao, por exemplo, de

que a pessoa espirrou antes de o aviao passar!

A relatividade da simultaneidade esta associada a relatividade do

tempo. Consideremos um outro “experimento-cabeca”. Material necessario:

2 observadores, 1 trem, 1 espelho, uma lanterna, 2 relogios, e 1 maqui-

nista (para guiar o trem!). Ainda bem que o experimento e so de cabeca!

Para dar um toque mais humano vamos chamar um dos observadores

de Eduardo e o outro de Monica. Eduardo esta em pe na plataforma,

e Monica viaja em uma cabine do trem, que se move com velocidade

Page 126: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

110

v constante (portanto ambos os referenciais sao inerciais). O espelho

se encontra em frente a plataforma, a uma distancia d, do outro lado

dos trilhos. O trem se aproxima da estacao e, no momento em que a

cabine de Monica passa por Eduardo, a lanterna e acesa. O objetivo

do experimento e medir o tempo que a luz leva para ir ate o espelho,

refletir, e voltar ate a cabine onde esta Monica. Como Monica esta

parada em relacao ao trem, ela simplesmente ve a luz ir e voltar per-

pendicularmente a sua cabine, e portanto gastar um tempo ∆tM igual

a:

∆tM =2d

c

Por outro lado, para Eduardo o trem tera se deslocado uma distancia

igual a v∆tE , durante o tempo ∆tE de ida e volta do raio luminoso

medido por ele. O caminho percorrido pela luz sera para Eduardo

igual a 2l (veja figura), e portanto:

∆tE =2l

c

Aplicando o teorema de Pitagoras ao triangulo retangulo formado por

l, d e (1/2)v∆tE obtemos:

l =

√(v

2∆tE)2 + d2

Mas, da expressao do tempo medido por Monica obtemos:

d =c

2∆tM

consequentemente

Page 127: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 111

l =

√(v

2∆tE)2 + (

c

2∆tM)2

Por outro lado, da expressao do tempo medido por Eduardo temos:

l =c

2∆tE

Substituindo na expressao anterior, e elevando ambos os lados ao quadrado,

obtemos:

(c

2∆tE)2 = (

1

2v∆tE)2 + (

c

2∆tM )2

ou

(c2 − v2)∆t2E = c2∆t2M

donde obtemos a seguinte relacao para os intervalos de tempo ∆tM e

∆tE :

∆tE =∆tM√

1 − v2/c2

Ou seja, os intervalos de tempo medidos por Eduardo e Monica sao

diferentes! Eles somente serao iguais se a velocidade do trem for muito

menor do que a da luz (o que obviamente e sempre verdade, pelo menos

para os trens fabricados aqui na Terra!), ou seja v c. O leitor deve

parar para refletir sobre esse resultado espetacular da relatividade. A

formula acima vale para qualquer velocidade v. Para um valor qualquer

de v, o intervalo de tempo medido por Eduardo sera maior do que aquele

medido por Monica. Ou seja, o relogio de Monica se atrasa em relacao

Page 128: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

112

ao de Eduardo. Eduardo envelhece mais rapido do que Monica! Note

que isso e uma consequencia direta da constancia da velocidade da luz:

como o percurso do raio visto por Eduardo e maior, a unica maneira

de manter c constante e alongar o tempo na mesma proporcao! Este

fenomeno e chamado de dilatacao temporal. Embora nao o facamos

aqui, a dilatacao temporal pode tambem ser deduzida facilmente das

transformacoes de Lorentz.

A Relatividade preve que observadores que se movem relativamente um ao outroenvelhecem de maneira distinta.

Para dar um exemplo numerico utilizando valores acessıveis no nosso

dia-a-dia, vamos supor que Monica se encontre em um desses super-

trens japoneses que viajam a 500 km/h (aproximadamente 139 m/s).

A esta velocidade, o fator no denominador da expressao acima seria de:

Page 129: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 113

1√1 − v2/c2

=1√

1 − (139/3 × 108)2≈ 1 + 10−13

Ou seja, para essa velocidade, cada segundo que se passar para Monica,

1,0000000000001 segundos (um segundo e um decimo de um trilhonesimo)

se passarao para Eduardo! Este exemplo mostra porque no nosso dia-

a-dia de velocidades mundanas, nao percebemos tais fenomenos.

Mas, o que e impossıvel para humanos, pode ser corriqueiro para

partıculas. Lembra do experimento de 64 realizado no CERN para

verificar a constancia da velocidade da luz? Pois e, em 68 eles fizeram

um para verificar a dilatacao temporal! Desta vez eles usaram nao o π0,

mas o muon, uma partıcula que quando em repouso dura apenas cerca

de 2,2 microssegundos (1 microssegundo = 1 µs = 10−6 s). Muons foram

produzidos a uma velocidade de 0,9966c (ou seja, 99,66% da velocidade

da luz), e seu tempo de decaimento observado. Resultado: quando se

move com essa velocidade o muon leva cerca de 26,2 microssegundos

para decair. Comparando com a previsao da teoria da relatividade:

∆t =2, 2√

1 − 0, 99662= 26, 7 µs

em boa concordancia com o experimento. Entao, do ponto de vista

do observador em repouso, o muon vive mais tempo quando em movi-

mento!

Aqui vale uma pausa para um comentario nao-tendencioso de um

fısico experimental. Ca pra nos, esses experimentos sao de arrepiar!

Nao fosse possıvel verificar experimentalmente esses resultados estapafur-

Page 130: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

114

dios da relatividade, a teoria jamais teria sido aceita! A fısica e uma

ciencia experimental. Experimentar e preciso!

O leitor deve estar se perguntando ainda sobre o problema do espe-

lho. A constancia da velocidade da luz em todos os referenciais inerciais

foi postulada por Einstein, o que leva as transformacoes de Lorentz. Ob-

viamente se essas transformacoes estao corretas, elas devem “embutir”

o resultado do experimento do espelho (ou do muon). Ou seja, temos as

transformacoes para as posicoes; precisamos agora das transformacoes

para as velocidades. Vamos considerar o problema unidimensional ao

longo do x. Se v for a velocidade de um objeto medida de um sistema

fixo em relacao ao solo, e v′ o medido de um sistema que se desloca

com velocidade V em relacao ao primeiro, sabemos que classicamente:

v = v′ + V

A transformacao correta para velocidade, obtida das transformacoes de

Lorentz e:

v =v′ + V

1 + v′V/c2

Note que esta se reduz a expressao anterior no caso em que v c.

Para verificarmos o experimento do espelho simplesmente substitu-

imos v′ = c para a velocidade do espelho e do observador, e vemos o

que resulta para v, a velocidade da luz medida por ele:

v =c+ V

1 + cV/c2=

c+ V

1 + V/c=

c+ V

(c+ V )/c= c

ou seja, a velocidade da luz permanece a mesma.

Passemos agora aos tamanhos das coisas.

Page 131: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 115

2.5 O Espaco pode ser Encolhido!

Como se mede o comprimento de alguma coisa? O leitor a essa altura

deve estar pensando: “pronto, agora ele enlouqueceu de vez!” Mas

lembremos que foi exatamente fazendo perguntas “triviais” que Eins-

tein chegou a relatividade. Vamos entao de novo: como se mede o

comprimento de alguma coisa? Pegamos uma regua e comparamos o

tamanho do objeto com o numero daqueles tracinhos desenhados na

regua. Neste processo trivial, o que estamos fazendo na realidade e

subtrair os numeros correspondentes aos tracinhos que coincidem com

as extremidades do objeto a ser medido. Por exemplo, se uma das

extremidades coincide com o tracinho que marca ‘15 cm’ e a outra esta

sobre o tracinho ‘5 cm’, o comprimento do objeto sera obviamente de

10 cm. E se o objeto estiver se movendo em relacao a voce? Suponha

que voce queira medir o comprimento de um cabo de vassoura que esta

se movendo, por exemplo, arrastado por uma bicicleta. Neste caso fica

difıcil usar uma regua. Poderıamos, por exemplo, usar um daqueles

dispositivos oticos que existem em portas de elevadores para abrı-las

quando a luz e interrompida. Entao, durante a passagem do cabo de

vassoura a luz estaria interrompida. Medirıamos desse modo o tempo

gasto durante a passagem do cabo, e multiplicarıamos esse tempo pela

velocidade do cabo. Este seria o comprimento do cabo, certo? Mas,

que intervalo de tempo voce usaria, cara-palida, se acabamos de ver

que intervalos de tempo dependem do observador?

Retornemos aos nossos observadores Eduardo e Monica. Desta vez

o objetivo e medir o comprimento da plataforma da estacao. Eduardo,

Page 132: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

116

que esta parado em relacao a plataforma, pega uma regua e mede um

comprimento igual a L0. Alem disso, ele mede o intervalo de tempo

que o trem leva para atravessar a plataforma. Chamando esse intervalo

de ∆tE , e sabendo que a velocidade do trem e constante e igual a v,

obviamente Eduardo chega a conclusao de que:

L0 = v∆tE

Para Monica, por outro lado, o trem esta parado, e e a plataforma que

se move com velocidade v (em modulo). De dentro do trem Monica

mede um intervalo de tempo ∆tM para o trem atravessar a plataforma,

e chega a conclusao de que o comprimento da plataforma e igual a:

L = v∆tM

Dividindo uma expressao pela outra obtemos a seguinte relacao entre

os comprimentos medidos por Eduardo e Monica:

L = L0∆tM∆tE

= L0

√1 − v2

c2

Portanto, Monica ve a plataforma com um comprimento menor do que

o que e visto por Eduardo! Para ela o espaco encolheu! Este fenomeno

e chamado de contracao do comprimento, e e obviamente uma con-

sequencia direta da dilatacao do tempo. Podemos novamente utilizar o

exemplo do trem japones viajando a 500 km/h para avaliar de quanto

a plataforma encolhe para Monica. Neste caso, obtemos:

L ≈ (1 − 10−13)L0

Page 133: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 117

ou seja, se o comprimento da plataforma para Eduardo for de 50 metros,

para Monica ele sera de 49,9999999999999 metros!

Poderıamos agora perguntar, por exemplo, a que velocidade o trem

deveria viajar a fim de que a plataforma aparecesse para Monica com a

metade do comprimento visto por Eduardo. Basta substituir L = L0/2

na expressao acima:

1

2=

√1 − v2

c2⇒ 1

4= 1 −

(v

c

)2

ou

v

c=

√1 − 0, 25 = 0, 866

ou seja, cerca de 86,6 % da velocidade da luz, ou 259 800 km/s!

Uma curiosidade: note como o valor da velocidade da luz e impor-

tante para a nossa percepcao do mundo. Se ao inves de 300 000 km/s, a

luz viajasse a 100 km/h, o valor calculado acima corresponderia a ape-

nas 87 km/h, o que de fato e a ordem de magnitude para velocidades

de trens e carros. Em tal situacao verıamos carros, trens, onibus, etc.,

mudarem de tamanho quando postos em movimento!

2.6 E = mc2: Energia que da Gosto!

Nao so a imagem de Einstein mostrando a lıngua para os fotografos se

tornou um sımbolo, mas tambem a sua famosa expressao E = mc2. Ex-

pressoes simples como essa possuem um poder cativante sobre a mente

estetica dos fısicos. Formulas complicadas sao coisas horrorosas, em

geral aproximadas, sem beleza e sem generalidade. Como dizia Vini-

cius de Moraes, “beleza e fundamental”. Concordamos que E = mc2 e

Page 134: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

118

mais famosa do que F = ma. Que diretor de cinema usaria F = ma,

ou p = mv, ao inves de E = mc2 em uma daquelas historias manjadas

do menino-genio? Mas o que significa essa expressao, e quais sao suas

consequencias? E o que veremos nesta secao.

Recordemos primeiramente a definicao de momento ou quantidade

de movimento em mecanica classica:

p = mv

Vimos que esta quantidade esta associada a energia cinetica T atraves

de:

T =p2

2m

Lembremos ainda a importante propriedade de conservacao destas quan-

tidades em sistemas mecanicos isolados.

Em relatividade o momento, como definido acima, nao se conserva

para todos os sistemas inerciais. A fim de preservar a lei de conservacao

do momento, sua expressao deve entao ser redefinida. A nova expressao

envolve o mesmo fator√

1 − v2/c2 que aparece nas expressoes da di-

latacao temporal e contracao do comprimento:

p =m√

1 − v2/c2v

Podemos re-escrever essa expressao com o mesmo aspecto que a

classica definindo uma quantidade chamada massa relativıstica m′:

m′ =m√

1 − v2/c2

Page 135: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 119

de modo que

p = m′v

Vemos entao que a massa relativıstica depende da velocidade do

objeto. Quando v = 0, teremos m′ = m. A massa m e aquela me-

dida por um observador em repouso em relacao ao objeto, e por essa

razao e chamada de massa de repouso. Por outro lado, a massa m′ e

aquela medida por um observador que ve o objeto se mover. Entao,

em relatividade existem duas massas: a de repouso e a relativıstica.

Obviamente para v = 0, m e m′ serao diferentes. E preciso ter cuidado

nesse ponto: o fenomeno de aumento da massa relativıstica e um efeito

dinamico, e nao significa que a quantidade de materia do objeto esteja

aumentando. Trata-se de um aumento da inercia do objeto. Ou seja,

quanto mais proxima da velocidade da luz for a velocidade de um ob-

jeto, mais difıcil se torna aumenta-la. Estritamente falando, somente

objetos com massas de repouso iguais a zero podem viajar a velocidade

da luz (como, por exemplo, os fotons - capıtulo tres). Um eletron, por

exemplo, possui massa de repouso m = 9, 11× 10−31 kg. Se um eletron

for acelerado ate que sua velocidade atinja o valor 0, 95c (95% a ve-

locidade da luz), para um observador em repouso em relacao a ele, sua

massa passa a ser aproximadamente de 3, 2m. E desnecessario dizer que

no nosso dia-a-dia nao percebemos tal aumento. Usando novamente o

exemplo do trem a 500 km/h, se Monica mede 60 kg para sua propria

massa, Eduardo medira 60,00000000000001 kg, o que nao significa que

Monica aparecera aos seus olhos mais gordinha!

A energia cinetica relativıstica nao tera mais uma relacao tao sim-

Page 136: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

120

ples com o momento do objeto, quanto na mecanica classica. Ela e

dada por :

T = mc2

1√

1 − v2/c2− 1

ou

T =mc2√

1 − v2/c2−mc2 = m′c2 −mc2

Note que quando v = 0, teremos T = 0, como ocorre na mecanica

classica. Alem disso, na maioria das situacoes do nosso dia-a-dia, a ve-

locidade v do objeto que se move sera muito menor do que a velocidade

da luz c, ou seja, v c. Neste limite, podemos usar uma aproximacao

para a raiz quadrada no denominador da expressao acima. De um modo

geral, em uma expressao do tipo:

(1 + x)n

se x for muito menor do que 1, podemos escrever:

(1 + x)n ≈ 1 + nx

No caso que estamos tratando, identificamos x como −v2/c2, e n =

−1/2:

1√1 − v2/c2

= (1 − v2/c2)−1/2

Consequentemente, para v c teremos:

1√1 − v2/c2

≈ 1 +v2

2c2

Page 137: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 121

e nossa expressao para a energia cinetica entao se torna:

T = mc2(

1 +v2

2c2

)−mc2 =

mv2

2

que e o resultado classico. Logo, a energia cinetica relativıstica se

reduz a classica no limite de baixas velocidades, como alias ja era de se

esperar!

Definimos a quantidade m′c2 como a energia total do objeto, que

sera entao igual a soma da energia cinetica mais o produto mc2:

m′c2 = T +mc2

Note que no ultimo termo, a quantidade m e a massa de repouso. Esta

e a famosa expressao da energia de repouso, E:

E = mc2

Esta expressao estabelece uma equivalencia entre massa e energia,

e e talvez o resultado mais revolucionario da teoria da relatividade. Ela

simplesmente nos diz que massa pode ser convertida em energia e vice-

versa. Como veremos com mais detalhes no capıtulo sete, esta equiva-

lencia e verificada em processos de desintegracao nuclear. Somente a

tıtulo de exemplo vamos estimar aqui a energia contida em uma massa

igual a 1 grama:

E = 10−3 kg × (3 × 108)2 m/s = 9 × 1013 ≈ 1014 J

So para dar uma ideia da quantidade de energia acima, recordemos que

a energia necessaria para elevar 1 litro de agua de zero ate 100 graus

Page 138: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

122

Celsius e da ordem de 105 J. Portanto, com a energia de 1014 J contida

em uma massa de apenas 1 g, poderıamos ferver cerca de 1 bilhao de

litros de agua! Pense nisso: se na sua casa a caixa dagua e de 2000

litros, 1 bilhao de litros corresponde a 500 000 caixas dagua!

O resultado mais revolucionario da Relatividade: massa e energia sao grandezasfısicas equivalentes!

Page 139: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 123

PAINEL VII

CASAMENTO CONTURBADO

Einstein casou-se pela primeira vez em 1903, sob veemente oposicao dos seus

pais, com a serbia Mileva Maric, uma ex-companheira da Politecnica que ele co-

nheceu aos 17 anos de idade. O casamento gerou dois filhos, e revelou uma face

pouco divulgada e embaracosa de um candidato a mito. Varias cartas foram escritas

por ele durante esta epoca. Elas revelam a decadencia do relacionamento do casal

ate a sua separacao. Inicialmente Einstein se refere a Mileva como “uma criatura

igual a ele; forte e independente”, ou como em outra carta, onde ele se refere a

Mileva como “gatinha”, e declara: “sem a sua lembranca, eu nao conseguiria viver

no meio desse miseravel bando de humanos”.

A medida em que o relacionamento foi se deteriorando, o teor das cartas foi

mudando. Em uma delas Einstein escreve para sua prima Elsa, com quem se casaria

mais tarde: “Trato Mileva como uma empregada que nao posso demitir. Tenho meu

proprio quarto, e evito ficar sozinho com ela. Somente desta forma consigo suportar

nosso convıvio.”

Einstein chegou ao extremo de impor regras escritas a Mileva:

“A) voce se encarregara de: (1) que minhas roupas sejam mantidas em ordem;

(2) me servir tres refeicoes ao dia no meu quarto; (3) que meu quarto e minhas

coisas sejam mantidas em ordem sobre a minha mesa, e que nao sejam tocadas por

ninguem alem de mim.”

“B) Voce renunciara a qualquer relacionamento pessoal comigo, exceto quando

necessario, de modo que as aparencias sociais sejam mantidas. Em particular, voce

nao: (1) sentara ao meu lado em casa; (2) saira ou viajara comigo.”

“C) Voce tera que prometer as seguintes coisas: (1) nao esperar afeicao de

minha parte, e nao se aproximar de mim; (2) responder imediatamente quando eu

falar com voce; (3) sair do meu quarto imediatamente, sem protestar, quando eu

pedir.”

“D) Voce prometera nao denegrir a minha imagem aos olhos das criancas.”

Page 140: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

124

2.7 Viagens no Tempo

A teoria da relatividade revelou o comportamento nao intuitivo de

relogios e reguas a altas velocidades. Mas, o que e um relogio senao

algo que marca o numero de vezes que determinado fenomeno se repete?

Um relogio de pulso marca o numero de voltas dadas pelos ponteiros

durante uma revolucao completa da Terra em torno de si mesma. A

rigor, qualquer fenomeno periodico serve como relogio. E se aplicarmos

a dilatacao temporal a seres humanos? As batidas de nosso coracao, por

exemplo, podem servir como relogio. Em 1911, 6 anos apos a publicacao

de seu artigo revolucionario, Einstein fez o seguinte comentario:

Se tivessemos um organismo vivo numa caixa, poderıamos

proceder de maneira que o organismo, depois de um voo

longo arbitrario retornasse ao ponto inicial, numa condicao

muito pouco alterada, enquanto que os organismos correspondentes,

que permaneceram em suas posicoes iniciais, haviam ha

muito cedido lugar a novas geracoes. Para o organismo em

movimento, o longo tempo de jornada foi um mero instante,

desde que o movimento tenha sido realizado com uma ve-

locidade proxima a da luz. (Compilado de Introducao a

Relatividade Especial, Robert Resnik, Ed. USP 1971).

Considere por exemplo uma outra experiencia pensada. Material

necessario: 2 pessoas gemeas, 2 relogios e um foguete capaz de viajar

com velocidade proxima a da luz. Um dos gemeos embarca no foguete e

faz uma viagem ate uma galaxia distante, enquanto o outro permanece

Page 141: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 125

na Terra. Cada um dos gemeos ve o seu proprio relogio marcar as horas

normalmente, mas para o que permanece na Terra, o relogio do outro

se atrasa, como resultado da dilatacao temporal. Em outras palavras,

para ele, seu irmao envelhece mais lentamente. Quando a nave retornar

a Terra, o que viajou estara mais novo do que o que ficou na Terra!

Podemos pensar como se o do foguete tivesse feito uma viagem para o

futuro!

Ultima fotografia de Eistein, aos 79 anos de idade.

Obviamente tal experiencia nao e, por enquanto, possıvel de ser re-

alizada. Do material necessario, so dispomos dos gemeos e dos relogios,

mas nao da nave com as caracterısticas desejadas. No entanto, exis-

tem homens dispostos a tudo. Vimos anteriormente que a dilatacao do

Page 142: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

126

tempo foi verificada em laboratorios utilizando partıculas subatomicas.

Se criarmos, por exemplo, dois muons e acelerarmos um deles a uma

velocidade de 0,9966c, permanecendo o outro em repouso, notaremos

que o primeiro existira por cerca de 26 µs, enquanto que o segundo

tera desaparecido apos 2,2 µs. O experimento acima, no entanto, diz

respeito nao a partıculas, mas a pessoas. Em outubro de 1977, Joseph

Hafele e Richard Keating resolveram testar a dilatacao temporal em

relogios macroscopicos, utilizando voos comerciais em torno do globo.

Neste nıvel de velocidades a dilatacao temporal e imperceptıvel para

o senso comum, e so pode ser medida devido a existencia de relogios

atomicos de altıssima precisao. Com isso Hafele e Keating verificaram

a dilatacao temporal prevista pela teoria da relatividade com um erro

menor do que 10%!

E este o estado das coisas. Somos seres nao relativısticos e nos-

sas percepcoes sao mais proximas a mecanica classica. No entanto, a

Natureza e muito mais do que as nossas percepcoes, como ficou evi-

dente neste capıtulo. Os tremendos “insights” de Einstein o colocaram

acima das proprias percepcoes, e no topo do mundo, entre os homens

mais brilhantes que ja existiram. A relatividade “baguncou” o palco

fundamental da mecanica classica, revelando propriedades dinamicas

ate entao insuspeitas do espaco e do tempo. Mas Einstein nao parou

por aı, e nem os desenvolvimentos da fısica no inıcio do seculo XX. Se

o leitor acha que este capıtulo ja esgotou a quota de coisas estranhas

que podem ser toleradas, sugiro que ele feche o livro e nao ouse ler o

proximo capıtulo, sob pena de que, caso insista em ir adiante, vir a

duvidar da sua propria existencia!

Page 143: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 2 - A TEORIA DA RELATIVIDADE 127

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. O Anel Impossıvel de Einstein, Reuven Opher, vol. 8, no. 47, p 12.

2. Segredos do Jovem Einstein, Thomas F. Glick, vol. 11, no. 66, p. 60.

3. A Nova Estrela Binaria e a Relatividade, Joao Steiner, vol. 4, no. 20, p. 6.

4. Luz Lenta, H. Moyses Nussenzveig, vol. 25, no. 149, p. 19.

5. Um Manuscrito de Einstein no Brasil, Alfredo Tiomno Tolmasquim e Ildeude Castro Moreira, vol. 21, no. 124, p. 22.

Page 144: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

128

Resumo - Capıtulo Dois

A Teoria da Relatividade foi publicada por Albert Einstein em 1905.A teoria e baseada sobre dois postulados fundamentais: 1) todos os sis-temas inerciais sao equivalentes, e 2) a velocidade da luz e a mesmaem qualquer sistema inercial. Como consequencia desses postulados, asnocoes de espaco e tempo absolutos introduzidas na mecanica classicativeram que ser abandonadas. Na relatividade, intervalos de tempo edistancias dependem do estado de movimento do observador. Quandoum observador se encontra em movimento, o tempo para ele e dilatadoem relacao a um observador parado, e o espaco e encolhido. O conceitode energia ganha um novo significado na relatividade. A famosa formula

E = mc2

expressa a equivalencia entre massa e energia. c e a velocidade da luzno vacuo. A relatividade representa uma generalizacao da mecanicanewtoniana, e a velocidades muito menores do que a velocidade da luz,as duas teorias se tornam equivalentes.

Page 145: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 3

A Mecanica Quantica

- Deus nao joga dados.

- Nao e nosso problema explicar a Deus como ele deve governar o

mundo.

Em Bruxelas Einstein traria toda manha para a mesa do cafe uma

nova objecao a incerteza. Durante a noite, Bohr, Heisenberg e outros

juntavam-se para desmontar seus argumentos. Incerteza violava suas

conviccoes mais profundas sobre a harmonia fundamental do Universo.

(Heisenberg’s War, Thomas Powers, Knopf 1993)

3.1 Havia uma Pedra no Caminho

O problema da velocidade da luz no eter nao era o unico a contradizer

os resultados classicos. Havia um outro que provocaria uma revolucao

ainda mais profunda que a teoria da relatividade de Einstein: amecanica

quantica. Einstein relutou em aceitar as consequencias desta teoria ate

seus ultimos dias de vida (ao final do capıtulo, pode ser que o leitor

se sinta solidario com a posicao adotada por Einstein!). Chegou a

129

Page 146: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

130

afirmar que a mecanica quantica levaria a parapsicologia, e por isso

deveria ser abandonada1. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, deu

contribuicoes fundamentais para a sua formulacao e desenvolvimento.

Hoje, se por um lado ainda existe uma acalorada discussao a respeito

da interpretacao dos seus fundamentos, por outro a mecanica quantica

tornou-se uma especie de rainha da fısica, com seu espetacular poder

de previsao, e absoluta precisao nos resultados numericos dela obtidos.

Na batalha entre Bohr e Einstein quem venceu foi Bohr!

Passemos agora ao problema historico que deu origem a mecanica

quantica. Recordemos que para a fısica classica os fenomenos fısicos

pertenciam a duas categorias distintas: os mecanicos, envolvendo o

movimento de objetos massivos (planetas, macas, partıculas, etc.), e

os de natureza eletromagnetica. Dentro de cada uma dessas cate-

gorias existem os fenomenos ondulatorios; podemos tanto ter ondas

mecanicas propagando-se em um meio material (como o som, por exem-

plo), quanto ondas eletromagneticas, que nao dependem da existencia

de um meio para se propagar (como a luz, por exemplo). Ninguem em

sa consciencia imaginaria algo que misturasse propriedades tıpicas de

partıculas com propriedades ondulatorias.

Desde o seculo XIX havia o problema de como interpretar a energia

contida na radiacao emitida por um solido incandescente, a chamada

radiacao termica. Todos os corpos emitem e absorvem esse tipo de

radiacao. E por exemplo atraves da radiacao termica emitida por nossos

corpos que nos aquecemos embaixo de um cobertor em dias frios. O

1Esta foi outra previsao fantastica de Einstein. Basta dar uma olhada nas secoesde esoterismo das livrarias!

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 131

cobertor meramente evita que esta radiacao se espalhe pelo ambiente.

Para simular a emissao e absorcao de radiacao por um objeto, os fısicos

inventaram o que se chama de corpo negro, um objeto que absorve

toda a radiacao nele incidente. Um modelo idealizado de corpo negro e

uma caixa com um buraco pequeno. Toda radiacao que incide sobre o

buraco e capturada; a onda permanece refletindo nas paredes internas

da caixa sem conseguir escapar. Note que o corpo negro nao e a caixa

em si, mas apenas o buraco! Obviamente a radiacao que incide sobre

a caixa sera por ela refletida, mas aquela porcao que incidir sobre o

buraco sera absorvida e permanecera presa em seu interior. Os fısicos

do final do seculo XIX estavam interessados em descrever a distribuicao

de energia da radiacao emitida por um corpo negro e sua variacao

com a frequencia da radiacao e com a temperatura do corpo. Este

e um problema que claramente pertence a categoria dos fenomenos

ondulatorios, de natureza eletromagnetica.

A variacao da energia irradiada com a temperatura de um objeto

era uma lei bem estabelecida ao final do seculo XIX, chamada de lei

de Stefan-Boltzmann. Esta estabelece que a energia total emitida pela

radiacao, chamada radiancia, RT , e proporcional a quarta potencia da

temperatura do objeto, ou seja:

RT = σT 4

onde σ e a chamada constante de Stefan-Boltzmann, e vale 5, 67×10−8

W/m2K4 (W = watts, K = Kelvin). Essa lei diz que se duplicar-

mos a temperatura do objeto, a sua taxa de radiacao aumentara 16

vezes. Ela, contudo, nao diz como a energia esta distribuıda entre os

Page 148: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

132

varios comprimentos de onda (ou frequencias) da radiacao emitida. No

inıcio do seculo XX, Rayleigh e Jeans fizeram este calculo, usando a

eletrodinamica classica. Eles encontraram o seguinte resultado:

ρT (f) =8πf 2kBT

c3

A funcao ρT (f) mede a quantidade de energia irradiada em uma dada

frequencia f , quando o corpo negro se encontra a uma temperatura

fixa T . Nessa formula, c e a velocidade da luz (ela aparece porque a

radiacao termica e um tipo de onda eletromagnetica), e kB e a cons-

tante de Boltzmann, com valor numerico kB = 1, 381 × 10−23 J/K. Por

exemplo, a T = 10000 K teremos:

ρT (f) =8π × 105 × 1, 381 × 10−23

27 × 1024f 2 = 1, 28 × 10−42f 2 J

Hzm3

Logo, para f = 1014 Hz, a densidade de energia eletromagnetica irradi-

ada por unidade de tempo sera igual a ρT (f) = 1, 28 × 10−42 × 1028 =

1, 28 × 10−14 J/Hz m3.

Vemos entao que a previsao de Rayleigh e Jeans e de que, para uma

dada temperatura, a energia aumenta com o quadrado da frequencia.

Isto significa que a energia contida em uma dada frequencia sera 4

vezes maior do que aquela contida em outra com a metade de seu

valor. Como a energia total e igual a soma (integral - Painel IV) sobre

todas as frequencias de zero ate infinito2, esta formula preve que a

energia irradiada total sera infinita! Quando comparada com dados

experimentais, houve uma discordancia tao espetacular com a previsao

2Esta faixa de variacao de frequencia e uma idealizacao, pois frequencias de ondaseletromagneticas sao sempre maiores que zero e menores que infinito. No entanto,do ponto de vista matematico, e conveniente considerarmos a situacao idealizada.

Page 149: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 133

teorica (ver figura), que o fato entrou para a Historia da Fısica com

o nome de catastrofe do ultravioleta! A catastrofe do ultravioleta era

entao uma pedra no caminho3.

3.2 Max Plank: Pacotes de Luz?!

Ao tentar solucionar o problema da catastrofe do ultravioleta, o fısico

alemao Max Planck inaugurou uma nova era da fısica. Seu trabalho

intitulado Sobre a Teoria da Distribuicao de Energia do Espectro Nor-

mal foi apresentado no dia 14 de dezembro de 1900 em uma reuniao da

Sociedade Alema de Fısica. Esta e a data celebrada como a do nasci-

mento da fısica quantica. Na epoca, contudo, o trabalho de Planck

recebeu pouca atencao. Foi somente depois da explicacao do efeito fo-

toeletrico dada por Einstein (efeito discutido a seguir), usando as ideias

de Planck, que o trabalho entrou em foco, e ganhou importancia.

Planck conseguiu explicar a distribuicao de radiacao de corpo negro

fazendo a hipotese de que a emissao e a absorcao de energia eletro-

magnetica se dao nao de forma contınua, como requer o eletromag-

netismo classico, mas em unidades discretas de uma quantidade mınima

∆E:

E = ∆E, 2∆E, 3∆E, ...

A fim de poder ajustar a sua teoria aos dados experimentais, ele supos

que a quantidade mınima, ou quantum de energia ∆E, era proporcional

3Para que se aprecie melhor a significancia deste resultado, e preciso lembrar quenada havia errado com os calculos de Rayleigh e Jeans; estes estavam rigorosamentecorretos dentro das premissa da fısica classica. Eram as premissas em si que estavamerradas!

Page 150: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

134

a frequencia, f , da radiacao:

∆E = hf

A constante de proporcionalidade h e a famosa constante de Planck,

que numericamente vale 6, 626 × 10−34Js. A partir de sua hipotese

Planck deduziu a seguinte formula para a distribuicao de energia do

corpo negro (compare com a expressao obtida por Rayleigh e Jeans):

ρT (f) =8πh

c3f 3

ehf/kBT − 1

Essa expressao reproduz exatamente o que e observado experimental-

mente (veja figura)! Esta formula tambem leva corretamente a Lei de

Stefan-Boltzmann. Para efeitos de comparacao, vamos substituir va-

lores numericos e comparar com a formula de Rayleigh e Jeans:

ρT (f) =8π × 6, 626 × 10−34

27 × 1024×

× 1042

e6,626×10−34×1014/1,381×10−23×105 − 1= 1, 25 × 10−14 J.Hz

m3

A energia total de uma onda eletromagnetica com frequencia f sera,

de acordo com a hipotese de Plank, igual a um dado numero de vezes

a quantidade mınima hf :

E = nhf onde n = 0, 1, 2, 3, ...

Nesta expressao n o numero de quanta de radiacao com energia hf .

Este resultado esta em franca oposicao a eletrodinamica classica, para

a qual a energia de uma onda eletromagnetica varia continuamente e

Page 151: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 135

nao em pacotes. Por exemplo, a frequencia da luz visıvel e da ordem

de 1015 Hz. Portanto, a energia de um quantum de luz visıvel e de

aproximadamente 6, 6 × 10−34 × 1015 ≈ 10−18 J. Se tivessemos 1020

quanta de luz, a energia total seria 10−18 × 1020 = 100 J.

Ao supor que a energia eletromagnetica nao e distribuıda continuamente, mas em“pacotes”, ou quanta, Planck foi capaz de explicar os dados experimentais sobre aradiacao de um corpo negro.

Durante anos o proprio Planck considerou a sua hipotese um “ato de

desespero”, alusao feita aos esforcos para explicar o espectro de radiacao

do corpo negro. Ele passou cerca de dez anos tentando conciliar a sua

hipotese com a fısica classica, mas nao obteve sucesso. Somente apos a

explicacao do efeito fotoeletrico por Einstein e que ele se convenceu da

realidade dos quanta de energia.

O efeito fotoeletrico e a ejecao de eletrons de uma superfıcie metalica

pela acao de uma luz incidente. Hoje este efeito tem varias aplicacoes na

Page 152: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

136

industria atraves das chamadas celulas fotoeletricas. Podemos entender

o problema considerando o eletron preso na superfıcie de um metal

como estando dentro de um poco. So que nao se trata aqui de um poco

comum, mas do que os fısicos chamam de um poco de potencial (nos

tambem vivemos dentro de um poco de potencial; o poco de potencial

gravitacional gerado pela massa da Terra!). Essa denominacao vem do

fato de que o metal atrai o eletron para si. Na superfıcie do metal a

atracao nao e tao forte, e a luz que incide sobre ele fornece energia

suficiente para o eletron “escapar” do poco. Em geral, a energia e

suficiente nao so para arrancar o eletron, mas tambem para fornecer

a ele uma certa energia cinetica. De fato, se soubermos a energia da

luz incidente, e medirmos a velocidade do eletron ejetado, podemos

calcular a “profundidade” do poco.

Os dois aspectos principais do efeito fotoeletrico que nao podem ser

explicados pela teoria classica sao:

(i) A energia cinetica dos eletrons ejetados nao depende da inten-

sidade da luz incidente (proporcional ao quadrado do campo eletrico).

Isto esta em conflito com a ideia classica de que, como a forca que atua

sobre cada eletron e igual ao produto da carga pelo campo eletrico, eE,

a energia cinetica deveria aumentar sempre com o aumento do modulo

de E. Isso nao acontece;

(ii) Existe uma “frequencia de corte” para a luz incidente, abaixo

da qual o efeito deixa de ocorrer, independentemente da intensidade

do campo eletrico. Isso tambem esta em conflito com o eletromag-

netismo classico, para o qual o efeito deveria ocorrer qualquer que fosse

a frequencia da onda.

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 137

Einstein deu a seguinte explicacao para o efeito fotoeletrico: a e-

nergia da onda que incide sobre o metal e quantizada, em unidades de

hf , como postulado por Planck. Mas Einstein introduziu uma ideia fun-

damental: ele tratou esses quanta de energia como se fossem partıculas

em si, ou seja, como se a onda eletromagnetica nao fosse contınua,

mas formada por “bolinhas de energia”, que os fısicos batizaram com o

nome de fotons. Entao, fotons sao quanta de energia eletromagnetica,

ou partıculas de radiacao. Einstein postulou que a energia cinetica do

eletron ejetado do metal era igual a diferenca entre a energia do foton,

hf e a profundidade do poco de potencial, W :

T = hf −W

Com essa hipotese, simples como ele proprio, Einstein explicou todos

os resultados experimentais envolvendo o efeito fotoeletrico. Voce sabe

quando foi que ele fez isso? Em 1905, o mesmo ano da publicacao da

teoria da relatividade!! Nao da pra competir com um cara assim, da?

Vejamos agora como esta hipotese resolve os dois pontos mencionados

acima.

Page 154: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

138

.

Ao incidir sobre a superfıcie de alguns metais, radiacao eletromagnetica e capaz de“arrancar” eletrons do metal. Este e o efeito fotoeletrico.

Para que o eletron seja detectado, e preciso que ele seja ejetado

com uma certa energia cinetica, ou seja, possua T = 0. Da expressao

proposta por Einstein, vemos que se a frequencia for tal que hf = W , T

sera zero. Esta condicao nos da a frequencia de corte. Alem disso, se a

energia do foton, hf , for menor do que W , o efeito deixa de ocorrer pois

o eletron continuara preso ao metal. Isto so depende do valor de hf

em relacao ao valor de W , e nao da quantidade de fotons que estiverem

atingindo o metal, ou seja, independe da intensidade do campo eletrico.

Para o sodio, por exemplo, verifica-se que a frequencia de corte e f =

4, 39 × 1014 Hz, o que nos da a “profundidade” do poco para o Na:

W = 4, 39 × 1014 × 6, 63 × 10−34 = 1, 82 eV.

Certamente o leitor nao deixou passar a sentenca grifada acima:

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 139

partıculas de radiacao. Talvez mais importante do que a explicacao do

efeito fotoeletrico em si, a introducao deste conceito novo foi completa-

mente revolucionaria, e rompeu de vez com a fısica classica para a qual

partıcula e partıcula e onda e onda! Com essa ideia Einstein unificou a

Natureza em um nıvel fundamental, onde partıcula e onda se misturam

e se complementam4.

A radiacao eletromagnetica apresenta um carater ondulatorio e um carater corpus-cular. No primeiro caso dizemos que a potencia da onda e proporcional ao quadradodo campo eletrico, e no segundo que a potencia e proporcional ao numero de fotonscom uma dada frequencia.

4Ideias sobre a natureza corpuscular da luz sao de fato muito antigas, e haviamsido defendidas pelo proprio Newton. Contudo, apos o grande sucesso da teoriaondulatoria classica da radiacao, estas ideias foram de certa forma esquecidas, tendosido revividas somente apos o trabalho de Planck.

Page 156: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

140

3.3 Louis de Broglie: Ondas de Materia?!

Como conciliar o carater ondulatorio da radiacao eletromagnetica (di-

fracao, interferencia, etc) com o carater de partıcula proposto por Eins-

tein para explicar o efeito fotoeletrico? Alem deste, existia ainda um

outro efeito que deixava inequıvoca a interpretacao de Einstein: o

chamado efeito Compton. Trata-se do espalhamento de radiacao eletro-

magnetica, por eletrons, em um alvo. O experimento consiste em fazer

incidir sobre um alvo, radiacao com direcao e energia bem determi-

nadas, e medir a direcao e energia da radiacao espalhada. Compton

chegou a conclusao de que os resultados experimentais so poderiam

ser explicados se a radiacao fosse considerada como um conjunto de

fotons. Isso quer dizer que o processo de espalhamento da radiacao

pelos eletrons teria que ser tratado algo como o choque entre bolas de

bilhar (uma das bolas sendo o foton, a outra sendo o eletron). Compton

foi outro que engordou a poupanca com o Estocolmo de 1927!

Mas o pior ainda estava por vir. Em 1924 o frances Louis de Broglie

apresentou uma ideia em sua tese de doutoramento que iria de uma

vez por todas consolidar o estado de confusao entao reinante: ondas de

materia. O “insight” de de Broglie foi, na opiniao do autor, o salto mais

decisivo para o desenvolvimento da moderna mecanica quantica. Ele

simplesmente completou a simetria que faltava: se fotons sao ao mesmo

tempo ondas e partıculas, entao partıculas (como eletrons, protons,

etc.) tambem devem ser ondas! Esta suposta onda de materia tambem

teria uma frequencia f (como qualquer onda que se preze!) e sua energia

seria, como no caso do foton, dada por

Page 157: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 141

E = hf

E outras quantidades mecanicas que sao caracterısticas de partıculas,

como por exemplo o momento, p ? “No problem”, este, segundo de

Broglie, e dado por:

p =h

λ

onde λ e o comprimento de onda associada a partıcula, chamado de

comprimento de onda de de Broglie. Esta e mais uma daquelas ex-

pressoes magicas, tanto pela sua simplicidade, quanto pelo seu signifi-

cado. Do lado esquerdo temos o momento, uma quantidade tıpica de

partıcula, e do lado direito o comprimento de onda, tıpico de fenomenos

ondulatorios. A “interface” entre as duas quantidades e a constante de

Planck, a assinatura da mecanica quantica.

Vamos verificar se essa quantidade possui de fato dimensao de mo-

mento, ou seja kg m/s. A unidade de h e o joule vezes segundo, e a

unidade de λ e o metro. Acontece que joule e unidade de energia que

por sua vez e igual ao produto da forca (dada em newtons = massa ×aceleracao) pelo deslocamento. Logo teremos:

[p] =kg ×m× s−2 ×m× s

m= kg ×m/s

Ok., mas falar so nao adianta, pois o mundo esta mesmo cheio de

malucos querendo “aparecer”. Onde estao os fatos? Acontece que a

hipotese de de Broglie foi amplamente verificada experimentalmente

por varios cientistas! Em 1927 George Paget Thompson mostrou que

Page 158: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

142

eletrons sofrem difracao, tal qual ondas eletromagneticas. A partir do

padrao de difracao obtido, ele mediu o comprimento de onda de de

Broglie, e verificou estar de acordo com a relacao λ = h/p. Por isso ele

faturou o Nobel de 1937. Este e um fato particularmente curioso na

Historia da Fısica: o pai de G.P. Thompson, Joseph John Thompson,

havia em 1897 descoberto o eletron, e embolsado o Nobel de 1906, 31

anos antes do filho! Eta famılia lascada! A respeito disso escreveu Max

James:

Podemos dizer que Thompson, o pai, foi agraciado com

o Nobel por mostrar que o eletron era uma partıcula, e

Thompson, o filho, por mostrar que ele era uma onda.

de Broglie, por sua vez, nao ficou de fora e abiscoitou o Estocolmo de

1929.

Nao somente eletrons, mas qualquer objeto material posui uma onda

associada. Acontece que este carater da materia so e manifesto se o

comprimento de onda de de Broglie se torna comparavel as dimensoes

envolvidas no experimento. Isso nao e novidade. Nos vimos no capıtulo

um que ondas sao difratadas em um anteparo com uma abertura se as

dimensoes da abertura forem da mesma ordem que o comprimento de

onda. Voce poderia entao pensar (a essa altura pode-se pensar qualquer

coisa!): por que entao quando eu atravesso a porta do quarto para a

sala eu tambem nao sofro difracao? E facil explicar: suponha que voce

se desloque com uma velocidade de 0,5 m/s, e tenha uma massa de 80

kg. Entao, o seu momento sera igual a p = 80 × 0, 5 = 40 kg m/s.

Consequentemente seu comprimento de onda de de Broglie sera: λ =

Page 159: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 143

6, 6×10−34/40 = 1, 6×10−35 m. Como a abertura da porta e da ordem

de 0,7 m, o seu comprimento de onda de de Broglie e infinitamente

menor que o vao, e nessas condicoes o fenomeno nao e manifesto. Por

outro lado, partıculas microscopicas como eletrons podem ser acele-

radas a velocidades que tornem seus momentos e comprimentos de onda

de de Broglie tais que difracao pode ser observada, por exemplo, em

um solido cristalino (capıtulo 5). Neste caso, o espaco entre os atomos

que formam o solido e da mesma ordem que λ. Novamente aqui vemos

o papel das constantes fısicas para a nossa percepcao do mundo. Desta

vez estamos falando da constante de Planck. Se h nao tivesse um valor

tao pequeno, ao corrermos para atravessar a rua, serıamos difratados

por postes, carros e hidrantes!

Voltemos a pergunta feita inicialmente: como conciliar o carater on-

dulatorio com o carater de partıcula da materia? Resposta: dentro da

fısica classica nao ha conciliacao. Este e um aspecto da realidade que

simplesmente deve ser aceito! O fısico dinamarques Niels Bohr foi um

dos maiores promotores e defensores da emergente mecanica quantica.

Foi ele quem “costurou” o chamado princıpio da complementaridade:

partıcula e onda sao conceitos complementares (e nao opostos, como

classicamente!). Se em um experimento o carater de partıcula e ma-

nifesto (como por exemplo no efeito fotoeletrico ou no efeito Compton),

e impossıvel, atraves do mesmo experimento, observar seu carater on-

dulatorio. E vice-versa. O que determina a observacao de um carater

ou outro e a natureza do experimento. Se fizermos um experimento de

difracao ou interferencia, o carater ondulatorio e manifesto; se fizermos

um experimento de espalhamento Compton, e o carater de partıcula

Page 160: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

144

localizada que aparece. E como se a Natureza revelasse para nos aquilo

que desejassemos ver! Note que situacao miseravel: nao temos sequer

um nome para expressar essas “coisas” que sao partıculas e ondas ao

mesmo tempo!

Temos ainda um problema: no mundo classico uma onda e algo bem

definido, detectavel, “palpavel”, (ai que saudades!) bem representada

matematicamente, por exemplo pelos campos E e B no caso de uma

onda eletromagnetica. E no caso das ondas de materia? Qual o analogo

dos campos eletrico e magnetico? Entra em cena Erwin Schrodinger.

3.4 Erwin Schrodinger e o Misterio ψ(r, t)

De acordo com a teoria eletromagnetica os campos E e B se propagam

pelo espaco sob a forma de ondas quando suas fontes sofrem aceleracao.

O que chamamos “fontes” sao distribuicoes espaciais de cargas eletricas,

que sao postas a oscilar. A configuracao espacial do campo eletro-

magnetico reflete a distribuicao de cargas da fonte. Mas de que modo,

dada uma distribuicao de cargas, podemos conhecer o campo eletro-

magnetico correspondente? Resposta: para isso temos que resolver

as equacoes de Maxwell. Dissemos no capıtulo um que foi Maxwell

quem sintetizou as leis do eletromagnetismo classico. Essa sıntese

esta contida em quatro equacoes, as chamadas equacoes de Maxwell,

que nao vamos reproduzir aqui devido a seu alto grau de complexi-

dade matematica. Basta sabermos que os campos E e B sao justa-

mente as solucoes destas equacoes. Agora, na medida em que o movi-

mento da materia tambem possui uma onda associada, qual sera o

Page 161: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 145

analogo do campo eletromagnetico? Assim como os campos E(r, t) e

B(r, t) sao funcoes matematicas que descrevem ondas eletromagneticas,

deve haver o equivalente para ondas de materia, ou seja, uma funcao

matematica que descreva uma distribuicao de materia. E mais, como

obter tal funcao? Quem resolveu este problema foi o fısico alemao

Erwin Schrodinger. Petrus Debye, um importante fısico holandes da

epoca, mais tarde recordaria:

Entao de Broglie publicou seu trabalho. Na epoca Schro-

dinger era meu sucessor na Universidade de Zurique, e eu

estava na Universidade Tecnica, que e um Instituto Fe-

deral. Nos conversavamos sobre o trabalho de de Broglie, e

tınhamos chegado a conclusao que nao o compreendıamos.

Convidamos entao Schrodinger para dar um coloquio sobre

o assunto. Ao se preparar para o coloquio Schrodinger real-

mente se envolveu com o problema. Foi entao uma questao

de meses ate ele publicar o seu artigo

Schrodinger encacapou o Nobel de 1933.

A funcao que descreve as ondas de materia e a chamada funcao de

onda, representada por ψ(r, t). Ela e a solucao de uma famosa equacao

da fısica, chamada equacao de Schrodinger. E a funcao de onda a quan-

tidade equivalente aos campos E e B de uma onda eletromagnetica. No

caso geral, ψ(r, t) sera uma funcao complexa, ou seja uma funcao de

variaveis complexas (isso nao quer dizer que ela seja necessariamente

complicada!), contendo uma parte real e outra imaginaria. O comporta-

mento da funcao de onda e determinado pela energia total da partıcula,

Page 162: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

146

ou seja, cinetica mais potencial. Para cada tipo de potencial, a funcao

de onda tera uma forma diferente. Por exemplo, para uma partıcula

livre o potencial e igual a zero em todo o espaco; para um oscilador

harmonico em 1 dimensao, o potencial e proporcional ao quadrado do

deslocamento da partıcula, e assim por diante. E importante ressaltar

que embora ψ(r, t) seja o analogo ao campo eletromagnetico, a funcao

em si nao possui uma “realidade fısica”, como E e B. Ou seja, nos

nao temos acesso experimental direto a funcao de onda. Que diabos

entao e ψ(r, t)? Quem deu a interpretacao a funcao de onda foi Max

Born, em 1926. Born postulou que a conexao entre as propriedades

ondulatorias de ψ(r, t) e as propriedades mecanicas de uma partıcula

associada estava nao na funcao em si, mas no seu modulo quadrado:

|ψ(r, t)|2 = ψ(r, t)∗ψ(r, t)

onde ψ(r, t)∗ e o complexo conjugado da funcao de onda, obtido sim-

plesmente trocando-se i por −i. O modulo quadrado da funcao de

onda e o equivalente a intensidade do campo eletromagnetico, que por

sua vez e proporcional a E2 e B2. Max Born interpretou a quanti-

dade |ψ(r, t)|2 como uma densidade de probabilidades, ou seja, pro-

babilidade por unidade de volume. Esta interpretacao implica em um

carater aleatorio intrınseco a Natureza, pelo menos no que diz respeito a

fenomenos envolvendo partıculas microscopicas. De acordo com ela, no

mundo microscopico so podemos falar de agora em diante de probabili-

dades: probabilidade de a partıcula estar em tal posicao, probabilidade

de a partıcula ter tal momento, ou tal energia, etc. |ψ(r, t)|2 repre-

senta a probabilidade de a partıcula ser encontrada na posicao r no

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 147

instante t. Essa ideia esta em franca oposicao com o quadro classico

onde a trajetoria e o momento de uma partıcula, r(t) e p(t), podem

ser conhecidos com precisao absoluta, bastando para isso resolvermos

a equacao F = ma. Cai por terra o determinismo classico!

A funcao de onda esta para as ondas de materia assim como os campos eletrico emagnetico estao para a radiacao eletromagnetica.

Page 164: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

148

PAINEL VIII

FUNCOES DE DISTRIBUICAO DE PROBABILIDADES

Quando jogamos um dado para o alto, qual a probabilidade da face com 4 marcas

cair para cima? 1/6, todos sabemos. Esta probabilidade e a mesma para qualquer

outro resultado. Mas como se chega a esta conclusao? Probabilidade e um conceito

matematico; e o limite de uma sequencia de eventos. Para chegarmos ao numero 1/6,

temos que jogar o dado para o alto um certo numero N de vezes. Entao contamos

quantas vezes o numero 4 (ou qualquer outro numero) foi obtido (digamos N4 vezes)

e dividimos pelo numero total de jogadas. Chamemos essa razao de p(4):

p(4) =N4

N

A probabilidade e o limite desta razao quando N for um numero muito grande,

ou como dizemos em matematica, “tender para infinito”. E somente neste limite

que o resultado sera o mesmo para qualquer face do dado: 1/6.

Suponha agora que voce tenha uma caixa com 1 bola branca, 5 bolas vermelhas

e 2 bolas pretas. Qual a probabilidade de tirarmos a bola branca? Como o numero

total de bolas e 8, a probabilidade sera 1/8. E a de tirarmos uma bola vermelha?

Sera obviamente 5/8, pois temos 5 bolas vermelhas. Ou seja, a probabilidade de

tirarmos uma bola vermelha e 5 vezes maior do que a de tirarmos uma bola branca

e duas vezes e meia a de tirarmos uma preta. Ou seja, existe aqui uma distribuicao

de probabilidades.

As somas das probabilidades de todos os eventos possıveis tem que ser sempre

igual a 1. No caso do dado teremos:

16+16+16+16+16+16= 1

E no caso das bolas coloridas:

18+58+28= 1

Funcoes de distribuicao de probabilidades descrevem probabilidades de ocorrencia

de eventos aleatorios. No exemplo do dado, o evento aleatorio e o resultado da

Page 165: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 149

jogada. Como a probabilidade e a mesma para qualquer resultado, a funcao de

distribuicao de probabilidades neste caso sera constante. No caso da caixa com

as bolas, o evento aleatorio e retirar-se uma bola de determinada cor. Neste caso

a funcao de distribuicao de probabilidades nao sera constante pois as cores tem

probabilidades distintas de serem retiradas.

Em muitas situacoes em fısica experimental os valores das quantidades medidas

devem ser considerados como variaveis aleatorias, pois quando se faz uma medida

o resultado pode estar sujeito a alteracoes causadas por fatores sobre os quais nao

temos controle. Por exemplo, pessoas diferentes usando multımetros diferentes po-

dem encontrar valores diferentes para a mesma resistencia de um resistor. Con-

sidere, como ilustracao, que 5 medidas da resistencia eletrica de um dado resistor

resultem em 100,4 Ω, 99,8 Ω, 100,1 Ω, 100,3 Ω, 99,8 Ω. Qual o valor “correto” da

resistencia? Neste caso, o melhor que podemos fazer e expressar o valor medio como

sendo o mais provavel: (100, 4 + 100, 1 + 100, 3 + 2× 99, 8)/5 = 100, 08Ω.A funcao de onda de uma partıcula microscopica, ou mais precisamente o seu

modulo quadrado, e uma funcao de distribuicao de probabilidades. |ψ(x)|2 repre-senta a distribuicao de probabilidades para a posicao da partıcula, que neste caso

e a variavel aleatoria. A diferenca e que aqui trata-se de uma variavel aleatoria

contınua. Se representarmos um intervalo infinitesimal ao longo do eixo x por dx,

a probabilidade de a partıcula ser encontrada dentro desse intervalo sera igual a

|ψ(x)|2dx

Neste caso, a soma sobre todas as probabilidades tambem e uma soma contınua, ou

seja, uma integral (veja Painel IV):

∫ ∞

−∞|ψ(x)|2dx = 1

Outras variaveis em mecanica quantica, contudo, podem ser discretas. Neste caso a

soma sobre todas as probabilidades e analoga aos casos do dado e das bolas coloridas.

A partir do conhecimento da funcao de onda, podemos calcular os valores medios

das variaveis dinamicas do problema, como posicao, momento, energia, etc.

Page 166: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

150

Suponha, por exemplo, que um eletron se desloque livremente no

espaco. Para simplificar vamos considerar o problema unidimensional

sobre o eixo x. Como vimos no capıtulo um, classicamente as posicoes

do eletron seriam determinadas por x = x0 + vt, onde v e a velocidade

do eletron, e x0 sua posicao inicial. Se x0 = 0, e v = 10 m/s, saberıamos

com certeza que no instante t = 1 s, por exemplo, a posicao do eletron

seria x = 10 m. Quanticamente nada disso vale. A informacao sobre a

posicao do eletron seria dada em termos de probabilidades. O melhor

que poderıamos fazer seria, por exemplo, dizer que a probabilidade de

o eletron ser encontrado entre x = 9 e x = 11 metros e de 1/8 (este

numero nada tem de realıstico; ele foi escolhido ao acaso para este

exemplo). E assim por diante. Probabilidades e valores medios sao

os tipos de informacoes obtidas a partir do conhecimento da funcao de

onda do eletron. Na medida em que a funcao de onda depende da forma

funcional do potencial em que o eletron se move, as probabilidades

tambem dependerao.

Vamos considerar uma outra situacao simples, desta vez nao en-

volvendo posicoes, mas sim energias. Suponha que as energias de

uma partıcula sejam quantizadas, isto e, so possam adquirir certos va-

lores discretos. Imagine, por simplicidade, que so existam tres valores

possıveis, que vamos chamar de E1, E2 e E3. A mecanica quantica nos

diz que ao realizarmos uma medida da energia da partıcula, necessaria-

mente encontraremos um desses tres valores, e nenhum outro, cada um

deles com uma certa probabilidade. Valores que podem ser encontra-

dos na medida de alguma grandeza fısica, sao chamados em mecanica

quantica de autovalores. No caso especıfico em que a grandeza em

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 151

questao e a energia da partıcula, os autovalores sao chamados de au-

toenergias. A cada autoenergia esta associada uma autofuncao que

neste caso vamos representar por φ1, φ2 e φ3, correspondendo a E1,

E2 e E3, respectivamente. A autofuncao e a funcao matematica que

descreve o estado da partıcula, isto e, sua posicao, momento, energia,

etc., no instante da medida. Podemos pensar em uma autofuncao como

uma forma particular adquirida pela funcao de onda ψ no momento em

que a medida e realizada. De forma analoga, podemos pensar em uma

autoenergia como um valor particular de energia adquirido no instante

da medicao.

Suponha que facamos uma medida da energia do sistema e encon-

tremos, por exemplo, o valor E2. Isso quer dizer que logo apos a me-

dida, o sistema5 estava no estado descrito pela autofuncao φ2. E antes

de fazermos a medida, que energia tinha o sistema? Resposta: antes

da medida ele nao se encontrava em nenhum autoestado particular, ou

seja, nao possuia uma energia definida. Dizemos que ele se encontrava

em uma superposicao de autoestados. Tal superposicao e representada

matematicamente pela combinacao das funcoes φ1, φ2 e φ3:

ψ = a1φ1 + a2φ2 + a3φ3

Os coeficientes a1, a2 e a3 sao chamados de amplitudes de probabilidade.

Estes numeros sao quantidades complexas, e seu modulo quadrado

fornece a probabilidade do estado correspondente ser encontrado em

uma medida de energia. Por exemplo, |a1|2 = a1a∗1 e a probabilidade

5Usamos a palavra ‘sistema’ para denominar genericamente o nosso objeto deestudo: uma partıcula, um conjunto de partıculas, um atomo, etc.

Page 168: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

152

do valor de energia E1 ser encontrado em uma medida de energia. Obvi-

amente sendo |a1|2, |a2|2 e |a3|2 probabilidades, e como so existem tres

valores possıveis de energia neste exemplo, a condicao seguinte deve

necessariamente ser satisfeita:

|a1|2 + |a2|2 + |a3|2 = 1

Esse ponto e tao importante, e ao mesmo tempo tao difıcil de enten-

der! O Premio Nobel americano Richard Feymann costumava dizer que

quem afirmasse haver entendido a mecanica quantica estaria mentindo!

Niels Bohr por sua vez gostava de dizer que se voce nao se espantar

com a mecanica quantica, e porque nao a compreendeu!

Vamos comparar o exemplo acima com uma situacao de probabili-

dades do nosso dia-a-dia: um jogo de cara-ou-coroa. Ao jogarmos uma

moeda para o alto, sabemos que so existem dois resultados possıveis:

cara ou coroa. Nao sabemos qual dos dois vai ocorrer, mas podemos as-

sociar 50% de chance para cada um deles. Este tipo de indeterminismo

e completamente diferente daquele que estamos falando em mecanica

quantica! De acordo com a mecanica classica, se soubessemos detalhes

como a massa da moeda, a forca aplicada, a inclinacao da mao na hora

de jogar, etc., poderıamos calcular exatamente o resultado da jogada.

Ou seja, a probabilidade neste exemplo da moeda e simplesmente uma

maneira de quantificarmos a nossa ignorancia a respeito das condicoes

exatas no inıcio do movimento da moeda! Na mecanica quantica o in-

determinismo, de acordo com a interpretacao de Born, e intrınseco ao

problema. Ou seja, em um nıvel microscopico, a Natureza e simples-

mente aleatoria! Nao ha como, antes da medida, sabermos o resultado

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 153

que vira, mesmo conhecendo todos os detalhes do problema. Temos

que conviver com uma especie de “ignorancia incuravel”!

Voltando a funcao ψ acima. Antes da medida o sistema estava no

estado geral representado por ψ. Logo apos a medida ser realizada, a

funcao de onda sera um dos autoestados possıveis φ1, φ2 ou φ3. Nos

referimos a esse processo como o colapso da funcao de onda; o sistema

colapsa do estado ψ para um dos autoestados φi. Nao podemos dizer

exatamente para qual autoestado ocorrera o colapso, mas se fizermos

um grande numero de medidas da energia, podemos calcular o seu valor

medio ( isto e o melhor que pode ser feito!). Como a probabilidade de

encontrar E1 e igual a |a1|2, analogamente para E2 e E3, o valor medio

da energia, representado por < E >, pode ser calculado de:

< E >= E1|a1|2 + E2|a2|2 + E3|a3|2

Em mecanica quantica, valores medios sao tambem chamados de valores

esperados. Por exemplo, suponha que E1 = 0, 5 eV, E2 = 3, 0 eV e E3 =

7, 2 eV. Suponha tambem que os tres autoestados sejam igualmente

provaveis, isto e: |a1|2 = |a2|2 = |a3|2 = 1/3. Se realizassemos um

grande numero de medidas da energia e depois calculassemos a media,

encontrarıamos:

< E >= 0, 5 × 1

3+ 3, 0 × 1

3+ 7, 2 × 1

3= 3, 57 eV

Se os autoestados nao fossem igualmente provaveis, mas distribuıdos

como |a1|2 = 1/2, |a2|2 = 1/5, e |a3|2 = 3/10 o valor esperado da

energia se tornaria:

< E >= 0, 5 × 1

2+ 3, 0 × 1

5+ 7, 2 × 3

10= 3, 01 eV

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154

Retornando agora ao caso da partıcula livre; a funcao de onda mais

simples possıvel e aquela que descreve o movimento de uma partıcula

livre, ou seja, uma partıcula que se move sem a acao de um poten-

cial (classicamente esta situacao corresponde ao movimento retilıneo e

uniforme, o famigerado MRU). A funcao de onda neste caso e o que

chamamos de uma onda plana, representada por:

ψ(x) = eikx = cos(kx) + isen(kx)

onde k e o vetor de onda (estamos aqui interessados somente na parte

espacial, e o problema esta sendo considerado em apenas 1 dimensao).

O vetor de onda esta relacionado ao momento da partıcula. De fato,

recordando que k = 2π/λ, teremos da relacao de de Broglie:

p =h

λ=

h

λ= hk

onde, por convencao chama-se h = h/2π = 1, 05 × 10−34 Js (le-se ‘h

cortado’). A energia cinetica da partıcula sera:

T =p2

2m=h2k2

2m

Na verdade existe um probleminha com a funcao de onda acima.

A densidade de probabilidades relacionada a esta funcao e, de acordo

com Max Born:

ψ(x)∗ψ(x) = |ψ(x)|2 = e−ikxeikx = 1

ou seja, a densidade de probabilidades e constante e igual a 1. Isso

quer dizer que a partıcula (aquela coisa que no primeiro capıtulo era

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 155

imaginada ser uma bolinha localizada no espaco) tem igual probabili-

dade (de valor maximo) de ser encontrada em qualquer lugar, ou seja,

esta uniformemente espalhada por todo o espaco! Se por outro lado

tivessemos certeza que a partıcula estivesse confinada dentro de uma

caixa com volume V , a sua funcao de onda seria

ψ(r) =1√Veik·r

e neste caso a densidade de probabilidades seria

ψ(r)∗ψ(r) =1

V

Quanto maior for o volume da caixa, menor sera a probabilidade de en-

contrarmos a partıcula em uma dada posicao. Por exemplo, a probabil-

idade de encontrarmos a partıcula em um pequeno volume ∆V dentro

de V sera:

ψ(r)∗ψ(r) × ∆V =∆V

V

Se, por exemplo, o volume da caixa for V = 1 m3, a probabilidade

de encontrarmos a partıcula em um volume ∆V = 0, 01 m3 sera igual

a 0,01, ou 1%. Se ∆V for igual ao proprio volume V , a probabilidade

de encontrarmos a partıcula sera ∆V/V = V/V = 1, o que meramente

expressa o que ja sabıamos: o fato de termos certeza de que a partıcula

esta dentro da caixa.

E certo que para uma partıcula livre nao podemos dizer com certeza

a sua posicao, mas daı a estar espalhada por todo o espaco ja e um pouco

demais! A maneira formal de contornar o problema e representarmos

Page 172: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

156

uma partıcula nesta situacao como uma superposicao de ondas planas,

que nada mais e do que uma soma do tipo:

ψ(x) = eik1x + eik2x + eik3x + · · · + eikNx

Este exemplo e particularmente ilustrativo, porque com ele pode-

mos comecar a desenvolver uma intuicao de como ondas representam

partıculas em mecanica quantica. A superposicao acima representa

uma soma de ondas planas com comprimentos de onda diferentes. Recorde-

mos do capıtulo 1 que a superposicao de varias ondas com comprimen-

tos de onda ligeiramente diferentes, resulta em interferencia destrutiva

em alguns pontos e construtiva em outros. As ondas se reforcam em

uma determinada regiao do espaco e tendem se anular em outras. A

partıcula tera maior chance de ser encontrada na regiao onde ocorrer

interferencia construtiva. Chamamos esta soma de pacote de onda. A

regiao do espaco onde existe interferencia construtiva, e representada

por ∆x, e e chamada dispersao do pacote. A dispersao do pacote clara-

mente diminui se aumentarmos o numero de termos na soma que o

representa. Se o intervalo de valores de k que compoem o pacote for

∆k, vimos no capıtulo 1 que, para ondas usuais, existe uma relacao do

tipo ∆x∆k ≈ 1. No caso das ondas de materia, foi Heisenberg quem

deduziu a relacao equivalente. Substituindo ∆k = ∆p/h obtemos

∆x∆p ≈ h

Este e o famoso princıpio de incerteza de Heisenberg. Ele nos ensina o

seguinte: se quisermos uma partıcula bem localizada no espaco teremos

que aumentar o numero de componentes k no pacote de ondas que

Page 173: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 157

representa a partıcula. Isso aumenta a dispersao no momento ∆p (que

neste caso e chamado de “incerteza no momento”) da partıcula. Ao

contrario, se quisermos uma partıcula com momento bem definido, ou

seja, com ∆p pequeno, teremos que aumentar a incerteza na sua posicao

∆x. Note novamente o contraste com a mecanica classica, onde p e x sao

independentes, e podem ser conhecidos simultaneamente com absoluta

precisao. No caso quantico, se aumentarmos a certeza na posicao da

partıcula, perdemos informacao a respeito de seu momento, e vice-

versa. Em mecanica quantica a posicao e o momento de uma partıcula

estao vinculados atraves do princıpio de incerteza, e nao podem ser

conhecidos simultaneamente com precisao arbitraria.

Ufa! Conseguimos correlacionar as propriedades de partıcula com as

ondas de materia gracas a Max Born. Mas ficou faltando explicar o caso

eletromagnetico, ou seja, como conciliar as propriedades ondulatorias

do campo eletromagnetico com as do foton. Isso e feito fazendo o cam-

inho inverso: interpretamos agora os campos E e B como estando rela-

cionados a distribuicoes de probabilidades associadas ao foton. Assim,

a distribuicao de intensidades de uma onda eletromagnetica difratada

sobre um anteparo, representa a distribuicao de probabilidades de en-

contrarmos fotons sobre o anteparo! E como se o foton tivesse a sua

propria funcao de onda particular, a onda eletromagnetica.

Page 174: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

158

PAINEL IX

A EQUACAO DE SCHRODINGER

Quando resolvemos uma equacao do tipo x2 − 1 = 0, encontramos os valores

da variavel x que satisfazem a igualdade (neste caso, x = ±1). Esta e um exemplo

de equacao algebrica. Em determinadas situacoes a nossa “incognita” nao e uma

variavel como x acima, mas uma funcao de x. Equacoes que relacionam funcoes e

suas derivadas, cujas solucoes sao funcoes, sao chamadas de equacoes diferenciais.

Uma equacao diferencial relaciona uma funcao com suas derivadas (veja Painel

III). A equacao de Schrodinger independente do tempo e uma equacao diferencial

ordinaria de segunda ordem6, cuja solucao e a funcao de onda ψ(x). Para uma

partıcula que se move em 1 dimensao sob a acao de um potencial V (x) a equacao

de Schrodinger e:

− h2

2md2ψ(x)dx2

+ V (x)ψ(x) = Eψ(x)

onde d2ψ/dx2 e a derivada segunda de ψ em relacao a x, e E a energia total da

partıcula. A solucao ψ(x) e determinada pela forma do potencial V (x) que depen-

dera do caso tratado. Para uma partıcula livre, V = 0, para um oscilador harmonico

V = kx2/2, etc. Existem tecnicas matematicas para resolucao de equacoes diferen-

ciais que, em geral, sao vistas em cursos de calculo avancado.

6Ou seja, que envolve a funcao ψ e sua derivada segunda.

Page 175: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 159

3.5 A Dubia Vida de um Pobre Gato

Vimos acima que em mecanica quantica quando realizamos uma medida

nao podemos saber com certeza qual sera o resultado. Temos apenas

uma distribuicao de probabilidades relacionada aos possıveis resulta-

dos. Quando aplicada a sistemas macroscopicos a mecanica quantica

leva a situacoes curiosas e muito difıceis de serem conciliadas com o

nosso senso comum de objetividade. Para exemplificar uma dessas

situacoes Schrodinger propos um daqueles experimentos pensados, que

ficou famoso com o nome de o gato de Schrodinger. Ele imaginou a

seguinte situacao: um gato, um frasco contendo um veneno mortıfero,

um suporte ao qual o frasco esta preso e que pode deixa-lo cair sob um

sinal, e um nucleo radioativo. Tudo isso dentro de uma caixa fechada.

Como veremos com mais detalhes no capıtulo sete, a radioatividade

ocorre em certos nucleos atomicos instaveis, que para livrarem-se do

excesso de energia deixam escapar partıculas (fotons, eletrons, etc.). A

este processo da-se o nome de decaimento nuclear. O decaimento nu-

clear e regido pelas leis da mecanica quantica, e portanto e um fenomeno

probabilıstico. Um nucleo radioativo como o da caixa no experimento

de Schrodinger tem uma probabilidade de decair a qualquer momento,

mas nao podemos dizer exatamente quando. Na situacao experimen-

tal imaginada por Schrodinger, o nucleo esta acoplado (de uma forma

cujos detalhes nao interessam) ao aparato que sustenta o frasco com

veneno. Se o nucleo decair, o mecanismo que sustenta o frasco com

veneno se abre, deixando o frasco cair e quebrar. O veneno escapa e o

gato “estica as canelas”. Se o nucleo nao decair, obviamente nada disso

Page 176: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

160

acontece e o bichano continua vivo. Portanto, o gato serve como uma

especie de aparelho para detectarmos se o nucleo decaiu ou nao. De

acordo com a mecanica quantica, ate que uma medida seja feita (por

exemplo alguem abra a caixa e verifique se o gato morreu) a funcao

de onda do nucleo representara uma mistura de estados, ou seja, uma

combinacao do estado em que o nucleo decaiu e do estado em que ele

nao decaiu. E o gato, como ele fica nessa situacao? Ele estara vivo com

a mesma probabilidade do nucleo nao ter decaido, e estara morto com

a probabilidade do nucleo ter decaido. Ou seja, antes de alguem abrir

a caixa e olhar pra dentro dela, o gato nao estara vivo, mas tambem

nao estara morto! Quando alguem abre a caixa, automaticamente a

funcao de onda do nucleo “colapsa” para um dos dois estados (decaıdo

ou nao-decaıdo), e a “funcao de onda do gato” tambem (ψgato−morto ou

ψgato−vivo). A situacao se torna mais dramatica se imaginarmos uma

pessoa no lugar do gato. Quando a caixa estiver fechada qual sera a

sensacao do pobre diabo nesse estado morto-vivo?!

O leitor nao precisa ficar apavorado com o que leu acima. E claro

que no “nosso mundo” de assaltos, engarrafamentos, filas, INSS, fute-

bol, contas para pagar, etc., estes fenomenos nao sao observados. De

fato, superposicoes de estados quanticos so ocorrem em sistemas mi-

croscopicos isolados, isto e, que nao interagem com as vizinhancas.

Em sistemas macroscopicos (como e o caso de um gato) a inevitavel

interacao de objetos uns com os outros destroi a superposicao, ou

coerencia dos estados quanticos. Em sistemas microscopicos, contudo,

ela existe e pode ser observada. Mais recentemente, precisamente como

descrito no volume 403, pagina 269 da conceituadıssima Nature de

Page 177: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 161

janeiro de 2000, C.J. Myatt e colaboradores observaram o fenomeno

da superposicao de estados quanticos e sua decoerencia em sistemas

mesoscopicos, ou seja, com grande numero de partıculas. Estes sistemas

sao maiores do que microscopicos, porem menores do que macroscopicos.

Pode ser que algum dia alguem invente uma maneira de produzir es-

tados coerentes em objetos macroscopicos. Neste dia o mundo sera

realmente enlouquecido!

3.6 Spin

O spin e uma das quantidades mais intrigantes da fısica. Para entender-

mos melhor o que e o spin de uma partıcula e preciso que voltemos um

pouco a fısica classica. Mencionamos no capıtulo 1 que cargas eletricas

quando em movimento interagem com campos magneticos. A expressao

matematica desta interacao e a forca de Lorentz. Uma situacao parti-

cularmente interessante surge quando o movimento da carga e circular.

Imagine uma carga q movendo-se em uma circunferencia de raio R com

velocidade v. A corrente eletrica I associada ao movimento da carga e

dada pela razao entre q e o perıodo do movimento, que chamaremos τ :

I =q

τ=ωq

onde ω = 2π/τ e a frequencia angular da partıcula. Uma carga que

se move dessa maneira da origem a uma grandeza vetorial chamada de

momento de dipolo magnetico, representado por m. O dipolo magnetico

e simplesmente o produto da corrente I pela area, A, subtendida pelo

cırculo, ou seja πR2. Sua direcao e normal ao plano do cırculo:

Page 178: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

162

m = IAn = IπR2n

onde n e o vetor unitario normal ao plano do cırculo. E conveniente

definir o vetor A = An, cujo modulo e igual a area do cırculo, e cuja

direcao e n. Com isso teremos:

m = IA

Um fato importante a ser notado e a proporcionalidade entre o mo-

mento magnetico e o momento angular7. Definimos o momento angular

de uma partıcula no capıtulo 1 como o produto vetorial entre a posicao8

R e o momento p:

L = R × p = mqR × v

onde usamos mq para a massa da partıcula a fim de que esta nao

seja confundida com o momento magnetico. Mencionamos no capıtulo

um que o momento angular esta associado a problemas envolvendo

movimento de rotacao. Pois este e precisamente o caso que estamos

tratando. O modulo de L no presente exemplo e dado por:

L = Rp senα = mqRv senα

onde α e o angulo entre as direcoes de R e p. Mas, como o movimento

e circular, p (e consequentemente v) e sempre tangencial a trajetoria,

de modo que α = π/2. Logo:

7Lembre que o momento angular e uma grandeza mecanica. O momentomagnetico, por sua vez, e uma grandeza eletromagnetica.

8Obviamente neste caso o vetor R e medido a partir do centro do cırculo.

Page 179: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 163

L = mqRv

Mas, o modulo da velocidade, v, sera igual a razao entre o comprimento

da circunferencia, 2πR e o perıodo de rotacao, τ : v = 2πR/τ = ωR.

Entao:

L = 2mqπR2

τ= mqωR

2

Multiplicando numerador e denominador da fracao acima pela carga q,

e usando a definicao de momento magnetico, obtemos:

L = 2mqπR2

τ× q

q= 2

mq

qAI ⇒ L =

2mq

qm

onde I = q/τ . Consequentemente, chamando de g a razao q/2mq,

obtemos a relacao entre o momento angular e o momento magnetico:

m = gL⇒ m = gL

O motivo para definirmos o dipolo magnetico esta no fato de que

na presenca de um campo magnetico B, a energia de interacao entre a

carga em movimento e B assume uma forma particularmente simples:

ela e dada pelo produto escalar entre m e B:

E = −m · B = −mBcosθ

O sinal negativo na frente da expressao e convencional. Nesta ex-

pressao, θ e o angulo formado por m e B. Vemos entao que se m estiver

alinhado paralelamente a B, teremos θ = 0 e a energia sera mınima e

Page 180: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

164

igual a E = −mB. Se o dipolo estiver alinhado antiparalelamente a B,

o angulo sera θ = π, e a energia sera maxima E = +mB. Como entre

os valores extremos 0 e π, θ pode ter variar continuamente, havera um

intervalo de energias possıveis, igual a 2mB, dentro do qual E pode

ter qualquer valor. Por exemplo, se o angulo for θ = π/4, teremos

E = −√2mB/2; se for θ = π/2, E = 0, etc.

Page 181: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 165

.

O momento magnetico aparece do movimento de cargas que possuem momentoangular.

Submetido a um campo magnetico, um momento magnetico classico exibe um es-pectro contınuo de valores de energia limitado superior e inferiormente.

Page 182: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

166

Em 1922 Stern e Gerlach estavam interessados em medir o momento

magnetico de atomos neutros. A estrutura do atomo sera descrita

com detalhes no proximo capıtulo, mas podemos adotar a ideia sim-

ples de que um atomo possui uma parte central, chamada de nucleo,

onde se concentra a carga positiva, e eletrons circundantes que car-

regam a carga negativa. Em um atomo neutro a carga negativa e a

positiva se compensam. Os eletrons girando em torno de um nucleo

podem ser considerados circuitos de corrente. Nesta situacao havera

momento angular e portanto momento magnetico atomico. Esta era

a grandeza que Stern e Gerlach queriam medir. Para isso eles fiz-

eram passar um feixe de atomos neutros (eles usaram originalmente

atomos de prata) por uma regiao onde existia um campo magnetico es-

pacialmente inomogeneo (ou seja, seu valor diferindo em cada ponto do

espaco). De fato, na configuracao de seu experimento, Stern e Gerlach

utilizaram um campo com variacao espacial ao longo de apenas uma

unica direcao, que podemos adotar como sendo a direcao z. Represen-

temos entao o valor do campo em um ponto ao longo dessa direcao por

B(z). De acordo com o que foi dito acima sobre a energia de interacao

de um momento magnetico com um campo magnetico, vemos que nesse

caso a energia sera tambem funcao da posicao: E(z) = −mB(z)cosθ.

Quando isso ocorre, surge uma forca magnetica sobre o dipolo.

Alem de depender da posicao do atomo no campo magnetico, a forca

magnetica sobre o momento sera tambem proporcional ao cosseno do

angulo θ entre ele o campo. Entao, angulos diferentes darao origem

a forcas diferentes, que por sua vez causarao deflexoes diferentes nos

atomos atravessando a regiao do campo. Stern e Gerlach concluiram,

Page 183: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 167

que sendo possıvel qualquer valor de θ entre 0 e π, a forca magnetica

deveria ocasionar uma distribuicao contınua de atomos apos eles pas-

sarem pela regiao do campo. Em uma distribuicao contınua os atomos

deveriam ser encontrados com igual probabilidade em qualquer posicao

apos atravessarem o campo. Contudo, eles encontraram um resultado

surpreendente: os atomos, que no experimento eram coletados em uma

especie de anteparo, so alcancavam duas posicoes possıveis; era como

se o angulo θ so pudesse ter um dos dois valores extremos, 0 ou π, e

nenhum outro!

Mais tarde, em 1927, Phipps e Taylor repetiram o experimento

de Stern-Gerlach, desta vez usando atomos de hidrogenio ao inves de

atomos de prata. A razao para isso e que sob determinadas condicoes,

atomos de hidrogenio podem ser produzidos de modo que seu unico

eletron nao possua momento angular, ou seja, o atomo tera L = 0,

e consequentemente deveria ter momento magnetico m = 0. Como

os atomos tambem nao continham carga eletrica, era esperado que,

nesta situacao, os atomos passassem pelo campo sem sentir a sua pre-

senca. Resultado do experimento: mesmo que o anterior! Os atomos

condensavam-se somente em duas posicoes sobre o anteparo. A unica

maneira de explicar o resultado foi imaginar que os atomos possuiam

uma especie de momento magnetico intrınseco, Ms, que nao estivesse

ligado ao movimento orbital dos eletrons. Era este momento que es-

tava interagindo com o campo e provocando a deflexao dos atomos. Por

analogia, deveria entao haver tambem um momento angular intrınseco,

o qual foi batizado de spin, e representado pelo vetor S. Da mesma

forma que ocorre entre o momento angular orbital e o momento magnetico,

Page 184: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

168

Ms e S sao proporcionais um ao outro:

Ms = gsS

onde gs e um fator de proporcionalidade, analogo ao fator g de propor-

cionalidade entre L e m.

Muitos autores fazem a analogia entre o spin e o movimento da

partıcula em torno de seu proprio eixo (alias, esta e a razao do nome

spin, que e a palavra inglesa para “girar”). De fato, uma partıcula

carregada que gira em torno de seu proprio eixo gera um momento

magnetico. Acontece que certas partıculas sem carga, como o neutron,

tambem possuem spin! A existencia do spin nao e prevista pela teoria

de Schrodinger da mecanica quantica. Foi P.M. Dirac quem em 1929

mostrou que a origem do spin e relativıstica! Dirac foi quem fundou a

Mecanica Quantica Relativıstica.

O spin deve ser visto como uma propriedade intrınseca da partıcula,

como sua massa e sua carga. Trata-se de uma grandeza que nao possui

analogo classico.

O que se mede em um experimento do tipo Stern-Gerlach e a com-

ponente do spin ao longo da direcao do campo magnetico. Esta com-

ponente e, em geral, representada por Sz (e convencional considerar z

como a direcao do campo magnetico). A unidade de spin e a mesma

que a de h, ou seja, o joule × segundo, que por sua vez e a unidade de

momento angular. Sz pode adquirir valores entre −Sh e +Sh, sendo

que a variacao de um extremo ao outro se da em unidades inteiras de

h. Em outras palavras, a constante de Planck e o quantum de momento

angular. Esses valores possıveis sao chamados de autovalores de spin.

Page 185: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 169

Em geral escrevemos:

Sz = msh onde ms = −S,−S + 1,−S + 2, · · · , S − 2, S − 1, S

Por exemplo, se uma partıcula possui S = 3h/2, entao, ms = −3/2,−1/2,+1/2,

+ 3/2. Se S = 2h, ms = −2,−1, 0,+1,+2. E comum, por questao de

“economia” de notacao, omitirmos o ‘h’ ao descrevermos os valores de

spin. Assim, ao inves de escrevermos S = 3h/2, escrevemos apenas

S = 3/2, ficando o ‘h’ implıcito. Daqui por diante, adotaremos esta

notacao. O ‘h’ pode ser restaurado sempre que necessario.

Atomos de hidrogenio, como os utilizados no experimento de Phipps

e Taylor, possuem apenas 1 eletron o qual por sua vez possue S = 1/2,

e portanto com autovalores de spin possıveis ms = −1/2,+1/2. As-

sociadas a esses autovalores, existem autofuncoes de spin. No caso

do eletron, por exemplo, existem duas autofuncoes, uma associada ao

autovalor −1/2, e a outra ao autovalor +1/2. A energia magnetica

associada ao spin do eletron, dada pelo produto escalar entre B e Ms,

sera entao quantizada em apenas dois nıveis (e nao distribuıda contin-

uamente como no caso classico):

E+1/2 = −1

2gsB; E−1/2 = +

1

2gsB

o que quer dizer que o spin de um unico eletron na presenca de um

campo magnetico so pode apontar paralela ou antiparalelamente ao

campo. Para um atomo com varios eletrons, os spins individuais se

somarao e o atomo podera adquirir valores de spin diferentes de 1/2,

como, por exemplo, S = 3/2. Neste caso, na presenca de um campo

magnetico, havera 4 nıveis de energia, e quatro direcoes possıveis para

Page 186: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

170

S. E assim por diante; para um dado valor S qualquer, havera 2S + 1

nıveis de energia e um igual numero de direcoes possıveis de S em

relacao a direcao do campo.

Resumindo, S e uma especie de “momento angular interno” de uma

partıcula, e L e seu momento angular “externo”. Podemos fazer uma

partıcula com L = 0 passar para um estado em que L = 0. Mas nao

podemos fazer S = 0, se a partıcula tiver um spin nao nulo.

Para completar a analogia entre o spin e o momento angular orbital,

descobriu-se que os valores possıveis para L tambem sao quantizados em

unidades de h. Denotamos esses valores por l, e por ml as suas projecoes

sobre uma direcao do espaco, tomada como eixo de quantizacao (em

geral, a mesma de S). Por exemplo, tomando como z esta direcao,

teremos Lz = mlh. No entanto, ha uma diferenca importante: enquanto

S pode tanto ser inteiro quanto semi-inteiro, l so pode adquirir valores

inteiros: l = 0, 1, 2, · · ·. Para um dado valor de l, ml varia de −l ate

+l. Assim, se l = 2 podemos ter ml = −2,−1, 0, 1, 2. No proximo

capıtulo falaremos mais sobre spins e momentos angulares de atomos

com muitos eletrons, e como calcular essas quantidades.

3.7 O Princıpio de Exclusao de Pauli

Alguns dias depois, ao chegar no “hall” onde Sommer-

feld dava suas palestras, notei a presenca de um estudante

com cabelos negros e de expressao ligeiramente fechada sen-

tado na terceira fila. Sommerfeld tinha nos apresentado um

ao outro durante a minha primeira visita e tinha dito que

Page 187: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 171

ele considerava aquele garoto um dos estudantes mais ta-

lentosos do grupo, alguem com quem eu poderia aprender

muita coisa. Seu nome era Wolfgang Pauli, e para o resto de

nossas vidas serıamos grandes amigos, embora muitas vezes

ele viesse a se tornar um crıtico demasiadamente severo.

(Physics and Beyond. Encounters and Conversa-

tions, Werner Heisenberg, Harper 1972)

O princıpio de exclusao de Pauli e um dos aspectos mais curiosos

da mecanica quantica. Ele se aplica a sistemas onde existe mais de

um eletron, ou de uma maneira geral, mais de um fermion. A palavra

fermion e uma denominacao para partıculas que possuem spin semi-

inteiro: S = 1/2, 3/2, 5/2, .... O eletron possui spin S = 1/2, e por-

tanto e um fermion. Existem outras partıculas que possuem spin in-

teiro, como por exemplo o foton, ou o nucleo do atomo de helio. Essas

partıculas sao chamadas de bosons. Esses nomes esquisitos nao tem

nada de especial; sao apenas homenagens a fısicos importantes. No

caso dos fermions, a homenagem e a Enrico Fermi, um fısico italiano.

No caso dos bosons e a Satyendranath Bose, um fısico indiano, a quem

a homenagem e prestada. Bosons e fermions possuem comportamentos

quanticos muito distintos, com importantes consequencias para as pro-

priedades de objetos macroscopicos, como sera visto nos capıtulos 5 e

6.

O princıpio de Pauli aparecera novamente no proximo capıtulo quan-

do estudarmos a estrutura do atomo. Trata-se de uma especie de versao

sofisticada da ideia de que dois corpos nao podem ocupar o mesmo lugar

no espaco ao mesmo tempo. Vimos que a informacao sobre o movimento

Page 188: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

172

de uma partıcula esta contida na funcao de onda ψ(x). Por outro lado,

vimos acima que partıculas, alem de carga e massa possuem tambem

spin. Uma partıcula como o eletron possui spin S = 1/2, com autoesta-

dos possıveis de spin +1/2 e −1/2. Vamos representar esses autoestados

de spin por autofuncoes φ+ e φ−. Ou seja, se em uma medida do spin

de um eletron encontramos o valor +1/2, isso quer dizer que logo apos

a medida ser realizada a funcao de onda de spin do eletron era φ+.

Suponha agora que tenhamos 2 eletrons. Representemos as respec-

tivas funcoes de onda espaciais por ψ(x1) e ψ(x2). Por exemplo, para

eletrons livres essas funcoes poderiam ser escritas como

ψ(x1) = eik1x1 e ψ(x2) = eik2x2

Nao ha misterio nisso: as funcoes acima nos dizem simplesmente que

o eletron cuja coordenada espacial e representada por x1 encontra-se

em um estado quantico espacial9 representado por k1, cuja energia e

igual a E = h2k21/2m, o analogo para o eletron 2. De uma maneira

geral, vamos representar os estados quanticos por subındices a e b. Por

exemplo, ψa(x1) e a funcao de onda do eletron 1 no estado a. Como

temos dois estados e dois eletrons, temos quatro possibilidades:

ψa(x1) : eletron 1 no estado a

ψb(x1) : eletron 1 no estado b

ψa(x2) : eletron 2 no estado a

ψb(x2) : eletron 2 no estado b

9A palavra ‘espacial’ entra aqui somente para distinguir do estado quantico de‘spin’.

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 173

Com as funcoes de spin teremos uma situacao analoga: φ+(1) ou

φ−(1) para o eletron 1 e φ+(2) ou φ−(2) para o eletron 2. Entao, se por

exemplo, o eletron 1 possuir funcao de onda orbital ψa, e funcao de onda

de spin φ+, isso quer dizer que ele se encontra em um estado quantico

caracterizado por a, e possui spin igual a +1/2. Agora o enunciado do

princıpio de exclusao esta muito proximo; so temos ainda que relembrar

o que sao funcoes simetricas e antissimetricas.

Uma funcao de duas variaveis e dita simetrica se ela nao trocar

de sinal sob um intercambio das variaveis. Caso contrario ela sera

antissimetrica. Por exemplo, a funcao

f(x, y) = x2 + y2

e simetrica, pois se trocarmos x por y e y por x ela continua identica

ao que era antes. Ja a funcao

g(x, y) = x2 − y2

e antissimetrica. De fato, trocando x e y um pelo outro obtemos:

g(y, x) = y2 − x2 = −(x2 − y2) = −g(x, y)

ou seja, a funcao trocou de sinal. E facil ver que o produto de uma

funcao simetrica por uma antissimetrica e outra funcao antissimetrica.

Por exemplo, seja h(x, y) o produto de f por g dadas acima:

Page 190: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

174

.

Funcoes simetricas permanecem com o mesmo valor sob uma troca de sinal navariavel. Funcoes antissimetricas trocam de sinal sob a mesma operacao.

h(x, y) = f(x, y)g(x, y)

Logo, trocando x por y, e y por x teremos

h(y, x) = f(y, x)g(y, x) = f(x, y)[−g(x, y)] = −f(x, y)g(x, y) = −h(x, y)

Nos referimos a esta propriedade de troca ou nao de sinal de uma

funcao sob a troca de suas variaveis, como sua paridade. E importante

notar que nem toda funcao matematica possui paridade definida (ou

seja, e simetrica ou antissimetrica). Por exemplo, a funcao

u(x, y) = x2 − y2 + 3

nao e simetrica nem antissimetrica, pois trocando x por y e y por x o

resultado nao e simplesmente uma troca de sinal da funcao.

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 175

Agora (finalmente!) o princıpio de exclusao: funcoes de onda totais

de eletrons (ou fermions de uma maneira geral) sao antissimetricas.

O leitor deve estar pensando: “so isso? Tanto bla, bla, bla, tanta

embromacao so pra dizer isso?” Pois me aguardem! Quem sobreviver

vera!

O enunciado do princıpio de exclusao de Pauli se refere a funcoes

de onda totais de um conjunto de fermions. Agora, a funcao de onda

total de um sistema com dois eletrons e dada pelo produto da funcao

de spin pela funcao espacial. Simbolicamente:

Ψtotal = ψ × φ

onde ψ descreve a parte espacial, e φ a parte de spin. O princıpio de ex-

clusao e uma imposicao sobre a funcao total Ψtotal. Ou seja, o produto

da parte espacial pela parte de spin tem que ser uma funcao antis-

simetrica. Isto significa que se a parte espacial ψ for simetrica, a parte

de spin tem que ser antissimetrica, e vice-versa. Para atender a este

princıpio, temos que, a partir das nossas funcoes genericas ψ (espacial)

e φ (spin), construir novas funcoes (tambem genericas) simetricas e an-

tissimetricas. Para a parte espacial teremos as seguintes combinacoes

possıveis:

ψS(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x2) + ψa(x2)ψb(x1)

ψA(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x2) − ψa(x2)ψb(x1)

Note que se na primeira funcao, ψS , trocarmos x1 por x2, ela continua

com o mesmo sinal, e portanto e simetrica. Ja na segunda, ψA, se

fizermos o mesmo ela trocara de sinal, e portanto e antissimetrica.

Page 192: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

176

Para a parte de spin procedemos da mesma forma. So que agora

teremos tres possibilidades para a funcao simetrica e apenas uma para

a antissimetrica:

φ(1)S = φ+(1)φ+(2)

φ(2)S = φ−(1)φ−(2)

φ(3)S = φ+(1)φ−(2) + φ+(2)φ−(1)

φA = φ+(1)φ−(2) − φ+(2)φ−(1)

As tres primeiras funcoes sao simetricas, e a ultima antissimetrica. Note

que nenhuma das funcoes simetricas troca de sinal se trocarmos 1 por

2. Como o produto de uma funcao simetrica por uma antissimetrica

e sempre uma funcao antissimetrica, a funcao de onda total dos dois

fermions deve, de acordo com o princıpio de exclusao, ser portanto uma

das duas opcoes abaixo:

Ψtotal = ψAφS

ou

Ψtotal = ψSφA

Agora um gostinho das esquisitices que vem por aı como consequencia

do princıpio de exclusao: suponha que a parte de spins seja simetrica,

e consequentemente a parte espacial antissimetrica. Tente agora fazer

as partıculas se aproximarem, ou seja, faca x1 = x2. Teremos com isso:

ψA(x1, x2) = ψa(x1)ψb(x1) − ψa(x1)ψb(x1) = 0

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 177

ou seja, a funcao espacial se anula (e consequentemente a distribuicao

de probabilidades correspondente)! Isso quer dizer que se a funcao

de spins for simetrica, os eletrons tendem a ficar afastados um do ou-

tro! Nao entendeu o que tem de esquisito nisso? Lembre que o spin e

uma variavel interna da partıcula, como a carga e a massa, e que em

princıpio nada deveria ter a ver com a posicao da partıcula no espaco.

E como se dissessemos que partıculas no mesmo estado de spin sim-

plesmente nao se aproximam uma da outra! Dizemos que o movimento

dos eletrons esta correlacionado com seus estados de spin. Mudando o

spin de um dos eletrons as posicoes deles mudam tambem. Isso ocorre

mesmo para eletrons livres, ou seja que nao interagem! E como se

um eletron “soubesse” que o “outro esta la”, mesmo nao havendo in-

teracao entre eles10. Note que uma outra maneira de “aproximarmos”

os eletrons um do outro e fazermos a = b, ou seja, coloca-los no mesmo

estado quantico espacial. Como veremos no proximo capıtulo, os es-

tados eletronicos em um atomo, que aqui representamos pelas letras

a e b, sao indexados por um conjunto de numeros quanticos. Entao,

uma outra maneira de enunciarmos o princıpio de exclusao e dizermos

que dois eletrons nao podem ocupar o mesmo estado quantico, ou ainda

dizer que eles nao podem ter o mesmo conjunto de numeros quanticos.

10Aqui recomendo uma certa calma aos mais afoitos! Nao vao comecar a achar quede fato um eletron “sabe que o outro ‘esta la’ ”. Eletrons nao sabem de nada. A cor-relacao entre o movimento espacial e o estado de spin e uma propriedade da funcaode onda do sistema, ou seja, uma propriedade intrınseca da funcao matematica queos descreve.

Page 194: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

178

3.8 Einstein: “Deus nao Joga Dados”

Em 1911 um milionario quımico belga, chamado Ernest Solvay resolveu

reunir por conta propria em uma conferencia os mais importantes fısicos

da Europa da epoca. Essas reunioes ficaram conhecidas como Con-

ferencias Solvay e entraram para a Historia da Fısica Moderna como

um dos seus capıtulos mais fascinantes. Foram nessas conferencias onde

os dois maiores gigantes da fısica na epoca, Niels Bohr e Albert Einstein,

se enfrentaram numa espetacular batalha intelectual sobre a mecanica

quantica. A respeito daquela “epoca de ouro” Heisenberg escreveu em

1967:

A Conferencia Solvay em Bruxelas no outono de 1927

fechou um perıodo maravilhoso na historia da teoria atomica.

Planck, Einstein, Lorentz, Bohr, de Broglie, Born, e Schro-

dinger, e da nova geracao Kramers, Pauli e Dirac, reuniam-

se aqui e logo centralizavam as discussoes nos duelos entre

Einstein e Bohr. Nos nos reunıamos no hotel a mesa do

cafe da manha e Einstein comecava a descrever um expe-

rimento imaginado onde as contradicoes da teoria seriam

expostas. Seguıamos juntos do hotel para o predio da con-

ferencia e eu ouvia a entusiasmada discussao entre esses

dois homens com atitudes filosoficas tao distintas. Em geral

Bohr analisava o experimento de Einstein durante o dia, e

a discussao recomecava na mesa de jantar. Ehrenfest, que

era amigo de Bohr e Einstein, dizia: “estou envergonhado

de voce, Einstein. Voce esta se colocando na mesma posicao

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 179

dos seus oponentes, quando tentaram refutar a teoria da re-

latividade”. As discussoes se estendiam de uma conferencia

para a outra. Na conferencia de 1930, na mesa do cafe,

Einstein propos o famoso experimento em que a cor de um

quantum de luz deveria ser determinada pesando-se a fonte

antes e depois da emissao. Como o problema envolvia gravi-

dade, nos tivemos que usar a teoria da relatividade geral

para analisa-lo. Foi um triunfo para Bohr ao final do dia

mostrar para Einstein, usando sua propria teoria, que a

interpretacao de Copenhague estava correta. (Quantum

Theory and Measurement, Ed. J.A. Wheeler e W.H.

Zurek, Princeton 1983)

A interpretacao da mecanica quantica dada por Bohr (em termos

de incertezas, colapsos, valores medios, etc.) foi a que prevaleceu. Ela

ficou conhecida como interpretacao de Copenhague, uma homenagem

a Cidade Natal de Bohr. Einstein passou a vida sem aceitar essa in-

terpretacao. Sua famosa frase “Deus nao joga dados com o Universo”

era uma alusao feita ao seu desconforto para aceitar que os fenomenos

da Natureza, em um nıvel fundamental, sao governados por leis prob-

abilısticas. Sua arma mais poderosa consistia em tentar produzir ex-

perimentos imaginados que levassem a paradoxos na teoria, e portanto

revelassem sua inconsistencia. O mais famoso desses experimentos pen-

sados foi publicado em um artigo de 1935, com Boris Podolsky e Nathan

Rosen. O tıtulo do artigo: Can Quantum-Mechanical Description of

Reality be Considered Complete? (Pode-se Considerar Completa a Des-

cricao Quantica da Realidade?). Este artigo entrou para a Historia da

Page 196: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

180

Fısica como o paradoxo de EPR (‘E’ para Einstein, ‘P’ para Podolsky

e ‘R’ para Rosen). Abaixo reproduzimos o resumo do artigo, traduzido

e adaptado para este texto:

Em uma teoria completa existe um elemento correspon-

dendo a cada elemento de realidade. Uma condicao sufi-

ciente para a realidade de uma quantidade fısica, e a pos-

sibilidade de predize-la com certeza, sem alterarmos o sis-

tema. Na mecanica quantica, no caso de quantidades fısicas

que estao relacionadas pelo princıpio de incerteza, o co-

nhecimento de uma delas impede o conhecimento da outra.

Entao, ou (1) a descricao da realidade dada pela funcao

de onda na mecanica quantica nao e completa, ou (2) es-

sas duas quantidades nao “possuem realidade” simultane-

amente. Considerando o problema de uma predicao sobre

um sistema que previamente interagiu com outro, obtemos

o resultado de que se (1) e falso, entao (2) tambem e falso.

Somos entao levados a concluir que a descricao da realidade

como dada pela funcao de onda nao e completa.

No artigo de EPR os autores analisam uma situacao em que duas

partıculas que em um dado momento estao proximas uma da outra, se

afastam. De acordo com a mecanica quantica, havera uma funcao de

onda que descrevera o comportamento das partıculas como um todo,

nao importando a distancia entre elas. Para EPR era concebıvel que

estando as partıculas proximas e interagindo uma com a outra (por

exemplo, via interacao eletrostatica), a alteracao de qualquer grandeza

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 181

em uma delas (por exemplo seu momento ou posicao) poderia alte-

rar o estado da outra. Mas o que dizer quando as partıculas estivessem

longe uma da outra, sem qualquer possibilidade de interacao entre elas?

De acordo com a teoria elas continuariam correlacionadas, ou seja, a

medida de uma variavel em uma delas, alteraria o estado da outra!

De alguma forma a informacao da medida em uma das partıculas se-

ria passada instantaneamente para a outra! Acontece que a teoria da

relatividade, como vimos, estabelece um limite superior para as veloci-

dades possıveis de serem alcancadas na Natureza, que e a velocidade

da luz. Consequentemente a propagacao instantanea de informacao em

tal experimento viola este princıpio.

A tese defendida no artigo EPR e que a mecanica quantica e uma

teoria incompleta. Isto quer dizer que para aqueles ilustres autores de-

veriam existir variaveis que determinariam o estado das partıculas de

um sistema fısico com certeza, mas essas variaveis (que ficaram con-

hecidas como variaveis ocultas) nao estariam incluıdas no formalismo

da mecanica quantica. A situacao seria analoga ao problema do dado,

onde nao podemos afirmar com certeza o resultado de uma jogada,

simplesmente porque nao temos o conhecimento de todas as variaveis

envolvidas no problema, e nao porque o problema e intrınsecamente

probabilıstico. Vejamos alguns desdobramentos do artigo EPR.

Page 198: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

182

3.9 Correlacoes Estranhas: Afinal, Deus

Joga Dados?

O artigo de EPR foi publicado em 1935. Para Einstein a medida de

uma propriedade fısica realizada em um equipamento de laboratorio nao

poderia influenciar a medida em outro equipamento. Se, por exemplo,

um equipamento A se encontra longe o suficiente de outro equipamento

B, de tal forma que as medidas feitas em A eB ocorram em um intervalo

de tempo pequeno o suficiente para que um feixe luminoso nao cubra

a distancia entre eles, nao podera haver, de acordo com o pensamento

de Einstein, nenhuma influencia de um resultado sobre o outro. Nessas

condicoes nao ha como o resultado de A ser transmitido para B a

tempo de influencia-lo antes que a medida em B tenha terminado. Em

fısica chamamos de teorias realısticas locais aquelas teorias que levam

em consideracao este princıpio. A mecanica quantica e portanto uma

teoria nao local pois permite que haja influencia instantanea a distancia.

Em 1964 vinte e nove anos depois da publicacao do artigo de EPR, e

nove apos a morte de Einstein, John S. Bell publicou um trabalho a

respeito deste problema considerado por alguns fısicos como sendo um

dos mais importantes resultados ja obtidos na Historia da Fısica.

Bell estava preocupado em estabeler um criterio que pudesse decidir

sobre a validade da interpretacao de Copenhague da mecanica quantica.

Mais especificamente, ele queria encontrar sob que condicoes a mecanica

quantica poderia ser modificada para se tornar uma teoria realıstica

local, mas, ao mesmo tempo, preservando o enorme sucesso de sua

estrutura matematica. Para isso ele considerou a situacao proposta

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 183

por EPR aplicada ao caso de dois spins. Vamos apresentar aqui uma

versao simplificada devida a David Bohm.

Suponha que, por meio de algum metodo (que nao vem ao caso),

partıculas sejam criadas com spins opostos, e viajem em direcoes opostas.

O valor do spin de qualquer uma das partıculas e medido ao longo de

uma dentre tres direcoes possıveis, as quais vamos denominar pelos ve-

tores unitarios n1, n2 e n3. Dois magnetos separados por uma certa

distancia podem ter seus campos magneticos orientados ao longo de

uma dessas tres direcoes. Vamos chamar de ‘+’ e ‘−’ os resultados

possıveis para a medida do spin em cada partıcula. Suponha que no

magneto A uma medida seja feita ao longo da direcao n1, e que no B a

medida seja ao longo de n2. Representemos a probabilidade de encon-

trarmos o resultado ‘+’ em ambos os aparelhos por P (n1+; n2+). Bell

encontrou que para uma teoria realıstica local a seguinte desigualdade

deveria ser obedecida:

P (n1+; n2+) ≤ P (n2+; n3+) + P (n1+; n3+)

Ou seja, a probabilidade de encontrarmos o resultado ++ ao longo de

n1 e n2 e menor ou igual a soma das probabilidades de encontrarmos

o mesmo resultado ao longo das outras direcoes. Esta e uma versao

simplifcada da famosa desigualdade de Bell. Repetindo, ela e deduzida

sob os criterios impostos por uma teoria local. Bell mostrou que se

a mecanica quantica fosse uma teoria local, a desigualdade acima as-

sumiria a seguinte forma:

sen2(θ122

) ≤ sen2(θ232

) + sen2(θ132

)

Page 200: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

184

onde θ12 e o angulo entre as direcoes n1 e n2, θ13 entre n1 e n3, e θ23

entre n2 e n3. Mas como as orientacoes dos campos magneticos nos dois

aparelhos que medem os spins podem ser escolhidas arbitrariamente,

se fizermos a escolha

θ13 = θ23 =1

2θ12

usando a identidade sen2(x) = 4sen2(x/2)cos2(x/2), chegamos ao re-

sultado

cos2(θ132

) ≤ 1

2

que claramente e violado para valores dentro do intervalo11:

0 <1

2θ13 <

π

4

Em outras palavras, de acordo com Bell, a mecanica quantica viola os

princıpios impostos por uma teoria realıstica local.

11Por exemplo, se escolhermos θ13 = π, obtemos da desigualdade o resultado0, 5 < 0, 25, o que e obviamente falso.

Page 201: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 185

.

Determinados estados quanticos exibem correlacoes nao-locais. Estes estados saochamados de emaranhados ou estados de Bell ou ainda estados EPR. Em tais esta-dos, a medida de uma propriedade fısica em um dos componentes, afeta o compor-tamento de outros componentes.

A conclusao deste trabalho e a de que a nossa escolha sobre o

tipo de medida a fazer sobre uma das partıculas afeta, de acordo com

a mecanica quantica, o comportamento da outra partıcula em uma

posicao remota! Por exemplo, se posicionarmos o aparelho de modo

que obtenhamos o resultado ‘+’ para o spin da primeira partıcula, o

outro aparelho encontrara ‘−’ para o valor do spin ao longo da mesma

direcao. Mas se girassemos os campos magneticos dos dois aparelhos

e medıssemos ‘−’ no primeiro, o resultado da outra passaria a ser ‘+’ !

E mais, se posicionassemos os campos magneticos perpendicularmente

Page 202: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

186

um ao outro, digamos, um ao longo de z e o outro ao longo de y,

o resultado ‘+’ em um deles levaria a uma indeterminacao no resul-

tado do outro, pois, de modo analogo ao que ocorre com a posicao e

o momento de uma partıcula, o princıpio de incerteza proibe que duas

componentes perpendiculares do spin sejam conhecidas com certeza!

Como o spin medido em um dos aparelhos pode “saber” a orientacao

do outro aparelho colocado em uma posicao remota? Bell conclui que

a informacao sobre o resultado de uma das medidas deve ser transmi-

tida instantaneamente, e portanto contrariando um dos princıpios da

relatividade. A mais contundente prova de violacao da desigualdade

de Bell foi realizada em um experimento em 1982 por um grupo de

cientistas franceses.

Experimental Realization of Einstein-Podolsky-Rosen-Bohm Gedan-

kenexperiment: a new Violation of Bell’s Inequalities, ou “Realizacao

Experimental do Experimento Pensado de Einstein-Podolsky-Rosen-

Bohm: nova Violacao das Desigualdades de Bell”. Autores: Alain

Aspect, Phillipe Grangier e Gerard Roger. Neste trabalho as partıculas

utilizadas pelos autores sao fotons com comprimentos de onda λ1 =

551, 3 e λ2 = 442, 7 nanometros (1 nanometro = 1 nm = 10−9 metros)

emitidos por uma fonte de calcio 40. A desigualdade de Bell e expressa

em uma forma mais geral, em termos de uma quantidade S, que seria

o equivalente ao angulo θ13 na expressao simplificada acima. Sob a

forma, a desigualdade de Bell e escrita como:

−2 ≤ S ≤ 2

Lembremos mais uma vez que esta relacao e a previsao feita obede-

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 187

cendo as imposicoes de uma teoria realıstica local. A previsao feita

pela mecanica quantica para o valor da quantidade S, no arranjo es-

pecıfico do experimento de Aspect e seus colaboradores era de:

SMQ = 2, 70

que portanto viola a desigualdade imposta pela teoria local. O va-

lor experimental medido foi espantosamente proximo da previsao da

mecanica quantica:

Sexp = 2, 697 ± 0, 015

Entao, o experimento de Aspect e seus colaboradores mostrou sem som-

bra de duvidas que as previsoes da mecanica quantica estao corretas, e

portanto a interpretacao de Copenhague!

3.10 Existe um Mundo la Fora?

Do que foi dito acima o leitor sabera avaliar o que Bohr quiz dizer com

a frase: quem nao se espantar com a mecanica quantica e porque nao

a compreendeu. Alguns cientistas preferem tratar a mecanica quantica

como uma mera “maquina de calcular”. Usam-na para obter resultados

praticos, fazer previsoes, etc., sem se envolver com as discussoes acerca

do seu significado filosofico. Alias, diga-se de passagem, assim como

a teoria da relatividade, nao fosse sua espetacular capacidade de pre-

ver novos fenomenos e explicar resultados experimentais, a mecanica

quantica nao teria sobrevivido ao tempo. Em fısica quem dita as regras

do jogo sao os resultados experimentais. De pouco ou nada adianta fa-

zer previsoes ou inventar teorias impossıveis de serem refutadas, que a

Page 204: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

188

tendencia para essas e cair no esquecimento e desaparecer. E sempre a

Natureza quem decide o que fica e o que cai no esquecimento!

Einstein nao era um homem do tipo “pratico”, e acreditava que a

mecanica quantica era uma teoria incompleta. Para ele existia uma

objetividade no mundo, ou seja, os fenomenos da Natureza existindo

independentemente das pessoas (que, diga-se de passagem, sao tambem

fenomenos da Natureza!). Para ele existia “um mundo la fora”. Em

suas notas autobiograficas, aos 70 anos de idade, escreveu a respeito de

conviccoes que cultivava quando ainda jovem:

Alem de mim, fora de mim, estava o mundo imenso, que

existe independente dos seres humanos e que se nos apre-

senta como um enorme e eterno enigma, em parte acessıvel

a nossa observacao e ao nosso pensamento. A conquista

mental desse mundo extra-individual dentro dos limites da

capacidade humana se me apresentava meio consciente e

meio inconscientemente como o objetivo supremo.(Notas

Autobiograficas, Ed. Nova Fronteira, 1982)

Para a mecanica quantica parece nao ser bem assim. O resultado de

uma medida fısica em um sistema microscopico so se concretiza quando

alguem faz a leitura no aparelho de medicao. E como na situacao

dramatizada no experimento do gato de Schrodinger: o gato so morre

ou continua vivo quando alguem abre a caixa e olha para dentro dela.

Essa aparente necessidade da presenca de alguem e talvez o aspecto

mais intrigante da teoria. A respeito disso, Eugene Wigner, Premio

Nobel de Fısica de 1963, defende a ideia de que de algum modo o

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 189

conceito de consciencia deveria ser incorporado a fısica. Dentro desta

visao nos nao serıamos meros espectadores dos fenomenos naturais,

mas participantes ativos em sua realizacao. Em outras palavras, nao

haveria “um mundo la fora”. Pauli teria certa vez expressado este sen-

timento com uma pergunta um tanto poetica: a Lua existe quando

ninguem esta olhando para ela? Estas questoes obviamente nao afe-

tam o nosso dia-a-dia, e muitos fısicos consideram que tal problema

nao merece tanta atencao. Muitos outros, contudo, arriscam-se a pro-

por interpretacoes alternativas da mecanica quantica, algumas ate bem

bizarras! E interessante notar que, nesse campo, a habilidade tecnica de

cada um para resolver problemas matematicos ou experimentais parece

pouco importar; trata-se tao somente de “opinioes”, mais ou menos

bem fundamentadas12. Alguns desses depoimentos foram compilados

em um pequeno livro chamado The Ghost in the Atom, (Ed. P.C.W.

Davies & J.R. Brown, Cambridge 1986 ). Alem das duas abordagens ja

mencionadas (a puramente utilitaria, que ve a mecanica quantica como

uma “maquina de calcular”, e a ideia de que e a presenca de um obser-

vador que faz a funcao de onda colapsar), existe ainda a interpretacao

dos “universos multiplos”, sugerida por Hugh Everett, como uma das

mais originais e estranhas. De acordo com Everett a interpretacao de

Copenhague esta correta quando afirma que antes de uma medida ser

realizada um sistema quantico se encontra em uma mistura de estados,

formada por uma superposicao de possibilidades para o resultado da

12O autor deste livro presenciou em certa ocasiao o ilustre fısico brasileiro, profes-sor Mario Schemberg, em uma memoravel palestra proferida no CBPF, afirmar queso havia conseguido compreender a mecanica quantica apos ter estudado as artes efilosofias orientais.

Page 206: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

190

medida. Quando alguem realiza a medida, cada uma das varias possi-

bilidades e concretizada, so que em universos diferentes! Por exemplo,

suponha que a medida a ser realizada seja a do spin de um eletron.

Temos dois estados possıveis, φ+ e φ−. A funcao de onda antes da

medida sera uma superposicao desses dois estados:

ψ = a+φ+ + a−φ−

onde |a+|2 e a probabilidade de encontrarmos o sistema em φ+ no mo-

mento da medida, o analogo para |a−|2. De acordo com a interpretacao

de Everett, quando realizarmos a medida, o universo se desdobrara nas

duas possibilidades, ou duas copias identicas: em um deles o autoes-

tado φ+ e encontrado, e no outro φ−. E a pessoa que mede, o que

ocorre com ela? Tambem e duplicada! O universo se desdobra em duas

copias identicas, com tudo que tem direito, a unica diferenca sendo

o estado de spin. Cada observador, no seu proprio universo, pensa

que e unico, mas na verdade existem muitas de suas copias (em certas

situacoes poderia ser ate vantajoso se de fato o mundo fosse bizarro a

esse ponto. Ontem, dia 12 de julho de 1998 a Franca goleou o Brasil

por 3 x 0 na final da Copa do Mundo, mandando o “sonho do penta”

por agua abaixo. Resta como consolo a possibilidade de que em algum

outro universo tenha ocorrido ao contrario!). Ca pra nos, esta inter-

pretacao e de lascar! As vezes, por razoes de sobrevivencia, um fısico

deve ser igual a um polıtico: um autentico cara-de-pau! Mas, talvez

algumas dessas propostas sejam “atos de desespero”, do mesmo modo

que o foi a hipotese de Planck em 1900 sobre a quantizacao da radiacao

eletromagnetica.

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 191

Vejamos, para terminar a secao, algumas opinioes de importantes

fısicos sobre o assunto:

Voce acredita que a mente tem um papel fundamental na fısica?

John Bell (CERN) - Nem acredito, nem desacredito. Acho que a

mente e um fenomeno muito importante no universo, pelo menos para

nos. Se e necessario introduzı-la na fısica neste ponto eu nao sei. Os

fatos experimentais que em geral sao apresentados como argumento

para essa possibilidade nao nos convencem de que tenha que ser assim.

E uma hipotese que certamente devemos explorar, mas nao e a unica.

Sobre a interpretacao de Everett dos multiplos universos:

John Wheeler (Universidade do Texas) - A ideia da interpretacao

de Everett e considerar a funcao de onda para todo o universo, e nao

somente para partıculas microscopicas. Pelo fato de que tal funcao de

onda inclui o proprio observador, nao existira mais o chamado “ato

da medida” que colapsa a funcao de onda na visao de Bohr. Nessa

interpretacao, se um eletron possui igual chance de ir para a direita ou

para a esquerda, o universo se divide; em um deles o observador ve o

eletron indo para a direita, o outro para a esquerda.

Voce acredita que se nos nao olharmos para uma mesa, talvez porque

estejamos em um outro comodo, a mesa ainda estara realmente la?

Sir Rudorf Peierls (Universidade de Oxford) - Claro. Porque

existem varias maneiras pelas quais a mesa se faz sentir. No dia-a-dia

da fısica classica, a observacao nao interfere com o objeto observado,

e esses problemas nao existem. Mas em mecanica quantica e diferente

porque a observacao interfere com o observado.

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192

Na interpretacao dos universos multiplos, onde estao os outros uni-

versos?

David Deutsch (Universidade de Oxford) - De certo modo nos

compartilhamos o mesmo espaco e tempo com eles. Mas, ao mesmo

tempo eles estao em “algum outro lugar”, porque a teoria que prediz a

existencia desses universos, tambem diz que so podemos detecta-los de

modo indireto. Nunca poderemos ir la e nos comunicarmos com eles de

uma maneira ampla.

Na interpretacao dos multiplos universos, cada observacao realizada divide o uni-verso em tantas copias quantas forem as possibilidades para o resultado da ob-servacao.

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 193

3.11 Teletransporte

E agora as utimas notıcias sobre as mais recentes esquisitices quanticas

(as 12h22min do dia 23 de abril de 1998 diretamente da minha sala no

CBPF): teletransporte quantico. Einstein parece que acertava mesmo

quando errava! Seu artigo de 1935 levou a uma discussao intensa sobre

os fundamentos da mecanica quantica. Em 1968 Bell estabeleceu um

criterio de localidade violado pela teoria, e em 1982 Alain Aspect, com

seus colaboradores, demonstrou de maneira irrefutavel que o mundo

quantico e dramaticamente diferente da nossa realidade do dia-a-dia.

E o avanco demolidor dessa deusa chamada Fısica! Mas nao pense que

essa turma se satisfaz so com isso nao! Eles querem mais! Em 1993, 38

anos apos a morte de Einstein, Charles H. Bennet da IBM Research Di-

vision e colaboradores, sugeriram que seria possıvel transmitir o estado

quantico de uma partıcula para uma outra localizada remotamente em

relacao a primeira. Caro leitor, se voce ja teve saco e coragem para

vir ate aqui, pare um minuto e pense: se eu consigo transmitir o exato

estado de uma partıcula que se encontra na posicao A para outra que

se encontra na posicao B, afastada de A, eu terei de algum modo recon-

struıdo o objeto que se encontrava em A, na posicao B; a informacao

quantica sobre o estado do objeto em A e teletransportada para o ob-

jeto em B. Sabe como? Usando exatamente as ideias que Einstein

inventou em 1935 para tentar derrubar a mecanica quantica! O feitico

virou contra o feiticeiro! O experimento foi demonstrado em 1997 por

Dik Bouwmeester e colaboradores em um grupo austrıaco.

Vamos expor a ideia simplificadamente. Para isso vamos evocar

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194

nossos velhos colaboradores, Eduardo e Monica (pode ser que algum

leitor ou leitora nao esteja satisfeito com esses colaboradores. Pois

sintam-se a vontade para escolher outros: Batman e Robin, Zorro e

Tonto, Bacamarte e Chumbinho, Pink e Cerebro, etc. Da certo do

mesmo jeito). Suponha que Monica consiga, por algum metodo, pro-

duzir uma partıcula em um estado quantico ψ1, e que ela queira passar

a informacao contida em ψ1 para Eduardo, que se encontra em uma lo-

calizacao remota. Para que isto seja feito, ambos devem compartilhar

duas outras partıculas que tenham sido produzidas em uma especie de

fonte de EPR. Como vimos acima, partıculas produzidas dessa forma

tornam-se correlacionadas de tal modo que a medida de alguma quan-

tidade fısica em uma delas altera o estado da outra. Dizemos que elas

se encontram em um estado quantico entrelacado. Recordando: ao

todo temos 3 partıculas: 1 no estado ψ1 com Monica, e duas em um

estado entrelacado, cada uma dessas com um dos nossos experimenta-

dores. Vamos chamar de a a partıcula no estado ψ1 que se encontra

com Monica, e b e c o par EPR entrelacado, b tambem com Monica, e c

com Eduardo. Sabemos que se uma medida for feita em b, c “sentira”

o resultado. O teletransporte consiste em Monica passar o estado ψ1

de a para c. Para isso ela realiza uma medida de tal modo que a e b se

tornem entrelacadas tambem. Mas, como sabemos que o estado inicial

de a era ψ1, e que c “sentira” qualquer coisa que ocorra com b, e possıvel

mostrar que o entrelacamento entre a e b pode ser realizado de modo

a c colapsar no estado ψ1. Esta realizado o teletransporte! Ao tornar

a entrelacada com b, a informacao original contida em ψ1 se perde

para Monica, e aparece para Eduardo. O experimento de Bouwmeester

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CAPITULO 3 - A MECANICA QUANTICA 195

demonstrou o fenomeno para fotons, mas em princıpio seria possıvel

realizar tais experimentos com objetos maiores que partıculas, como

por exemplo moleculas, ou objetos macroscopicos. Nada nos impede

de sonhar!

Pois e, caro leitor. Esta e a nossa situacao. Em uma centena e

meia de paginas saimos de um mundo classico, seguro, determinista,

quentinho, aconchegante, com estruturas absolutas, para um mundo de

incertezas, com o espaco encolhendo, os relogios enlouquecidos, e uma

serie de fenomenos que se correlacionam de um modo estranho. E o

mundo em que eu, voce, a minha avo, e o Manoel da padaria vivemos; e

a Natureza. Parece que Deus, de fato, e mesmo chegado a uma jogatina!

Nos proximos capıtulos vamos explorar algumas consequencias destas

ideias para a vida do pedestre do seculo XX.

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. Caos na Mecanica Quantica?, Alfredo M. Ozorio de Almeida, vol. 14, no.80, p. 48.

2. A Estranha Natureza da Realidade Quantica, Harvey Brown, vol. 2, no. 7,p. 24.

3. A Mecanica Quantica e a Comunicacao Secreta, Luiz Carlos B. Ryff, vol.14, no. 79, p. 15.

4. Mecanica Quantica, um Desafio a Intuicao, Vincent Buonomano e Ruy H.A.Farias, vol. 14, no. 83, p. 17.

5. Tormenta no Vazio. O Vacuo Quantico e o Efeito Casimir, Marcus VeniciusCongo-Pinto, Carlos Farina e Alexandre Tost vol. 25, no. 146, p. 26.

6. O Gato de Schrodinger. Do Mundo Quantico ao Mundo Classico, LuizDavidovich, vol. 24, no. 143, p. 26.

7. Teletransporte: uma Solucao em Busca de um Problema, Luiz Davidovich,vol. 23, no. 137, p. 8.

Page 212: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

196

Resumo - Capıtulo Tres

A Mecanica Quantica surgiu com o trabalho de Max Planck no anode 1900 para explicar o espectro de emissao de radiacao de um corpo ne-gro. Para isso Planck postulou que a energia eletromagnetica era emitidaem “pacotes”, ou quanta, e nao continuamente como na eletrodinamicaclassica. Planck considerou essa hipotese um “ato de desespero”. Eins-tein utilizou o postulado de Planck para explicar o efeito fotoeletrico, eso a partir daı a ideia dos quanta ganhou popularidade entre os cientistas.Louis de Broglie teve um papel fundamental ao postular que partıculasmateriais tambem possuem um aspecto ondulatorio. Partıculas comoeletrons, protons, etc., sofrem difracao e interferencia, tal como ondasem geral. Deve-se entender que o carater de partıcula ou onda e reveladopelo tipo de experimento. Estes sao aspectos do mundo microscopicoconsiderados complementares, e nao opostos. Alem de Niels Bohr, Er-win Schrodinger e Werner Heisenberg sao outros dois nomes centrais damecanica quantica. A funcao que descreve o comportamento de umapartıcula microscopica e a chamada funcao de onda, e representada porψ(r, t). Esta e uma funcao complexa, e seu modulo quadrado nos da umadistribuicao de probabilidades. Microscopicamente nao podemos sabercom certeza os valores de quantidades que caracterizam o movimento departıculas, tais como o seu momento e a sua posicao; podemos conhecerapenas os valores medios destas quantidades. Partıculas microscopicaspossuem um momento angular intrınseco, batizado de spin. O princıpiode exclusao de Pauli diz que a funcao de onda total de um sistema departıculas com spin semi-inteiro (fermions) e antissimetrica. Os conceitosintroduzidos pela mecanica quantica destruiram a ideia de determinismoda mecanica classica, e geraram um grande debate que persiste ate os diasde hoje. A interpretacao dada a mecanica quantica, principalmente de-vida a Niels Bohr, e chamada de interpretacao de Copenhague. Einsteinfoi o principal opositor desta interpretacao, porque se recusava a acredi-tar em um aspecto probabilıstico intrınseco da Natureza. Varios debatesentre Einstein e Bohr foram travados durante as conferencias Solvay, emBruxelas. Apenas muito recentemente, experimentos altamente sofisti-cados comprovaram importantes previsoes da mecanica quantica, feitasa partir da interpretacao de Copenhague.

Page 213: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 4

Como Construir um Atomo

Rutherford ja havia ganho o Premio Nobel de 1908 pelas suas “inves-

tigacoes sobre o decaimento dos elementos e...a quımica de substancias

radioativas”. Ele trabalhava duro e era um fısico muito talentoso, cheio

de disposicao e auto-confianca. Em uma carta que escreveu em certa

ocasiao, o ja entao Lord Rutherford, revela: “estive lendo alguns de

meus primeiros trabalhos e, voce sabe, quando terminei eu disse para

mim mesmo, ‘Rutherford, meu garoto, voce era um bocado esperto’ ”.

Embora estivesse satisfeito por ter ganho o Nobel, nao o estava com o

fato de ter sido um premio de quımica, e nao um de fısica (qualquer

pesquisa com elementos era considerada quımica e nao fısica). Em

seu discurso de recebimento do Premio Nobel, enfatizou que durante o

seu trabalho observou muitas transformacoes com radioatividade, mas

nenhuma tao rapida quanto a de si proprio, de fısico para quımico!

(Quantum Physics of Atoms, Molecules, Solids, Nuclei and

Particles, R. Eisberg e R. Resnick, John Wiley and Sons, New York,

1974)

197

Page 214: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

198

4.1 A Estrutura do Atomo

A ideia de que a materia e formada por partıculas muito pequenas e

“indivisıveis”, ou atomos, e muito antiga. Democrito, que viveu quase

400 anos antes de Cristo, ja pensava nessas coisas. Ele propos um

modelo atomico onde os atomos se encaixavam mais ou menos como

as pecas de um Lego. Mas, a verdadeira estrutura do atomo so foi

revelada no inıcio do seculo XX com o trabalho de Rutherford. Hoje

o atomo nao pode ser compreendido sem a mecanica quantica (e como

diz a maxima: “fora da mecanica quantica nao ha salvacao!”).

No modelo do “pudim de passas” os eletrons atomicos distribuem-se uniformementeem um substrato contınuo positivo.

No inıcio do seculo XX ja se “apostava” que existiam eletrons den-

tro dos atomos; so nao se sabia como eles se distribuıam. Havia um

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CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 199

modelo devido a J.J. Thompson, conhecido como o modelo do pudim

de passas. Neste modelo os eletrons, partıculas com carga negativa,

eram distribuıdos em uma massa uniforme com carga positiva. Os

eletrons seriam as “passas”, e a massa o “pudim”. Ernest Ruther-

ford, ingles originario da Nova Zelandia, tentava descobrir como estas

cargas se distribuıam dentro do atomo bombardeando folhas metalicas

muito finas com partıculas alfa, e observando os desvios nas suas tra-

jetorias. Partıculas alfa, como descoberto posteriormente, nada mais

sao do que atomos de helio duplamente ionizados, ou seja, que perde-

ram dois eletrons. Portanto, partıculas alfa possuem uma carga posi-

tiva igual a +2e. A ideia por detras dos experimentos de Rutherford

era muito simples. Imagine que voce tenha uma partıcula de carga Q

parada, fixa em uma posicao. Voce arremessa (de alguma forma!) e

tenta acertar nesta partıcula uma outra com carga q. Como sabemos

do capıtulo um, partıculas carregadas exercem forcas eletricas umas

sobre as outras, sendo a forca proporcional ao produto das cargas e

inversamente proporcional ao quadrado da distancia entre elas. Entao,

a carga q que voce arremessou interagira eletricamente com a carga fixa

Q de acordo com a forca:

F =1

4πε0

qQ

r2er

Se q e Q tiverem o mesmo sinal (ambas positivas ou ambas negativas),

a forca sera repulsiva; caso contrario sera atrativa. Obviamente em se

tratando de partıculas microscopicas, e muito difıcil acertar uma na

outra, pois para inıcio de conversa, sequer conseguimos enxergar essas

coisas! Por isso o negocio tem que ser feito na base da “tentativa e

Page 216: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

200

erro” . Traduzindo: bombardeia-se o alvo com um feixe de partıculas

alfa; algumas delas vao ser mais desviadas do que outras. Do outro

lado do alvo posicionam-se detectores de partıculas cuja finalidade e

medir os desvios nas trajetorias das partıculas que atravessam o alvo.

Esses desvios sao quantificados por uma grandeza chamada angulos

de espalhamento. Finalmente, faz-se uma analise estatıstica dos re-

sultados (a proposito, a seguinte frase e atribuıda a Rutherford: “se

o seu experimento precisa de estatıstica, e melhor voce fazer outro”).

Mas, imagine por simplicidade, que voce consiga acelerar a partıcula

com carga q exatamente na direcao daquela com carga Q. Conforme a

distancia r entre elas for encurtando, a forca eletrica F aumentara, e

se elas chegarem muito proximas uma da outra, F se tornara imensa,

e causara um grande desvio na trajetoria da partıcula com carga q. A

partir das medidas dos angulos de espalhamento, Rutherford tentava

“adivinhar” como era a distribuicao de partıculas com carga Q do alvo.

Os alvos utilizados por Rutherford em seus experimentos eram fo-

lhas metalicas muito finas. A ideia era que, ao penetrar na folha, as

cargas das partıculas alfa interagiriam com a distribuicao de cargas dos

atomos da folha, e sairiam do outro lado dela com um certo angulo de

espalhamento em relacao a direcao de incidencia. Dentro do modelo

do pudim de passas o espalhamento causado por um atomo da folha

era estimado ser da ordem de apenas 0,0057 graus. No entanto, ao

atravessar a folha, uma determinada partıcula alfa sofre espalhamento

causado por diversos atomos. O desvio total das partıculas emergindo

do outro lado da folha nao era esperado ultrapassar angulos em torno de

3 graus. Qual nao foi a surpresa de Rutherford ao verificar que nao so o

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CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 201

angulo de espalhamento de algumas partıculas era muito maior do que

o previsto pelo modelo de Thompson, mas algumas delas chegavam ate

mesmo a ser refletidas pela folha de volta sobre a direcao de incidencia,

ou seja, sofriam espalhamento de 180 graus! Mais tarde ele compararia

a situacao como se jogassemos um tijolo sobre uma folha fina de papel

e o tijolo fosse rebatido de volta!

Em um experimento de espalhamento, um feixe de atomos incide sobre um alvo.A interacao dos atomos do feixe com os atomos do alvo ocasiona o desvio, ouespalhamento, do feixe incidente.

A partir da analise de seus dados, Rutherford foi levado a conclusao

inevitavel de que o atomo teria uma carga positiva concentrada em um

nucleo com dimensoes incrivelmente pequenas, da ordem de 10−15 m (=

1 femtometro), e a carga negativa, os eletrons, estaria distribuıda em

uma regiao da ordem de 10−10 m (= 1 angstron). Era uma conclusao

bastante bizarra para a epoca. Se comparassemos o nucleo com uma

Page 218: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

202

bolinha com 1 cm de diametro, a eletrosfera teria um raio de cerca de 1

km. Ou seja, o atomo encontrado por Rutherford era um grande vazio!

Obviamente os resultados de Rutherford foram debatidos exaustivamente

ate que se chegasse a um quadro de consenso. A ideia que temos de

atomo hoje em dia e o resultado dessas discussoes. Um atomo pos-

sui um nucleo que concentra praticamente toda a sua massa, e retem

a carga positiva. O diametro de um atomo e cerca de 100 000 vezes

o diametro do seu nucleo. O nucleo e circundado por eletrons, que

sao os portadores de carga negativa. A massa do eletron e igual a

9, 10939× 10−31 kg. O nucleo e composto por dois tipos de partıculas:

os protons, e os neutrons. Os neutrons nao possuem carga eletrica e

portanto nao interagem eletricamente com os protons do ncleo, mas

exercem um papel fundamental na sua estabilidade. Um proton possui

uma carga igual a do eletron, mas de sinal contrario: +1, 602×10−19 C;

sua massa e de 1, 67262× 10−27 kg, cerca de 1836 vezes maior do que o

eletron. A massa do neutron, por sua vez, e muito proxima a do proton:

1, 67482×10−27 kg. O numero total de protons no nucleo e chamado de

numero atomico, em geral representado pela letra Z. Portanto, a carga

eletrica total de um nucleo com numero atomico Z e igual a +Ze. O

numero de protons mais o numero de neutrons (representado por N)

de um nucleo e igual ao seu numero de massa, representado por A:

A = Z +N

Em seu estado normal, um atomo e sempre neutro, ou seja, nao pos-

sui carga eletrica. Isso obviamente ocorre porque o numero de eletrons

e igual ao numero de protons. Nao e muito difıcil arrancar eletrons

Page 219: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 203

de certos atomos (contudo e extremamente difıcil arrancar protons!).

Cada eletron que sai do atomo aumenta a carga deste de +e (correspon-

dendo a carga do proton que ficou em excesso). Um atomo carregado e

chamado de ıon. As vezes tambem e possıvel que um atomo neutro cap-

ture um eletron, tornando-se negativo. Atomos com excesso de carga

positiva sao chamados de cations, e com excesso de carga negativa de

anions. Entao, ıons podem ser cations ou anions.

Se voce quer saber, eu acho estas definicoes todas um “saco”, mas

elas sao necessarias para a classificacao dos atomos. Imagine, tudo

que vemos em volta da gente nesse mundao de Deus: plantas, animais,

carros, o mar, o Sol, cerveja, o ar, a Lua, feijoada, balas juquinha, e

ate aquela vizinha boazuda do 907 e construıdo a partir de uns poucos

tipos de atomos!

4.2 Orbitais Quanticos

Assim como qualquer outro objeto microscopico, atomos devem ser

descritos pela mecanica quantica. Como dissemos no capıtulo anterior,

todas as informacoes sobre uma partıcula que se move em um potencial

V estao contidas na sua funcao de onda ψ. No caso de um atomo, cada

eletron esta sujeito a acao da forca coulombiana exercida pela carga

do nucleo. Por sua vez, os protons e neutrons que compoem o nucleo

tambem estao sujeitos a um potencial, chamado potencial nuclear, que

determina a forma da funcao de onda do nucleo. Na secao 4.8 voltare-

mos ao problema do nucleo. No momento queremos entender somente

como os eletrons de um atomo se comportam.

Page 220: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

204

Os estados eletronicos em um atomo sao descritos por orbitais quan-

ticos. No capıtulo anterior representamos uma partıcula com coorde-

nada x em um estado quantico a por ψa(x). O subındice ‘a’ representa

um estado generico; ele bem poderia ser o vetor de onda k de uma

partıcula livre com momento p = hk e energia E = h2k2/2m. Neste

caso, indexarıamos a funcao de onda com k: ψk(x). O subındice k rep-

resenta o estado quantico da partıcula neste caso. O modulo quadrado

|ψk(x)|2 representa a distribuicao de probabilidades (no espaco) para o

estado k. Numeros que representam estados quanticos de partıculas sao

chamados de numeros quanticos. Indexamos os orbitais de um eletron

em um atomo de modo semelhante. So que agora as energias nao sao

indexadas por k, mas por numeros inteiros n, chamados de numeros

quanticos principais. O caso mais simples e o de um atomo que so pos-

sui 1 unico eletron. Este poderia ser o caso do atomo da substancia

mais simples e mais abundante do Universo, o hidrogenio. O atomo de

hidrogenio consiste em um eletron orbitando em torno de um proton.

Mas, podemos tambem pensar em um atomo cujo nucleo possua uma

carga Ze com apenas um eletron orbitando a sua volta. Qualquer que

seja o caso, as energias possıveis dos eletrons no atomo serao dadas por:

En = − µZ2e4

2(4πε0)2h2n2

sendo µ uma quantidade chamada de massa reduzida, definida por:

µ =mM

m+M

onde m e a massa do eletron, e M a do nucleo. Usa-se esta quantidade

ao inves da massa do eletron pura e simples porque o nucleo tambem se

Page 221: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 205

move sob a acao da interacao coulombiana, e nao so o eletron. Contudo,

o movimento do nucleo e pequeno comparado ao do eletron, devido

a sua massa ser muito maior. Se, por exemplo, considerassemos o

nucleo muito mais pesado que o eletron, ou seja, M m, poderıamos

desprezar m no denominador, e a massa reduzida seria igual a massa

do eletron. Para o atomo de hidrogenio, com um unico proton no seu

nucleo, M ≈ 1836m, e a massa reduzida se torna:

µ ≈ 1836m2

1837m= 0, 9995m

ou seja, a massa reduzida do atomo de hidrogenio e cerca de 99,95% a

massa do eletron. Tudo se passa como se uma partıcula com a carga do

eletron, mas com uma massa ligeiramente menor do que a dele orbitasse

em torno de um nucleo parado1.

Os eletrons de um atomo se distribuem em orbitais quanticos. Cada orbital repre-senta uma distribuicao de probabilidades.

1Eventualmente o leitor tera notado a semelhanca entre a expressao da massareduzida e aquela da resistencia equivalente a dois resistores ligados em paralelo!

Page 222: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

206

Outro comentario a respeito da formula para En: o fator 4πε0 no

denominador daquela formula e proveniente da expressao da interacao

coulombiana (capıtulo 1): V = −Ze2/4πε0r.O numero n no denominador de En e chamado numero quantico

principal. Ele so pode adquirir valores naturais nao negativos: n =

1, 2, 3, .... A cada um desses valores corresponde uma energia En. Note

que quanto maior for o valor de n, menor sera o valor de En. Note

tambem o sinal negativo de En: ele representa o fato de que o eletron

esta preso ao nucleo. Quanto mais negativa for a energia, mais preso

estara o eletron. O estado de energia mais baixo e aquele correspon-

dente a n = 1. Quando o eletron ocupa este estado de energia, dizemos

que o atomo esta em seu estado fundamental. Um eletron no estado

fundamental estara mais fortememente ligado ao nucleo do que outro

com energia E10 (n = 10). Se n for muito grande, En tende a zero,

e o eletron se liberta do atomo. Os nıveis de energia mais baixos sao

bem separados uns dos outros; a medida que n aumenta eles vao se tor-

nando cada vez mais proximos um do outro, ate formar um contınuo

de energia. Como ilustracao vamos calcular a energia do estado fun-

damental do atomo de hidrogenio. Basta substituirmos os seguintes

valores numericos na formula de En:

n = 1

µ = 0, 99m = 0, 99 × 9, 11 × 10−31 = 9, 02 × 10−31 kg

e4 = (1, 60 × 10−19)4 = 6, 55 × 10−76 C4

Page 223: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 207

1

(4πε0)2=

1

(4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12)2= 8, 09 × 1019 N2m4

C2

1

h2 =1

(1, 05 × 10−34)2= 0, 91 × 1068 J−2s−2

Com isso obtemos:

E1 = −43, 50 × 10−19 J

Este valor e melhor expresso em unidades de eletronvolts. 1 eletronvolt

(1 eV) e definido como a energia que um eletron adquire ao atravessar

uma diferenca de potencial de 1 volt, e numericamente e igual a carga

do eletron:

1 eV = 1, 60 × 10−19 J

Logo, em unidades de eV, o valor de E1 sera:

E1 = −43, 50 × 10−19

1, 60 × 10−19= −13, 6 eV

Esta e a energia necessaria para ionizar um atomo de hidrogenio, ou

seja, remover completamente seu eletron.

E as funcoes de onda correspondentes aos valores de En? O leitor

“esperto” ja tera adivinhado que essas deverao ser indexadas pelos mes-

mos numeros quanticos: ψn. Contudo, faltam ainda algumas “coisi-

nhas” a serem ditas. O primeiro fato a ser notado e que agora temos

um problema em 3 dimensoes, e isso nao da para simplificar (atomos

unidimensionais feito uma linha, tambem ja e demais, nao e? Pois

Page 224: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

208

aguarde ate o fim do livro!). Logo ψn dependera de x, y e z, e nao

apenas de x. Acontece que, por razoes tecnicas, e mais vantajoso ex-

pressarmos ψn nao em termos de coordenadas retangulares x, y e z, mas

em termos de coordenadas esfericas r, θ e ϕ (se voce ainda nao sabe

o que e isto, reclame com o MEC e de uma olhada no painel X). As

relacoes entre x, y e z, e r, θ e ϕ sao:

x = rsenθcosϕ

y = rsenθsenϕ

z = rcosθ

r =√x2 + y2 + z2

Page 225: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 209

PAINEL X

COORDENADAS RETANGULARES vs. ESFERICAS

A posicao de qualquer objeto pontual no espaco (como um eletron em um

atomo) e completamente determinada por 3 numeros, ou coordenadas. De uma

maneira geral representamos estas coordenadas por x, y e z. O sistema de coorde-

nadas mais usual e aquele em que, a partir de uma origem, simplesmente fornecemos

as distancias ao longo dos tres eixos coordenados mutuamente perpendiculares. Por

exemplo, suponha que estejamos em um quarto cujas dimensoes sejam de 3 m ×3 m × 3 m. Podemos dizer que a posicao da lampada no centro do teto do nosso

quarto, tomando como origem um dos cantos do comodo e dada pelo vetor:

r =32i+

32j+ 3k

A distancia da lampada a origem do sistema de coordenadas e dada pelo modulo

de r:

|r| = r =√94+94+ 9 = 3, 67 m

Se tomassemos como origem o centro do quarto, justamente em baixo da lampada,

terıamos r = 0i+ 0j+ 3k, e a distancia da lampada ate a origem seria obviamente

igual a 3m.

Em muitos problemas esta representacao retangular das coordenadas e incove-

niente. Por exemplo, se quisessemos descrever as posicoes de uma formiga que anda

em cima de uma bola, o sistema retangular seria complicado pelo fato de que sobre

uma superfıcie esferica as coordenadas x, y e z nao sao mais independentes uma da

outra, mas estao relacionadas por:

R2 = x2 + y2 + z2

onde R e o raio da bola. Seria muito mais facil neste caso fornecermos os angulos

azimutal θ e meridional ϕ associados a posicao da formiga. O angulo θ varia de 0 a

π, e ϕ varia de 0 a 2π. Assim, suas coordenadas seriam dadas por R, θ e ϕ (sendo R

constante), ao inves de x, y e z. Estas coordenadas sao chamadas de esfericas. No

Page 226: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

210

caso em que ha variacao do raio da esfera teremos tambem que fornecer o valor de

r, alem dos angulos θ e ϕ. Podemos sempre transformar de coordenadas esfericas

para retangulares, e vice-versa, atraves das relacoes:

x = rsenθcosϕ

y = rsenθsenϕ

z = rcosθ

Page 227: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 211

Portanto, a funcao de onda do eletron sera representada por ψn(r, θ, ϕ);

ela descreve o eletron que se encontra no estado de energia En, e pos-

sui coordenadas r, θ e ϕ. O modulo quadrado |ψn(r, θ, φ)|2, repre-

senta, como antes, a distribuicao de probabilidades de encontrarmos

um eletron, com coordenadas r, θ e φ, no estado quantico n. Mas ainda

falta algo (nao se desespere! Nada de panico!). Para uma mesma ener-

gia, ou seja, para um valor fixo de n, o eletron pode “girar” de varias

maneiras diferentes em torno do nucleo, ou seja, pode ter diferentes mo-

mentos angulares. Para cada uma dessas maneiras havera uma funcao

de onda diferente. O que falta e especificarmos na funcao de onda o

estado de momento angular do eletron. Vimos no capıtulo anterior que

os estados de momento angular de uma partıcula sao especificados por

l e ml, e que para cada valor de l podemos ter 2l+ 1 valores de ml, que

sao dados por ml = −l,−l + 1, · · · , l− 1, l. Entao, para especificarmos

completamente o estado orbital do eletron no atomo temos que incluir

l e ml na funcao de onda, que se torna entao indexada por 3 numeros

quanticos (l e ml sao respectivamente chamados de numeros quanticos

orbital e azimutal). A funcao de onda fica portanto indexada por tres

numeros quanticos:

ψnlml(r, θ, ϕ)

Estas funcoes de onda sao chamadas de orbitais quanticos, ou orbitais

atomicos. E instrutivo neste ponto fazermos uma comparacao entre a

visao quantica e a visao classica do atomo. Em um atomo classico o

estado do eletron seria especificado por 3 componentes de posicao x(t),

y(t) e z(t), e 3 de momento: px(t), py(t) e pz(t). A energia correspon-

Page 228: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

212

dente seria dada por:

E =p2x + p2

y + p2z

2m− Ze2

4πε0r

Todas estas quantidades seriam obtidas a partir da segunda lei de New-

ton. Na mecanica quantica o estado e especificado nao pelas variaveis

dinamicas r e p, mas por numeros quanticos associados a funcoes de

onda. Dados os numeros n, l e ml sabemos descrever qual a regiao

do espaco onde um eletron pode ser encontrado (calculando |ψ|2), seu

momento angular, momento linear, energia, etc.

Note que a funcao de onda do estado depende de n, l e ml, mas

sua energia so depende de n. Isso quer dizer que para um dado valor

de energia havera, em geral, varios orbitais quanticos possıveis para

um eletron. Lembre que cada uma dessas funcoes representa uma dis-

tribuicao de probabilidades; elas descrevem a “regiao do espaco” onde

os eletrons em um dado estado especıfico podem ser encontrados. Al-

guns exemplos de funcoes de onda atomicas sao:

ψ100 = Ae−Zr/a0

ψ210 = Bre−Zr/2a0cosθ

ψ32±2 = Cr3e−Zr/3a0sen2θe±2iϕ

onde A, B e C sao constantes. As amplitudes de probabilidade cor-

respondentes a estes orbitais sao dadas por:

|ψ100|2 = A2e−2Zr/a0

|ψ210|2 = B2r2e−Zr/a0cos2θ

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CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 213

|ψ32±2|2 = C2r6e−2Zr/3a0sen4θ

Note que ψ32±2 depende da variavel φ, mas |ψ32±2|2 nao.

Leitor (aos prantos): “Mas que diabos! Ta pensando que eu to

maluco? De onde sairam essas funcoes esquisitas? Vou jogar essa

droga de livro fora!” Calma, calma. O calculo para a obtencao dessas

funcoes e muito complicado; elas estao simplesmente sendo apresen-

tadas ao leitor como exemplos. Tecnicamente falando, estas funcoes

sao solucoes da equacao de Schrodinger para um potencial coulom-

biano. So isso. Nao e minha culpa que elas parecam tao complicadas;

e culpa da Natureza, de Deus, sei la!

Seque as suas lagrimas e coloque a arma de volta na gaveta. Vamos

resumir a situacao: o atomo e composto por um nucleo que concentra

praticamente toda sua massa. Essa massa e a soma das massas dos

neutrons (partıculas sem cargas) e dos protons (partıculas com carga

positiva). Como o nucleo e positivamente carregado, ele exerce uma

forca coulombiana atrativa sobre os eletrons que orbitam a sua volta.

Como resultado dessa atracao entre o nucleo e os eletrons, surgem os

orbitais quanticos. Cada orbital e caracterizado por uma energia En,

e uma funcao de onda ψnlm(r, θ, ϕ). Os numeros quanticos n, l e m

especificam os estados de um eletron no atomo.

Existem relacoes entre os valores que os numeros quanticos podem

adquirir. Para cada valor de n existem n valores possıveis para l, que

variam de 0 a n − 1; e para cada valor de l, existem 2l + 1 valores

possıveis para ml. Por exemplo, se n = 2, teremos duas possibilidades

para l: l = 0 ou l = 1. Para l = 0, a unica possibilidade para ml

e ml = 0. Por outro lado, para l = 1 teremos tres possibilidades

Page 230: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

214

para o numero quantico azimutal: ml = −1, 0, 1. Entao, para n = 2

existem 4 funcoes de onda possıveis: ψ200, ψ21−1, ψ210, e ψ211. Cada uma

desses funcoes descreve uma distribuicao espacial de probabilidades.

Um eletron cuja funcao de onda seja ψ211 podera ser encontrado em

uma regiao do espaco diferente de outro com funcao ψ210. Mas, como

as funcoes representam o mesmo estado n, as energias dos dois eletrons

serao iguais. Quando um dado estado de energia tem a ele associado

mais de uma funcao de onda, dizemos que ele e degenerado. No exemplo

acima de n = 2, a degenerescencia do estado e igual a 4.

Ate este ponto da discussao nao mencionamos o spin dos eletrons.

Alem dos numeros quanticos n, l e ml, o eletron possui um numero

quantico que caracteriza seu spin, ms, que pode ser ±1/2. Esse numero

deve tambem ser incluıdo como subındice da funcao de onda, comple-

tando assim a especificacao do estado quantico:

ψnlmlms(r, θ, φ)

Devemos manter em mente, contudo, que o spin e uma variavel interna

das partıculas, independente dos valores de n, l,ml.

Quando falamos em spin, devemos falar de princıpio de exclusao

de Pauli. Vimos no capıtulo anterior que os estados orbitais de dois

eletrons so podem ser iguais se os spins forem opostos. Poderıamos

enunciar isso da seguinte maneira: “duas partıculas (fermions) nao po-

dem ter o mesmo conjunto de numeros quanticos”. Isso obviamente

inclui o spin. Entao, se o estado de um eletron no atomo for2 ψ211+,

ou seja, n = 2, l = 1, ml = 1 e ms = +1/2, a unica maneira de

2O subındice ‘+’ aqui representa o estado de spin ms = +1/2.

Page 231: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 215

outro eletron ocupar o mesmo estado orbital n, l e ml, e ele possuir

spin ms = −1/2. A funcao correspondente sera ψ211−. Ou seja, cada

conjunto n, l,ml pode acomodar no maximo dois eletrons.

Com excecao do hidrogenio, todos os atomos possuem mais de um

eletron. Dados N eletrons, como eles se distribuem no atomo? E facil:

comecamos a preencher os estados a partir daquele com energia mais

baixa (n = 1), e vamos aumentando as energias, sempre obedecendo o

princıpio de exclusao. Por exemplo, suponha que queiramos distribuir

5 eletrons. O estado n = 1 possui l = 0 e ml = 0, e pode acomodar dois,

dos cinco eletrons. Sobram tres. Passamos entao para o nıvel n = 2,

que possui l = 0, 1 e ml = 0 (relativo a l = 0) ou ml = −1, 0, 1 (relativo

a l = 1). Entao, no nıvel n = 2 temos um total de 4 possibilidades, e

portanto 8 vagas para os 3 eletrons restantes.

De uma maneira geral, para um valor qualquer de l, podemos ter ate

2× (2l+ 1) eletrons. E comum representarmos os estados de momento

angular l pelas letras s, p, d, f , etc., correspondendo respectivamente a

l = 0, 1, 2, 3, · · ·. Note que l = 3 pode acomodar ate 2× (2×3+1) = 14

eletrons. Por outro lado, e comum representarmos os valores de n

pelas letras maiusculas K, L, M , etc. Assim, representamos o es-

tado com n = 1 e l = 1 por 1s2, onde o sobrescrito ‘2’ representa o

numero maximo de eletrons que o orbital pode acomodar. Esta classi-

ficacao pode ser resumida no familiar esquema de ocupacao eletronica

nos atomos que aprendemos nos cursos elementares de quımica:

Page 232: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

216

n1 K s2

2 L s2 p6

3 M s2 p6 d10

4 N s2 p6 d10 f 14

5 O s2 p6 d10 f 14

6 P s2 p6 d10

7 Q s2

Agora ficou simples; dado um atomo com, por exemplo, 9 eletrons,

como esses se distribuem nos orbitais quanticos? Comecamos a preencher

os orbitais da energia mais baixa, ou seja, n = 1, obedecendo ao

princıpio de exclusao. Colocamos primeiramente dois eletrons no estado

1s (estes dois eletrons terao momento angular zero, e spins opostos).

Depois colocamos mais 2 no estado 2s, e 5 no estado 2p. A configuracao

do atomo sera entao 1s22s22p5. Note que ainda caberia 1 eletron no

nıvel 2p.

O estado fundamental de um atomo com muitos eletrons e obtido

distribuindo-se os eletrons nos nıveis de energia do mais baixo para o

mais alto, obedecendo ao princıpio de exclusao. Podemos retirar um

atomo de seu estado fundamental promovendo um eletron para um

nıvel de energia mais alto; dizemos neste caso que o atomo esta em um

estado excitado. Por exemplo, o atomo de hidrogenio em seu estado

fundamental possui a configuracao eletronica 1s1. Todos os estados

acima deste sao estados excitados. Se por algum meio fornecermos

energia para o eletron “pular” do estado 1s para o 2p, o atomo estara em

um estado excitado. A energia necessaria para se induzir uma transicao

igual a esta pode ser facilmente calculada. Ela e dada simplesmente pela

Page 233: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 217

diferenca E2 − E1:

E2 − E1 = − µe4

2(4πε0)2h2

(1

4− 1

)=

3µe4

2(8πε0)2h2

Acontece que a Natureza detesta deperdıcio de energia. Observa-se

que um eletron excitado nao permanece no estado de energia mais alta,

mas “decai” apos um certo intervalo de tempo. No exemplo acima, ele

volta para o estado com energia E1, e o atomo retorna ao seu estado

fundamental. A energia que o eletron possuıa no estado excitado e

liberada sob a forma de um foton cuja frequencia e dada por (vide

Capıtulo 3):

ω =E2 − E1

h=

3µe4

2(8πε0)2h3

Obviamente esta frequencia pode ser calculada para quaisquer pares

de estados. Vamos fazer uma estimativa numerica. Substituindo µ ≈9, 11× 10−31 kg (= massa do eletron), e = 1, 60× 10−19 C, ε0 = 8, 85×10−12 C/Nm2, h = 1, 05 × 10−34 Js obtemos:

ω =3 × 9, 11 × 10−31 × (1, 60 × 10−19)4

2(8 × 3, 14 × 8, 854 × 10−12)2 × (1, 05 × 10−34)3

ω ≈ 1, 5 × 1016 rad/s ⇒ f =ω

2π≈ 25 × 1014 Hz

Esta frequencia esta proxima daquela da luz visıvel.

4.3 A Materia do Universo em uma Tabela

A materia de que somos feitos (e o resto das coisas) comecou a ser criada

durante os primeiros 500 000 anos do Universo, apos o “Big Bang”, ou

Page 234: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

218

Grande Explosao, que teria ocorrido ha cerca de 15 bilhoes de anos

(pode ser que alguns dos atomos de seu cerebro tenham pertencido a

algum dinossauro que viveu ha milhoes de anos!). Esta e apenas uma

minuscula fracao de tempo se comparada a idade do Universo. Desta

“engenharia atomica” surgiram 92 elementos estaveis, sendo o mais

simples ( e mais abundante) o hidrogenio, e o mais complexo o uranio.

Mas qual a diferenca entre o hidrogenio e o uranio? Simplesmente o

numero de protons, neutrons e eletrons; o hidrogenio e formado por

um unico proton, circundado por um unico eletron. Ou seja, o nucleo

do hidrogenio nao possui neutrons. Seu numero atomico e Z = 1,

que e igual ao seu numero de massa. No estado fundamental do H, esse

eletron ocupa o estado de energia mais baixa, ou seja, n = 1, um orbital

s, com momento angular zero. A distribuicao eletronica do hidrogenio

e entao 1s1. O isotopo estavel mais abundante do uranio, por outro

lado, possui um nucleo com 92 protons e 146 neutrons, e portanto seu

numero de massa e A = 238. Seus eletrons se distribuem da seguinte

maneira: 1s22s22p63s23p64s23d104p65s24f 105p66s24f 145d106p67s25f 4.

Consideremos agora um segundo elemento, o lıtio (Li), que possui

3 protons e 4 neutrons no seu nucleo. Sua configuracao eletronica e

1s22s1. Portanto, o Li possui o orbital mais interno 1s completo, e 1

eletron solitario em um orbital externo 2s. O elemento seguinte em

complexidade e o sodio (Na), com Z = 11 e N = 23, com seus eletrons

distribuıdos de acordo com 1s22s22p63s1. Novamente aqui temos as

camadas internas 1s, 2s e 2p cheias, e 1 unico eletron na camada externa

3s. A mesma coisa ocorre com o potassio (K), o rubıdio (Rb), o cesio

(Cs) e o francio (Fr). Todos terminam com um unico eletron s no orbital

Page 235: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 219

mais externo. Este fato torna esses elementos muito parecidos do ponto

de vista quımico, pois sao os eletrons mais externos que formam ligacoes

quımicas. Este tipo de regularidade e encontrada tambem entre outros

elementos, e sugere um esquema classificatorio dos elementos.

Embora as primeiras tentativas de se alcancar tal classificacao dos

elementos de acordo com as suas semelhancas quımicas datem do seculo

XVIII, com os trabalhos de Lavoisier na Franca, foi um cientista russo

que viveu entre 1834 e 1907, chamado Dimitry Ivanovitch Mendeleiev,

quem descobriu que se os elementos fossem organizados de uma deter-

minada maneira em uma tabela, interessantes propriedades periodicas

seriam evidenciadas. A tabela que Mendeleiev organizou ficou con-

hecida como tabela periodica dos elementos. Um fato historico inter-

essante e que ao organizar sua tabela, Mendeleiev notou lacunas nas

posicoes correspondentes aos elementos de numero atomico Z = 21 e

Z = 32, que ainda nao eram conhecidos na epoca. A tabela periodica,

entao, estava de certa forma prevendo a existencia de tais elementos,

que de fato foram descobertos posteriormente. Estes foram o escandio

(Sc) e o germanio (Ge).

O grande triunfo da tabela de Mendeleiev foi nao somente sua ca-

pacidade de acomodar os elementos conhecidos na epoca em um es-

quema que ressaltava as suas semelhancas quımicas, mas tambem (e

principalmente!) de fazer previsoes sobre a existencia de elementos que

ainda nao eram conhecidos. Com isso, a tabela ultrapassou os limites de

um mero esquema classificatorio de substancias quımicas, para se tornar

um instrumento de pesquisa cientıfica! Cada vez que um novo elemento

era descoberto, a tabela tinha que ser revisada a fim de acomoda-lo.

Page 236: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

220

Particularmente interessante foi a descoberta do argonio (Ar) em 1894

por William Ramsay e John William Strutt (Lord Rayleigh). O argonio

e um dos gases nobres, assim chamados por serem pouco reativos quimi-

camente. Nos anos subsequentes foram descobertos o helio (He), o

neonio (Ne), o criptonio (Kr) e o xenonio (Xe). Como Mendeleiev nao

havia previsto a existencia desses elementos com a sua tabela, pensou-

se que eles nao fizessem parte do sistema periodico. Foram seis anos

de pesquisa e intensa discussao ate que os quımicos da epoca pudessem

finalmente encaixar os gases nobres na tabela periodica.

4.4 Esticando a Tabela Periodica

Em 1934, Enrico Fermi, trabalhando na Universidade de Roma, propos

que novos elementos poderiam ser criados bombardeando-se nucleos

atomicos com neutrons. Sob certas condicoes, neutrons podem ser cap-

turados por nucleos. Uma vez dentro do nucleo, o neutron capturado

decai emitindo um eletron e se transforma em um proton. Este pro-

cesso e chamado de decaimento beta. Ao se transformar em um proton,

o “ex-neutron” acaba por aumentar de 1 unidade o numero atomico do

atomo que o capturou, fazendo-o “pular” uma casa para a direita na

tabela periodica.

Utilizando a tecnica de captura de neutrons, seguida de decaimento

beta, Edwin McMillan e Phillip Abelson, trabalhando na Universidade

de Berkeley, produziram em 1940 o primeiro elemento transuranico, o

netunio (Np), de numero atomico Z = 93. Durante as decadas de 40

e 50 os elementos plutonio (Pu, Z = 94), amerıcio (Am, Z = 95),

Page 237: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 221

curio (Cm, Z = 96), berquelio (Bk, Z = 97), californio (Cf, Z = 98),

einstenio (Es, Z = 99) e fermio (Fm, Z = 100), foram produzidos

utilizando a mesma tecnica. Foi por esta epoca que o mitologico Niels

Bohr afirmou que o fermio seria o ultimo elemento da tabela periodica.

Errou feio.

Logo percebeu-se que acima de Z = 100, a tecnica de captura

de neutrons nao produziria novos elementos. Passou-se entao a uti-

lizar a tecnica de fusao, na qual dois nucleos colidem a altas energias,

e fundem-se formando um nucleo mais pesado. Esta tecnica utiliza

aceleradores de partıculas (capıtulo nove), que sao equipamentos alta-

mente sofisticados e caros. Em 1955 o grupo de Berkeley produziu o

mendelevio (Md, Z = 101), fundindo um atomo de helio (He, Z = 2)

com um de einstenio (Es, Z = 99). Entre 1958 e 1974 foram cri-

ados, com a mesma tecnica, o nobelio (No, Z = 102), o laurencio

(Lr, Z = 103), e os elementos com Z = 104 (candidato a se chamar

rutherfordio, Rf ), o de numero atomico Z = 105 (candidato a se

chamar dubnio, Db ) e o com Z = 106 (candidato a seaborgio, Sg).

Neste ponto descobriu-se que este seria o provavel limite para a tecnica

de fusao usual.

No inıcio dos anos 80 Peter Armbruster e Fritz Peter Hessberger,

trabalhando em Darmstadt, na Alemanha, desenvolveram uma nova

tecnica de fusao que eles chamaram de fusao fria. Esta tecnica nada

tem a ver com o suposto fenomeno de fusao fria alardeado ha uns anos

atras por dois quımicos americanos pouco cautelosos! Com a tecnica

inventada por eles, Armbruster e Hessberger conseguiram produzir os

elementos com Z = 107, Z = 108 e Z = 109 (que eventualmente virao a

Page 238: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

222

se chamar borio [Bh], hassinio [Hs] e meitnerio [Mt], respectivamente).

Para dar uma ideia da complexidade da tecnica, para produzir 1 unico

atomo de meitnerio, foram necessarias duas semanas ininterruptas de

experimento! Entre 1994 e 1996 os mesmos autores produziram novos

elementos (ainda sem propostas de nomes; vamos torcer para que nao

sejam chamados de ‘armsbrusteresio’, ‘herssbergerıcio’, ou coisas do

genero!) com Z = 110, 111, 112 e 113. No momento eles tentam pro-

duzir um novo elemento com Z = 114. Deve-se mencionar que todos

estes elementos sao extremamente instaveis, e decaem em bilionesimos

de segundo. Ha, contudo, razoes teoricas para se acreditar que alguns

deles sobreviveriam em uma “ilha de estabilidade”.

O leitor pode, com muita razao, estar se perguntando: para que

serve isso? Para que criar elementos que a Natureza eliminou ao longo

do caminho? A resposta para essa pergunta possui muitas facetas,

e de certa forma se aplica a toda ciencia basica, de um modo geral.

Primeiramente, novos elementos possuem novas propriedades fısicas e

quımicas. Pode ser que algumas dessas propriedades venham a se tornar

uteis para producao de novos materiais, substancias farmacologicas, etc.

Em segundo lugar, a complexidade envolvida na producao desses novos

elementos, forca o desenvolvimento tecnologico com a criacao de novos

aparelhos de medidas, producao de campos magneticos, programas de

computador, eletronica de detectores, etc. Mas para um fısico, a razao

fundamental para essas pesquisas tem um carater menos utilitario, e

mais profundo: ate onde podemos ir? Qual o nosso limite? Pense nisso!

Page 239: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 223

4.5 Ligacoes Quımicas

A partir dos 92 atomos estaveis da tabela periodica, a Natureza cons-

troi a imensa variedade de objetos que existem, vivos ou inanima-

dos. Os atomos de carbono no grafite de um lapis sao identicos aos

atomos de carbono nos neuronios do seu cerebro. Mas como a Na-

tureza faz esse truque? Resposta: ligando os atomos de maneiras dife-

rentes. Atomos se combinam para formar objetos maiores, chamados

de moleculas. Moleculas, por sua vez, se combinam para formar ob-

jetos macroscopicos. Por exemplo, quando dois atomos de hidrogenio

se combinam com um atomo de oxigenio, criam uma molecula muito

especial para nos seres vivos: a molecula de agua, representada simboli-

camente por H2O. A agua que bebemos (sem contar a inevitavel sujeira

misturada) e o resultado da ligacao de uma infinidade de moleculas de

H2O.

O que determina o tipo de ligacao quımica entre dois ou mais atomos

sao as suas configuracoes eletronicas; sao os eletrons mais externos dos

atomos que participam das ligacoes quımicas. Por exemplo, considere

o atomo de cloro (Cl), que possui 17 eletrons, distribuıdos em uma

configuracao que termina com os orbitais 3s23p5. Considere, por ou-

tro lado, o atomo de sodio (Na) com seus 11 eletrons distribuıdos de

modo que o utimo orbital e 3s1. Quando um atomo de sodio chega

perto de um de cloro, se torna energeticamente mais favoravel para o

conjunto se o eletron 3s do sodio “pular” para o orbital 3p do cloro. O

que queremos dizer com energeticamente mais favoravel e que ha uma

“economia” de energia no processo. Ou seja, a energia do sistema dos

Page 240: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

224

dois atomos juntos sera menor do que se eles estiverem separados, se

o eletron pular do Na para o Cl. O cloro entao ficara com uma carga

negativa (ou seja, se transformara no anion Cl−), e o sodio ficara po-

sitivo (se transformara no cation Na+). Como cargas de sinais opostos

se atraem, o Cl− “grudara” no Na+ e formara a molecula ionica NaCl,

conhecida popularmente como sal de cozinha. Este tipo de ligacao

e chamada de ligacao ionica, por razoes obvias. Outros exemplos de

substancias formadas atraves da ligacao ionica sao o CsCl, o CsBr, e o

RbBr.

Mas a ligacao ionica nao e o unico tipo de ligacao quımica entre

atomos. Quando, por exemplo, aproximamos atomos de sodio entre

si, algo curioso acontece. Os eletrons dos orbitais 3s de cada atomo

de desprendem de seus atomos originais e comecam a “passear” en-

tre os ıons de sodio (Na+). Em uma linguagem mais precisa, dizemos

que isso ocorre porque as funcoes de onda dos eletrons destes orbitais

(que poderıamos representar por ψ300) se superpoem, permitindo que o

eletron de um dado atomo passe para o outro, e do outro para o outro,

etc. Este tipo de ligacao quımica e chamada de ligacao metalica. Nesta

ligacao os eletrons mais externos dos atomos ficam livres para se deslo-

car dentro do material. E como se todos os eletrons pertencessem a to-

dos os atomos, formando uma especie de “geleia negativa”, responsavel

pela coesao do metal. Isto e o que ocorre com o metal da moeda no seu

bolso, ou na tampa da sua marmita! Que chique, hein! Imagine voce

dizendo pros colegas que as funcoes de onda dos eletrons da tampa da

sua marmita se superpoem, e e por isso que a tampa e daquele jeito! A

gororoba fica ate mais gostosa!

Page 241: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 225

Outro tipo de ligacao quımica tanto importante quanto esquisita e

a ligacao por pontes de hidrogenio. Este tipo de ligacao esta associ-

ada a algumas caracterısticas proprias do hidrogenio. Como vimos, o

atomo de hidrogenio possui somente um proton no seu nucleo, com

um eletron girando em volta. Nao e facil arrancar esse eletron do

hidrogenio, mas quando um H chega perto de um atomo que possui

“apetite” para eletrons3, o seu eletron e fortemente atraıdo fazendo

com que o hidrogenio “cole” na superfıcie do outro atomo. Um terceiro

atomo pode entao ser atraıdo por este hidrogenio “careca”. Neste tipo

de ligacao os dois atomos grandes quase se tocam; devido ao pequeno

tamanho do proton em comparacao aos outros atomos, torna-se im-

possıvel para um quarto atomo se juntar ao grupo. Entao, nas pontes de

hidrogenio o proton e sempre “sanduichado” por dois atomos grandes.

O melhor exemplo de substancia formada por pontes de hidrogenio e a

agua, principalmente na sua fase solida (gelo). No gelo, cada atomo de

oxigenio e cercado por outros quatro, formando um tetraedro; a ligacao

entre esses tetraedros se da por pontes de hidrogenio.

Existe um tipo de ligacao quımica que sob certos aspectos se parece

com a ligacao metalica: a ligacao covalente. Assim como na metalica,

a ligacao covalente ocorre devido ao compartilhamento de eletrons por

atomos proximos, ou, tecnicamente falando, devido a superposicao de

funcoes de onda de atomos vizinhos. A diferenca e essencialmente no

carater das funcoes que se superpoem. No caso metalico, a super-

posicao e muito maior, cobrindo varias posicoes atomicas, enquanto

que na covalente esta superposicao e menor, envolvendo apenas atomos

3Os quımicos chamam esta propriedade de ‘eletronegatividade’.

Page 242: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

226

vizinhos proximos. Enquanto que a metalica em geral envolve eletrons

em orbitais s (ou seja, com momento angular zero), a covalente envolve

eletrons do tipo p (l = 1) e do tipo d (l = 2). Quanto maior o momento

angular do eletron (ou seja, quanto maior for o valor de l), menor sera o

raio da funcao de onda correspondente, portanto diminuindo as chances

de superposicao para a formacao de ligacoes quımicas. Por exemplo,

funcoes de onda do tipo f (l = 3) nao se superpoem, e consequente-

mente os eletrons que ocupam esses orbitais permanecem praticamente

inalterados, quando os atomos se juntam para formar uma molecula

em uma substancia. Exemplos de substancias que apresentam ligacao

covalente sao o silıcio (Si) o germanio (Ge) e o carbono (C) sob a forma

de diamante.

Page 243: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 227

.

Em um metal simples como o sodio, os eletrons se distribuem uniformemente entreos atomos.

A principal caracterıstica da ligacao covalente e seu aspecto “direcional”. Oseletrons concentram-se em certas regioes entre os atomos.

Page 244: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

228

4.6 ADN: uma Molecula muito Especial

Do ponto de vista da fısica teorica, e desejavel que todos os fenomenos

da Natureza sejam descritos atraves das mesmas leis, se possıvel em

numero mınimo. No entanto, existe uma abismal e obvia diferenca

entre os fenomenos que ocorrem em “objetos inanimados”, como gases,

lıquidos, solidos, atomos, etc., e fenomenos que ocorrem com “objetos

vivos”, como plantas, animais e pessoas. Os primeiros sao objetos de

estudo da fısica, e os segundos sao tradicionalmente estudados pela

biologia. A fısica atual possui metodos capazes de explicar todas as

propriedades de um cristal de diamante ou de um pedaco de cobre, mas

nao tem a menor ideia de como funciona uma ameba! Como definir o

que esta vivo e o que nao esta a partir de equacoes matematicas que

descrevem movimento?

Em princıpio, o fato de que uma ameba (ou qualquer outro sis-

tema vivo) nao possa no momento ser descrita atraves das equacoes da

fısica, nao quer dizer - repito, em princıpio - que ela nao seja gover-

nada pelas leis da fısica. Pode ser que as dificuldades sejam meramente

tecnicas, tais como a ausencia de computadores suficientemente rapidos

ou de metodos matematicos suficientemente poderosos. Descrever uma

ameba do ponto de vista da fısica teorica significaria resolver um con-

junto inimaginavel de equacoes interdependentes, que descrevessem o

movimento de cada atomo constituinte da ameba. As solucoes de tal

sistema colossal de equacoes, em tese, descreveria o comportamento

do animal. Isto pode ser tecnicamente impossıvel de ser realizado - e

talvez, de fato, nunca venhamos a realizar completamente - mas em

Page 245: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 229

princıpio poderia ser feito. Esta ideia de que todos os fenomenos da

Natureza podem em ultima instancia ser descritos pelas leis da fısica e

chamada de reducionismo.

Mais recentemente comecou-se a explorar a ideia de que certas pro-

priedades de conjuntos muito grandes de moleculas (como e o caso da

ameba, um animal unicelular) nao podem ser compreendidas a par-

tir das propriedades dos seus constituintes individuais isolados; sao

propriedades do todo. Segundo essa visao, sistemas complexos con-

tendo um numero muito grande de partes interagentes adquirem certos

“padroes de funcionamento” que nao podem ser explicados a partir do

comportamento das partes isoladamente. Assim, nao adiantaria, por

exemplo, esmiucarmos uma molecula fora de um organismo porque isto

nada nos informaria a respeito do funcionamento do organismo como

um todo. Para fazer uma analogia, seria mais ou menos como uma pin-

tura em um quadro, que nao e apenas um conjunto de cores misturadas,

tanto quanto uma peca musical nao e apenas uma sequencia de notas e

acordes. Inspirados por abordagens deste tipo, alguns cientistas defen-

dem a ideia de que talvez nao seja possıvel reduzir o comportamento de

um ser vivo ao mero movimento individual dos atomos e moleculas que

o compoe, e levantam a interessante questao se a biologia nao deveria

ter leis proprias, independentes das leis da fısica!

Este tipo de interconexao entre as partes de um sistema complexo

que gera padroes globais de funcionamento e observada em ecossis-

temas, sistemas economicos, fenomenos atmosfericos, etc., e tem re-

centemente chamado a atencao de muitos cientistas, estimulando dis-

cussoes tecnicas e filosoficas que resultaram no que ficou conhecido

Page 246: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

230

como Complexidade4. Embora esta seja uma area que tem gerado bons

frutos, vale lembrar que o tradicional metodo analıtico empregado pela

fısica, que esmiuca e isola sistemas, e ate agora o que tem gerado resul-

tados praticos, gerado tecnologia, alem de oferecer uma compreensao

objetiva da Natureza. Nada impede que a visao que hoje se tem sobre

esta abordagem dos fenomenos naturais venha a mudar. Mas, quais-

quer que sejam os metodos de investigacao cientıfica do futuro, eles

necessariamente se basearao sobre os atuais.

Cadeias de moleculas sao sistemas fısicos infinitamente mais simples

do que um ser vivo, como uma ameba. Ainda assim, podem apresentar

um grau de complexidade que torna sua descricao teorica muito difıcil,

senao impossıvel. Dentre estas cadeias, esta o ADN, uma molecula

muito especial.

Somente seis elementos basicos formam as moleculas de organis-

mos vivos: carbono (C), hidrogenio (H), oxigenio (O), nitrogenio (N),

fosforo (P) e enxofre (S). Estes elementos constituem moleculas muito

pequenas, como o dioxido de carbono (CO2), a agua (H2O) e o oxigenio

(O2), que por sua vez sao a base de outros quatro tipos de moleculas im-

portantes para a vida: carbohidratos, proteınas, lipıdios e acidos nucle-

icos. Cada uma destas ultimas possui um papel diferente no organismo.

Carbohidratos sao uma especie de “gasolina” do organismo; fornecem

4A chamada “Complexidade” surgiu como uma area interdisciplinar que logoatraiu fısicos, biologos, quımicos, matematicos, etc. Apesar do grande entusiasmoinicial em torno deste novo ramo da ciencia, parece haver no momento um certoceticismo em torno deste tipo de abordagem, pelo menos no que diz respeito a sis-temas biologicos. A razao reside justamente na dificuldade em se modelar sistemasbiologicos matematicamente sem introduzir simplificacoes que os tornem meras cu-riosidades numericas, distantes da realidade.

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CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 231

energia, e tambem formam tecidos. Proteınas formam tecidos e desem-

penham um papel importante no metabolismo celular. Elas sao feitas

de cadeias contendo 300 a 400 aminoacidos, moleculas formadas a partir

de atomos de hidrogenio e nitrogenio. Existem milhares de tipos dife-

rentes de proteınas, cada uma delas com um papel especıfico. Acidos

nucleicos possuem a informacao crucial para a operacao da celula. E-

xistem dois tipos: o chamado acido desoxiribonucleico, ou ADN, e o

acido ribonucleico (ARN). Ambos sao formados por imensas cadeias

de moleculas menores chamadas nucleotıdeos, sendo que o ARN possui

dezenas de milhares de moleculas, enquanto que o ADN possui milhoes

delas.

E precisamente o ADN que faz a diferenca entre o que esta vivo e o

que nao esta. E nele onde a Natureza escreveu o manual de instrucoes

de, por exemplo, “como fazer uma ameba”. A sua estrutura pode ser

comparada (abusando da simplicidade) a estrutura de uma frase. Se

eu escrevo uma sequencia de letras como esta:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

e pergunto a voce qual seu significado, voce diz: “ora bolas, uma

sequencia de letras ‘A’ ”. Mas, se eu escrevesse a sequencia:

O MENGAO E O MELHOR DO BRASIL.

voce responderia: “esta e uma frase da lingua portuguesa escrita por

um doido mal informado”. A diferenca entre as duas sequencias esta na

variedade de letras utilizadas, e na maneira como elas sao organizadas.

Com as mesmas letras poderıamos ainda ter escrito a estranha frase:

Page 248: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

232

O LADRAO E O MEMBRO LEGHONIS.

(eventualmente “Leghonis” sera o nome ou sobrenome de alguem! Se

eu for azarado a tal ponto, registro aqui os meus pedidos de desculpa).

Embora a terceira frase seja mais esdruxula do que a segunda, ela trans-

mite uma ideia clara - a de que algum infeliz com o nome “Leghonis”,

faz parte de alguma associacao ou comite, e roubou alguma coisa -,

totalmente diferente daquela contida na segunda.

A variedade de letras na segunda ou terceira sequencias permite a

codificacao de mais informacoes do que no caso da primeira (que de fato

nao permite codificacao alguma!). Com o ADN ocorre algo semelhante.

A molecula e formada por duas cadeias que se entrelacam formando

uma helice. Os dois lados da cadeia sao ligados entre si atraves de

quatro tipos de moleculas que os biologos representam pelas letras: A,

G, C e T. Por razoes de afinidade quımica, moleculas do tipo ‘A’ so se

ligam com as do tipo ‘T’, e as do tipo ‘C’ com as do tipo ‘G’. Todo

o truque do ADN esta na sequencia com que essas ligacoes (ou letras)

aparecem ao longo da cadeia. Durante a divisao da celula, a sequencia

e duplicada, e as caracterısticas daquele organismo sao transmitidas

para outro. Se durante a duplicacao uma “letra” sai fora do lugar, a

nova celula sai ligeiramente diferente.

Nos seres humanos o ADN se encontra distribuıdo entre os 46 cro-

mossomos que existem dentro do nucleo de cada celula (existem cerca

de 5 trilhoes de celulas em uma pessoa adulta). Na medida em que

cada um de nos se desenvolve a partir de uma unica celula (zigoto),

cada uma das 5 trilhoes de celulas que formam o nosso corpo possui

exatamente a mesma informacao genetica. Um dos misterios atuais

Page 249: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 233

da biologia molecular e exatamente a respeito da diferenciacao celular

ao longo do desenvolvimento. Como, em um dado momento, celulas

identicas comecam a dar origem a tecidos diferentes no organismo?

Para dar uma ideia de quao compactadas as moleculas de ADN

estao dentro do nucleo, se pudessemos esticar e enfileirar todas elas,

retirando-as de uma unica celula, o comprimento total seria de quase

dois metros! Isso quer dizer que cada ser humano possui cerca de 10

bilhoes de quilometros de ADN, o que daria para cobrir a distancia

entre a Terra e o Sol quase 100 vezes! E realmente notavel como tal

estrutura consegue se organizar com uma forma geometrica tao simples

quanto a de uma helice, e ainda participar de uma serie de reacoes

quımicas durante a divisao celular cujo resultado final sera uma replica

perfeita de si mesmo.

O ADN e um sistema fısico imensamente complexo, cuja historia

tem a ver com um famoso fısico que ja conhecemos: Erwin Schrodinger.

No ano de 1943 Schrodinger proferiu uma serie de palestras na univer-

sidade de Dublin na Irlanda, onde ocupava a catedra de fısica teorica.

O tıtulo daquelas palestras era algo audacioso mesmo para um fısico

do porte de Schrodinger: O que e vida? Ele estava fundamentalmente

interessado no modo pelo qual caracterısticas hereditarias eram trans-

mitidas de geracao para geracao. Schrodinger sugeriu que estas in-

formacoes estariam contidas em cristais aperiodicos, que de alguma

forma as armazenavam em sua estrutura. As palestras foram publi-

cadas em 1944 sob a forma de um pequeno livro chamado What is

Life? pela Cambridge University Press, que logo se tornou uma das

obras mais lidas e influentes da historia da ciencia. No prefacio do livro

Page 250: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

234

Schrodinger se justifica:

Espera-se que um cientista conheca completa e perfeita-

mente um dado assunto, e portanto normalmente nao es-

creva sobre algo que nao domine. Isto e considerado um

‘compromisso nobre’. Para o presente proposito, eu renun-

cio a ‘nobreza’, se e que existe alguma, e me liberto deste

compromisso.

Em 1953 Francis Crick e James Watson desvendaram o segredo

dos cristais aperiodicos propostos por Schrodinger: eram o que hoje

chamamos ADN. Portanto, as ideias de Schrodinger sobre hereditariedade

acabaram se tornando o centro da biologia molecular moderna, emb-

ora ate hoje nao se tenha uma resposta satisfatoria para a principal

pergunta enderecada nas suas palestras.

4.7 Magnetismo do Atomo

Deixemos de lado a biologia e voltemos a fısica. Por que certos mate-

riais sao magneticos e outros nao? O ıma gruda na geladeira, mas a

moeda nao. Qual a diferenca entre os materiais que formam o ıma e

a moeda? Nao e tudo feito de atomos? E preciso distinguir a origem

do magnetismo nos atomos da origem do magnetismo nos materiais

macroscopicos, embora obviamente os dois fenomenos estejam estreita-

mente relacionados.

O magnetismo nos atomos surge dos eletrons nos orbitais quanticos.

Quando falamos em spin no capıtulo anterior, introduzimos a ideia

Page 251: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 235

de momento magnetico. Relembrando, o momento magnetico e uma

grandeza proporcional ao momento angular, seja ele extrınseco (L) ou

intrınseco (S). O atomo sera magnetico se possuir momento magnetico

total diferente de zero, e portanto momento angular total diferente

de zero. Considere, por exemplo, o atomo de hidrogenio. No seu es-

tado fundamental, o seu unico eletron ocupa um orbital s. Portanto,

l = 0 e S = 1/2 para este atomo. Consequentemente, o atomo de

hidrogenio nao tera um momento magnetico orbital, mas tera um mo-

mento magnetico de spin. Logo, o atomo de hidrogenio e magnetico.

Isso vale para o estado fundamental; se o eletron fosse promovido

para um orbital p, por exemplo, o atomo adquiriria um momento

magnetico orbital que se somaria ao de spin. Considere agora o atomo

de magnesio (Mg). A sua ultima camada tem a configuracao 3s2 e,

portanto, esta completa. Ambos os eletrons terao l = 0, e novamente

o momento magnetico orbital neste atomo e nulo. Mas agora, alem

disto, o princıpio de exclusao obriga os dois eletrons a possuirem spins

opostos, um deles no estado +1/2 e o outro no estado −1/2. Con-

sequentemente o spin total (igual a soma dos spins individuais) sera

zero, anulando o momento magnetico de spin. Entao, o atomo de

magnesio no seu estado fundamental nao possui momento magnetico,

de spin ou orbital, e portanto e nao magnetico. Considere agora um

exemplo curioso: o atomo de ferro (Fe). Ele possui uma configuracao

eletronica externa igual a 3d64s2. Ou seja, a sua camada eletronica

mais externa (s) esta completa e portanto nao contribui para o mo-

mento magnetico do atomo, mas a camada mais interna (d), que pode

acomodar ate 10 eletrons, so possui 6, e portanto esta incompleta. Esta

Page 252: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

236

camada contribui tanto para o momento magnetico de spin quanto para

o orbital. Como os eletrons se distribuem nos estados dentro desta ca-

mada? Primeiramente notamos que como l = 2 para um orbital d,

podemos ter ml = −2,−1, 0, 1, 2. Temos entao 6 eletrons para serem

distribuıdos em 5 estados orbitais, que podem acomodar no maximo 10

eletrons. Para sabermos o momento angular e de spin totais neste caso,

distribuimos os eletrons nesses estados ml obedecendo ao princıpio de

exclusao, e a duas importantes regras chamadas de regras de Hund:

Primeira regra de Hund: Distribua os eletrons nos

estados ml de modo a maximizar o spin total (ou seja, na

medida do possıvel tente manter todos os spins apontando

para a mesma direcao).

Segunda regra de Hund: Mantendo a primeira regra

mandatoria, distribua os eletrons nos estados ml de modo

a maximizar o momento angular total (ou seja, mantenha

a soma dos valores de ml a maior possıvel).

Aplicando as regras no caso do Fe, comecamos colocando 1 eletron com

spin S = +1/2 no estado ml = 2. Para maximizar o spin total (primeira

regra) o segundo eletron nao pode entrar no mesmo orbital, pois nesse

caso ele teria que ter S = −1/2. Colocamo-lo entao no segundo orbital

ml = 1, tambem com spin S = +1/2. Assim por diante ate chegarmos

em ml = −2. Entao, a distribuicao dos 5 primeiros eletrons sera:

ml −2 −1 0 1 2S +1/2 +1/2 +1/2 +1/2 +1/2

Page 253: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 237

Se so tivessemos 5 eletrons, a tarefa estaria terminada. O momento

angular total, L, seria a soma dos valores de ml, ou seja −2 − 1 + 0 +

1+2 = 0, e o spin total seria a soma dos spins: S = +1/2+1/2+1/2+

1/2 + 1/2 = 5/2. Este e de fato o caso do atomo de manganes (Mn),

que e vizinho do Fe, e possui uma configuracao eletronica externa igual

a 3d54s2. Mas, o Fe tem 1 eletron a mais. De acordo com a segunda

regra de Hund, este eletron deve entrar em ml = 2. Porem, por causa

do princıpio de exclusao ele tera spin igual a −1/2. Ficamos entao com

a seguinte distribuicao:

ml −2 −1 0 1 2S +1/2 +1/2 +1/2 +1/2 +1/2

−1/2

Consequentemente o momento angular total sera L = −2− 1 + 0 + 1 +

2 + 2 = 2 e o momento de spin total sera S = +1/2 + 1/2 + 1/2 + 1/2 +

1/2 − 1/2 = 2.

Em um atomo os spins dos eletrons se acoplam para produzir o spin do atomo.

Page 254: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

238

Com essas duas regras podemos obter os valores de L e S para

qualquer numero de eletrons em uma camada eletronica de um atomo

isolado. Mas, como momentos angulares se somam vetorialmente, se

um atomo possui momento de spin, S, e momento orbital, L, ambos

diferentes de zero, podemos definir uma nova grandeza, o seu momento

angular total, denotado por J:

J = L + S

Esta quantidade e muito util para o estudo do magnetismo nos materiais

(capıtulo seis).

A partir do calculo de L e S atraves das duas regras de Hund acima,

como obtermos o valor da magnitude do momento angular total J? O

maior valor possıvel sera aquele para o qual S e L estao paralelos. Neste

caso, J = L + S. Ao contrario, o menor valor possıvel correspondera

a S e L antiparalelos, e neste caso J = |L− S| (o modulo e necessario

porque J e sempre positivo). Mas, dada uma configuracao eletronica,

como sabermos qual entre essas duas possibilidades sera o valor de J?

Para isso aplicamos a terceira regra de Hund:

Terceira regra de Hund: Se o numero de eletrons

na camada for maior do que a metade do numero total de

estados, o valor de J sera igual a L + S; caso contrario, o

valor sera J = |L− S|.

Aplicando ao caso do Fe, como o numero de eletrons na camada d e

igual a 6, e a camada comporta no maximo 10, ela esta mais da metade

cheia, e teremos J = L+S = 2+2 = 4. No caso do atomo de Mn, como

Page 255: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 239

L = 0, teremos J = S = 5/2. Este sera o caso de qualquer camada com

um numero de eletrons exatamente igual a metade de sua capacidade

total.

Agora, como o magnetismo dos atomos se relaciona com o mag-

netismo na materia macroscopica, como por exemplo, em um ıma?

Uma das condicoes para que um material seja magnetico (como um

ıma) e que haja momento magnetico nos atomos. Mas essa condicao

nao e suficiente. Em um ıma permanente os momentos magneticos

atomicos dentro do material apontam na mesma direcao, dando origem

a uma grandeza macroscopica que chamamos de magnetizacao, M. A

magnetizacao de um material e definida como o numero de momen-

tos magneticos por unidade de volume do material. Simbolicamente

escrevemos:

M =1

V

∑i

mi

onde mi e o momento magnetico do i-esimo atomo, e V o volume do

material. Note que enquanto o momento magnetico e uma grandeza

microscopica, ou seja, diz respeito ao atomo, a magnetizacao e uma

grandeza macroscopica, ou seja, diz respeito ao material. No capıtulo

seis veremos o que faz os momentos magneticos dos atomos em um

material magnetico como um ıma apontarem para a mesma direcao.

4.8 Forca Nuclear

Podemos dizer que o que mantem um atomo coeso, isto e, os eletrons

presos aos nucleos, e a forca coulombiana exercida pelo nucleo sobre

Page 256: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

240

os eletrons. Mas, o que mantem o nucleo em si coeso? Nucleos sao

formados de protons e neutrons, cada proton carregando uma carga

igual a +e. E claro que sendo os protons partıculas com cargas de

mesmo sinal, havera dentro do nucleo uma forca coulombiana repulsiva

entre eles. Vamos estimar a magnitude desta forca para dois protons

separados por uma distancia de r ≈ 10−14 m, a ordem de grandeza para

o diametro de um nucleo:

F =(1, 60 × 10−19)2

4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × (10−14)2≈ 2 N

Vamos comparar com a forca entre um proton e um eletron separados

por uma distancia de 10−10 m, a ordem de grandeza para distancias

atomicas:

F = − (1, 60 × 10−19)2

4 × 3, 14 × 8, 85 × 10−12 × (10−10)2≈ 2 × 10−8 N

Ou seja, a forca repulsiva entre protons no nucleo e imensamente maior

(cerca de 100 milhoes de vezes) do que a forca atrativa entre o nucleo

e os eletrons do atomo. Diante desta forca repulsiva enorme, porque os

nucleos simplesmente nao “explodem”? Resposta: por causa da forca

nuclear.

A forca nuclear esta associada a chamada interacao forte, uma das

quatro interacoes fundamentais da Natureza (capıtulo nove). As outras

tres sao: a gravitacional, a eletromagnetica e a interacao fraca. A forca

nuclear possui algumas caracterısticas muito peculiares:

(i) A distancias pequenas a forca nuclear e muito maior que a

coulombiana, mas cai muito rapidamente com o aumento da distancia.

Ela atua praticamente somente na regiao do nucleo (10−15 − 10−14 m);

Page 257: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 241

(ii) A forca nuclear e independente da carga da partıcula. Entao,

enquanto a forca coulombiana repulsiva dentro do nucleo so atua entre

os protons, a forca nuclear ocorre tanto entre protons, quanto entre

neutrons ou entre protons e neutrons;

(iii) A forca nuclear entre duas partıculas no nucleo depende do spin

das partıculas;

(iv) Eletrons sao imunes a forca nuclear, ou seja, os eletrons do

atomo nao sentem a presenca desta forca.

Vamos resumir a situacao ate aqui: o atomo e formado por um

nucleo positivo e eletrons negativos que orbitam a sua volta. O que

mantem os eletrons em suas orbitas e a interacao coulombiana entre

eles e o nucleo. Esta interacao e de natureza eletromagnetica, e de

longo alcance. As partıculas do nucleo sao protons e neutrons, e sao

mantidas unidas pela acao da forca nuclear, uma interacao de curto

alcance e muito mais intensa do que a interacao coulombiana.

Podemos ate certo ponto descrever o comportamento de protons

e neutrons dentro do nucleo, da mesma forma que foi feito para os

eletrons no atomo. A forca nuclear esta associado um potencial nuclear

V que da origem a orbitais quanticos nucleares (equivalentes aos or-

bitais quanticos eletronicos do atomo), que sao ocupados pelos protons

e neutrons, obedecendo ao princıpio de exclusao. Isso da origem a

uma estrutura de camadas semelhante aquela dos eletrons atomicos

(protons e neutrons possuem spin 1/2 e portanto sao fermions). Em

particular, os spins e momentos angulares dessas partıculas do nucleo

se combinam para dar origem a um momento angular nuclear total, e

consequentemente a um momento magnetico nuclear. Como veremos

Page 258: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

242

no capıtulo seis, e a existencia de momento magnetico nos nucleos o que

possibilita a observacao da ressonancia magnetica nuclear, importante

fenomeno, base da tomografia por ressonancia magnetica nuclear.

4.9 O Indivisıvel pode ser Dividido!

A palavra “atomo” significa indivisıvel. Isto quer dizer que nao pode-

mos dividir um atomo? Nao. Um atomo pode ser dividido, e se transfor-

mar em outro. Cada elemento e classificado de acordo com seu numero

atomico, ou seja, seu numero de protons. Assim, o uranio (U), por

exemplo, e aquele elemento que possui Z = 92. Acontece que para um

mesmo numero atomico, uma dada especie atomica pode ter numeros de

massa diferentes (ou seja, Z se mantem, mas N varia). Chamamos de

isotopos atomos que possuem o mesmo numero atomico, mas numeros

de massa diferentes. No caso do uranio existem varios isotopos difer-

entes. Um deles e o isotopo com A = 238, que dissemos ser o atomo

estavel mais pesado da tabela periodica. E comum representarmos um

isotopo com o seu sımbolo quımico e seu numero de massa sobrescrito.

Por exemplo, o isotopo 238 do uranio e representado por:

238U

Outros isotopos do uranio sao:

232U 233U 234U 235U 236U 237U 239U

Todos eles possuem Z = 92, mas o numero de neutrons aumenta de 1

em 1 de N = 140 ate N = 147.

Page 259: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 243

Acontece uma coisa curiosa com alguns isotopos: nem todos “vivem”

para sempre. Alguns espontaneamente se transformam em outros atomos

(capıtulo sete), sofrendo uma transmutacao. Diz-se dos atomos que

apresentam esta propriedade que sao “instaveis”5. O processo pode

levar milhoes de anos para alguns, e fracoes de segundos para outros.

Chamamos de meia-vida o tempo caracterıstico para um atomo instavel

sofrer uma transmutacao ou decaimento. Por exemplo, o 233U possui

uma meia-vida de 0,16 milhao de anos, enquanto a do 237U e de apenas

6,75 dias. Ja o 239U tem uma meia-vida de 23,5 minutos.

Existem basicamente tres tipos de decaimento nuclear: por emissao

alfa, por emissao beta e por emissao gama. Partıculas alfa, como ja

mencionamos, sao nucleos de atomos de helio, ou atomos de helio du-

plamente ionizados. Possuem dois protons e dois neutrons (Z = 2,

N = 2, A = 4). Portanto, quando um nucleo emite uma partıcula alfa,

sua carga (e portanto seu numero atomico) decresce de 2 unidades,

enquanto sua massa decresce de 4 unidades. Um exemplo tıpico de

emissor alfa e o 232U, que tem meia- vida de 72 anos. Ao emitir uma

partıcula alfa, sua massa passa de 232 para 228 e seu numero atomico

de 92 para 90, se transformando no torio (228Th). No capıtulo sete

falaremos mais sobre este e os outros tipos de decaimento.

Os isotopos que “vivem para sempre” sao chamados de isotopos

estaveis. No caso do uranio existem dois isotopos estaveis, o 235U e o

238U, mas eles nao existem na mesma proporcao na Natureza; o primeiro

representa apenas 0,72% do total, e o segundo 99,275%. Chamamos de

5Esta instabilidade e uma propriedade do nucleo, como veremos com mais de-talhes no capıtulo sete.

Page 260: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

244

abundancia isotopica estes percentuais. O isotopo 235U e muito espe-

cial, e sera explorado posteriormente no capıtulo sete, quando falarmos

de energia nuclear. Ele possui a capacidade de capturar neutrons e se

dividir, em um processo chamado de fissao nuclear. Cada vez que se

divide, libera energia, e mais neutrons, que podem ser capturados no-

vamente por outros isotopos do mesmo tipo, levando por sua vez a mais

energia e mais neutrons. Este fenomeno e a base para o funcionamento

de uma bomba nuclear (ou bomba atomica) ou de um reator nuclear.

Mais sobre isso no capıtulo sete.

Nucleos instaveis emitem partıculas de diversos tipos. O fenomeno e chamadode radioatividade, porque foi primeiro observado no elemento quımico radio. Suaexistencia prova que o atomo nao e indivisıvel, como a palavra sugere.

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. Caos no Mundo Atomico e Subatomico, H. Moyses Nussenzveig, vol. 14, no.

Page 261: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 4 - COMO CONSTRUIR UM ATOMO 245

80, p 6.

2. Os Segredos do Atomo, Vanderlei Salvador Bagnato, vol. 10, no. 60, p 10.

3. Atomos a Vista, George G. Kleiman, vol. 5, no. 28, p. 22.

4. Controlando Atomos com Luz, Vanderlei Salvador Bagnato e Sergio C. Zılio,vol. 9, no. 53, p. 41.

5. Colorindo o Invisıvel: quando os Atomos se Somam, Gilberto Fernandes deSa e Petrus d’Amorim Santa-Cruz, vol. 7, no. 38, p. 34.

6. Prisao de Luz para os Atomos, Luiz Davidovich, vol. 23, no. 134, p. 15.

7. O Eletron faz 100 Anos, Vicente Pleitzer e Rogerio Rosenfeld, vol. 22, no.131, p. 24.

8. Raios X. Descoberta Casual ou Criterioso Experimento?, Carlos Alberto dosSantos, vol. 19, no. 114, p. 26.

9. Controle do Atomo: Passos em Direcao aos Avancos do Proximo Seculo ,Vanderlei S. Bagnato, Maria Tereza de Araujo, Ilde Guedes, Debora Milori e SergioC. Zilio vol. 17, no. 101, p. 28.

Page 262: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

246

Resumo - Capıtulo Quatro

Atomos sao compostos por duas partes principais: o nucleo e aeletrosfera. O nucleo e formado por protons e neutrons. Protons saopartıculas carregadas positivamente, enquanto que neutrons nao pos-suem carga. Praticamente toda a massa de um atomo esta concentradano seu nucleo. O numero de protons do nucleo de um atomo e chamadode numero atomico, e representado por Z. O numero de neutrons e rep-resentado por N , e a quantidade Z + N e chamada numero de massa,e representada por A. A interacao que mantem os protons e neutronsligados no nucleo e chamada de interacao forte; esta forca e muito in-tensa na regiao do nucleo, ou seja dentro de um diametro da ordem de10−15 m, e cai muito rapidamente fora dele. Ela nao distingue carga,e atua igualmente entre protons e neutrons. A forca que mantem oseletrons ligados ao atomo e a interacao coulombiana entre a carga neg-ativa dos eletrons e a positiva do nucleo. Portanto, essa forca e denatureza eletromagnetica. Diametros de atomos sao da ordem de 10−10

m, ou angstrons (A). Entao, diametros atomicos sao cerca de 100 000vezes maiores que diametros nucleares. Os eletrons em torno do nucleoocupam orbitais atomicos. Cada orbital e caracterizado por uma funcaode onda que descreve uma distribuicao espacial de probabilidades paraas posicoes do eletrons naquele orbital. Atomos se ligam entre si paraformar moleculas e objetos maiores. O tipo de ligacao depende das carac-terısticas dos eletrons que ocupam os orbitais mais externos dos atomosenvolvidos. Eletrons em atomos possuem momento angular orbital, alemdo momento angular intrınseco, ou spin. Esses momentos angulares sesomam para dar origem a um momento angular total do atomo. Estepor sua vez confere ao atomo um momento magnetico. Atomos nao saoindivisıveis, como o nome sugere. A emissao espontanea de partıculaspelos nucleos de certos atomos e uma prova disso.

Page 263: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 5

Dos Atomos aosComputadores

Uma multidao lotava o Grande Auditorio para assisitir a inicializacao

do novo computador ‘Ultronico’. Presidente Pollo terminara seu dis-

curso. Estava bastante satisfeito: nao se importava muito com essas

ocasioes, e sequer entendia de computadores, mas sabia que este em

particular iria lhe economizar um bocado de tempo. Os fabricantes

asseguraram-lhe que dentre as tarefas que Ultronico seria capaz de

realizar, ele poderia tomar aquelas difıceis decisoes de Estado que o

deixavam tao aborrecido.

Adam sentia-se privilegiado por estar na cerimonia. Sentou-se na

terceira fila. Duas filas a sua frente estavam sua mae e o tecnocrata-

chefe responsavel pelo projeto de Ultronico. Seu pai, como sempre,

tambem estava la - sem convite, atras no salao, e cercado de guardas.

No ultimo minuto tentara explodir o computador. Esta tarefa havia

lhe sido atribuıda como iniciacao em uma faccao de um pequeno grupo

de ativistas que se auto-intitulava: O Grande Conselho da Consciencia

247

Page 264: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

248

Psıquica. Ao tentar entrar na sala com explosivos, foi detectado por

inumeros sensores eletronicos e quımicos. Agora, como parte de sua

punicao era obrigado a assisitir a cerimonia de inicializacao de Ultronico.

Adam nao sentia muita afeicao pelos pais. Sentimentos assim nao

lhe diziam respeito. Durante os treze anos de sua vida havia sido edu-

cado em meio a grande luxo material, quase que exclusivamente por

computadores. Podia ter qualquer coisa que desejasse simplesmente

apertando uma tecla: comida, bebida, companhia, diversao, e tambem

educacao, sempre que julgasse necessario.

Agora o Projetista Chefe estava terminando o seu discurso:“...possui

mais de 1017 unidades logicas. E mais do que o numero de neuronios

em todos os cerebros do paıs! Sua inteligencia sera inimaginavel. Mas,

felizmente, nao precisamos tentar imagina-la. Todos teremos o pri-

vilegio de agora assistı-la ao vivo: eu convido a Primeira Dama, senhora

Isabella Pollo, para ligar o nosso fantastico Computador Ultronico!”

A esposa do Presidente aproximou-se. Um pouco nervosa e de-

sajeitada, apertou a tecla ‘on’. Fez-se um grande silencio. Algumas

luzes piscaram quase que imperceptivelmente quando as 1017 unidades

logicas foram ativadas. Todos olhavam sem saber direito o que viria a

seguir. “Alguem na plateia gostaria de iniciar o nosso Sistema Ultronico

fazendo a primeira pergunta?” perguntou o Projetista Chefe. To-

dos sentiam-se acanhados, e com medo de parecer estupidos diante da

plateia - e diante da Nova Onipresenca. Havia silencio. “Certamente

havera alguem”, ele insistiu. Todos estavam amedrontados, como que

diante de uma nova consciencia toda poderosa. Com excecao de Adam.

Ele havia crescido entre computadores, e sabia quase como um deveria

Page 265: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 249

se sentir. Adam levantou a mao. “Ah, sim”, disse o Projetista Chefe.

“O rapaz na terceira fila. Voce tem uma pergunta para o nosso - ah

- novo amigo?” (The Emperor’s New Mind - A Nova Mente do

Imperador - R. Penrose, Vintage 1990)1

5.1 Objetos Macroscopicos

O leitor achara curioso olhar a sua volta e observar a diversidade de ma-

teriais que o cerca. No momento em que escrevo este texto reconheco

as varias partes de plastico que formam o teclado do meu computa-

dor, o metal que forma a cabine, o vidro do monitor, e imagino os

materiais que formam os fios, as resistencias, capacitores, indutores,

chips, e outros componentes dentro da cabine. Alem disso, a mesa

de madeira, a parede de tijolos, a cortina de tecido, etc. Nossa vida

e absolutamente dependente da nossa capacidade de criar e manusear

materiais, para adapta-los as nossas necessidades. O plastico do teclado

do meu computador, deve ter propriedades diferentes do plastico de um

saco de lixo. Materiais possuem propriedades fısicas distintas: alguns

sao condutores eletricos (como o cobre dos fios), outros sao isolantes

(como o plastico do teclado), alguns sao magneticos (como a agulha

de uma bussola), uns sao duros (como o diamante), outros maleaveis

(como o chumbo), etc. Como esses materiais se formam e como eles

adquirem essas propriedades? Este e um vasto campo de pesquisa, mas

fundamentalmente as propriedades fısicas de objetos macroscopicos re-

fletem as especies atomicas que formam o material, os tipos de ligacoes

1A surpreendente pergunta de Adam para o computador voce ficara sabendo aofinal do Capıtulo.

Page 266: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

250

quımicas entre os atomos, e as estruturas espaciais nas quais os atomos

e moleculas se arranjam para formar o material.

A parte da fısica que se ocupa do estudo dos materiais e chamada

Fısica da Materia Condensada. E preciso distinguir a abordagem dada

pelos fısicos de outras abordagens, como por exemplo, a do engenheiro.

Este ultimo esta essencialmente interessado nos aspectos praticos e

utilitarios dos materiais. Se, por exemplo, um engenheiro mecanico

precisa de uma peca de metal que seja boa condutora de eletricidade,

e ao mesmo tempo ma condutora de calor, para ser utilizada como

parte de um motor, ele simplesmente pode ir a sua oficina e fazer al-

guns testes com varios metais, ate encontrar o que precisa. O fısico

da materia condensada esta interessado em saber como e porque um

determinado metal consegue conduzir mais calor ou eletricidade do que

outro. Para isso ele procura descrever as propriedades de conduzir

calor e eletricidade a partir da compreensao que possui das interacoes

entre os atomos e os eletrons que formam o material. Ou seja, tenta

explicar propriedades macroscopicas dos materiais a partir dos mode-

los teoricos criados para o mundo microscopico. Mas, como vimos nos

ultimos dois capıtulos, o mundo microscopico e governado pelas leis da

mecanica quantica. Portanto, para o fısico da materia condensada, a

mecanica quantica e uma ferramenta de trabalho da qual ele se utiliza

para descrever as propriedades fısicas dos materais. Aqui uma con-

statacao notavel: ao tentarmos “reconstruir” o mundo macroscopico a

partir do microscopico utilizando as leis da mecanica quantica, e de se

esperar que as propriedades fısicas resultantes como, por exemplo, a de

conduzir corrente eletrica, ou conduzir calor, de certa forma guardem

Page 267: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 251

uma “memoria quantica”. Por exemplo, podemos compreender porque

ao aquecermos a ponta de um garfo, o calor chega ate a outra ponta e

queima a nossa mao, enquanto o mesmo nao acontece com um pedaco

de vidro, utilizando as leis da mecanica quantica!

Um tipo de material em particular e o responsavel por uma re-

volucao tecnologica que alterou as nossas vidas de maneira drastica e

definitiva: os semicondutores. Estes sao a “materia prima” do “cerebro”

de um computador.

5.2 Periodicidade na Natureza

As propriedades fısicas dos materiais estao em grande parte relacionadas

ao modo como os atomos que os compoem se organizam espacialmente.

Podemos imaginar os atomos em um solido ligados quimicamente entre

si como se fossem pequenas bolas presas por hastes de arame, for-

mando uma estrutura. O comprimento de cada haste representa a

distancia interatomica. Em certos tipos de materiais este arranjo espa-

cial e aleatorio. E como se cada haste tivesse um comprimento difer-

ente da outra, e estivesse orientada de modo aleatorio no espaco. Estes

tipos de materiais sao chamados de amorfos. Um exemplo de material

amorfo e o vidro comum (desses que usamos em janelas). Em outros

tipos de materiais algo surpreendente acontece: os atomos se arranjam

espacialmente de uma maneira absolutamente regular. Tais materiais

sao chamados de cristalinos. O diamante e os metais sao exemplos de

materiais cristalinos. Somente materiais solidos apresentam cristalin-

idade; lıquidos e gases sao sempre amorfos. Todas as substancias da

Page 268: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

252

tabela periodica se solidificam com algum tipo de cristalinidade, e para

cerca de 2/3 dos elementos, o material formado e um metal. Nao e de

surpreender a importancia dos metais para a nossas vidas!

Chamamos de rede cristalina esta estrutura espacial regular de ato-

mos. A regularidade e responsavel por varias propriedades importantes

dos solidos. Imagine uma rede cristalina como uma repeticao de uma

estrutura basica contendo alguns ıons presos a ela, por todo o espaco.

Por exemplo, imagine um cubo de aresta a onde em cada vertice existe

um ıon preso. A rede cristalina consiste na repeticao do cubo por

todo o espaco. Se colocarmos a origem de um sistema de coordenadas

sobre um atomo na base do cubo, os atomos nas direcoes x, y e z

podem ser localizados pelos vetores ai, aj e ak. Se tivessemos um

paralelepıpedo com arestas a, b e c, ao inves de um cubo, terıamos ai,

bj e ck. Chamamos esses vetores de vetores de base, e de uma maneira

geral os representamos por a1, a2 e a3. Qualquer atomo (ou ıon) em

uma rede cristalina pode ser localizado a partir de um certo numero

inteiro desses vetores de base. Representamos por R a posicao generica

de um ıon em uma rede cristalina:

R = n1a1 + n2a2 + n3a3

onde n1, n2 e n3 sao numeros inteiros. Por exemplo, em uma rede qual-

quer, o ıon da origem possui (n1, n2, n3) = (0, 0, 0); o ıon na posicao

adjacente sobre o eixo x possui (n1, n2, n3) = (1, 0, 0). O que se encon-

tra sobre o eixo z a dez cubos acima da origem possui (n1, n2, n3) =

(0, 0, 10); o primeiro ıon sobre a diagonal do cubo tera (n1, n2, n3) =

(1, 1, 1), e assim por diante.

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 253

A distancia de um dado atomo ate a origem e dada pelo modulo

do vetor2 R: |R| = R =√n2

1|a1|2 + n22|a2|2 + n2

3|a3|2. Os modulos

dos vetores de base variam de alguns angstrons a algumas dezenas de

angstrons, dependendo do cristal, mas tipicamente estes valores estao

entre 5 e 15 angstrons. Entao, em um cristal cubico, para o qual |a1| =

|a2| = |a3| = 8, 5A, o atomo em (n1, n2, n3) = (2, 5,−7) (ou seja, com

vetor posicao R = 2i+5j−7k) dista da origem de R =√

4 + 25 + 49×8, 5 ≈ 75, 1A.

Um material cristalino contrasta com um amorfo por apresentar regularidade espa-cial no arranjo de seus atomos.

Agora vamos discutir um pouco a ideia que temos sobre os metais.

A caracterıstica mais marcante de um metal e a sua capacidade de con-

duzir corrente eletrica. Todos os fios que passam por dentro das paredes

das nossas casas, e que sao ligados a lampadas, tomadas, eletrodomesticos,

2Supoe-se um sistema de coordenadas triortogonal.

Page 270: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

254

etc. sao feitos de algum tipo de metal. Alem disso, metais sao maleaveis,

o que os torna apropriados a moldagem, como por exemplo em um

parafuso, um alicate, uma panela ou ate mesmo em uma escultura. Se

elevarmos sua temperatura acima de um valor crıtico, metais podem

ser fundidos, ou seja, tornam-se lıquidos. Colocados em um molde e

resfriados, adquirem a forma do molde. Ao retornar ao estado solido, o

metal continua com as mesmas caracterısticas fısicas que tinha antes da

fusao. Estes sao exemplos de propriedades macroscopicas dos metais

que os tornam uteis a nossa vida. Mas, como compreender estas pro-

priedades de um ponto de vista microscopico? Ou seja, como as leis da

mecanica quantica conferem aos metais suas propriedades? A resposta

esta em parte relacionada a periodicidade espacial dos atomos na rede,

e em parte ao princıpio de exclusao de Pauli.

Uma rede cristalina tridimensional e construıda a partir da repeticao de uma celulabasica no espaco.

Page 271: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 255

5.3 Porque a Lata Difere do Diamante?

No capıtulo anterior falamos brevemente da ligacao metalica; dissemos

que os eletrons de um metal se deslocam livremente entre os ıons. Sao

os ıons que formam a estrutura cristalina. Ou seja: em um metal os ıons

podem ser considerados em posicoes fixas e regulares, formando a rede

cristalina, enquanto que os eletrons se movem livremente entre eles.

Tudo se passa como se os eletrons formassem um gas cujas partıculas

se movessem entre os ıons, ocasionalmente se chocando com eles. De

fato, esta imagem do gas e muito utilizada para compreendermos certas

propriedades dos metais. Contudo, devemos lembrar que trata-se aqui

de um gas especial: um gas de eletrons (lembre que estes eletrons ocu-

pavam as camadas mais externas dos atomos antes deles constituirem o

metal). Mas, como vimos, eletrons sao partıculas com spin semi-inteiro,

S = 1/2, e por isso sao chamados de fermions. Nos referimos entao aos

eletrons nos metais como formando um gas de Fermi. Outra coisa a ser

lembrada do capıtulo anterior e que nem todos os eletrons dos atomos

que formam metais se tornam “livres” para compor este gas. De fato,

a grande maioria permanece preso aos proprios atomos de origem, e so

aqueles das camadas mais externas conseguem se libertar.

Sao os eletrons do gas de Fermi os responsaveis pela corrente eletrica

nos metais. Como eles sao livres para se deslocar, ao aplicarmos um

campo eletrico a um pedaco de metal (por exemplo ligando um pedaco

de fio de cobre aos terminais de uma bateria), os eletrons do gas ficam

sujeitos a uma forca eletrica F = −eE, e se deslocam na direcao do

campo. O que evita o aumento indefinido da corrente sao precisamente

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256

as colisoes entre os eletrons e os ıons. Deste ponto de vista, a unica

diferenca entre um metal como o alumınio de um garfo, e um isolante

como o diamante, e a existencia de um gas de Fermi no primeiro. Mas

so com isso ainda nao podemos compreender porque em alguns casos

os eletrons mais externos dos atomos se libertarao para formar o gas, e

em outros nao. Ou seja, o que determina, em ultima instancia, se um

material e condutor ou isolante? Com a palavra, Sua Exa., a Mecanica

Quantica.

5.4 Autoestados em uma Caixa Periodica

A ideia mais simples que podemos ter a respeito de eletrons em um

metal, e a de uma caixa cubica contendo um numero muito grande de

partıculas carregadas, que podem se mover livremente.

Vimos no capıtulo tres que a energia de um eletron que se desloca

livremente pelo espaco e dada por:

E =p2

2m=h2k2

2m

onde k = p/h e o modulo do vetor de onda do eletron, e pode ter

qualquer valor. Temos agora que considerar o que acontece com essas

energias quando o eletron se desloca dentro de um material cristalino,

ao inves de livremente. Vimos que a rede cristalina e constituıda por

varias “caixinhas” que se justapoem preenchendo o espaco. Entao, um

bom ponto de partida para resolver o nosso problema e estudar o que

ocorre com um eletron dentro de uma caixa. Como veremos abaixo, a

caixa limita o movimento do eletron, e isso altera os valores de energia

que ele pode adquirir.

Page 273: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 257

Imagine uma caixa cubica com aresta L e com volume V = L3.

Como dentro da caixa o eletron esta livre, a funcao de onda associada

a cada estado eletronico k dentro dela sera:

ψk(r) =1√Veik·r

ou, em termos das componentes cartesianas de r e k:

ψk(x, y, z) =1√Veikxx+ikyy+ikzz =

1√Veikxxeikyyeikzz

Note que a probabilidade por unidade de volume de encontrarmos um

eletron em qualquer posicao dentro da caixa e constante (ou seja, in-

depende de x e k) e igual a

|ψk(r)|2 = ψ∗k(r)ψk(r) =

1√Veik·r × 1√

Ve−ik·r =

1

V

Agora devemos nos perguntar o que acontece com um eletron que chega

perto de uma das faces do cubo, ou seja, em x = L, y = L ou z = L. E

intuitivo pensarmos que, como temos certeza que o eletron esta dentro

do volume V , a sua funcao de onda deve se anular para esses valores

de x, y e z. Caso contrario estarıamos afirmando que o eletron poderia

ser encontrado do lado de fora da caixa! Consequentemente, devemos

impor a condicao de que a funcao de onda se anule nessas posicoes, ou

seja:

ψk(L, y, z) = ψk(x, L, z) = ψk(x, y, L) = 0

Consequentemente:

eikxLeikyyeikzz = eikxxeikyLeikzz = eikxxeikyyeikzL = 0

Page 274: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

258

Cada uma dessas tres condicoes se aplica independentemente das outras

duas. Tomemos, por exemplo, a condicao eikxLeikyyeikzz = 0. Como

ky, kz e y, z sao arbitrarios, a condicao acima implica em

eikxL = cos(kxL) + isen(kxL) = 0

Para que esta equacao seja satisfeita, e preciso que os termos do lado

direito da primeira igualdade se anulem individualmente. Acontece

que nao existe nenhum valor do argumento kxL tal que isto ocorra! Se

tivessemos somente a parte real ou somente a imaginaria desta equacao,

a condicao imposta seria respectivamente satisfeita para kxL = nxπ/2

ou kxL = nxπ, onde nx e ımpar no primeiro caso, e qualquer inteiro

no segundo. Podemos repetir o argumento para as componentes y e z

de ψ. Entao, neste caso, a condicao que impusemos sobre a funcao de

onda obriga que ela seja uma funcao senoidal (ou cossenoidal) simples:

ψk(x, y, z) = Asen(kxx)sen(kyy)sen(kzz)

onde A e uma constante. A funcao acima se anula nas paredes da caixa,

sob as condicoes de que kxL, kyL e kzL sejam iguais a multiplos inteiros

de π. Esta funcao portanto descreve apropriadamente um eletron preso

dentro de uma caixa. Note que agora a distribuicao de probabilidades

nao e mais uniforme, mas dada por:

|ψk(x, y, z)|2 = A2sen(kxx)2sen(kyy)2sen(kzz)2

Esta imposicao feita sobre a funcao de onda leva as seguintes condicoes

sobre as componentes do vetor de onda:

Page 275: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 259

kx =π

Lnx, ky =

π

Lny, kz =

π

Lnz

onde nx, ny, nz sao numeros inteiros3 Ou seja, tal imposicao leva a uma

quantizacao das componentes do vetor de onda k:

k =π

L(nxi + nyj + nzk)

(nao confunda o vetor de onda k do lado esquerdo como vetor unitario

k da direcao z do lado direito. A situacao de escassez e tao grave

que esta comecando a faltar ate letra!). Consequentemente, as energias

possıveis dentro da caixa tambem se tornam quantizadas:

E =h2k2

2m=

h2π2

2mL2(n2

x + n2y + n2

z)

Este e o efeito geral de prendermos um eletron dentro de uma caixa:

tornarmos quantizados os seus nıveis de energia, que caso contrario

formariam um espectro contınuo.

Por exemplo, para nx = ny = 0, e nz = 1:

E =h2π2

2mL2

Se, por outro lado, nx = ny = nz = 1 a energia do eletron sera:

E = 3h2π2

2mL2

e assim por diante. nx, ny e nz sao numeros quanticos que caracterizam

os estados eletronicos dentro da caixa.

3Note que desta forma teremos kxx = xnxπ/L. Ou seja, quando x = L, kxx =nxπ e a funcao de onda se anula. O mesmo ocorre para as outras componentes.

Page 276: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

260

Uma outra maneira de abordar o problema e ao inves de modificar-

mos a funcao de onda, mantermos a sua forma exponencial, e modifi-

carmos as condicoes impostas sobre ela nas paredes da caixa. E neste

ponto onde o problema do eletron em uma caixa evolui para o prob-

lema de um eletron em um cristal. Poderıamos imaginar o cristal como

varios cubos, cada qual com volume V , justapostos, de maneira que

quando um eletron chegar em uma das faces, ele simplesmente “entra”

no cubo vizinho. Como todos os cubos sao identicos, posicoes equiva-

lentes em cubos diferentes terao associadas os mesmos valores da funcao

de onda4. Ou seja, a funcao de onda se tornara uma funcao periodica

espacialmente, com perıodo igual ao comprimento L. Tal periodicidade

e expressa matematicamente por:

ψk(x, y, z) = ψk(x + L, y, z)

ψk(x, y, z) = ψk(x, y + L, z)

ψk(x, y, z) = ψk(x, y, z + L)

Estas condicoes podem parecer menos intuitivas que as anteriores, mas

elas sao mais convenientes, pois com elas a forma de exponencial com-

plexa da funcao de onda pode ser mantida. Como veremos abaixo, isso

nao modifica substancialmente os estados de energia dentro da caixa.

As vezes em fısica temos que deixar de lado a intuicao em benefıcio das

conveniencias matematicas! Substituindo a primeira condicao acima na

forma exponencial da funcao de onda, obtemos:4Mais precisamente, e o modulo quadrado de ψ que se repetira dentro do cristal.

Suponha, hipoteticamente, que tenhamos L = 10A, e que |ψ(x = 3A, y = 0, z =0)|2 = 0, 01. Como os cubos sao equivalentes, deveremos ter |ψ(x = 3, y = 0, z =0)|2 = |ψ(x = 13, y = 0, z = 0)|2 = |ψ(x = 23, y = 0, z = 0)|2 = 0, 01, etc.

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 261

eikxxeikyyeikzz = eikxLeikxxeikyyeikzz ⇒ eikxxeikyyeikzz(eikxL − 1) = 0

que leva a:

eikxL = 1

Esta condicao e satisfeita para5 kxL = 2nxπ ou kx = 2nxπ/L com nx

um inteiro. Chegamos entao a um resultado semelhante ao anterior,

somente mudando as condicoes sobre as funcoes de onda. Repetindo

o procedimento para as outras componentes obtemos ky = 2nyπ/L e

kz = 2nzπ/L. Note que a unica diferenca entre os dois casos e o fator

‘2’ multiplicativo. As energias nesse caso se tornam:

E =h2k2

2m=

2h2π2

mL2(n2

x + n2y + n2

z)

E importante lembrar que ambas funcoes de onda representam eletrons

livres em uma caixa. No entanto, a funcao exponencial complexa des-

creve uma distribuicao de probabilidades uniforme, enquanto que a

funcao senoidal nao. Em se tratando de eletrons em cristais e preferıvel

trabalhar com a forma exponencial. Mas, o importante no momento nao

e a forma da funcao de onda, e sim os valores possıveis para as energias

dos eletrons dentro da caixa. Definindo a quantidade ε = 2h2π2/mL2,

podemos escrever as energias acima sob a forma

E = ε(n2x + n2

y + n2z)

5Note que agora nao temos de escolher entre o seno ou o cosseno da funcao deonda.

Page 278: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

262

Cada estado eletronico continua sendo caracterizado por tres numeros

quanticos, nx, ny e nz, e pode, de acordo com o princıpio de exclusao,

acomodar no maximo dois eletrons, com spins opostos. A tıtulo de

exercıcio, vamos calcular a quantidade ε. Substituindo o valor 10A =

10−9 m para L, obtemos:

ε =2 × 1, 052 × 10−68 × 3, 142

9, 11 × 10−31 × 10−18= 2, 39 × 10−19 J = 1, 5 eV

Se o gas possui N eletrons, cada par ocupara um estado. Por exem-

plo, a energia mais baixa e dada por nx = ny = nz = 0, que corresponde

a E = 0. Neste estado podemos colocar 2 eletrons. O estado imediata-

mente acima corresponde a E = ε. Para este valor de energia temos 6

possibilidades distintas:

(nx, ny, nz) = (±1, 0, 0); (0,±1, 0); (0, 0,±1)

Podemos acomodar entao 12 eletrons com energia ε. O proximo nıvel

de energia e E = 2ε, para o qual podemos ter

(nx, ny, nz) = (±1,±1, 0); (±1, 0,±1); (0,±1,±1)

num total de 12 estados onde cabem 24 eletrons. E assim por diante,

ate chegarmos ao ultimo dos N eletrons do gas. Note a semelhanca

entre este problema e aquele do preenchimento dos nıveis de energia

do atomo: la tambem tınhamos 3 numeros quanticos, n, l e ml, e para

cada um desses conjuntos poderıamos colocar ate 2 eletrons. E como

se a nossa caixa com volume V e N eletrons fosse um enorme atomo!

O ultimo eletron do gas ocupara o estado de maior energia possıvel,

que obviamente tera a ele associado o maior valor possıvel de vetor

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 263

de onda. Este valor dependera do numero total de eletrons N . Se

N = 2, somente o estado E = 0 estara ocupado, e o vetor de onda

associado sera kmax = 0; se N = 4, a maior energia sera E = ε, e o

respectivo vetor de onda kmax =√

2mε/h, e assim por diante. Para um

gas de eletrons em um metal, o valor de N e monstruosamente grande,

algo da ordem de 1023. O valor da energia mais alta possui um nome

especial (e pouco imaginativo!): energia de Fermi, representada por

EF . Associada a energia de Fermi esta o vetor de onda de Fermi: kF .

A relacao entre as duas quantidades e dada por:

EF =h2k2

F

2m

Nos metais o valor de EF varia entre 5 e 10 eletronvolts, e kF e tipica-

mente da ordem de 1, 5 × 1010 m−1.

A esfera de Fermi representa a configuracao de menor energia de um numero muitogrande de eletrons que nao interagem entre si.

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264

5.5 O Mundo e Quantico!

Na secao anterior vimos que os autoestados de um eletron dentro de

uma caixa periodica sao quantizados de zero ate um valor maximo EF .

Note que esta e uma consequencia somente da periodiciade da caixa

e do princıpio de exclusao. O que vamos considerar agora e o que

acontece quando os ıons sao inseridos nestas caixas para formar a rede

cristalina.

Imagine um eletron deslocando-se entre os ıons positivos que for-

mam a rede cristalina. Como o eletron possui carga negativa, ele sentira

a presenca dos ıons atraves da interacao coulombiana. Chamamos esta

acao dos ıons da rede cristalina sobre os eletrons de potencial crista-

lino. Se so houvesse 1 unico ıon, a interacao seria aquela que ja vi-

mos, proporcional ao produto das cargas e inversamente proporcional a

distancia. Mas o que temos agora nao e um unico ıon, e sim um arranjo

periodico de ıons. Esta periodicidade se reflete no potencial cristalino,

que tambem se torna uma funcao periodica da posicao dos ıons. Por

exemplo, para simplificar vamos imaginar uma rede cristalina unidi-

mensional ao longo do eixo x, com os ıons separados por uma distancia

a. A posicao de qualquer ıon nesta rede especial sera dada por R = nai,

com n inteiro. O ıon da origem correspondera a n = 0, o primeiro ıon

a esquerda n = −1, o segundo da direita n = 2, e assim por diante.

Considere entao um eletron que se encontra em uma posicao x, medida

a partir da origem, por exemplo, x = a/3. Nesta posicao o eletron

“sente” um certo valor do potencial cristalino, devido a todos os ıons

da rede. Considere entao um eletron e o desloque da posicao x para a

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 265

posicao x+ a = 4a/3. Ora, exatamente devido a periodicidade da rede

cristalina, o eletron nao distinguira essa nova posicao da anterior. Isto

quer dizer que o potencial cristalino que ele sente em x sera identico

ao que ele sentira em x + a. Ou seja, o potencial sera uma funcao

periodica, cujo perıodo e exatamente o espacamento entre os ıons. Se

representarmos por V (x) a energia potencial do eletron na posicao x,

podemos expressar matematicamente esta periodicidade por:

V (x) = V (x + a)

Para um cristal real em tres dimensoes, substituimos x por r, e a por

R; o primeiro vetor e a posicao do eletron no espaco, o segundo e a

posicao de um ıon qualquer na rede. A expressao acima se torna neste

caso:

V (r) = V (r + R)

Potencial periodico em 1 dimensao. Ao se deslocar da posicao x para x + a, umeletron percebera exatamente a mesma vizinhanca, e consequentemente o mesmopotencial.

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266

Esta propriedade de periodicidade do potencial e de suma importancia

para as propriedades fısicas dos solidos cristalinos. Note que sequer

mencionamos a forma funcional de V , ou seja, como V varia com r,

mas apenas que a funcao V (r) possui periodicidade espacial. Se o

eletron fosse livre, seu espectro de energia seria contınuo, e ele poderia

ter qualquer valor de energia, ou equivalentemente estar em qualquer

estado k. Ao contrario, na caixa este espectro se torna quantizado, em

unidades de uma quantidade mınima ε. Ao considerarmos o potencial

cristalino, como efeito geral da sua periodicidade, o espectro ja quan-

tizado pela caixa, e adicionalmente desdobrado em regioes permitidas

e regioes proibidas de energia. Ou seja, o potencial faz com que algu-

mas regioes do espectro de energia nao existam mais. As regioes com

estados de energias disponıveis sao chamadas de bandas de energia, e

as regioes proibidas de hiatos ou lacunas (‘gaps’, em ingles). Dentro

de uma banda de energia os autoestados podem ainda ser escritos com

uma forma semelhante a do eletron livre, apenas com um novo sımbolo

para a massa do eletron:

E =h2k2

2m∗

onde agora, ao inves de m, utilizamos m∗ para a massa do eletron. Esta

quantidade e chamada de massa efetiva.

Vamos fazer uma pausa para discutirmos esta interessante ideia de

massa efetiva. Para entende-la vamos recorrer ao oscilador harmonico.

Suponha que voce queira medir a massa de um objeto observando suas

oscilacoes quando preso a uma mola. Voce prende o objeto na mola,

cuja constante elastica k voce conhece. Poe o sistema para oscilar, e

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 267

com a ajuda de um cronometro mede o perıodo de oscilacao, τ . A par-

tir do perıodo, voce calcula a frequencia angular ω = 2π/τ . Mas por

outro, lado voce sabe que a frequencia angular e dada por ω =√k/m,

e na medida em que k e conhecida, a massa pode ser obtida da relacao

m = k/ω2. O que aconteceria se a experiencia fosse repetida dentro de

um lıquido, como por exemplo dentro de um tanque com agua? Obvia-

mente o perıodo de oscilacao mudaria, e consequentemente o valor me-

dido da massa. Qual o significado desse novo valor de massa? De certa

forma esse novo valor refletira as propriedades do lıquido; se colocar-

mos alcool ou oleo ao inves de agua, o valor medido da massa mudara.

Em ultima analise, o valor da massa medido desta maneira embute as

interacoes do objeto que se move com o meio no qual ele esta inserido.

Dizemos entao que medimos uma massa efetiva. A massa efetiva e a

massa real do objeto, revestida das interacoes entre ele e o meio. E uma

maneira de levarmos em conta interacoes cujos detalhes nao conhece-

mos! Em fısica e assim: tratamos com pompa e detalhes matematicos

o que conhecemos; ao que nao conhecemos associamos uma letra qual-

quer, damos um nome pomposo, e incluimos nos calculos. E barbaro!

O mesmo ocorre com o eletron no metal. Como nao conhecemos os

detalhes das interacoes entre ele e os ıons da rede, varremos tudo isso

para debaixo do tapete, quer dizer, para dentro da massa do eletron,

que passa entao a ser chamada de massa efetiva. Os fısicos adoram in-

ventar nomes extravagantes para essas coisas (talvez para dar um tom

de nobreza a carreira e compensar a baixa remuneracao!): dizemos que

a massa do eletron foi renormalizada.

Page 284: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

268

.

O conceito de massa efetiva e uma maneira de levarmos em consideracao as in-teracoes de um objeto se movendo em determinado meio. Os efeitos do meio sobreo movimento se refletem na massa “aparente” do objeto.

Resumindo: eletrons que se deslocam dentro de caixas periodicas

possuem um espectro de energia quantizado. Quando ıons positivos

sao colocados nessas caixas para formar a rede cristalina, eles geram

sobre os eletrons um potencial eletrostatico que possui a periodicidade

da rede. O efeito deste potencial sobre os nıveis de energias dos eletrons

e dividir o espectro em bandas de energias, separadas por hiatos. Para

um eletron em um nıvel de energia dentro de uma dessas bandas, o

efeito da interacao pode ser incorporado a sua massa, que entao passa

a ser chamada de massa efetiva.

Devemos agora considerar o que acontece se tivermos nao somente

um, mas N eletrons. Os estados de energia dentro das bandas deverao

ser ocupados de acordo com o princıpio de exclusao de Pauli. O resul-

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 269

tado dessa ocupacao explica as diferencas entre materiais condutores e

isolantes.

5.6 Metais, Isolantes e Semicondutores

Vimos que o efeito geral do potencial cristalino e criar bandas de ener-

gias intercaladas por hiatos. Dados N eletrons, preenchemos os nıveis

de energia do mais baixo para o mais alto. Para simplificar, vamos

imaginar que temos somente duas bandas separadas por um hiato.

Dado um numero N de eletrons, como distribuı-los nos nıveis de energia

dentro de uma banda? Sabemos do princıpio de exclusao que cada es-

tado k pode acomodar no maximo dois eletrons. Podemos entao dividir

o problema em 3 situacoes possıveis: (i) N/2 e menor que o numero de

estados disponıveis na banda de energia mais baixa; (ii) N/2 e maior

que o numero de estados de energia disponıveis na banda mais baixa, e

(iii) N/2 e exatamente igual ao numero de estados disponıveis na banda

mais baixa.

Como estamos interessados em descrever a corrente eletrica nos ma-

teriais, devemos considerar o que ocorre em cada um dos casos acima

quando um campo eletrico e aplicado. A aplicacao do campo resulta

em um acrescimo de energia para cada eletron. Este acrescimo de

energia, por sua vez, implica em cada eletron mudar de seu estado, ini-

cialmente caracterizado por k, para outro caracterizado por k′ > k. No

caso (i) como os N eletrons nao chegam a preencher todos os nıveis da

banda mais baixa, nao ha problema. Os eletrons mais energeticos, com

k = kF passam para os estados vazios imediatamente acima e deixam

Page 286: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

270

vagos seus estados anteriores para serem ocupados pelos eletrons ime-

diatamente abaixo, e assim por diante ate o estado com k = 0. Esta

e a situacao de um metal simples como o lıtio ou o sodio. O que

acontece no caso (ii)? Tambem nao ha problema. Como o numero de

eletrons ultrapassa os estados de energia disponıveis na banda inferior,

ao completa-la, simplesmente “pulamos” sobre o hiato e continuamos

preenchendo os estados na banda superior com o restante dos eletrons.

Para os eletrons da banda superior tudo se passa como no caso (i). Mas,

e para os eletrons que preencheram completamente a banda inferior?

Ao sentirem o campo eletrico eles tentam se mover, mas como a banda

esta completa, nao existirao estados disponıveis que eles possam ocu-

par. Consequentemente esses eletrons simplesmente nao se movem! A

condutividade eletrica neste caso e realizada apenas pelos eletrons que

estao na banda superior. Este tambem e um caso metalico, um pouco

mais complexo que o caso (i). Nao e difıcil imaginar o que ocorre no

caso (iii) onde o numero de eletrons preenche exatamente os estados

da banda inferior. Neste caso nao havera condutividade, e o material

sera um isolante! Entao, no que diz respeito a condutividade eletrica,

as diferencas entre metais e isolantes sao consequencias do modo como

as bandas de energias sao preenchidas nestes materiais.

Antes de prosseguirmos, vamos resumir o que foi dito ate aqui: os

dois ingredientes fundamentais para entendermos porque alguns ma-

teriais conduzem corrente eletrica e outros nao, sao: (a) o potencial

periodico da rede cristalina que cria uma estrutura de bandas de ener-

gia separadas por hiatos onde nao existem estados eletronicos e (b) o

princıpio de exclusao de Pauli que dita a maneira pela qual os estados

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 271

dentro de cada banda devem ser preenchidos.

O caso (iii) acima, onde o numero de eletrons preenche exatamente a

banda inferior e o importante caso dos isolantes, mas tambem descreve

a situacao dos materiais chamados semicondutores. Semicondutores

sao a materia prima de diodos e transistores, e possuem vastıssimas

aplicacoes na industria eletronica, principalmente na industria de in-

formatica. A diferenca entre o isolante e o semicondutor e basicamente

o tamanho do hiato de energia que separa as duas bandas. Se este

for muito grande, temos um isolante, mas se ele for suficientemente

pequeno, temos um semicondutor. Mas, o que significa ser suficiente-

mente pequeno? Significa que eletrons que ocupam estados no topo da

banda inferior (inicialmente preenchida) podem ser facilmente promovi-

dos para os primeiros estados da banda superior. Esta transferencia

de eletrons pode ocorrer meramente por um efeito de temperatura; a

agitacao termica dos eletrons faz com que alguns deles pulem do topo

da banda de baixo para o fundo da banda de cima.

Na proxima secao veremos como o numero de eletrons na “banda de

cima” de um semicondutor pode ser controlado, deste modo conferindo

a esses materiais suas propriedades eletricas especiais.

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272

.

A classificacao de materiais em isolantes e semicondutores depende da estrutura debandas de energia de cada um e do preenchimento dos estados dentro das bandas.

5.7 Juncoes, Diodos e Transistores

Circuitos eletronicos sao conjuntos de pecas construıdas de materiais

e formas diferentes, ligadas eletricamente entre si, e que servem para

executar determinadas tarefas. Para entrarem em funcionamento, os

circuitos eletronicos precisam ser percorridos por uma corrente eletrica.

Como vimos, uma corrente eletrica flui sempre que houver um campo

eletrico aplicado a um material que possui cargas livres que possam

se mover. Na pratica, para termos um campo eletrico aplicamos uma

diferenca de potencial, como os 127 volts das tomadas de nossas casas,

ou aqueles 1,5 volts de uma pilha pequena. Por exemplo, um radio e um

circuito eletronico cuja finalidade e transformar a informacao contida

Page 289: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 273

em uma onda eletromagnetica captada por sua antena, em ondas sono-

ras que possam ser ouvidas e compreendidas por nos. Se o nosso cerebro

tivesse a capacidade de detectar e decodificar ondas eletromagneticas,

nao precisarıamos de radio! Para o radio realizar esse truque e pre-

ciso que ele seja alimentado por uma bateria, ou seja, e preciso que

uma corrente eletrica percorra os seus componentes eletronicos. Cada

um desses componentes possui caracterısticas proprias, e responde de

determinada forma a passagem da corrente. Essas caracterısticas sao

expressas por curvas de voltagem versus corrente eletrica. Por exemplo,

um pedaco de fio pode ser considerado o componente eletronico mais

simples que se pode ter. Se ligarmos as pontas do fio aos terminais de

uma bateria de 1,5 volts, aparecera uma corrente percorrendo o fio. Se

colocarmos duas baterias em serie, de modo a obter 3 volts, a corrente

aumentara proporcionalmente, e assim por diante. Esta proporcionali-

dade e expressa pela famosa lei de Ohm:

V = RI

onde V e a voltagem aplicada, I e a corrente que percorre o fio, e R e

a sua resistencia. Note que a voltagem V e controlada externamente, e

portanto independe da forma, do tamanho ou diametro do fio. A cor-

rente I e o efeito que surge como consequencia da aplicacao de V , e a re-

sistencia R e uma caracterıstica do material e da sua forma geometrica,

que no caso de um fio comum e a de um cilindro. Mantendo-se a forma

do fio, ou seja, seu diametro e comprimento, materiais diferentes terao

valores de R diferentes. R esta tambem relacionada a processos mi-

croscopicos de colisoes dos eletrons com a rede cristalina ao se deslo-

Page 290: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

274

carem dentro do material. Para um fio, R e inversamente proporcional a

area da secao transversal (ou seja ao quadrado do raio) do fio, A = πa2,

onde a e o raio da secao transversal do fio, e diretamente proporcional

ao seu comprimento l. Estes sao fatores geometricos; R e tambem pro-

porcional a resistividade, ρ, uma grandeza intrınseca ao material. Para

um fio, a expressao matematica da resistencia e:

R =l

Para fios do mesmo material, se dobrarmos a area da secao transversal

R fica reduzida a metade, enquanto que se dobrarmos o seu compri-

mento, R tambem dobra. Podemos dizer grosso modo que o engenheiro

esta interessado em R, enquanto o fısico da materia condensada em ρ.

Para um metal comum como o cobre, esta quantidade, e dada por:

ρ =m∗

ne2τ

onde m∗ e a massa efetiva do eletron no material, n a densidade de

eletrons (ou seja, o numero de eletrons por unidade de volume de ma-

terial), e e o valor da carga do eletron. O parametro τ tem unidade de

tempo, e representa o fato de que ao se deslocarem sob a acao do campo

eletrico, os eletrons colidem com os ıons da rede. O significado fısico de

τ e o tempo medio entre duas colisoes sucessivas entre um eletron e os

ıons da rede. Note entao que ao medirmos R, sabendo o diametro e o

comprimento do fio, podemos calcular ρ, e consequentemente ter acesso

a quantidades microscopicas, como m∗ e τ ! Em fısica experimental e

sempre assim: mede-se alguma coisa, sabe-se a priori uma segunda, e

calcula-se uma terceira!

Page 291: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 275

O fio metalico e o exemplo de resistor mais simples de todos. Sua

curva V vs. I e uma reta cuja inclinacao nos da o valor de R. O resistor

e um exemplo do que se chama em eletronica componente linear passivo.

Linear porque a corrente varia linearmente com a voltagem, e passivo

porque o valor de I nao depende de mais nenhuma outra voltagem alem

daquela aplicada aos seus terminais. Nem todos os objetos terao uma

curva simples assim. De fato, e precisamente a nao-linearidade de certos

componentes eletronicos que os torna uteis em eletronica. Particular-

mente importantes sao os transistores, objetos cuja curva V versus I

pode ser controlada por um sinal eletrico aplicado em um eletrodo de

controle. Transistores sao feitos de materiais semicondutores, e repre-

sentam o mais importante exemplo de componente eletronico ativo.

Recordando, um semicondutor e um material que possui uma banda

de energia completamente ocupada, um hiato de energias proibidas, e

outra banda com estados eletronicos disponıveis acima. A largura do

hiato e pequena o suficiente para que eletrons possam passar da banda

inferior para a banda superior. Chamamos de banda de valencia a

banda inferior, e banda de conducao a superior. Se o hiato for muito

grande, teremos um isolante ao inves de um semicondutor. Exemplos

de materiais semicondutores sao o germanio (Ge), o silıcio (Si), o ar-

seneto de galio (GaAs), o oxido de zinco (ZnO), entre outros. No Ge,

por exemplo, o hiato de energia entre a banda de valencia e a banda

de conducao e de 0,72 eV (1 eV = 1 eletronvolt e a energia adquirida

por um eletron ao atravessar uma diferenca de potencial de 1 volt). No

Si o hiato e de 1,1 eV. De maneira geral, a largura do hiato em semi-

condutores esta entre 1 e 3 eV. Esses materiais sao exemplos de semi-

Page 292: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

276

condutores intrınsecos. Sao assim chamados porque sao substancias

puras, e suas caracterısticas de semicondutividade sao devidas somente

a propriedades intrınsecas dos elementos que os constituem. Acontece

que as propriedades eletricas de semicondutores intrınsecos podem ser

dramaticamente alteradas (e controladas!) se outros elementos forem

adicionados a rede cristalina semicondutora. Esses elementos “exter-

nos” sao incluıdos em quantidades extremamente pequenas, e por essa

razao sao chamados de impurezas (nao confunda ‘impureza’ com ‘su-

jeira’). Para entendermos como funciona uma juncao, um diodo e um

transistor, e preciso entender os efeitos de impurezas adicionadas a

semicondutores intrınsecos.

Semicondutores cujas propriedades eletricas sao controladas pela

adicao de impurezas em semicondutores intrınsecos, sao chamados de

extrınsecos. Tomemos como exemplo o Ge e o Si. Os atomos desses ele-

mentos possuem configuracoes eletronicas externas muito semelhantes:

o Ge termina com as camadas eletronicas 4s24p2, e o Si com 3s23p2.

Eventualmente o leitor tera notado que na coluna desses elementos na

tabela periodica todos os elementos terminam com 4 eletrons, dois em

um orbital p e dois em um orbital s. Sao esses eletrons que formam as

ligacoes covalentes no semicondutor. Portanto, em um cristal de Ge,

cada atomo contribui com 4 eletrons para a banda de valencia. Suponha

agora que um dos atomos de Ge seja substituıdo por um atomo de

arsenio (As). A configuracao eletronica do arsenio termina com 4s24p3,

ou seja, o As possui 1 eletron a mais que o Ge. Esse eletron extra nao

encontra vaga na banda de valencia da rede de Ge, e consequentemente

e obrigado a pular para a banda de conducao. Entao, a inclusao de uma

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 277

impureza de As em uma rede de Ge resulta em 1 eletron na banda de

conducao. Obviamente nao se consegue colocar 1 unico atomo em uma

rede, mas a concentracao de impurezas pode ser controlada com grande

precisao, o que permite o controle fino no numero de transportadores

de carga na banda de conducao de um semicondutor. Uma impureza

que doa um eletron para a banda de conducao, como o faz o As no

Ge, e chamada de doadora de eletrons, e o semicondutor assim formado

e chamado de tipo n (o ‘n’ tendo o significado de ‘negativo’, porque

cargas negativas foram doadas a rede original).

A inclusao de um atomo de Ga em uma rede de Ge resulta na remocao de umeletron da banda de valencia do material, deixando um buraco em seu lugar.

Na tabela periodica o As possui 1 eletron a mais do que o Ge e

esta a sua direita. Ao contrario, o galio (Ga) esta a esquerda do Ge, e

possui configuracao eletronica externa 4s23p1, ou seja, com 1 eletron a

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278

menos que o Ge. O que acontece se ao inves de As colocarmos Ga em

uma rede de Ge? Exatamente o oposto: um dos eletrons da banda de

valencia originalmente pertencente ao Ge, ocupara uma vaga no atomo

de Ga, deixando um buraco na banda. Agora respire fundo e prepare a

sua paciencia, porque aqui acontece uma daquelas coisas que dao von-

tade de a gente largar a fısica e ir criar galinhas: buracos conduzem

eletricidade! E isso aı mesmo que voce acabou de ler; um buraco se

comporta como uma carga positiva dentro da banda de valencia, tanto

quanto um eletron se comporta como uma carga negativa na banda

de conducao, e se move sob a acao de um campo eletrico. No fundo,

no fundo, nao e tao estranho assim; com o tempo a gente se acos-

tuma e passa a considerar essas maluquices coisas normais. Imagine

uma banda de valencia totalmente ocupada, com excecao de uma unica

posicao eletronica que esta vazia. Este e o buraco. Suponha que um

campo eletrico seja aplicado. Cada eletron da banda ficara sujeito a

uma forca F = −eE. Se todas as posicoes estivessem ocupadas, o

princıpio de exclusao proibiria o surgimento de corrente eletrica. Mas

como existe uma vaga livre, um eletron proximo a essa vaga pode se

mover e pular para ela, deixando por sua vez a sua posicao vaga para

outro eletron se mover, etc. Assim, o movimento dos eletrons para um

lado, equivale ao movimento do buraco para o lado oposto. Temos com

isso uma corrente de buraco! Fısica e a ciencia mais economica que

existe: ate a ausencia de alguma coisa (como se supoe a respeito de um

buraco ) contribui para as propriedades fısicas de objetos. Para efeitos

de calculo, cada buraco se comporta como uma partıcula com massa,

carga, etc. E uma coisa de louco! Impurezas que criam buracos na

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 279

banda de valencia sao chamadas de receptoras de eletrons, e o material

semicondutor formado desse jeito e chamado de tipo p (o ‘p’ de ‘pos-

itivo’). Resumindo, a corrente eletrica em semicondutores do tipo n e

devida ao movimento de eletrons na banda de conducao, e em semi-

condutores do tipo p, devida a buracos na banda de valencia. Damos o

nome de dopagem ao processo controlado de introducao de impurezas

em semicondutores intrınsecos. Alias, voltando a essa historia de bu-

racos, eles normalmente estarao tambem presentes nos semicondutores

intrınsecos. Como dissemos, devido ao fato do hiato de energia ser

pequeno, eletrons no topo da banda de valencia pulam para a banda

de conducao por efeito da temperatura6. Se a temperatura for tal que

essa quantidade se torne da ordem do hiato, os eletrons da banda de

valencia podem pular para a banda de conducao, deixando buracos

para tras. Ao aplicarmos um campo eletrico, havera duas correntes:

uma de eletrons na banda de conducao, e outra de buracos na banda

de valencia. Cada uma para um lado!

6Lembre que a energia termica e medida por kBT , onde kB e a constante deBoltzmann. A temperatura ambiente, por exemplo, T = 300K, a energia termicae igual a 1, 38 × 10−23 J/K ×300 K = 4, 14 × 10−21 J, ou 0,026 eV. Se em umsemicondutor o hiato entre a banda de conducao e a de valencia for da ordemdeste valor, eletrons podem pular de uma banda para a outra por mero efeito datemperatura.

Page 296: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

280

.

Em um semicondutor, o movimento de um eletron para uma direcao equivale aomovimento de um buraco para a outra. O buraco se comporta como uma partıculacom a mesma massa do eletron, porem com carga contraria.

Considere agora o que ocorre quando, no mesmo cristal semicon-

dutor, uma regiao e dopada com doadores de carga, e a outra com

receptores. Ou seja, o cristal e dividido em uma regiao do tipo n e

outra do tipo p. A regiao de juncao entre essas duas regioes e chamada

juncao pn. Juncoes pn sao a base de diodos e transistores semicon-

dutores. Os eletrons da regiao n tendem a fluir para a regiao p, e os

buracos da regiao p tendem a fluir para a regiao n. Na medida em

que isso ocorre, as cargas se acumulam dos dois lados, e um poten-

cial eletrostatico aparece, fazendo diminuir o fluxo. O resultado geral

deste acumulo de cargas negativas no lado p e positivas no lado n e

o aumento do potencial eletrostatico no lado p em relacao ao lado n.

Note que este potencial e uma propriedade intrınseca do material, e

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 281

so depende das concentracoes de impurezas p e n, e das caracterısticas

do semicondutor antes da dopagem. E facil ver que se tentarmos fazer

passar uma corrente eletrica por uma juncao pn, o resultado dependera

da direcao em que o campo eletrico e aplicado, ou, da polaridade do

potencial aplicado. Por exemplo, se aplicarmos um potencial positivo

no lado negativo, e negativo no lado positivo, a diferenca de potencial

interno sera acentuada, e nao havera fluxo de corrente. Se, por outro

lado, revertermos a polaridade, ou seja, potencial positivo aplicado no

lado positivo e negativo no lado negativo, a juncao conduzira. Temos

com isso um elemento de circuito nao linear, ou seja, sua curva V vs. I

diferente de uma reta. Note o contraste com o caso do fio metalico, para

o qual a corrente so depende do valor da voltagem, e nao da direcao

do campo eletrico. O que acabamos de descrever e o comportamento

de um diodo semicondutor, que so conduz para voltagens aplicadas em

determinada direcao.

Uma das aplicacoes mais comuns de juncoes pn sao os chamados

diodos LEDs, do ingles Light Emitting Diodes, ou diodos de emissao

de luz. Como vimos no capıtulo quatro, quando um eletron em um

atomo faz uma transicao de um nıvel de energia mais alto para um

mais baixo, ele emite um foton de energia. Nos LEDs ocorre algo

semelhante: a voltagem interna na juncao pn e construıda de modo

que o foton emitido por um eletron que decaia da banda de conducao

para a banda de valencia esteja na regiao do visıvel.

Transistores por sua vez nada mais sao do que duas juncoes pn (ou

dois diodos) justapostas7 . Podem ser do tipo pnp ou do tipo npn, de-

7Transistores construıdos desta forma sao chamados de transistores bipolares.

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282

pendendo da maneira como os diodos sao conectados. Sao o exemplo

mais importante de componentes ativos em eletronica, ou seja, com-

ponentes que quando alimentados por um sinal externo, controlam a

corrente eletrica em circuitos. As aplicacoes praticas dos transistores

sao infindaveis, e obviamente este nao e o espaco apropriado para dis-

cutı-las. Vamos apenas mencionar a propriedade que faz os transistores

tao uteis para a eletronica. Considere, por exemplo, um transistor npn.

Este e geralmente um objeto com 3 terminais, chamados de emissor,

base e receptor. Esses terminais estao eletricamente ligados as regioes

npn (ou pnp) do material semicondutor. A utilidade dos transistores

vem do seguinte fato: quando ligado de maneira apropriada, a corrente

que flui do coletor para o emissor pode ser controlada, e e proporcional

a corrente que flui pela base, ou seja:

Icoletor = αIbase

onde α vale tipicamente 100. Entao, uma pequena corrente na base

controla uma corrente muito maior no coletor. Por conta desta pro-

priedade, transistores podem atuar em circuitos eletronicos como am-

plificadores de corrente.

Essas propriedades dos materiais semicondutores tornaram possıvel

a construcao nao so de diodos e transistores como elementos de cir-

cuitos individuais, mas circuitos eletronicos completos dentro de um

unico cristal semicondutor. A deposicao controlada de varias regioes

npn no mesmo semicondutor resulta em resistores, diodos e transis-

tores conectados entre si, alguns podendo conter o estonteante numero

Existem, contudo, outros tipos de transistores cujo princıpio de funcionamento ediferente.

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 283

de 10 mil transistores dentro de um pequeno pedaco de silıcio. Cir-

cuitos construıdos dessa maneira sao chamados de circuitos integrados,

e na sua forma final, encapsulado e exibindo apenas os terminais para

conexoes eletricas, sao apelidados de chips. Para algumas aplicacoes

especiais, circuitos integrados podem chegar a ter milhoes de compo-

nentes eletronicos em um unico chip!

Um LED, do ingles Light Emitting Diode e uma das inumeras aplicacoes dos semi-condutores na eletronica.

5.8 O que sao Computadores?

Computadores invadiram a nossa vida. Aos poucos foram se popula-

rizando, e ja e impossıvel pensarmos em viver sem eles. Ha pouco tempo

atras o uso de computadores estava restrito aos centros de pesquisas e

as universidades, e sua tarefa principal era a realizacao de calculos

Page 300: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

284

cientıficos complicados que tomariam muito tempo, para serem feitos a

mao. O avanco na tecnologia dos computadores foi (e ainda esta sendo)

tao rapido, que muita gente nao conseguiu acompanhar, e acabou fi-

cando de fora dessa nova era. Hoje, com a proliferacao dos computa-

dores pessoais, usamos o computador nao so para fazer contas e graficos,

mas como maquina de escrever, como telefone, fax, secretaria eletronica,

correio, livro, televisao, despertador, maquina de vıdeo-game, enci-

clopedia, aparelho de som, para mencionar umas poucas aplicacoes.

Mas, como os computadores conseguem fazer tudo isso? No fundo a

ideia e muito simples, e esta baseada no fato de que numeros e operacoes

matematicas podem ser representados por nıveis de voltagens em cir-

cuitos eletronicos. Por razoes de estabilidade e reprodutibilidade, ao

inves de varios, usa-se somente dois nıveis de voltagem. Vamos fazer

a seguinte analogia: imagine varias tomadas em uma parede da sua

casa, por exemplo, quatro. Essas tomadas estao ligadas a disjuntores

que podem estar ligados ou desligados. Voce tem um voltımetro, e quer

verificar quais tomadas estao ligadas. Atencao: nao interessa o valor

da voltagem em cada uma delas (se 100 volts, 50 volts, etc.), mas so-

mente um ‘sim’ ou ‘nao’. Imagine que as 4 tomadas estao dispostas

em uma linha, e voce comece a medir da esquerda para a direita. A

cada tomada que estiver polarizada voce associa o dıgito ‘1’, e a cada

uma que estiver desligada voce associa o dıgito ‘0’. Entao, um possıvel

resultado da sua medida seria ‘1011’, significando que a primeira, a

terceira e a quarta tomadas estao polarizadas, e a segunda nao. Esta

sequencia de dıgitos pode ser considerada uma representacao de um

numero na base 2, ou seja, um numero em um sistema numerico que

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 285

possui somente dois dıgitos, 0 e 1. Tal sistema numerico e chamado de

binario. O nosso sistema numerico possui 10 dıgitos (incidentalmente

porque possuimos 10 dedos nas maos!), de zero a nove, e por isso e

chamado de sistema decimal. Para transformar a sequencia ‘1011’ para

decimal procedemos da seguinte forma: multiplicamos cada dıgito da

sequencia pela potencia de dois relativa a sua posicao, e somamos tudo.

As posicoes comecam a ser contadas da direita para a esquerda, sendo

0 associado a primeira. Por exemplo, na sequencia ‘1011’ o primeiro

dıgito e 1, e ocupa a quarta posicao. Portanto, a sua representacao

decimal sera 1×23 = 8, o segundo sera 0×22 = 0, o terceiro 1×21 = 2

e o ultimo 1 × 20 = 1. Assim teremos:

1011 ⇒ 8 + 0 + 2 + 1 = 11

Ou seja, ‘1011’ em binario e igual a ‘11’ em decimal. Voce pode re-

presentar o numero ‘11’, ou qualquer outro, atraves das tomadas da

sua casa!

Se voce acha isso esquisito demais, e porque ainda nao notou que

no sistema decimal procedemos da mesma maneira. Por exemplo, con-

sidere o numero 528. Esse numero pode ser decomposto exatamente da

mesma forma na base decimal:

528 = 5 × 102 + 2 × 101 + 8 × 100

Substitua agora as tomadas por circuitos integrados em chips onde

transistores polarizados representam ‘1’ e nao-polarizados represen-

tam ‘0’, e voce tem a base para o funcionamento de um computa-

dor. Podemos nao somente representar numeros, mas realizar operacoes

Page 302: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

286

matematicas de todo tipo, apenas com esses ‘zeros’ e ‘uns’, polarizando

e despolarizando (ou seja, ligando e desligando) transistores em chips

construıdos especialmente para esta finalidade: os chamados micropro-

cessadores.

Podemos entao esquematicamente resumir a evolucao do atomo ao

computador:

elementos tetravalentes (Ge, Si) ⇒ cristais semicondutores

intrınsecos ⇒ dopagem e cristais semicondutores extrınse-

cos tipo ‘p’ e tipo ‘n’ ⇒ juncoes pn ⇒ diodos ⇒ juncoes

pnp ou npn ⇒ transistores ⇒ circuitos integrados ⇒ mi-

croprocessadores ⇒ computadores

Na logica binaria o que importa e se um determinado elemento do circuito esta“aceso” ou nao. O estado “aceso” representa o dıgito logico ‘1’, e o estado “apagado”o dıgito logico ‘0’.

Page 303: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 287

5.9 Bits & Bites: o Basico

Um Computador e um complexo emaranhado de circuitos eletronicos

organizados para executar operacoes logicas. Essas operacoes sao re-

alizadas atraves de combinacoes de sequencias de sinais eletricos que

representam os bits ‘0’ e ‘1’. Uma sequencia de oito bits e chamada um

bite. Microprocessadores sao caracterizados pela quantidade de bits

com que operam. Por exemplo, os velhos microprocessadores 8088 e

80286 operavam com sequencias de 16 bits, ou seja, 2 bites. Neste

caso, o maior numero decimal possıvel de ser representado em tais pro-

cessadores e:

1111111111111111 ⇒ 215 + 214 + 213 + 212 + 211 + 210 + 29 + 28 + 27+

+26 + 25 + 24 + 23 + 22 + 21 + 20 =

= 32768 + 16384 + 8192 + 4096 + 2048 + 1024 + 512 + 256 + 128+

+64 + 32 + 16 + 8 + 4 + 2 + 1 = 65.535

Qualquer numero maior do que 65.535 precisa ser “quebrado” em numeros

menores para ser processado nestes microprocessadores. Computadores

baseados nos processadores 80386, 80486 e Pentium operam com uma

sequencia de 32 bits ao inves de 16, o que os permite operar diretamente

com numeros ate 4.294.967.295.

Basicamente um computador pode ser dividido em cinco partes dis-

tintas: entrada (input), saıda (output), memoria, unidade de controle,

e as unidades logica e aritmetica. O teclado, por exemplo, representa

uma das unidade de entrada de dados, e a tela uma das de saıda. Resul-

tados de operacoes sao armazenados na memoria. O papel da unidade

Page 304: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

288

de controle e interpretar comandos e configurar os circuitos eletronicos

de acordo para que a operacao desejada seja executada. As unidades

de controle e logica e aritmetica sao organizadas em um unico bloco

chamado unidade central de processamento (UCP).

A grande utilidade de um computador reside no fato de que podemos

“ensina-lo” a executar tarefas logicas. Essas tarefas sao ditadas a ele

sob a forma de sequencias de instrucoes, ou programas. Programas de

computador podem ser escritos em varias linguagens diferentes, como

por exemplo, o FORTRAN, o PASCAL, o C++, etc. Cada linguagem

tem suas peculiaridades, vantagens ou desvantagens, dependendo da

tarefa a ser realizada. Aprender uma linguagem de computador con-

siste em aprender os seus comandos e sua sintaxe, ou seja, as regras

sob as quais os comandos devem ser escritos. O programa abaixo e um

exemplo de programa escrito em FORTRAN que instrui o computa-

dor a ler dois numeros de entrada, calcular e exibir na tela as medias

aritmetica e geometrica entre eles:

PROGRAM MEDIAS

PRINT*, ’Entre com dois numeros’

READ*, XN1, XN2

ARI = 0.5*(XN1+XN2)

GEO = SQRT(XN1*XN2)

PRINT*, ’Media aritimetica:’, ARI

PRINT*, ’Media geometica:’, GEO

STOP

END

O mesmo programa poderia ter sido escrito em PASCAL ou C++,

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 289

ou ainda qualquer outra linguagem (as vezes, linguagens de computa-

dores sao como times de futebol: provocam acaloradas discussoes entre

os “experts”. Portanto, desde ja me confesso um programador medıocre

e rogo clemencia aos inimigos do FORTRAN por este exemplo cretino

de programacao).

O computador nao tem como compreender os comandos acima na

forma como eles estao escritos. O comando ’PRINT*,’ (’imprimir’, em

ingles), por exemplo, instrui o computador a exibir na tela o que vier

depois da vırgula (no caso da segunda linha do programa acima, a

frase ’Entre com dois numeros’). Para que o computador entenda o

comando, e preciso que ele seja traduzido para uma sequencia de bits.

Quem faz este trabalho de interprete entre as palavras do mundo dos

humanos para as palavras do mundo dos computadores e um programa

chamado de compilador. Portanto, para que o programa acima possa

ser executado em um computador, e preciso que nele esteja instalado

um compilador FORTRAN. Se o programa fosse escrito em C++, seria

preciso ter instalado um compilador C++, e assim por diante.

A simplicidade do programa acima pode ate insultar a inteligencia

de alguns. De fato, para que tanta tecnologia so para calcular medias

aritmetica e geometrica entre dois numeros? Para isso usamos uma

maquina de calcular de bolso. Muito bem, e que tal calcularmos os

autoestados de energia de um atomo de uranio, cujo nucleo possui 238

protons e neutrons? Ou ainda as autofuncoes de um eletron em uma

rede de silıcio? E para isso que servem os computadores; executar

tarefas que nao podemos realizar com instrumentos mais simples! E

obvio que um programa que calcule autoestados de um atomo sera

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290

consideravelmente mais complexo que o do exemplo acima!

Para que um programa de computador, com seu compilador, possam

ser executados, e preciso que um outro programa esteja em operacao.

Este e uma especie de administrador do computador; ele e chamado

de sistema operacional. Os sistemas operacionais mais conhecidos para

microcomputadores na atualidade sao o MS-DOS, LINUX, UNIX e o

WINDOWS. Sistemas operacionais sao programas que devem ser li-

dos pelo computador a partir de algum meio de gravacao (como, por

exemplo, um disquete). Mas, para ter condicoes de executar qual-

quer comando de um programa, o computador necessita executar antes

operacoes ainda mais elementares. Estas operacoes sao de fato os co-

mandos que “trazem o computador a vida”. E mais ou menos como

ao acordarmos de manha apos uma noite de sono pesado: abrimos

os olhos, e comecamos aos poucos a nos mexer antes de executarmos

tarefas mais complexas, tais como escovar os dentes ou tomar banho.

Quando ligamos o computador, umas poucas linhas de comando que

estao gravadas permanentemente em sua memoria o instruem a execu-

tar uma serie de testes preliminares, como a verificacao da alimentacao

dos circuitos eletricos, reconhecimento do teclado, drives, a unidade de

CD, etc., e so entao buscar o sistema operacional, que finalmente o

tornara apto a executar tarefas. Este programa inicial, que transforma

o computador de um monte de fios e pedacos de semicondutores sem

vida, em um poderoso, fiel e incansavel aliado, e chamado bootstrap, ou

simplesmente boot. Esta palavra denota o fato de que o computador,

ao ser ligado, “acorda” com o proprio esforco, sem intervencao externa.

O uso de computadores revolucionou a pesquisa cientıfica, em par-

Page 307: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 291

ticular a pesquisa em fısica. Com eles podemos nao so realizar calculos

complicados, impossıveis de serem feitos a mao, como tambem simular

o comportamento de sistemas sob as mais variadas condicoes e com-

parar com o comportamento de sistemas reais. Por exemplo, podemos

simular reacoes quımicas na ausencia de gravidade, o que e obviamente

impossıvel de ser realizado em um laboratorio na Terra. Podemos cal-

cular os nıveis de energia dos eletrons em um atomo isolado de carbono

e comparar com aqueles de eletrons em uma rede cristalina de carbono.

E assim por diante. E impossıvel pensar em pesquisa cientıfica nos dias

de hoje sem o auxılio de um computador.

5.10 A Internet

Alem de realizarem calculos complicados, tocarem musica, exibirem

filmes, trabalharem como maquinas de escrever, simuladores, etc., com-

putadores possuem uma outra caracterıstica que os torna ainda mais

uteis: podem ser interligados de modo a se comunicarem uns com os

outros. Um conjunto de computadores ligados entre si forma uma rede

(“net”, em ingles). Esta interconexao e realizada atraves de cabos

eletricos especiais que conduzem os bits e bites de um computador para

outro sob a forma de sinais eletricos. Desta forma podemos transferir

dados de uma maquina para a outra. Mas, para que um computador

possa aceitar documentos enviados de um outro, ambos devem com-

preender o formato da mensagem enviada. Ou seja, deve existir um

protocolo obedecido por todas as maquinas ligadas a uma determinada

rede.

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292

Interconexoes entre grupos de redes de computadores sao chamadas

de “inter-redes”, ou internet. A Internet (com “I” maiusculo) e sim-

plesmente a melhor e maior internet (com “i” minusculo) ja montada.

A ideia de redes de computadores nasceu de um projeto militar

americano desenvolvido durante os anos de Guerra Fria pela agencia

ARPA (Advanced Research Projects Agency) com a finalidade de di-

ficultar o acesso a informacoes sigilosas. Os dois tipos de servicos que

se tornaram imediatamente importantes com a criacao das redes foram

o Telnet, que permitiu computadores de grande porte serem acessados

e utilizados por usuarios disponibilizados remotamente, e o endereco

eletronico (e-mail) que agilizou a circulacao de informacoes entre os

usuarios da rede.

Com a sua criacao, enderecos eletronicos tornaram-se rapidamente

populares no meio academico, onde cientistas de todo o mundo pas-

saram a trocar ideias sobre temas de interesse comum usando este

veıculo de comunicacao. Porem, a transferencia de material muito ex-

tenso, como artigos de revistas especializadas, provou ser muito ine-

ficiente atraves do e-mail usual. A fim de transferir arquivos muito

extensos, foi criado um servico chamado FTP (File Transfer Protocol

- protocolo de transferencia de arquivos). Atraves do FTP, pessoas do

mundo inteiro passaram a acessar documentos, programas, textos, fi-

guras, etc., localizados remotamente em algum arquivo de computador,

em uma biblioteca, centro de pesquisa, etc. Contudo, a maneira como o

FTP foi concebido exigia um certo grau de desembaraco do usuario com

computadores, e portanto pouco amigavel para o leigo. Alem disso, a

visualizacao de um documento adquirido via FTP nao pode ser feita

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 293

antes da aquisicao estar completa.

Contudo, no inıcio dos anos 90 uma nova revolucao ocorreu: Tim

Berners-Lee, trabalhando no CERN, inventou um novo protocolo, chamado

HTTP (HyperText Transfer Protocol - protocolo de transferencia de

hipertextos), que permitiu o desenvolvimento de uma nova maneira

pela qual dados podiam ser lidos e exibidos na tela de um computador

de modo simples para o usuario leigo. A invencao permitiu a criacao

da WWW (World Wide Web) e o desenvolvimento da Internet como a

conhecemos hoje.

Suponha que dois computadores, Eduardo e Monica, estejam ligados

entre si. Eduardo possui uma serie de documentos, fotografias, textos,

etc., guardados em sua memoria. Monica esta localizado em outra

parte, e deseja acessar alguns desses documentos. Para que Monica

tenha acesso aos documentos de Eduardo, e preciso que um programa

especial, chamado de servidor, esteja sendo executado em Eduardo.

Quando Monica envia alguma mensagem requerendo um documento

de Eduardo, o servidor localiza o pedido e envia o resultado da busca

de volta. O documento e entao exibido na tela de Monica.

A Internet e a maior rede de computadores do mundo. Atraves

dela podemos, por exemplo, acessar a Biblioteca da Universidade de

Harvard, participar de um jogo em um cassino em Las Vegas, visitar

obras de arte em exposicao no Louvre em Paris, acompanhar as imagens

obtidas pela sonda “Pathfinder” em Marte, comprar um livro ou um

CD em uma loja em Berlin, visitar o Vaticano em Roma, etc. E o maior

(e mais democratico!) veıculo de difusao de informacao e conhecimento

ja inventado pelo homem!

Page 310: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

294

5.11 O ADN Computa!

Computadores sao maquinas que executam instrucoes codificadas em

sequencias de dıgitos ‘0’ e ‘1’. ADNs sao moleculas que executam in-

strucoes codificadas como sequencias de moleculas menores denomi-

nadas ‘C’, ‘G’, ‘A’ e ‘T’ (secao 4.6). Uma instrucao de computa-

dor pode ser algo como ‘1100001010010100010010100111. . . ’, enquanto

uma instrucao de ADN pode ser algo como ‘CCGTTGATTTAAAAC-

CCATGG. . . ’. Computadores executam instrucoes atraves de com-

binacoes de sinais eletricos em circuitos eletronicos. ADNs executam

instrucoes atraves de combinacoes de reacoes quımicas que ocorrem

dentro das celulas de organismos. Uma operacao tıpica realizada por

computadores e: “some estes dois numeros”. Uma operacao tıpica

realizada por ADNs e: “faca esta proteına”. Vemos que existem semel-

hancas obvias entre computadores e ADNs! Seria possıvel instruir

moleculas de ADN para realizarem uma operacao de computador como:

“encontre a solucao para tal problema”?

Leonard M. Adleman e pesquisador profissional em ciencia da com-

putacao e biologo amador. Ele e professor da Universidade da Cali-

fornia do Sul, em Los Angeles. Estudando problemas matematicos

envolvendo moleculas de ADN em 1993, ele teve a ideia de fazer um

computador biologico, onde moleculas de ADN seriam instruıdas para

resolver problemas matematicos. As variaveis do problema seriam co-

dificadas em sequencias de moleculas ‘C’, ‘G’, ‘A’ e ‘T’; as operacoes se-

riam realizadas atraves das reacoes quımicas envolvendo essas moleculas,

e a resposta viria tambem sob a forma de uma sequencia de ADN. A co-

Page 311: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 295

dificacao das variaveis em moleculas de ADN e possıvel porque nos dias

de hoje (acreditem!) pode-se literalmente encomendar moleculas com

qualquer sequencia desejada a laboratorios comerciais por um preco

irrisorio! Viva a tecnologia!

Adleman demonstrou a realizacao de sua ideia resolvendo um pro-

blema matematico que pode ser exemplificado atraves da seguinte situacao

simples: imagine que existam voos comerciais entre quatro cidades:

Rio, Belo Horizonte, Sao Paulo e Vitoria. As regras do jogo sao: existem

voos diretos (isto e, sem escala) entre Rio-Belo Horizonte, Vitoria-Sao

Paulo, Sao Paulo-Belo Horizonte, Vitoria-Belo Horizonte, e Rio-Vitoria.

Com excecao deste ultimo, os outros voos so existem na ordem citada

das cidades. Por exemplo: o voo Sao Paulo-Belo Horizonte existe, mas

o Belo-Horizonte-Sao Paulo nao. O trajeto Rio- Vitoria e o unico em

que existem voos de ida e volta. Pois bem, dadas as regras, o problema

a ser resolvido e: como viajar do Rio para Belo Horizonte passando

somente uma vez por cada uma das cidades? Com um simples esboco

em uma folha de papel imediatamente concluimos que a unica resposta

possıvel e: Rio-Vitoria-Sao Paulo-Belo Horizonte. Este problema tri-

vial se complica dramaticamente quando o numero de cidades aumenta.

Para dar uma ideia, se tivessemos 100 cidades conectadas ao inves de

quatro, para encontrar a trajetoria correta dos voos indo de uma cidade

a outra passando somente uma vez por cada uma delas, com a ajuda de

um computador como os que usamos atualmente, levaria mais tempo

do que a idade do Universo!

Os nomes das cidades foram codificados nas seguintes sequencias de

moleculas (obviamente Adleman utilizou nomes de cidades americanas

Page 312: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

296

em seu experimento):

RIO DE JANEIRO: ACTTGCAG

VITORIA: TCGGACTG

SAO PAULO: GGCTATGT

BELO HORIZONTE: CCGAGCAA

O leitor se recordara o que foi dito no capıtulo quatro, que cada uma

dessas moleculas so se liga ao seu complemento, sendo ‘A’ o comple-

mento de ‘T’ (e vice-versa) e ‘G’ o complemento de ‘C’ (e vice-versa).

Entao, cada “cidade-molecula” tera um complemento. Por exemplo, o

complemento do Rio de Janeiro sera TGAACGTC, o de Belo Horizonte

GGCTCGTT, etc. As trajetorias dos voos foram codificadas tomando-

se as quatro ultimas letras da cidade de origem e juntando-as com as

quatro primeiras da cidade de destino. Por exemplo, o codigo do voo

Rio-Vitoria sera: GCAGTCGG.

Por cerca de 20 dolares, Adleman obteve tubos contendo aproxi-

madamente 1014 moleculas de cada sequencia. Misturou-as em solucao

e cerca de 1 segundo depois tinha a resposta para o problema dentro

do tubo (na verdade ele usou sete cidades, e nao quatro, mas a dis-

cussao fica mais simples se usarmos apenas quatro). As reacoes ocorrem

da seguinte maneira: imagine que uma molecula do tipo Rio-Vitoria

(GCAGTCGG) encontre uma molecula que e o complemento de Vitoria

(AGCCTGAC). Como AGCC e o complemento de TCGG, as duas

moleculas sao ligadas uma a outra, ficando a terminacao TGAC do com-

plemento livre. Quando o complexo formado encontra uma molecula

Vitoria-Sao Paulo (ACTGGGCT), novamente ocorre uma reacao, pois

ACTG e complemento de TGAC. Dessa forma as “moleculas-voos” vao

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 297

se ligando entre si atraves das moleculas-complemento. A solucao do

problema estara codificada nas moleculas que apresentarem a sequencia:

GCAGTCGGACTGGGCTATGTCCGA. Tal sequencia leva menos de

1 segundo para surgir dentro do tubo, o que representa um tempo muito

menor do que aquele necessario para resolvermos o problema de cabeca!

Utilizando tecnicas fısico-quımicas, Adleman separou as moleculas

que continham a resposta do problema das outras (o que levou 1 se-

mana!).

A possibilidade de construir computadores utilizando reacoes quımicas

entre moleculas de ADN representaria um ganho de velocidade e ca-

pacidade de armazenamento incomparavelmente maiores do que os e-

xistentes hoje com computadores usuais (a proposito, serıamos nos -

juntamente os outros seres vivos - diferentes solucoes, encontradas por

ADNs, de um imenso problema matematico? Pense nisso!). Um grama

de ADN pode guardar tanta informacao quanto 1 trilhao de CDs. Os

varios trilhoes de reacoes quımicas que ocorrem simultaneamente den-

tro do tubo representam uma capacidade de processamento paralelo

que torna os supercomputadores da atualidade meras reguas de calculo!

Adleman estima que serao necessarios outros 50 anos de pesquisa e in-

vestimentos para se alcancar tal objetivo.

5.12 Computadores podem Pensar?

- Como ele se sente?

- Como ele se sente? Oh,...uma pergunta interessante meu rapaz....tam-

bem gostaria de saber a resposta. Bem, vamos ver o que o nosso amigo

Page 314: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

298

diz... e estranho...er...Ultronico diz que ele nao ve...nao pode sequer

entender o que voce quer saber!

Os murmurios e risos na plateia transformaram-se em uma algazarra.

Adam sentiu-se terrivelmente embaracado. O que quer que fizessem,

eles nao deveriam ter rido daquele jeito. (The Emperor’s New Mind

- A Nova Mente do Imperador - R. Penrose, Vintage 1990)

O crescente progresso feito na tecnologia da informatica tem le-

vantado questoes instigantes e dividido opinioes na comunidade cientıfica.

A pergunta ultima que se coloca e: ate que ponto computadores po-

dem se aproximar das capacidades do cerebro humano? Computadores

algum dia poderao pensar como uma pessoa? Poderao ter consciencia

como nos? Se apaixonar, sentir dor, ironizar, compreender, desenvolver

aptidoes para as artes, ciencias, religiao, etc.? Serao capazes de expe-

rimentar compaixao, ganancia, orgulho, egoısmo? Como sera o “ego”

de um computador? Terao medo da morte? Terao lacos de famılia?

Desenvolverao doencas mentais? E preciso que se reconheca que no

que diz respeito a uma serie de tarefas, computadores ja ultrapassaram

em muito o cerebro humano. Por exemplo, um simples PC como o que

uso no momento para escrever esta secao (Pentium MMX 200 MHz)

e capaz de realizar milhoes de operacoes matematicas por segundo, o

que e obviamente impossıvel para mim ou para qualquer outra pessoa

fazer. Uma parte dos cientistas que estudam a chamada Inteligencia

Artificial (IA) defendem uma posicao extrema: a de que para um com-

putador alcancar o cerebro humano com todas as suas capacidades, e

uma questao de tempo, rapidez, e espaco de memoria. Uma corrente

ainda mais radical da IA acredita que, de fato, computadores vao no

Page 315: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 299

futuro superar o cerebro em todas as suas qualidades, e terao como nos

experiencias de auto-consciencia! De outro lado encontram-se aqueles

que rejeitam essa ideia. Alguns cientistas que entendem mais de cerebro

do que de informatica chegam a considerar sem sentido a simples com-

paracao entre um computador e um cerebro humano (pelo menos com

a tecnologia atual).

Entre os fısicos-matematicos de nossa epoca que mais contunden-

temente tem se oposto as ideias da IA, esta Roger Penrose, do Insti-

tuto de Matematica da Universidade de Oxford. Penrose e autor do

best seller The Emperor’s new Mind. Concerning Computers,

Minds, and the Laws of Physics (A Nova Mente do Imperador.

A Respeito de Computadores, Mentes, e as Leis da Fısica). Penrose e

partidario do segundo grupo, ou seja, nao acredita que a maneira de

“pensar” de um computador possa se igualar a maneira do cerebro hu-

mano. De fato, nao acredita que um computador possa sequer imitar

um cerebro em qualquer um de seus aspectos. Penrose nao define (como

ninguem o faz) consciencia, mas a associa a compreensao, em particu-

lar a compreensao matematica. Ou seja, para ele o ato de compreender

alguma coisa necessariamente envolve uma experiencia consciente. Em

seu livro ele tenta argumentar que o cerebro, ao contrario dos com-

putadores, nao funciona por algoritmos matematicos. Um algoritmo e

um procedimento atraves do qual um calculo e realizado. Por exem-

plo, o algoritmo de Euclides (300 AC) e usado para encontrar o maior

fator comum entre dois numeros8. Para exemplificar o algoritmo de

Euclides tomemos os numeros 1365 e 3654. Qual o maior inteiro que

8Um fator comum e um numero que divide outros dois em partes inteiras.

Page 316: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

300

divide esses dois numeros? Para sabermos a resposta dividimos o maior

numero pelo menor, e tomamos o resto da divisao. Esse resto sera o

divisor do menor numero entre os dois primeiros. O procedimento e

repetido ate chegarmos a resto zero:

3654 ÷ 1365 = 2 com resto 924

1365 ÷ 924 = 1 com resto 441

924 ÷ 441 = 2 com resto 42

441 ÷ 42 = 10 com resto 21

42 ÷ 21 = 2 com resto 0

Logo, o maior divisor comum de 3654 e 1365 e 21: 3654 ÷ 21 = 174,

e 1365 ÷ 21 = 65. O procedimento acima e o algoritmo de Euclides.

Qualquer operacao realizada em um computador e feita segundo um

algoritmo. Penrose argumenta que a maneira segundo a qual o cerebro

humano funciona e essencialmente diferente, ou seja, e nao algoritmica,

e portanto computador e cerebro sao coisas fundamentalmente dife-

rentes. Recentemente ele voltou ao topico em um capıtulo do livro

O que e Vida? Os Proximos Cinquenta Anos. Especulacoes

sobre o futuro da biologia (Ed. Brasileira Unesp 1997), uma come-

moracao aos 50 anos das palestras de Schrodinger realizadas em Dublin

(veja capıtulo tres). Para terminar o capıtulo, transcrevo abaixo os dois

primeiros paragrafos da traducao brasileira.

A mentalidade humana tem muitas facetas. Pode ser

ate que algumas delas possam ser explicadas pelos conceitos

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 301

da fısica atual e, alem disso, estar potencialmente abertas a

simulacao em computadores. Os defensores da inteligencia

artificial (IA) afirmariam que tal simulacao com certeza e

possıvel - pelo menos no que diz respeito a muitas das qua-

lidades mentais basicamente relacionadas com a nossa in-

teligencia. E mais, ela poderia ser utilizada para capacitar

um robo a comportar-se, especificamente nesses aspectos, do

mesmo modo que um ser humano. Os defensores do IA forte

iriam mais longe e sustentariam que toda qualidade mental

pode ser imitada - e eventualmente suplantada - pelas acoes

dos computadores eletronicos. Eles tambem afirmariam que

essa mera acao computacional deve provocar, no computa-

dor ou no robo, o mesmo tipo de experiencias conscientes

pelas quais nos passamos.

Por outro lado, existem muitas pessoas que argumen-

tariam o contrario: que certos aspectos da nossa mental-

idade nao podem ser tratados apenas em termos de com-

putacao. De acordo com essa visao, a consciencia humana

seria tal qualidade - ou seja, ela nao e uma mera mani-

festacao da computacao. Na verdade, eu mesmo vou de-

fender este argumento; mais do que isto, porem, vou argu-

mentar que as acoes que nossos cerebros realizam de acordo

com nossas deliberacoes conscientes devem ser coisas que

nao podem nem mesmo ser simuladas em um computador -

entao, com certeza, a computacao e incapaz, por si mesma,

de gerar algum tipo de experiencia consciente.

Page 318: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

302

PAINEL XI

ALAN TURING

O ingles Alan Turing e considerado um dos principais precursores dos computa-

dores digitais e da Inteligencia Artificial. Nasceu em Londres, no dia 23 de junho de

1912. Sua carreira de matematico teve inıcio em 1931, quando ingressou no Kings

College, em Cambridge.

Em 1928, o matematico alemao David Hilbert, um dos mais importantes do

seculo XX, lancou o seguinte desafio em um congresso internacional de matematica9:

existiria algum procedimento “mecanico”, de carater geral, que pudesse ser aplicado

na resolucao de qualquer problema matematico de uma determinada classe? Alan

Turing se interessou pelo desafio, e ao tentar formalizar o conceito de “procedimento

mecanico”, chegou ao que ficou conhecido como aMaquina de Turing, uma maquina

imaginaria que “compreenderia” as proposicoes de um dado problema em termos

de sequencias de “zeros” e “uns”, e apos operar na mesma base, daria a resposta

tambem sob a mesma forma. Fundou assim as bases para o funcionamento dos

modernos computadores digitais!

Durante a Segunda Guerra, Turing usou suas habilidades matematicas para aju-

dar os britanicos no esforco de decifrar o sistema de codigos utilizado pelos alemaes.

Esses codigos eram gerados por um aparelho eletromecanico, uma especie de com-

putador rudimentar chamado Enigma, que constantemente criava novos codigos

tornando a tarefa de decodificacao virtualmente impossıvel para seres humanos.

Turing, com outros cientistas britanicos, construiu um aparelho, denominado Colos-

9Hilbert gostava de desafios. Ele tinha um projeto de formular toda amatematica a partir de uns poucos axiomas. Em 1931, enquanto Hilbert tentavaalcancar tal formulacao, um jovem matematico austrıaco, chamado Kurt Godel,provou um teorema bombastico que implodiu o sonho de Hilbert, e o deixou, juntocom os outros matematicos da epoca, sem respiracao. O Teorema de Godel, apon-tado por alguns como o mais importante teorema da matematica, de certa formaestabelece os limites da propria matematica. Ele afirma essencialmente que nemtudo o que e verdade sobre numeros pode ser demonstrado matematicamente! Ouseja, dada qualquer estrutura matematica, formulada a partir de teoremas, axiomas,etc., sempre existirao propriedades numericas que nao serao demonstraveis a partirdaquela formulacao.

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CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 303

sus, capaz de realizar a tarefa de decodificacao. Foi um dos primeiros passos em

direcao aos computadores digitais.

Turing acreditava que o cerebro humano, a despeito de sua complexidade,

funcionava essencialmente como uma maquina e, consequentemente, poderia ser

imitado por computadores. Em 1950, motivado por acaloradas discussoes com seus

colegas cientistas a respeito do futuro da computacao, ele escreveu um artigo onde

propos um experimento que ficou famoso como o Teste de Turing, uma especie de

teste de inteligencia para computadores. O teste consiste em uma pessoa propor

perguntas a uma outra pessoa e a um computador, estes ultimos estando separa-

dos visualmente do interrogador. Turing achava que se apos algumas perguntas o

interrogador fosse incapaz de diferenciar, a partir das respostas dadas, a pessoa do

computador, a este poderia ser atribuıda certa forma de inteligencia.

Turing tambem trabalhou no National Physical Laboratory, em um projeto que

visava construir um computador inteiramente ingles. Contudo, desapontou-se com a

demora e complicacoes do trabalho, e abandonou o projeto antes do fim, mudando-se

para Manchester. Naquela universidade engajou-se no projeto MADAM, Manch-

ester Automatic Digital Machine. Perseguido por sua homosexualidade foi preso em

1952 por “indecencia”, e obrigado a frequentar sessoes de psicoanalise que visavam

“cura-lo”. No dia 7 de junho de 1954, durante uma crise de depressao, suicidou-se

comendo uma maca envenenada. Segundo os medicos que o examinaram, a causa da

morte foi a “ingestao de cianureto de potassio durante uma crise mental”. Sua mae,

contudo, deu uma outra versao, a de que Turing costumava fazer testes caseiros com

novas substancias, e simplesmente foi descuidado.

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. Como Multiplicar Sequencias de ADN, Salete Newton, vol. 12, no. 72, p. 9.

2. Criogenia: quanto mais Frio Melhor, Eugenio Lerner, vol. 3, no. 13, p. 88.

3. O Efeito Hall Quantico, Francisco Claro, vol. 6, no. 31, p. 36.

4. Super-Redes: Harmonia das Bandas Cristalinas, Eduardo de Campos Val-adares, Marcus Vinıcius B. Moreira, Jose Carlos Bezerra Filho e Ivan FredericoLupiano Dias, vol. 6, no. 35, p. 44.

Page 320: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

304

5. Dispositivos Eletronicos em Escala Atomica, Eduardo C. Valadares, Luiz A.Curi e Mohamed Henini, vol. 18, no. 106, p. 40.

6. Quasepartıculas: Estados Coletivos da Materia, Carlos Alberto Aragao deCarvalho Filho, vol. 25, no. 145, p. 11.

Page 321: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 5 - DOS ATOMOS AOS COMPUTADORES 305

Resumo - Capıtulo Cinco

Objetos macroscopicos sao formados a partir de combinacoes entreatomos. Eles podem ser amorfos ou cristalinos. Nos amorfos a dis-tribuicao espacial dos atomos nao possui regularidade, ao passo que noscristalinos os atomos estao organizados em uma rede regular. Esta regu-laridade espacial dos atomos nos materiais cristalinos e responsavel porvarias propriedades macroscopicas importantes. Para entendermos asdiferencas entre metais, isolantes e semicondutores precisamos de doisingredientes: a regularidade da rede cristalina, e o princıpio de exclusaode Pauli. A regularidade da rede faz com que o potencial eletrico geradopelos ıons seja periodico espacialmente. Esta periodicidade, por sua vez,divide o espectro de energias dos eletrons dentro do material em bandasseparadas por hiatos. Os nıveis de energia de uma banda sao preenchidospelos eletrons obedecendo o princıpio de exclusao de Pauli. Ao chegar notopo de uma banda, o proximo nıvel disponıvel estara no fundo da bandasuperior adjacente. Semicondutores sao materiais que resultam de umtipo especial de preenchimento de bandas de energias que possuem hiatosrelativamente pequenos. A utilidade dos semicondutores vem do fato deque com eles podemos construir dispositivos eletronicos onde a correnteeletrica pode ser controlada com grande precisao. Exemplos de tais dis-positivos sao transistores e chips de computadores. ‘Chip’ e um apelidopara circuitos integrados, que sao dispositivos eletronicos com milharesde componentes menores interconectados eletricamente no mesmo cristalsemicondutor. Caracteres numericos e operacoes matematicas podem serrepresentados como nıveis de voltagens em circuitos eletronicos. Com-putadores utilizam chips para realizar estas operacoes. O rapido desen-volvimento da tecnologia de informatica tem levado alguns cientistas aestudar a capacidade de computadores para imitar o cerebro humano.Essa area de pesquisa e chamada de Inteligencia Artificial.

Page 322: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 6

Magnetismo

A Nacao que controla o magnetismo, controla o Universo (Dick Tracy).

6.1 Origem do Magnetismo na Materia

Ate tu Dick Tracy...

Materiais magneticos ocupam uma posicao de destaque na industria.

Suas aplicacoes vao de enfeites e fechaduras, passam por nucleos de mo-

tores e transformadores, ate discos rıgidos e outros meios de gravacao

e leitura magnetica. A industria do magnetismo e ainda mais rica do

que a de semicondutores! Alem disso, o fenomeno do magnetismo e tao

fascinante quanto complexo, e tem sido o “ganha-pao” de muita gente.

Do ponto de vista tecnico, este capıtulo talvez seja o de mais difıcil

leitura deste livro. Varios conceitos, como funcoes de onda simetrica

e antissimetrica, spins, redes cristalinas, etc., que foram desenvolvi-

dos nos ultimos tres capıtulos, sao postos juntos no presente capıtulo.

Recomendo ao leitor uma rapida olhada nos resumos dos capıtulos an-

teriores antes de prosseguir com este.

307

Page 323: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

308

O estudo do magnetismo e uma sub-area da Materia Condensada

(assim como a fısica dos semicondutores). Dentro desta sub-area ex-

istem varias especializacoes: tem gente que estuda metais magneticos,

tem gente que estuda isolantes magneticos, ha aqueles que estudam o

magnetismo somente do ponto de vista macroscopico, ha outros que so

querem saber da abordagem microscopica, tem gente somente interes-

sada nas aplicacoes praticas do magnetismo, outros que so estudam o

magnetismo nuclear, etc. No entanto, assim como as diferencas entre

metais, isolantes e semicondutores estudadas no capıtulo anterior nao

podem ser compreendidas classicamente, com o magnetismo ocorre o

mesmo: a diferenca entre um material magnetico e nao magnetico, e as

diferencas de propriedades entre aqueles que sao magneticos nao podem

ser compreendidas com a fısica classica. O mundo e de fato quantico!

No capıtulo quatro falamos do magnetismo no atomo. A grandeza

fundamental do magnetismo na materia e o momento magnetico m. Se

um atomo possui momento magnetico diferente de zero, este e um bom

comeco para que um solido formado a partir desses atomos venha a

ser magnetico, embora somente isso nao seja suficiente. Recordando, o

momento magnetico de um atomo possui duas origens: uma asociada ao

seu momento angular orbital, L, e outra associada ao spin, S. Em uma

camada atomica vazia ou totalmente cheia, ambos, S e L, se anulam.

Em uma semi-cheia, somente L se anula. Nos outros casos S e L sao

diferentes de zero. Podemos escrever essas duas contribuicoes para o

momento magnetico de um atomo como:

mL = gLL

Page 324: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 309

mS = gsS

onde gL e gs sao fatores de proporcionalidade. O momento magnetico

total de um atomo sera simplesmente a soma vetorial das duas con-

tribuicoes:

m = mL + mS

Em um atomo os momentos angulares de spin e orbital se combinam para dar origemao momento angular total J. O mesmo acontece com o momento magnetico totaldo atomo.

Podemos ir um pouco mais adiante definindo o momento angular

total de um atomo, J, como a soma do seu momento orbital com o spin:

J = L + S

Com esta definicao e possıvel escrever o momento magnetico total do

atomo como:

Page 325: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

310

m = gJJ

onde gJ , como anteriormente, e um fator de proporcionalidade. Note

que ate agora nao fizemos mais do que definir quantidades atomicas

como somas vetoriais. Imagine entao uma rede cristalina onde cada

atomo possui um momento magnetico diferente de zero. Para poder-

mos afirmar se o material e magnetico ou nao, precisamos definir uma

grandeza macroscopica, chamada magnetizacao, M. Esta e simples-

mente o numero de momentos magneticos por unidade de volume1:

M =1

V

∑i

mi

onde mi e o valor do momento magnetico do i-esimo atomo na rede, e V

e o volume do material. Dizemos que o material esta magneticamente

ordernado ou possui ordem magnetica se a magnetizacao for diferente de

zero. A definicao acima nos sera util, embora ela nao seja rigorosa. Em

alguns casos especiais M pode ser zero, e mesmo assim existir ordem

magnetica.

A partir de sua definicao vemos que existem duas possibilidades

para que M seja zero: ou a soma sobre os momentos magneticos mi

e zero, ou cada momento mi se anula individualmente (lembre que

mesmo que cada mi seja diferente de zero, sua soma pode se anular).

1Mais precisamente, a magnetizacao e o limite desta expressao quando o volumetende a zero:

M = limV →0

1V

∑i

mi

Page 326: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 311

O caso em que cada momento magnetico se anula individualmente e

desinteressante do ponto de vista do magnetismo; sao materiais nao

magneticos, como agua ou o sal de cozinha. O caso em que os atomos

possuem momento magnetico, ou seja, mi = 0, mas M e igual a zero, e

chamado de paramagnetismo2. Dizemos entao que o material com esta

propriedade e paramagnetico. Finalmente, o caso em que M e diferente

de zero e o mais interessante do ponto de vista do magnetismo. Dizemos

que o material e magneticamente ordenado. Este e, por exemplo, o caso

do ferro metalico.

Diz-se que um material apresenta ordenamento magnetico se os momentos atomicosestiverem espacialmente ordenados.

Existem diversos tipos de ordem magnetica, algumas das quais

serao revistas na proxima secao. No momento o que nos preocupa e a

2Existe, contudo, um interessante caso em que M = 0, mas existe ordemmagnetica, como sera mencionado adiante.

Page 327: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

312

seguinte pergunta: qual a condicao para que os momentos magneticos

dos atomos de um material se tornem espacialmente ordenados? Por e-

xemplo, no estranho composto Gd(C2H5SO4)3·9H2O, um sal de gadolınio

(Gd), os atomos de Gd possuem momento magnetico diferente de zero,

mas a magnetizacao e igual a zero, ou seja, o material e paramagnetico.

Ja o gadolınio, na sua forma metalica, possui ordem magnetica. Por

que os momentos magneticos do Gd no sal acima nao se ordenam, mas

no metal eles se ordenam? Nao e facil respoder a esta pergunta, porque

a origem da ordem magnetica nos materiais e inteiramente quantica,

e consideravelmente sutil. De fato, a origem da ordem magnetica nos

materiais esta associada a interacao coulombiana entre os eletrons de

atomos vizinhos na rede cristalina (ou seja, uma interacao eletrica!) e

ao princıpio de exclusao de Pauli. Repare como o princıpio de exclusao

e recorrente! Ele e necessario para entendermos a ocupacao dos nıveis

de energia em um atomo (capıtulo quatro), para explicar as diferencas

entre metais, isolantes e semicondutores (capıtulo cinco), e agora para

explicar a origem do magnetismo. A razao e que em todos esses pro-

blemas estamos lidando com varios eletrons, e consequentemente temos

que evocar o princıpio de exclusao.

Considere dois eletrons pertencentes a atomos vizinhos em uma rede

cristalina, com vetores de posicao r1 e r2, e funcoes de onda atomicas

ψα e ψβ , onde α e β designam genericamente estados quanticos dos

eletrons. A distancia entre os eletrons, representada por r12, sera dada

por r12 = |r1 − r2|. Sabemos do princıpio de exclusao que, independen-

temente de os eletrons interagirem ou nao entre si, a funcao de onda

total do sistema tem que ser antissimetrica. Mesmo sem especificarmos

Page 328: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 313

as formas funcionais das funcoes espaciais ψα e ψβ, podemos construir

a partir delas uma funcao simetrica e outra antissimetrica, que vamos

denotar, respectivamente, por ψS e ψA :

ψS = ψα(r1)ψβ(r2) + ψα(r2)ψβ(r1)

ψA = ψα(r1)ψβ(r2) − ψα(r2)ψβ(r1)

Vemos que ψA troca de sinal sob uma permuta de r1 com r2, mas

o mesmo nao acontece com ψS. Como a funcao total tem que ser

antissimetrica, se os eletrons estiverem no estado representado por ψS,

a sua funcao de spin tera que ser antissimetrica, o que significa que os

spins serao opostos. Analogamente, se o estado orbital for dado por

ψA, a funcao de spin tera que ser simetrica, ou seja, os dois spins serao

paralelos. Tudo isso ja havia sido comentado no capıtulo tres.

Vamos agora considerar o que acontece quando incluimos a interacao

eletrostatica entre os eletrons. Sabemos do capıtulo um que a interacao

coulombiana entre dois eletrons e dada por:

V =1

4πε0

e2

r12

onde r12 e a distancia entre eles, definida acima. Acontece que nem

posicoes nem distancias possuem valores precisos em mecanica quantica,

mas somente suas medias. Se medıssemos r12 varias vezes, encon-

trarıamos valores diferentes em cada medida (os autovalores), e o que

teria significado seria a media desses valores. Consequentemente, como

a energia potencial V e uma funcao de r12, ela tambem possuira um

Page 329: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

314

valor medio. Mas como vimos no capıtulo tres, valores medios sao calcu-

lados usando-se funcoes de distribuicao de probabilidades, que por sua

vez sao dadas pelos modulos quadrados das funcoes de onda. Como

no caso que estamos tratando temos duas possibilidades para a funcao

de onda, ψS ou ψA, teremos tambem duas funcoes de distribuicao de

probabilidades:

|ψS|2 ou |ψA|2

Obviamente o resultado para o valor medio de V , calculado a partir

dessas distribuicoes dependera da escolha da funcao. Designaremos o

valor medio da energia potencial V por < V >. A maneira formal para

calcularmos esta quantidade seria multiplicarmos V por |ψS|2 (ou |ψA|2)e somarmos sobre todas as posicoes dos eletrons. O procedimento de

soma e complicado, pois como as posicoes dos eletrons variam continu-

amente no espaco, terıamos que utilizar o procedimento de integracao

de uma funcao, descrito no Painel IV (capıtulo um). No entanto, para

os nossos propositos, e suficiente usarmos um argumento apenas semi-

quantitativo.

Do que foi dito vemos que o valor medio da energia potencial entre

os eletrons dependera do estado do conjunto ser simetrico ou antis-

simetrico. Mas, se o estado orbital for simetrico, a funcao de spin

tera que ser antissimetrica; e se o estado orbital for antissimetrico, a

funcao de spin tera que ser simetrica. Consequentemente, a energia

coulombiana media entre os eletrons dependera do seu estado de spin.

Note a magica deste argumento: comecamos com uma interacao que so

depende das posicoes relativas entre os eletrons, r12, e acabamos desco-

Page 330: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 315

brindo que o seu valor esperado tambem depende do spin! Isso ocorre

precisamente por causa do princıpio de exclusao.

Podemos ir um pouco mais adiante com as duas distribuicoes de

probabilidades acima. Por simplicidade vamos supor que ψα e ψβ sao

funcoes reais, ou seja, ψ∗α = ψα, e ψ∗

β = ψβ. Consequentemente:

|ψS|2 = ψ∗SψS = ψ2

S =

= [ψα(r1)ψβ(r2) + ψα(r2)ψβ(r1)]2

= ψα(r1)2ψβ(r2)

2 + ψα(r2)2ψβ(r1)

2 + 2ψα(r1)ψβ(r2)ψα(r2)ψβ(r1)

Cada um desses termos representa uma parcela da distribuicao de pro-

babilidades para as posicoes das partıculas 1 e 2 no estado ψS. O

primeiro termo, por exemplo:

ψα(r1)2ψβ(r2)

2

representa uma distribuicao de probabilidades onde o eletron 1 se en-

contra no estado α e o eletron 2 no estado β. Da forma analoga, o

segundo termo

ψα(r2)2ψβ(r1)

2

representa uma distribuicao em que cada eletron esta em um estado

distinto: o eletron 1 em β e o eletron 2 em α. Quando usados para

calcular o valor medio de V , esses dois termos fornecem o analogo

classico do potencial eletrostatico3. Vamos chamar este termo de V0:

3Ou seja, fornecem um valor para a energia eletrostatica igual ao que seria obtidose os dois eletrons fossem tratados como partıculas classicas.

Page 331: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

316

V0 =e2

4πε0

1

< r12 >

onde < r12 > e o valor medio de r12, calculado a partir dos dois

primeiros termos de |ψS|2.A grande novidade aparece quando consideramos a contribuicao do

ultimo termo:

2ψα(r1)ψβ(r2)ψα(r2)ψβ(r1)

Este termo e uma consequencia direta do princıpio de exclusao. Ele

representa uma situacao estranha em que o eletron 1 se encontra par-

cialmente no estado α, atraves da funcao ψα(r1), e parcialmente no

estado β, atraves de ψβ(r1), o mesmo ocorrendo para o eletron 2. Ou

seja, este termo descreve uma troca de estados dos eletrons 1 e 2 entre

os estados quanticos α e β. Sua contribuicao para o valor medio de V ,

e chamada de energia de troca (a origem do nome e evidente!). A ener-

gia de troca e um efeito de natureza puramente quantica, ou seja, nao

possui analogo classico. Representaremos a energia por Jtroca. Entao,

agrupando todos os termos, e tendo em conta que os dois primeiros

contribuem com o mesmo valor V0, podemos escrever a energia coulom-

biana media, < V >, como:

< V >= 2V0 + 2Jtroca

Se tivessemos usado ψA ao inves de ψS , terıamos obtido o seguinte

resultado:

< V >= 2V0 − 2Jtroca

Page 332: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 317

Este e um resultado importante, pois ele mostra que o valor medio da

energia coulombiana sera aumentado ou reduzido de 2Jtroca, em relacao

a 2V0, dependendo da simetria da funcao de onda. Mas, como a simetria

da funcao de onda depende do estado de spin dos eletrons, podemos

dizer que o valor de < V > dependera em ultima instancia dos spins

S1 e S2. Este fato sugere que talvez pudessemos obter uma expressao

para < V > escrita explicitamente em termos dos spins dos eletrons.

A interacao de troca aparece da superposicao de funcoes de onda de atomos proximos.Este efeito puramente quantico e a base para a compreensao da ordem magneticanos materiais.

Podemos de fato escrever < V > como funcao dos spins eletronicos.

Como estamos lidando com dois eletrons, teremos S1 = S2 = 1/2.

Utilizando o produto escalar entre S1 e S2, e facil ver que as duas

expressoes acima podem ser reunidas em uma unica expressao para

< V > da seguinte forma:

Page 333: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

318

< V >= 2V0 − 8JtrocaS1 · S2

De fato, como os spins sao iguais a 1/2, chamando de θ o angulo entre

eles, teremos S1 · S2 = S1S2cosθ = cosθ/4. Consequentemente:

< V >= 2V0 − 2Jtrocacosθ

Se os spins forem paralelos, θ = 0, e teremos de volta a expressao

< V >= 2V0 − 2Jtroca. Mas, spins paralelos significam que a funcao

de onda de spins e simetrica e, consequentemente, a espacial e antis-

simetrica. Se eles forem antiparalelos, θ = π; a funcao de spin sera

antissimetrica e a espacial simetrica, e teremos < V >= 2V0 + 2Jtroca.

Heisenberg foi quem primeiro notou que o termo −2JtrocaS1 · S2

descreveria a ordem magnetica nos materiais. Mesmo que os spins nao

sejam 1/2, como no exemplo acima, nao ha problema; o importante

e a dependencia funcional de < V > em relacao aos spins. Qualquer

diferenca no fator numerico multiplicativo pode ser incorporada no va-

lor de Jtroca. Este termo de energia que depende do produto escalar

entre os spins e conhecido como interacao de Heisenberg, e e a base dos

modelos de ordem magnetica nos materiais. Denotamos a interacao de

Heisenberg por H:

H = −2JtrocaS1 · S2

Se supusermos que Jtroca > 0, veremos que a energia sera mınima

quando os spins forem paralelos, ou seja θ = 0. Por outro lado, se

Jtroca < 0, a configuracao de menor energia sera aquela para a qual

θ = π, ou seja, spins antiparalelos.

Page 334: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 319

.

A interacao de troca ocasiona um aumento ou decrescimo na energia eletrostaticado sistema, dependendo da direcao relativa dos spins. O sistema buscara sempre oestado de menor energia, resultando em alguma forma de ordenamento magnetico.

6.2 Tipos de Ordem Magnetica

Considere agora nao somente dois spins, mas uma rede cristalina com

N ıons, cada um com um spin. Vamos chamar Si o valor do spin do

ıon na posicao i. Para simplificar, vamos supor que a nossa rede e

linear. Cada spin interage com o seu vizinho proximo, de acordo com

a interacao de Heisenberg. Por exemplo, o spin na posicao 5, denotado

por S5, interage com S4 e S6:

−2JtrocaS5 · S4 − 2JtrocaS5 · S6 = −2Jtroca(S5 · S4 + S5 · S6)

De uma maneira mais geral, um spin na posicao i interagira com aqueles

nas posicoes i+ 1 e i−1. A energia de troca total sera a soma de todos

Page 335: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

320

os pares de spins proximos, ou seja:

H = −2Jtroca∑i

Si · Si+1

Como vimos acima, se Jtroca for positiva, os spins se alinham par-

alelamente, pois desta forma a energia do conjunto sera minimizada.

Esse tipo de ordem magnetica e chamada de ferromagnetismo, e e o

que acontece, por exemplo com o ferro metalico, ou com o composto

CrO2, entre varios exemplos. E tambem o que acontece com o gadolınio

metalico.

Se Jtroca for menor do que zero, a energia sera mınima para uma

configuracao em que os spins se alinham antiparalelamente. Este tipo

de ordem e chamada de antiferromagnetismo. Exemplos de materiais

antiferromagneticas sao o MnO, o FeCl2, o NiO, entre outros.

Tanto no ferromagnetismo quanto no antiferromagnetismo, os spins

possuem a mesma magnitude. E interessante ressaltar que no caso do

antiferromanetismo, devido ao fato de que os spins vizinhos apontam

em direcoes antiparalelas alternadamente, a magnetizacao total sera

nula, embora haja ordem magnetica. Este e um dos “casos especiais”

mencionados na secao anterior em que mi = 0, mas M = 0. E possıvel

ocorrer tambem o caso em que na mesma rede existam ıons com spins

de magnitude diferentes, levando a situacoes mais complexas. Por ex-

emplo, na magnetita, um oxido de ferro natural com formula quımica

Fe3O4, existem dois tipos de ıons de ferro: os duplamente ionizados

Fe2+, e os triplamente ionizados Fe3+. Os primeiros possuem S = 2, e

os segundos S = 5/2. Os que possuem spin maior se alinham antifer-

romagneticamente, e os que possuem spin menor se alinham ferromag-

Page 336: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 321

neticamente. Tudo dentro do mesmo cristal! Isso se deve basicamente

as variacoes da energia de troca entre os ıons na magnetita, e serve para

exemplificar a riqueza do fenomeno do magnetismo. A magnetita e um

exemplo do que chamamos de ferrimagnetos. Existem ainda varios

outros exemplos de ordem magnetica que nao vamos mencionar aqui.

Resumindo: a interacao de Heisenberg e a origem microscopica do

magnetismo na materia. Ela resulta de dois fatores: (i) a interacao

coulombiana entre os eletrons, e (ii) o princıpio de exclusao. Nunca

e demais enfatizar o fato pouco intuitivo que a ordem magnetica na

materia resulta de uma interacao de natureza eletrica. A Fısica sempre

nos surpreende!

Em uma rede cristalina a interacao de troca entre os atomos leva ao ordenamentomagnetico do material.

Porem, somente a interacao de Heisenberg nao explica porque al-

guns materiais se ordenam magneticamente e outros nao; ela mera-

Page 337: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

322

mente preve a existencia de ordem magnetica. Alias, qualquer material

que possua ordem magnetica, a perde se for aquecido a uma tempe-

ratura suficientemente alta. Para o ferro metalico, por exemplo, essa

temperatura e da ordem de 1000 graus, e para o Gd metalico ela e da

ordem de 300 graus Kelvin. A temperatura na qual um material perde

a ordem magnetica e uma caracterıstica intrınseca de cada material,

e chamada de temperatura crıtica, denotada por Tc. Temos entao de

um lado a interacao de troca que tende a fazer com que o material se

ordene magneticamente, e de outro o efeito da temperatura, ou ener-

gia termica que tende a destruir a ordem magnetica. E a competicao

entre essas duas formas de energia (magnetica e termica) que diz se

o material sera ordenado magneticamente ou nao. A energia termica

associada a uma temperatura T e igual a kBT , onde kB e a constante

de Boltzmann. Se a temperatura do material estiver acima da tem-

peratura crıtica, a energia termica kBT sera maior do que a energia

de troca, e o material nao estara ordenado magneticamente. Se o ma-

terial for resfriado, quando T estiver se aproximando de Tc, comeca a

surgir ordem magnetica. Quando T = Tc, a energia termica se torna

da mesma magnitude que a energia de troca, e o material se ordena

magneticamente. Entao, para que a ordem magnetica se mantenha, e

necessario que a temperatura do material seja tal que:

Jtroca ≥ kBT

Se substituirmos T = Tc nesta expressao, obtemos uma estimativa para

Jtroca. Por exemplo, para o Gd metalico,

Jtroca ≈ 300 K × 1, 38 × 10−23 J/K = 0, 026 eV

Page 338: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 323

.

Qualquer material ordenado magneticamente, o deixa de ser a uma dada temper-atura chamada de temperatura crıtica, Tc. Acima desta temperatura os momentosatomicos se desordenam. A temperatura crıtica e uma medida da intensidade dainteracao de troca.

6.3 Magnetismo Nuclear

A maior parte dos nucleos dos atomos da tabela periodica possui spin

diferente de zero. Assim como no caso atomico, o spin nuclear, que rep-

resentaremos por I, e o resultado da distribuicao de protons e neutrons

dentro do nucleo, nos orbitais quanticos nucleares. Ao spin do nucleo

associa-se um momento magnetico nuclear, que chamaremos mn:

mn = gnI

onde gn e uma constante de proporcionalidade. Nucleos diferentes pos-

suem spins diferentes. Por exemplo, o proton, que e o nucleo do atomo

Page 339: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

324

de hidrogenio, possui spin I = 1/2. O isotopo 59Co do cobalto possui

I = 7/2, e o 157Gd (gadolınio) possui I = 3/2. De fato, o spin nuclear I

e a grandeza equivalente ao momento angular total J no caso atomico,

e nao ao spin propriamente dito, S.

A maioria dos nucleos possui momento angular, e portanto momento magnetico,que da origem ao magnetismo nuclear.

Contudo, o magnetismo nuclear e muito mais fraco do que o mag-

netismo atomico4. Isso quer dizer que os momentos magneticos dos

nucleos contribuem pouco para a magnetizacao de um material para-

magnetico ou ferromagnetico. Como vimos no capıtulo tres, momen-

tos magneticos tendem a se alinhar com campos magneticos. Ao apli-

carmos um campo magnetico em um material qualquer, como a uma

amostra de agua, criamos uma magnetizacao nuclear, como efeito do

4Isto esta fundamentalmente relacionado ao fato de a massa do eletron ser muitomenor do que a massa do proton.

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 325

alinhamento dos momentos magneticos nucleares com o campo. Obvi-

amente, ao retirarmos o campo, os momentos voltam a apontar para

direcoes aleatorias, e a magnetizacao desaparece. No caso dos materi-

ais que possuem ordem magnetica, como o Fe metalico, por exemplo,

acontece algo mais interessante. Abaixo da temperatura crıtica, os mo-

mentos magneticos atomicos do Fe apontam para a mesma direcao.

Mas, cada momento magnetico atomico por sua vez cria um campo

magnetico que, na posicao do nucleo, e paralelo ao momento do atomo.

Este campo magnetico tende a alinhar os momentos nucleares ao longo

da mesma direcao. Entao o que se observa nesses materiais e uma

magnetizacao nuclear permanente causada pela ordem magnetica dos

momentos atomicos do material.

O magnetismo nuclear e muito mais fraco do que o atomico e, em condicoes nor-mais, nao se observa ordenamento magnetico nuclear espontaneo. No entanto, nosmateriais que apresentam ordem magnetica, os momentos nucleares tendem a sealinhar com os momentos atomicos.

Page 341: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

326

Um dos avancos mais notaveis da fısica experimental nos ultimos

cinquenta anos foi o desenvolvimento de tecnicas experimentais que

possibilitaram o estudo do magnetismo nuclear. Exatamente pelo fato

de este ser muito pequeno, essas tecnicas sao de certa forma “espe-

ciais”, e se utilizam de um importante fenomeno que mencionamos

no capıtulo um: o fenomeno da ressonancia. Relembrando, de uma

maneira geral, a ressonancia e um fenomeno de absorcao de energia de

modo seletivo. Para haver ressonancia precisamos de dois ingredientes

basicos: um sistema onde exista uma frequencia natural ou modo nor-

mal de vibracao (veja capıtulo um), e um agente externo que atue sobre

o sistema nesta mesma frequencia. O exemplo usado no capıtulo um

foi o sistema massa-mola. A frequencia natural e neste caso dada por

f = (2π)−1√k/m, onde k e a constante elastica da mola, e m a massa

do objeto a ela presa. Vimos ainda o caso da ressonancia de cıclotron,

onde a frequencia de ressonancia e dada por qB/m. No sistema massa-

mola, o agente externo pode ser uma pessoa, que faz a mola oscilar

para cima e para baixo. Se a frequencia associada ao movimento da

mao for igual a frequencia natural do sistema, este absorvera grande

quantidade de energia (neste caso, energia mecanica do movimento da

mao), e a amplitude do movimento sera maior. No sistema carga-campo

magnetico, o agente externo pode ser um campo eletrico oscilante.

No caso que vamos tratar agora o sistema fısico compreende os

momentos magneticos nucleares que entram em ressonancia com um

campo eletromagnetico externo, mais especificamente, a parte magnetica

do campo. O fenomeno e chamado ressonancia magnetica nuclear ou

RMN.

Page 342: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 327

6.4 Ressonancia Magnetica Nuclear

Sabemos que momentos magneticos interagem com campos magneticos.

Um nucleo com spin I e momento magnetico mn = gnI, na presenca de

um campo magnetico B tera uma energia magnetica dada pelo produto

escalar de mn com B (veja capıtulo tres):

E = −mn · B = −gnI · B

Vamos imaginar que o campo magnetico aponte na direcao z, ou seja:

B = Bk. Nesse caso, a energia magnetica do nucleo se torna:

E = −gnBIz

onde Iz e a componente z do spin nuclear. Mas, sabemos do capıtulo

tres que componentes de momentos angulares, como Iz, so podem

adquirir um conjunto discretos de valores, que no presente caso chamaremos5

de m. Os valores que m pode assumir sao: m = −I,−I + 1, . . . , I −1, I. Como consequencia os nıveis de energia magnetica do momento

magnetico nuclear no campo magnetico serao discretos (ou quantiza-

dos), e dados por:

Em = −gnBm

Estes sao os valores possıveis de E (ou, como denominados no capıtulo

tres, autovalores de energia). Para o proton, por exemplo, I = 1/2,

e consequentemente m = −1/2,+1/2. Logo, so existirao dois valores

possıveis de energia magnetica para o proton:5No capıtulo tres usamos ms e ml, respectivamente, para as componentes z do

spin e do momento angular orbital.

Page 343: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

328

E+1/2 = −1

2gnB e E−1/2 = +

1

2gnB

Para um nucleo como o do isotopo 155Gd, que possui I = 3/2, teremos

m = −3/2,−1/2,, +1/2,+3/2, e portanto 4 nıveis de energia possıveis:

E+3/2 = −3

2gnB

E+1/2 = −1

2gnB

E−1/2 = +1

2gnB

E−3/2 = +3

2gnB

E assim por diante. De um modo geral, um nucleo com spin I tera

2I + 1 nıveis de energia.

Embora ate aqui nao tenhamos explicitado, o fator de proporciona-

lidade gn e uma caracterıstica de cada nucleo. Ele e proporcional a

constante de Planck h, e escrito mais comumente como:

gn = γnh

onde γn e chamado de fator giromagnetico nuclear, uma especie de

identidade magnetica do nucleo. Essa quantidade nos diz que nucleos

diferentes, quando sujeitos ao mesmo campo magnetico, terao valores

diferentes de energia. No SI a unidade de γn e Hz/T (hertz por tesla),

mas por razoes praticas e normal expressarmos esta quantidade em

MHz/kG (megahertz por kilogauss).

Page 344: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 329

Podemos agora re-escrever os valores de Em como6:

Em = −γnhBm

Considere como exemplo o nucleo do 157Gd, para o qual I = 3/2 e

γn = 1, 713 MHz/T. Em um campo B = 10 T, os quatro nıveis de

energia magnetica deste nucleo serao:

E−3/2 = +1, 69 × 10−9 eV

E−1/2 = +0, 56 × 10−9 eV

E+1/2 = −0, 56 × 10−9 eV

E+3/2 = −1, 69 × 10−9 eV

A conveniencia de escrevermos a energia desta forma, proporcional a

constante de Planck, se tornara aparente abaixo.

Vamos calcular a separacao (em energia) entre dois nıveis consecu-

tivos de energia, ou seja Em − Em−1 (ou Em+1 −Em):

Em − Em−1 = −γnhBm− γnhB(m− 1) = γnhB

Donde, dividindo por h obtemos:

Em − Em−1

h= γnB

6O interesse em escrevermos gn desta forma, esta no fato de que assim a constantede Planck, que e a unidade fundamental de momento angular, fica explicitada.

Page 345: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

330

Mas, a quantidade do lado esquerdo possui dimensao de frequencia

angular (o numerador tem dimensao de joule, e o denominador de joule

vezes segundo, dividido por 2π). Esta quantidade e especial para a

RMN: ela e chamada de frequencia de Larmor, e representada por ωL.

Entao:

ωL = γnB

Substituindo γn para o 157Gd em um campo de 10 T, obtemos ωL =

17, 13 rd MHz, ou fL = ωL/2π = 2, 73 MHz.

A frequencia de Larmor e a frequencia natural do sistema de nucleos

em um campo magnetico, tanto quanto√k/m e a frequencia natural

do sistema massa-mola, ou qB/m do sistema carga-campo magnetico.

No sistema massa-mola, a frequencia natural ω =√k/m tem uma

interpretacao fısica obvia: e a frequencia de oscilacao da massa. E no

presente caso, qual o significado fısico de ωL? Uma frequencia e algo

que caracteriza o movimento periodico de um sistema fısico. Embora

a deducao de ωL acima tenha sido feita via mecanica quantica, existe

uma imagem classica simples que nos ajuda a entender o significado

de ωL. Um momento magnetico na presenca de um campo magnetico

adquire um movimento de precessao em torno da direcao do campo.

A frequencia de Larmor e a frequencia desta precessao. A situacao

e semelhante a de um giroscopio (piao): quando em movimento de

rotacao possui um “spin” que precessiona em torno da direcao do campo

gravitacional.

Suponha agora que tenhamos um unico spin I = 1/2 em um campo

magnetico. Como vimos acima, havera dois nıveis de energia, E+1/2

Page 346: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 331

e E−1/2, sendo que o primeiro e mais baixo que o segundo. Suponha

que o spin se encontre no nıvel E+1/2. A distancia, em energia, do

nıvel acima e igual a hωL. Se irradiarmos esse sistema com fotons cuja

energia por partıcula, hω, seja exatamente igual a separacao entre os

nıveis, o nucleo pode absorver um foton e mudar de nıvel de energia.

Isso equivale a componente z do spin passar do estado m = +1/2 para

o estado m = −1/2, ou seja “virar de cabeca para baixo” 7. Este e o

fenomeno da ressonancia magnetica nuclear. O nucleo absorve energia

ressonantemente da onda eletromagnetica. Se a frequencia da onda for

diferente de ωL nao havera absorcao.

Um spin I = 1/2 em um campo magnetico apresenta dois nıveis de energia. Aoirradiarmos os sistema com fotons com energia hω = ∆E/h, onde ∆E e a distanciaem energia entre os dois nıveis, havera absorcao de fotons. Este e o fenomeno daressonancia magnetica nuclear.

7Atencao: e preciso tomar cuidado com certas imagens excessivamente classicascomo a que estou usando agora. Um medico formado, certa vez me disse - comaquela seguranca que caracteriza os medicos - que na RMN o atomo virava decabeca para baixo! Felizmente ele entendia mais de doenca do que de RMN! Emborarepresentemos a imagem do spin por uma seta, essa quantidade nao e exatamentecomo uma agulha no nosso espaco tridimensional; esta “virada de cabeca parabaixo” a que nos referimos se da no espaco dos spins!

Page 347: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

332

E o que ocorre se nao tivermos apenas 1 spin, mas uma amostra

de agua, com cerca de 1023 spins por cm3? Esta e uma pergunta im-

portante, pois experimentos em laboratorios lidam com quantidades de

nucleos desta ordem. Em um copo com agua, cada nucleo de hidrogenio

tera spin I = 1/2. Por sua vez, o isotopo de oxigenio 16O, que e 99,76%

abundante, e portanto de longe o mais presente na agua, possui I = 0.

Consequentemente, este isotopo nao contribui para a magnetizacao nu-

clear e, para fins de RMN, nao e importante. Como todos os nucleos

de H possuem o mesmo spin 1/2, ainda havera somente dois nıveis de

energia acessıveis para cada um deles. Na Natureza, nıveis mais baixos

de energia tem preferencia para ocupacao. Entao, havera mais spins no

nıvel E+1/2 do que no nıvel E−1/2. Quando o copo com agua (no campo

magnetico) for irradiado por uma onda eletromagnetica na frequencia

de Larmor, os spins que estao em baixo “pulam” para cima8. Mas, o

fenomeno e tal que a onda tambem pode fazer os spins de cima “pu-

larem” para baixo. Isso ocorre porque do ponto de vista quantico, a

probabilidade de uma transicao de baixo para cima e igual a uma de

cima para baixo. Cada vez que um spin pula de cima para baixo, ele

emite um foton, ao passo que cada vez que um spin pula de baixo para

cima ele absorve um foton. Como inicialmente havia mais spins em

baixo do que em cima, havera mais absorcao do que emissao de fotons.

Ao irradiarmos continuamente o sistema, havera uma tendencia a

igualarmos o numero de spins no nıvel superior com o numero de spins

no nıvel inferior. No limite em que os dois nıveis possuem o mesmo

8Atencao aqui. Trata-se de um “pulo” no “espaco das energias”, cujo significadoe um aumento ou um decrescimo de um quantum de energia.

Page 348: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 333

numero de spins, a magnetizacao nuclear sera zero, pois os spins apon-

tam para direcoes opostas. Se desligarmos o campo eletromagnetico,

o sistema re-adquire o equilıbrio, com a maioria dos spins retornando

para o nıvel de energia mais baixo, e portanto recuperando a magne-

tizacao nuclear. O tempo entre o momento em que desligamos o campo

e a recuperacao do equilıbrio e um importante parametro na RMN: ele

e chamado de tempo de relaxacao spin-rede, e representado por T1. E

simples entender a razao para esse nome. Quando desligamos a onda

eletromagnetica, a maioria dos spins que estao no nıvel de cima de-

caem para o nıvel de baixo, emitindo fotons. Estes fotons sao quantuns

da energia que esta sendo liberada pelos nucleos, e eles devem ir para

“algum lugar”. Dizemos que eles sao absorvidos pela rede (aqui em-

pregamos a palavra “rede” como uma denominacao generica para o

meio em torno dos nucleos). Se o sistema de nucleos nao estivesse em

contato com a rede nao haveria como liberar energia e os spins conti-

nuariam no nıvel superior de energia. A situacao e semelhante ao caso

de um copo de isopor contendo agua fervendo dentro de uma vasilha

com grande quantidade de gelo. O isopor isola termicamente a agua

fervendo do gelo que esta do lado de fora. Resultado: a agua nao es-

fria, porque esta isolada da “rede” (nesse caso representada pelo gelo).

Por outro lado, se colocarmos a agua em um copo de alumınio, ela

se resfriara rapidamente, pois o alumınio faz contato termico entre a

agua fervendo e o gelo. No caso dos nucleos ocorre algo semelhante:

quando o nıvel de cima esta mais populoso, os sistema esta “quente”.

Quando desligamos a radiacao eletromagnetica, as interacoes entre os

nucleos e a rede estabelecem um “contato termico” e fazem com que

Page 349: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

334

eles decaiam, “esfriando” o sistema nuclear.

Ao ser irradiado continuamente com fotons na frequencia de ressonancia, um sistemade spins nucleares tende a igualar as populacoes dos nıveis de energia. Quando aonda eletromagnetica e desligada, os spins retornam ao equilıbrio termico em umtempo caracterıstico T1, chamado “tempo de relaxacao spin-rede”.

Existe ainda um outro parametro temporal importante em RMN,

chamado de tempo de relaxacao spin-spin, representado por T2. Este

e um pouco mais sutil, mas nao chega a ser difıcil de entender. Este

tempo esta ligado as interacoes dos spins entre si. Ele se refere ao tempo

que as interacoes entre os spins levam para distribuir internamente a

energia absorvida da onda. T2 e, em geral, menor do que T1 porque,

de certa forma, as interacoes entre dois spins sao mais eficientes em

distribuir a energia entre eles do que entre cada spin separado e a

rede. Vamos recorrer a outra analogia: agua em uma panela de metal

colocada no fogo. Suponha que uma panela grande de metal esteja

cheia de agua. Colocando a panela no fogo, o metal aquecera mais

Page 350: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 335

rapidamente do que a agua que esta dentro da panela. Isso porque o

contato termico entre as partes de metal e tal que o calor se distribui

mais rapidamente na panela do que entre esta e a agua. Imagine a

panela como o sistema de spins nucleares, e a agua dentro dela como

a rede. Ao colocarmos a panela no fogo, o calor se distribui no metal

com um tempo T2, e depois para a agua com um tempo T1.

Esses tempos possuem tambem uma interpretacao em termos do

movimento da magnetizacao nuclear em torno do campo aplicado. E

importante entendermos essas imagens, pois elas nos serao uteis para

entender um fenomeno importantıssimo que sera discutido na secao 6.6:

os ecos de spin.

6.5 O Sistema Girante

A RMN e um dos mais impressionantes exemplos de como a fısica

basica pode se converter em tecnologias que revolucionam outras areas

do conhecimento e da tecnica. Tendo surgido na decada de 40, como

poderiam os cientistas da epoca imaginar que o novo fenomeno seria um

dia utilizado para gerar imagens do interior do corpo humano em pleno

funcionamento! Hoje os chamados tomografos de RMN se espalharam

pelas clınicas e hospitais de todo o mundo, e sao um poderoso auxiliar

para o diagnostico de tumores, hematomas, etc. Para entendermos

como funciona a “magica”, e preciso entender antes uma variacao do

que foi exposto na secao anterior, a RMN pulsada.

Vimos que o fenomeno da RMN se da quando uma onda eletro-

magnetica, com frequencia igual a sua frequencia de Larmor, incide

Page 351: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

336

sobre um sistema de momentos magneticos nucleares em um campo

magnetico estatico. Embora nao tenhamos entrado em detalhes, mais

precisamente e a parte magnetica da onda que causa o fenomeno. Sabe-

mos que uma onda eletromagnetica possui um campo eletrico e um

campo magnetico que oscilam no espaco e no tempo (veja capıtulo um).

Para efeitos da RMN, podemos desprezar o campo eletrico, e conside-

rarmos o campo magnetico espacialmente uniforme. Matematicamente

representamos tal campo como:

B1(t) = B1[cos(ωt)i + sen(ωt)j]

onde usamos a notacao B1 para diferenciar do campo estatico B que,

vamos supor, atua ao longo da direcao z. Note que este campo possui

uma forma especial: o seu movimento pode ser visualizado como o de

um vetor girando com velocidade angular ω no plano xy. Embora essa

forma de escrever o campo oscilante nao seja a unica, ela e a mais con-

veniente do ponto de vista matematico, como ficara claro logo abaixo.

Alem disso, campos oscilantes com esta dependencia temporal podem

ser facilmente produzidos experimentalmente. Repetindo: temos dois

campos magneticos: um estatico, de magnitude B ao longo do eixo z,

e outro oscilante, de magnitude B1, que gira no plano xy. B serve para

estabelecer uma frequencia natural no sistema, enquanto que B1 serve

para levar o sistema a ressonancia. Normalmente, o campo B1 e muito

menor do que o campo B. O campo magnetico total atuando sobre

os momentos magneticos nucleares sera simplesmente a soma dos dois

campos:

Btotal = Bk +B1[cos(ωt)i + sen(ωt)j]

Page 352: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 337

Queremos descrever o movimento da magnetizacao nuclear sujeita

ao campo magnetico acima. Sabemos que momentos magneticos giram

em torno da direcao de campos magneticos. Mas, no caso acima fica

difıcil visualizarmos tal movimento, pois o campo total tambem esta

girando. Felizmente existe uma saıda elegante (e fantastica!) para o

problema.

Obviamente o campo magnetico acima e aquele visto por um ob-

servador em um referencial inercial, ou seja, em um referencial em que

os vetores unitarios i, j e k estao parados em relacao a ele. Mas, na

medida em que o termo dependente do tempo representa um vetor gi-

rando no plano xy, podemos perfeitamente imaginar um novo sistema

de referencia que gire com este vetor. Um observador neste novo sis-

tema de referencia vera o campo parado no tempo. Vamos chamar de

i′, j′ e k′ os vetores unitarios no novo sistema (daqui por diante vamos

nos referir ao sistema inercial como sistema de laboratorio e ao outro

como sistema girante), sendo que a rotacao se da em torno de k, que

portanto coincide com k′. Podemos imaginar que o campo B1 esteja

fixo sobre o eixo x′ no sistema girante. E facil ver que em termos de i

e j o versor i′ pode ser escrito como9:

i′ = cos(ωt)i + sen(ωt)j

ou seja, no sistema girante o campo total se torna:

Btotal = Bk′ +B1i′

e portanto independente do tempo.9Imagine i′ como um vetor no plano formado por i e j, fazendo um angulo ωt

com o eixo i.

Page 353: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

338

Imaginar um sistema girante pode parecer um pouco abstrato a

primeira vista, mas nao e difıcil. Pegue uma pedra amarrada em um

barbante e gire-a sobre a sua cabeca. Voce pode fazer isso de duas

maneiras: ou voce gira somente o braco que impulsiona a pedra, man-

tendo o resto do corpo parado, ou voce tambem gira junto com ela.

No primeiro caso voce vera a pedra girar, ou seja, estara no referencial

de “laboratorio”. No segundo voce a vera parada, ou seja, estara no

sistema “girante”. E claro que para ver a pedra parada, e preciso girar

com ela! Felizmente, no caso da RMN nao precisamos girar milhoes

de vezes por segundo junto com os nucleos para estar no referencial

girante. O fenomeno e detectado por equipamentos que ja fazem este

truque eletronicamente.

Mas a historia nao termina por aı. Se B1 for muito pequeno com-

parado a B, um observador no laboratorio vera a magnetizacao nuclear

girar com uma velocidade angular aproximadamente igual a ωL = γnB

em torno do eixo z. Por outro lado, um observador no sistema gi-

rante, que roda com uma velocidade ω no mesmo sentido de rotacao

dos nucleos, nao ve a mesma frequencia de precessao ωL, mas sim a

diferenca10 ωL−ω. Isso e intuitivo, pois se o observador no sistema gi-

rante rodar exatamente com ωL, ele vera a magnetizacao parada, como

no exemplo da pedra. Por outro lado, se para ele a frequencia de pre-

cessao e diferente daquela vista pelo observador parado, tambem o sera

o campo magnetico, pois o movimento da magnetizacao se da exata-

mente devido a acao do campo! De fato, para o observador no sistema

10A situacao e inteiramente analoga ao problema do movimento relativo discutidono capıtulo um. A diferenca e que aqui adicionamos frequencias angulares, e naovelocidades.

Page 354: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 339

girante, tudo se passa como se o campo magnetico atuando na direcao

z fosse dado, nao somente por B, mas por

B − ω

γn

Note que se multiplicarmos essa expressao por γn obtemos a frequencia

correta ωL−ω vista pelo observador no sistema girante. Chamamos de

campo magnetico efetivo o campo magnetico total visto pelo observador

no sistema girante:

Bef = B1i′ + (B − ω

γn)k′

As vezes, a quantidade ω/γn e chamada de campo magnetico fictıcio,

por nao se tratar de um campo magnetico real, mas apenas de um efeito

da rotacao do sistema de coordenadas.

Algo notavel agora acontece. Suponha que o campo oscilante tenha

uma frequencia exatamente igual a ωL = γnB, ou seja, esteja em res-

sonancia com o sistema. O campo magnetico na direcao z′ neste caso

se torna:

B − ωLγn

= B − γnB

γn= B − B = 0

Ou seja, para o observador no sistema girante, na ressonancia, o campo

na direcao z′ se anula! Este e o efeito da ressonancia. A magica disso

esta exatamente no fato de que supomos de partida que B B1, e no

entanto, por um efeito de ressonancia, B desaparece para o observador

no sistema girante que passa a ver somente B1! Estamos agora com as

“ferramentas” para entendermos a RMN pulsada e os ecos de spin.

Page 355: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

340

6.6 Ecos de Spin

Toda a discussao se passa no sistema girante. Inicialmente temos um

campo B estatico ao longo de z′. Repentinamente, um campo B1 e

aplicado na direcao x′, com frequencia ω = ωL, fazendo “desaparecer”

o campo B para o observador no sistema girante. A magnetizacao

nuclear, que inicialmente precessionava em torno da direcao z′, pas-

sara a girar em torno de B1 com uma frequencia angular ω1 = γnB1.

Esta frequencia e para o observador no sistema girante o equivalente a

frequencia de Larmor para o observador no laboratorio, com a diferenca

de que como B1 B, teremos ω1 ωL. Apos um intervalo de tempo

τ , a magnetizacao tera girado de um angulo θ igual a:

θ = ω1τ = γnB1τ

B1 e τ sao parametros que podem ser controlados, ou seja, aumentados

ou diminuidos arbitrariamente pelo experimentador. Podemos pensar

entao que, para B1 fixo, o angulo θ acima pode ser controlado simples-

mente variando-se a duracao τ . Poderıamos, por exemplo, controlar

τ de modo que θ = π/2, ou π, ou imaginar uma sequencia, em que

primeiro B1 e aplicado por certo tempo, de modo que θ = π/2, desli-

gado por um intervalo ∆τ , e ligado novamente de modo que θ = π.

Qualquer sequencia e possıvel. Com isso podemos controlar a posicao

da magnetizacao nuclear. Esta maneira de aplicar o campo oscilante

em intervalos fixos de duracao, ou, como no jargao da RMN, sob a

forma de pulsos, caracteriza a RMN pulsada.

A RMN pulsada da origem a um fenomeno peculiar: os ecos de spin.

Ecos de spin estao relacionados as componentes x e y da magnetizacao

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 341

nuclear no sistema girante (vamos omitir a ‘linha’ pois daqui por diante

so estaremos falando de sistema girante). E muito facil entender o

fenomeno, mas antes e preciso introduzir mais uns ingredientes.

Para que haja ecos de spin, e necessario que haja inomogeneidade

no campo estatico B, ou seja, e preciso que o campo varie espacial-

mente. Esta inomogeneidade de B, que denotaremos por ∆B, se re-

fletira na frequencia de Larmor dos spins, que tambem passara a ter

uma distribuicao de valores ∆ωL = γn∆B. Isso quer dizer que mo-

mentos magneticos nucleares em posicoes diferentes dentro do material

precessarao com velocidades angulares diferentes. Como consequencia,

um campo magnetico oscilante, aplicado sob a forma de um pulso,

normalmente nao agira de forma ressonante sobre todos os spins, mas

somente sobre uma parte deles. A esta fracao dos spins que “sente” a

atuacao do pulso, da-se o nome de pacote de spins11.

Vamos entao imaginar que inicialmente a magnetizacao aponta para

a direcao z. As frequencias de Larmor estao distribuidas na faixa

∆ωL = γn∆B. Um pulso magnetico e aplicado ao longo de x faz

girar todos os momentos que precessionam dentro de um determinado

pacote de spins. Vamos supor que trata-se de um pulso π/2, e que toda

a magnetizacao seja girada, o que sera verdade sempre que ∆ωL nao

for grande. Entao, a magnetizacao que apontava ao longo de z, passa

a apontar ao longo de y. O pulso e desligado; o que acontece com a

11Se a inomogeneidade ∆B nao for muito grande, e possıvel que todos os spinssejam excitados pelo pulso. Neste caso o pacote de spins seria igual a totalidadedos spins. Se, contudo, a inomogeneidade for muito grande, para que todos os spinssejam excitados, sera preciso variar a frequencia do campo oscilante em torno deωL.

Page 357: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

342

magnetizacao? Na ausencia do pulso os momentos magneticos preces-

sionarao em torno do campo estatico B. Mas como este e inomogeneo,

alguns momentos precessionarao mais rapido do que outros, causando

uma dispersao da magnetizacao no plano xy. Apos um intervalo de

tempo ∆τ , um outro pulso e aplicado, de modo a girar a magnetizacao

de um angulo π em torno de x. Um “milagre” entao acontece: o sen-

tido de rotacao dos momentos dispersos e invertido, e a magnetizacao

no plano xy e refocalizada! Esta refocalizacao e o que se chama de

eco de spins. Nos referimos a esta sequencia particular de pulsos como

π/2 − ∆τ − π.

Vamos agora interpretar os tempos de relaxacao T1 e T2 em termos

do movimento da magnetizacao nuclear. O tempo de relaxacao T1 cor-

responde ao tempo para a recuperacao da magnetizacao de equilıbrio

apos a remocao dos pulsos. O tempo T2 corresponde ao tempo gasto

para a magnetizacao no plano xy desaparecer. Essa perda da magne-

tizacao no plano ocorre devido a interacao entre os spins, causando sua

dispersao total. Verifica-se que T2 e sempre menor ou igual a T1.

Page 358: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 343

PAINEL XII

RMN E COMPUTACAO QUANTICA

No inıcio da decada de 80, Richard Feynman, um dos fısicos americanos mais im-

portantes do seculo XX, afirmou que seria impossıvel simular sistemas quanticos de

forma completa, utilizando ferramentas classicas. Como as bases de funcionamento

de um computador comum sao classicas, isto significaria que sistemas quanticos

nao poderiam ser simulados em um computador, a menos que este tambem fun-

cionasse com bases quanticas, ou seja, fosse um computador quantico. As ob-

servacoes de Feynman resultaram numa busca de como deveria funcionar um com-

putador quantico. O resultado foi surpreendente: um computador quantico teria

uma capacidade computacional que transformaria os mais poderosos computadores

da atualidade em meras reguas de calculo.

Como sabemos, computadores classicos operam com sinais eletricos sob a forma

de pulsos que representam dois estados logicos: 0 e 1. Estes dois dıgitos sao a base

do sistema numerico binario. Todas as maravilhosas tarefas executadas pelos com-

putadores atuais podem, em ultima instancia, ser traduzidas como uma imensa

sequencia de “zeros” e “uns”. O “estado logico” de um computador classico pode-

ria parecer algo como: 1001011100011110000111110000110... Uma caracterıstica

fundamental desta tecnologia e o fato de dois estados logicos serem mutuamente

excludentes: em uma dada posicao da sequencia, ou aparece o dıgito “1” ou o

dıgito “0”, mas nunca os dois ao mesmo tempo. No mundo quantico e diferente.

Suponha que tenhamos duas partıculas com spin 1/2 em um campo magnetico.

Cada uma delas pode ter projecao ±1/2 ao longo da direcao do campo. Existementao 4 configuracoes possıveis para o spin do sistema: ↑↑, ↑↓, ↓↑ e ↓↓. Cada umadessas configuracoes e representada por uma autofuncao, que podemos escrever

como: φ↑↑, φ↑↓, φ↓↑ e φ↓↓.

Podemos interpretar o estado quantico “spin para baixo” como um estado

logico, por exemplo, “0”. Analogamente, podemos interpretar o estado quantico

“spin para cima” como “1”. Com isto, os estados de spin acima seriam represen-

tados, respectivamente, por 11, 10, 01 e 00, e as autofuncoes correspondentes φ11,

Page 359: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

344

φ10, φ01 e φ00. Assim como a unidade de informacao classica e o “bit” (do ingles

binary digit), a unidade de informacao quantica e o “qubit” (quantum binary digit).

Como vimos no capıtulo 3, estados quanticos sao representados por super-

posicoes de autoestados. Podemos entao pensar no seguinte estado para o sistema

de dois spins:

ψ = a11φ11 + a10φ10 + a01φ01 + a00φ00

onde |a11|2 e a probabilidade de encontrarmos o estado φ11 em uma medida, analoga-

mente para os outros coeficientes.

E precisamente a possibilidade de superpor estados que torna a computacao

quantica imensamente superior a classica. Em termos logicos, o estado acima rep-

resenta a possibilidade de operarmos com os quatro estados 11, 10, 01 e 00 simul-

taneamente, o que e impossıvel classicamente. Se tivessemos n spins, ao inves de

2, terıamos 2n estados, ao inves de 4. Um computador quantico operaria simul-

taneamente com todos eles. Em outras palavras, todos os estados logicos de um

computador quantico poderiam ser acessados simultaneamente!

Operar com estados em um computador quantico significa manipular os spins.

E aqui que entra a RMN. Em tese, qualquer sistema quantico com nıveis discretos

de energia poderia ser utilizado como computador quantico, mas ate o momento

somente a RMN foi capaz de demonstrar a realizacao da ideia na pratica. Varios

algoritmos quanticos ja foram realizados experimentalmente atraves da RMN apli-

cada em moleculas com dois e tres spins. Apesar da simplicidade desses “computa-

dores rudimentares”, e das discussoes sobre a utilizacao pratica de computadores

quanticos, ha muito otimismo quanto ao futuro da computacao quantica. Um dia

voce vai ver um computador quantico na prateleira de uma loja!

Page 360: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 345

6.7 Imagens do Corpo Humano;

uso Medico da RMN

A amplitude do eco de spins depende do numero de momentos magneticos

no pacote de spins que, por sua vez, depende da inomogeneidade de B.

Quanto maior for ∆B, menor sera o numero de momentos magneticos

no pacote de spins, e menor a amplitude do eco. Tambem e verdade que

a amplitude do eco depende do numero total de momentos magneticos

no material. Ou seja, quanto maior a concentracao de spins nucleares,

maior sera o eco. Poderıamos, por exemplo, somente olhando as am-

plitudes dos ecos de protons da agua contida em 2 frascos diferentes,

dizer qual deles tem mais agua. Suponha que ao inves de 2 frascos,

tenhamos um objeto com diferentes concentracoes de agua dentro dele.

Se pudessemos controlar a inomogeneidade do campo ∆B dentro do

material poderıamos, atraves da analise das amplitudes dos ecos, dizer

que regiao tem mais agua. Ou seja, podemos “fotografar” a distribuicao

de lıquidos dentro do objeto. Imagine agora que tal objeto seja sub-

stituıdo por uma pessoa, ou parte dela, como a cabeca ou a perna.

Poderıamos, a partir da analise das amplitudes dos ecos, determinar

as concentracoes de lıquidos dentro do meio, e a partir daı construir

uma imagem interna daquela parte do corpo. Este e o princıpio da

tomografia por RMN!

Embora entre a deteccao do eco de spins e a exibicao de uma i-

magem interna do objeto no qual ele foi gerado haja muito trabalho

matematico, o princıpio fısico que possibilita a construcao dessas i-

magens e simples, e vale a pena ser discutido com mais detalhes. O

Page 361: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

346

“truque” esta no controle da inomogeneidade do campo magnetico

estatico ∆B. Campos magneticos podem ser produzidos de modo a

apresentarem variacao espacial ao longo de uma direcao no espaco.

Por exemplo, poderıamos imaginar um campo cujo valor varie ao longo

de um eixo x da seguinte forma: em x = 0 o valor do campo e de 5000

gauss (1 gauss = 0,0001 tesla ), em x = 50 cm B seria 4000 gauss, e em

x = 100 seria de 3000 gauss. Ou seja, o campo diminui de 1000 gauss a

cada meio metro. Dizemos que existe um gradiente de campo ao longo

de x. Representemos o gradiente pela letra G. Entao:

G = −1000 gauss

50 cm= −20

gauss

cm

O sinal negativo indica que o campo diminui quando x aumenta.

Com isso, o valor do campo magnetico em qualquer ponto ao longo

de x pode ser escrito como:

B = B0 − xG

onde B0 e o valor de B em x = 0 (no exemplo acima 5000 gauss). A

inomogeneidade referida acima pode ser identificada como a diferenca

B−B0 = −xG. Com essa expressao podemos calcular o valor do campo

em qualquer ponto do eixo x. Por exemplo, em x = 6, 5 cm teremos,

utilizando os valores do exemplo acima:

B = 5000 − 6, 5 × 20 = 4870 gauss

Podemos a partir daı calcular a frequencia de Larmor em qualquer

posicao. Como B depende de x, ωL tambem dependera:

Page 362: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 347

ωL(x) = γB(x) = γB0 − γxG

Suponha, por exemplo, que um nucleo hipotetico tenha γ = 2 × 104

Hz/gauss. Em x = 0 a frequencia de ressonancia desse nucleo seria:

ωL(x = 0) = 2 × 104 × 5000 = 108 Hz = 100 MHz

Se o mesmo nucleo estivesse em x = 6, 5 cm a sua frequencia de res-

sonancia seria:

ωL(x = 6, 5) = 2 × 104 × 4870 = 97, 4 MHz

Esta correspondencia entre a frequencia de ressonancia e a posicao

do nucleo dentro do material e o que permite a construcao das im-

agens. Note que se nao houvesse gradiente de campo, ou seja, se

G = 0, todos os nucleos da mesma especie responderiam com a mesma

frequencia. Tendo em conta que a amplitude do sinal de RMN depende

da concentracao dos nucleos que estao ressoando, pode-se transformar

a informacao frequencia vs. posicao em concentracao de material vs.

posicao. A partir daı algorıtmos de computador para tratamento de

imagens entram em acao e a imagem final e obtida.

Mas, como um medico pode chegar ao diagnostico de uma doenca

baseado nas imagens? Neste ponto os tempos de relaxacao T1 e T2

desempenham um papel fundamental. De fato, embora imagens pos-

sam ser contruıdas apenas a partir da informacao sobre as diferencas

de concentracoes de protons (hidrogenio) nos tecidos, o quadro obtido

dessa forma nao e completamente livre de ambiguidades. A razao e que

Page 363: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

348

tecidos saudaveis podem apresentar concentracoes de protons proximas

a de tecidos nao saudaveis. Por outro lado, tecidos saudaveis apresen-

tam tempos de relaxacao diferentes dos nao saudaveis. Nao e difıcil

imaginarmos a razao para isto se entendermos que tecidos saudaveis

e nao-saudaveis possuem composicoes quımicas diferentes; na medida

em que os tempos de relaxacao estao relacionados as trocas de ener-

gia entre os spins dos nucleos ressonantes e as suas vizinhancas, eles

serao sensıveis ao ambiente quımico onde o nucleo se encontra. Faz-se

entao uma especie de ponderacao da amplitude do sinal de RMN com

os tempos de relaxacao T1 e T2. Vamos discutir este ponto com um

pouco mais de detalhes.

Normalmente um eco de spins e composto por uma superposicao de

sinais relativos a spins que relaxam rapido e outros que relaxam mais

lentamente. A amplitude do eco depende tanto de T1 quanto de T2.

Se uma sequencia de dois pulsos for aplicada muito rapidamente, o eco

sera formado basicamente pelos spins dos nucleos que relaxam rapido

(T1 curto). Se, por outro lado, esperarmos um tempo suficientemente

longo para repetir a sequencia de pulsos, os nucleos que relaxam rapido

ja terao alcancado o equilıbrio, e o eco sera formado por aqueles que

relaxam mais lentamente (T1 longo). O mesmo ocorre com T2: em uma

sequencia de dois pulsos, se aproximarmos os pulsos no tempo, o eco

sera formado basicamente por spins que possuem T2 curto, ao passo

que se separarmos os pulsos no tempo, so contribuirao aqueles spins

que possuem T2 longo. Associe agora T1 e T2 curtos ou longos a tecidos

saudaveis ou nao, e voce tem uma maneira de distinguir tecidos dentro

do corpo!

Page 364: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 349

Apos a deteccao dos sinais de RMN, e a devida ponderacao pe-

los tempos de relaxacao, as imagens sao construıdas. As amplitudes

dos ecos estao associadas ao brilho na imagem. Por exemplo, regioes

mais claras representam sinais com maior intensidade, e mais escuras

de menor intensidade. E preciso manter em mente que o brilho de

uma determinada regiao em uma imagem depende do tipo de medida

realizada (e de fato do operador do tomografo!). Consequentemente a

mesma regiao pode aparecer mais clara ou mais escura, dependendo

se o sinal de RMN que a representa foi ponderado por T1 ou T2, ou

ainda da sequencia de pulsos utilizada. Por exemplo, uma regiao es-

cura em uma imagem ponderada por T1 pode representar a presenca

de um tumor, uma inflamacao ou edema. Regioes claras na mesma

imagem podem representar gordura, baixo fluxo sanguıneo, etc. Ossos,

ligamentos, cartilagem, etc., apresentam baixa intensidade em sinais

ponderados tanto por T1 quanto por T2. Tumores, inflamacoes e ede-

mas, em geral, apresentam baixa intensidade em sinais ponderados por

T1, e alta intensidade em sinais ponderados por T2. Qualquer que seja

a situacao, varias medidas serao normalmente necessarias a fim de que

se chegue a um diagnostico seguro.

6.8 A Fauna Quantica: Fotons, Fonons,

Magnons, Plasmons, e outros ‘ons’

No proximo capıtulo falaremos um pouco mais desta parceria Fısica-

Medicina. No momento vamos deixar as doencas de lado, e retornar

aos fenomenos basicos da Natureza.

Page 365: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

350

Imagine um solido cristalino, magnetico e metalico, como o Fe ou o

Gd. Em cada ponto da rede existe um ıon com um momento magnetico

que aponta para uma direcao fixa. Cada ıon esta ligado ao seu vizinho e,

“passeando” entre eles esta o gas de eletrons. Como vimos no capıtulo

anterior, estes eletrons ocupam estados em uma banda de conducao, e

suas massas sao diferentes daquela do eletron livre; sao massas efetivas,

m∗, que refletem as interacoes do eletron com a rede cristalina. As vezes

nos referimos a essas partıculas com massas renormalizadas como quase-

partıculas. Ou seja, uma quase-partıcula e uma partıcula “revestida”

de uma interacao.

Se a temperatura do solido fosse zero, cada ıon da rede estaria prati-

camente parado, assim como cada momento magnetico estaria fixo, to-

dos apontando para a mesma direcao. Mas, a uma temperatura finita

e diferente de zero, a agitacao termica faz a rede vibrar. Se a temper-

atura nao for muito alta, as vibracoes ocorrerao sob a forma de ondas

que se propagam pelo solido. Por exemplo, imagine os ıons como se fos-

sem bolas ligadas entre si por molas. As molas representam as ligacoes

quımicas entre eles. Fazendo uma das bolas vibrar, o movimento sera

transmitido a todas as outras, que tambem passarao a vibrar, propa-

gando uma onda elastica pelo solido. Analogamente as ondas eletro-

magneticas que possuem como contrapartida quantica o foton, ondas

elasticas dentro de um solido possuem um quantum associado: o fonon.

Podemos afirmar que o fonon esta para as ondas elasticas (vibracoes

dos ıons em um solido) assim como o foton esta para as ondas eletro-

magneticas.

Considere agora o caso dos momentos magneticos. Neste caso as

Page 366: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 351

molas nao sao ligacoes quımicas, mas a interacao de Heisenberg (secao

6.1). Da mesma forma que os ıons, o movimento de um momento

magnetico fara, atraves da interacao de Heisenberg, com que todos

os momentos se mexam, criando uma onda magnetica que atravessa o

solido. O correspondente quantico da onda magnetica e chamado de

magnon.

De uma maneira geral, qualquer movimento oscilatorio que ocorra

em um solido tera um quantum associado. Um outro exemplo ocorre

com o proprio gas de eletrons. A quantizacao das vibracoes desse gas

leva aos plasmons (a palavra vem de “plasma”, denominacao dada a um

gas neutro formado por partıculas carregadas - ou seja, com partıculas

positivas e negativas em igual numero). Existem ainda outro bichos

quanticos estranhos, como os helicons, os excitons, e vai por aı afora.

Cada uma dessas partıculas, ou como as vezes nos referimos, excitacoes

elementares da rede, participa da dinamica das interacoes dentro do

solido. Sob certo aspecto e como se o solido fosse um “ecossistema”

onde estranhos “animais” da fauna quantica co-existem, conferindo a

ele suas caracterısticas macroscopicas proprias.

Page 367: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

352

.

Oscilacos dos atomos em uma rede cristalina em torno de suas posicoes de equilıbrioocorrem, por exemplo, quando o som atravessa o material. Assim como ondas eletro-magnetica sao quantizadas em fotons, tais oscilacoes nos solidos sao quantizadas emfonons.

De forma analoga as oscilacoes elasticas descritas na figura anterior, oscilacoesmagneticas podem ser descritas em termos de “partıculas magneticas” chamadasde magnons.

Page 368: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 353

6.9 Trens que Flutuam!

Nesta secao vamos falar de um dos fenomenos mais bizarros e espeta-

culares da materia condensada: a supercondutividade. Esta e outra

importante area de especializacao que tem gerado importantes resulta-

dos, com vastas possibilidades de utilizacao pratica.

Embora a supercondutividade seja um fenomeno historicamente as-

sociado a perda de resistencia eletrica de um material, ela tambem pode

ser encarada como um estado magnetico muito especial da materia.

Para entender o que e supercondutividade, vamos recordar o que vem

a ser condutividade eletrica. Esta e “moleza”: esta associada a lei de

Ohm:

V = RI

Aplica-se uma voltagem V a um pedaco de fio, e aparece uma corrente

I proporcional a V . R e a resistencia, que esta em parte associada a

geometria do material, e em parte as suas caracterısticas intrınsecas.

Para recordar o que foi dito no capıtulo anterior:

R =l

onde l e o comprimento, A a area da secao transversal, e ρ a resistivi-

dade. E nesta ultima quantidade que estamos interessados. O inverso

da resistividade e a condutividade σ:

σ =1

ρ=ne2τ

m∗

Os sımbolos da fracao mais a direita ja foram definidos anteriormente.

Queremos aqui discutir especificamente o significado de τ . Este e

Page 369: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

354

definido como o tempo medio entre colisoes sucessivas dos eletrons com

a rede. Mas, o que sao exatamente essas colisoes? Em uma visao

classica e muito simples entender: os eletrons se chocam com os ıons

da rede como se fossem bolas de gude se chocando contra bolas de

boliche. Quanticamente a coisa e mais complicada. Eletrons podem

interagir com fonons, magnons, e outros ‘ons’ da rede; cada tipo de

interacao representa uma fonte potencial de espalhamento eletronico12,

e portanto contribui para a resistividade do material. Quanticamente

nao dizemos que os eletrons se chocam com os ıons, mas sim que os

eletrons sao espalhados pelas excitacoes da rede. Obviamente em um

cristal nao magnetico nao havera magnons, mas fonons estarao sempre

presentes. De fato, fonons sao, em geral, a principal fonte de resistivi-

dade dos solidos cristalinos metalicos. Neste contexto, o tempo τ esta

associado as interacoes entre eletrons e fonons.

Passemos entao aos supercondutores. Considere um solido, metalico

e nao magnetico, como por exemplo, o chumbo (Pb). Ao aplicarmos

uma voltagem a um fio de chumbo, aparecera uma corrente eletrica,

que obedecera a lei de Ohm, V = RI. O principal mecanismo de

resistividade neste caso e o espalhamento dos eletrons por fonons. No

entanto, se diminuirmos a temperatura do chumbo abaixo de 8 K (cerca

de -265 celsius), algo surpreendente acontece: a resistividade eletrica

do chumbo desaparece, e ele se transforma em um supercondutor. E

como se os fonons tivessem desaparecido subitamente, ou deixassem por

12Aqui, a palavra “espalhamento” significa que a interacao do eletron com os“ons” da rede, leva a uma mudanca de estado quantico do eletron. Por exemplo,se o estado do eletron antes da interacao ocorrer for representado por um vetor deonda k1, apos a interacao ele tera sido espalhado para um outro estado k2.

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 355

alguma razao de espalhar os eletrons, que entao se deslocam livremente.

Um supercondutor e capaz de transportar corrente eletrica mesmo sem

voltagem aplicada!

Aqui vale um comentario: assim como a ordem magnetica nos mate-

riais, a supercondutividade e antes um estado da materia. Estritamente,

nao devemos dizer que este ou aquele material e supercondutor, mas

que apenas esta em um estado supercondutor. O mesmo cometario vale

para os materiais magneticos. E mais correto dizermos que tal material

esta em um estado ferromagnetico, e nao que ele e ferromagnetico. No

entanto, na medida em que soubermos do que estamos falando, esse

detalhe nao sera importante.

Em um metal normal, a resistividade eletrica decai de forma suave com o decrescimoda temperatura. Em um supercondutor, a resistividade cai abruptamente para zeroem uma temperatura caracterıstica de cada material.

O chumbo nao e o unico elemento da tabela periodica a apresentar

Page 371: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

356

supercondutividade. Mais de 26 outros elementos se tornam supercon-

dutores abaixo de uma certa temperatura crıtica, que e caracterıstica de

cada material. Mas como o “milagre” acontece? Nao e tao simples de

entender. So para dar uma ideia, embora a supercondutividade tenha

sido descoberta em 1911 (no mercurio), o fenomeno permaneceu sem

uma explicacao satisfatoria ate 1957, quando entao tres fısicos amer-

icanos, Bardeen, Cooper e Schriffer propuseram uma teoria quantica

que explicou o fenomeno. Esta teoria ficou conhecida como a teoria

BCS da supercondutividade.

Existem dois ingredientes fundamentais na teoria BCS: os chamados

pares de Cooper, e a existencia de um hiato de energia entre o estado

normal e o estado supercondutor. Vamos entender o que e isto.

Considere um eletron que se desloca em uma rede cristalina. Como

o eletron possui carga negativa, ele atrai para si os ıons positivos da

rede. Ao fazer isso, o eletron acaba por criar uma densidade de car-

gas positivas a sua volta (1 eletron atrai varios ıons simultaneamente).

Um segundo eletron que estiver passando por perto se sentira atraıdo

para essa regiao. Tudo se passa como se os ıons da rede intermedi-

assem uma interacao entre os dois eletrons. A novidade e que essa

interacao e atrativa! Os eletrons ligados desse jeito formam um par de

Cooper. Veja como o mundo e cheio de surpresas: aprendemos a vida

inteira que cargas de mesmo sinal, como dois eletrons, se repelem. No

entanto, dentro de um solido, e sob certas condicoes, eletrons se com-

portam como se atraıssem um ao outro! A medida que os eletrons do

par se deslocam pela rede, a deformacao local que ele cria tambem se

propaga. Mas como vimos, deformacoes da rede sao ondas elasticas,

Page 372: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 6 - MAGNETISMO 357

que na linguagem da mecanica quantica se tornam fonons. Portanto

podemos afirmar que sao os fonons que servem de “cola” para unir os

eletrons em um par de Cooper. Um metal que contenha n eletrons por

unidade de volume, podera formar no maximo n/2 pares de Cooper.

E interessante ressaltar o papel singular dos fonons para a dinamica

da rede: no estado normal eles espalham os eletrons e sao responsaveis

pela resistividade do material; no estado supercondutor eles formam

os pares de Cooper, e levam ao desaparecimento da resistividade do

material.

Resumindo: em um supercondutor quem transporta a corrente ele-

trica nao sao eletrons, mas sim pares de Cooper, formados por dois

eletrons e 1 fonon. A teoria BCS mostra que os pares de Cooper se

formam preferencialmente entre eletrons com spins opostos.

Um par de Cooper e uma partıcula composta por dois eletrons de spins opostos,ligados por um fonon. Esta estranha partıcula e o ingrediente essencial para com-preendermos a supercondutividade. Ela e formada porque ao se deslocar pela rede,um eletrons atrai para si os ıons positivos que estao a sua volta, criando uma regiao

Page 373: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

358

com densidade de carga positiva em excesso, que por sua vez atrai outro eletron.

Agora vem o segundo ingrediente fundamental da supercondutivi-

dade: por que os pares de Cooper podem se mover livremente sem

serem espalhados, enquanto que eletrons normais nao? Se um par de

Cooper fosse espalhado, ele ganharia energia, e portanto passaria para

outro estado. A teoria BCS mostra que no estado supercondutor os

pares de Cooper se encontram em um nıvel de energia abaixo daqueles

nıveis correspondentes aos eletrons independentes. Ou seja, energeti-

camente e mais economico formar pares de Cooper. A teoria mostra

tambem que entre o estado de pares de Cooper, e de eletrons normais,

existe um hiato de energia13. Para espalhar um par de Cooper e preciso

que este ganhe energia suficiente para passar por cima do hiato e por-

tanto romper a ligacao entre os eletrons do par! A baixas temperaturas

a ocorrencia desse processo e muito improvavel, mesmo na presenca

de um campo eletrico aplicado. Consequentemente os pares de Cooper

nao sao espalhados, e podem se mover livremente na direcao do campo,

com resistividade zero!

13A situacao e de certa forma semelhante a dos semicondutores. Contudo, nossemicondutores hiatos separam estados normais eletronicos em bandas distintas;nos supercondutores o hiato separa os estados normais do estado supercondutor.

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 359

.

A principal descoberta da teoria BCS da supercondutividade foi a existencia deum hiato de energia entre o estado normal e o estado supercondutor dos eletrons.Quando no estado supercondutor, a probabilidade dos eletrons sofrerem espal-hamento vai para zero, consequentemente fazendo “explodir” a condutividade eletrica.

Mas, o que isso tudo tem a ver com magnetismo? Acontece que su-

percondutores possuem uma outra caracterıstica importante alem da

resistividade eletrica zero. Eles expelem campos magneticos de seu

interior. Se voce aproximar um ıma de um metal comum, o campo

magnetico gerado pelo ıma penetra no metal, mas nao penetra em um

supercondutor. E como se o supercondutor se comportasse como um

outro ıma com a mesma polaridade (como todo mundo sabe, o polo

norte de um ıma atrai o polo sul e repele outro polo norte). Este

fenomeno, chamado de efeito Meissner (Meissner e o sobrenome do

cidadao que descobriu o efeito. Como voce ja deve ter notado, os fısicos

adoram batizar novos efeitos com nomes de fısicos. E uma questao de

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360

modestia.), esta associado a existencia da supercorrente. Ao tentarmos

aproximar o ıma do supercondutor, a corrente supercondutora comeca

a formar espiras de corrente dentro do material, de modo a gerar um

campo magnetico que exatamente cancele o campo do ıma. Essa re-

pulsao tem um efeito interessante: ao largarmos um pedaco de um ıma

sobre a superfıcie de um supercondutor, a repulsao magnetica devida

ao efeito Meisser, fara com que o ıma flutue no espaco! Nao e mar-

avilhoso? Tem gente por aı que tambem diz saber flutuar (alem fazer

chover e ventar - mediante irrisorias gratificacoes). Vai ver que essas

pessoas possuem pares de Cooper nas solas dos pes!

O efeito Meissner e a base da levitacao magnetica. Um supercondutor abaixo dasua temperatura crıtica expele linhas de inducao magnetica de seu interior. Se umıma for colocado sobre a superfıcie de um supercondutor, o efeito fara com que oıma flutue.

Supercondutores sao obviamente materiais que possuem grande po-

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 361

tencial tecnologico. A possibilidade de transportar corrente eletrica de

um ponto a outro de um fio sem perdas (isto e, com resistencia zero) e

fantastica! O principal empecilho, contudo, ainda nao foi transposto: as

baixas temperaturas necessarias. Materiais simples, como o chumbo,

o vanadio (V), o alumınio (Al) entre outros, so se tornam supercon-

dutores a temperaturas extremamente baixas. Manter um fio a esta

temperatura sai mais caro do que a perda de energia eletrica que seria

evitada.

Um outro tipo de aplicacao tecnologica com supercondutores uti-

liza o efeito Meissner: trens que flutuam! Se o trilho de um trem for

magnetico, e o seu fundo supercondutor, em princıpio poderia flutuar.

De fato, tal “milagre” ja foi realizado, como provavelmente voce ja viu

na televisao. No Japao, pesquisas sobre motores de propulsao linear de

veıculos que nao fazem contato com o solo comecaram no inıcio dos anos

60. Nos anos 70 os japoneses estudavam sistemas de levitacao eletro-

magnetica utilizando supercondutores, e no inıcio dos anos 80 puseram

um trem desses para andar a 517 km/h! O programa se desenvolveu,

para o que hoje eles chamam de Maglev. No Maglev o supercondutor

esta dentro do trem, enquanto que na pista estao espiras especiais que

geram um campo magnetico, que fazem o trem flutuar.

Desde 1986 novos materiais supercondutores tem sido descobertos.

Os chamados novos supercondutores possuem temperaturas crıticas muito

mais elevadas que os supercondutores tradicionais. Eles, em geral,

possuem formulas quımicas pavorosas, como por exemplo, o composto

Tl2Sr2Ca2Cu3O10, cuja temperatura crıtica e de 125 K (- 148 C). Um

fato curioso e que a temperaturas normais esses materiais nao sao con-

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362

dutores, mas isolantes! A fısica desses materiais continua obscura, e

nao se sabe bem como se da o fenomeno da supercondutividade neles.

Nao se sabe tambem se sera possıvel alcancar a supercondutividade a

temperaturas que tornem esses materiais de utilizacao pratica trivial,

como por exemplo, a confeccao de um fio. Se isso acontecer, estaremos

diante de uma nova revolucao tecnologica!

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. A Danca dos Spins, Sergio M. Rezende, vol. 14, no. 80, p. 28.

2. Os Ferrofluidos, Antonio Martins Figueiredo Neto, vol. 4, no. 23, p. 9.

3. Tomografia por Ressonancia Magnetica Nuclear: Novas Imagens do Corpo,Horacio Panepucci, Jose Pedro Donoso, Alberto Tannus, Nicolau Beckman e TitoBonagamba, vol. 4, no. 20, p. 46.

4. Vidros de Spin: Novos Desafios do Magnetismo, Mucio Continentino, vol.3, no. 16, p. 72.

5. Mais um Premio para a Supercondutividade, Ney F. Oliveira Jr., vol. 7, no.39, p. 10.

6. Supercondutividade, Carlos Balseiro e Francisco de la Cruz, vol. 9, no. 49,p. 26.

7. Uma Surpresa na Supercondutividade, Mucio Amado Continentino, vol. 13,no. 75, p. 8.

8. Supercondutores: a Batalha dos Nanossegundos, Virgılio Augusto F. deAlmeida, vol. 5, no. 25, p. 62.

9. Novos Supercondutores: Revolucao Tecnologica a Vista, Eugenio Lerner, vol.6, no. 33, p. 10.

10. Ecos de Corrente: Novos Desafios a Fısica Experimental, Ivan S. Oliveira,vol. 22, no. 130, p. 58.

11. Computacao Quantica: a ultima fronteira da informacao, Ivan S. Oliveira

12. Superpoderes dos Nanomagnetos, Marcelo Knobel, vol. 27, no. 159, p. 32

13. Desmagnetizacao Adiabatica: opcao economica e ecologica para refrig-eracao, Pedro J. von Ranke, vol. 26, no. 155, p.34

14. Biomagnetismo: Nova Interface entre a Fısica e a Biologia, D. Barros deAraujo, A.A. Oliveira Carneiro, E.R. Moraes e O. Baffa, vol. 26, no. 156, p. 24

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CAPITULO 6 - MAGNETISMO 363

Resumo - Capıtulo Seis

Dois ingredientes fundamentais sao necessarios para entendermos omagnetismo na materia: a existencia de momentos magneticos atomicos,e o princıpio de exclusao de Pauli. Momentos magneticos atomicosoriginam-se do movimento orbital de eletrons no atomo, e do momentoangular de spin. Dizemos que um dado material possui ordem magneticase os momentos atomicos estiverem apontados, na media, para direcoesregulares no espaco. A ordem magnetica dos materiais pode ser expli-cada atraves da interacao de Heisenberg, uma interacao de origem in-teiramente quantica, sem analogo classico. Ela e sempre destruıda acimade uma certa temperatura, chamada de temperatura crıtica. A tempe-ratura crıtica nos da uma nocao da intensidade da interacao de troca, res-ponsavel pela ordem magnetica. A maioria dos nucleos atomicos possuimomento magnetico. O magnetismo nuclear e muito mais fraco do que omagnetismo atomico, mas nem por isso e menos importante. Momentosmagneticos nucleares quando em um campo magnetico adquirem umafrequencia natural chamada de frequencia de Larmor. Nesta situacao,eles podem absorver energia de uma onda eletromagnetica que incida so-bre o sistema com a mesma frequencia; este e o fenomeno da ressonanciamagnetica nuclear, ou RMN. Dentre as varias aplicacoes da RMN, pode-mos gerar imagens internas de objetos, inclusive de organismos vivos emfuncionamento. Um tipo muito especial de material magnetico sao os su-percondutores. Em um supercondutor, sob determinadas condicoes, oseletrons se ligam aos pares formando uma partıcula chamada de par deCooper. Pares de Cooper praticamente nao sofrem espalhamento ao sedeslocarem dentro do material, o que faz com que a resistividade eletricade um supercondutor seja zero. Supercondutores possuem a propriedadede expelir campos magneticos de seu interior. Esta caracterıstica e uti-lizada para fazer levitacao magnetica de objetos, como trens. Uma dasdificuldades para a utilizacao pratica dos supercondutores sao as baixastemperaturas crıticas, o que encarece a manutencao do estado supercon-dutor. A partir do final da decada de 80 novos materiais supercondutoresforam descobertos. Estes possuem temperaturas crıticas mais elevadasdo que os supercondutores tradicionais. Embora haja um grande numerode investigacoes experimentais acerca desses novos supercondutores, naoexiste no momento uma compreensao teorica satisfatoria sobre os meca-nismos de supercondutividade nesses materiais.

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Chapter 7

Energia Nuclear

Pense nas criancas mudas

Telepaticas

Pense nas meninas cegas

Inexatas

Pense nas feridas como rosas

Calidas

Mas! nao se esqueca da rosa, da rosa

Radioativa

Estupida

Invalida

Sem cor

Sem perfume

Sem nada

(Rosa de Hiroshima - Vinıcius de Moraes)

No dia 6 de agosto de 1945 o mundo assistiu com horror a mais

funesta aplicacao pratica da fısica de toda a sua historia: a explosao

365

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366

de uma bomba atomica, pelos Estados Unidos, sobre a cidade de Hi-

roshima no Japao, matando mais de 80 mil pessoas, e ferindo outras

75 mil. Apenas 3 dias depois desta tragedia, os Americanos largaram

uma segunda bomba sobre a cidade de Nagasaki, matando outras 40

mil pessoas. Foi a inauguracao tragica da era nuclear. Esta, e outras

utilizacoes da energia nuclear, tornou-se possıvel gracas a compreensao

de certos processos fısicos que ocorrem em nucleos instaveis.

7.1 Instabilidade Nuclear

No que diz respeito a estabilidade, existem dois tipos de nucleos atomicos

na Natureza: os estaveis e os instaveis. Nucleos estaveis sao aqueles

que nao sofrem nenhum tipo de transmutacao com o tempo, ou seja,

nao decaem emitindo partıculas subatomicas. Ao contrario, os nucleos

instaveis emitem diversos tipos de partıculas.

Quando olhamos para uma tabela periodica, as informacoes que

nela lemos dizem respeito a isotopos estaveis dos elementos. E comum

que cada elemento tenha mais de um isotopo estavel, e varios isotopos

instaveis. Por exemplo, o hidrogenio, o elemento mais simples do Uni-

verso, possui Z = 1, ou seja, seu nucleo so possui 1 unico proton. Alem

deste isotopo, existem mais 2 isotopos do hidrogenio: o deuterio (2H) e

o trıtio (3H). O nucleo do 1H possui 1 unico proton, e nenhum neutron;

o do 2H possui 1 proton e 1 neutron, e do 3H 1 proton e 2 neutrons. O

hidrogenio e o deuterio sao estaveis, enquanto que o trıtio e instavel.

A abundancia isotopica (a proporcao de um dado isotopo em relacao a

totalidade de isotopos do elemento) do 1H e de 99,985 %, e a do 2H e

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 367

de apenas 0,015 %. O trıtio dura em media 12,3 anos.

Os tres isotopos do hidrogenio. O hidrogenio e deuterio sao estaveis, enquanto otrıtio e instavel.

Considere um outro exemplo: o cobre (Cu). O seu numero atomico e

Z = 29. Existem dois isotopos estaveis do Cu: o 63Cu, com abundancia

de 69,2%, e o 65Cu, com abundancia de 30,8%. Alem desses, existem

os isotopos 59Cu, 60Cu, 61Cu, 62Cu, 64Cu, 66Cu, 67Cu e 68Cu, todos

instaveis. O 67Cu, por exemplo, dura em media 61,9 horas, e o 68Cu

apenas 31 segundos.

Note que do ponto de vista quımico, o que conta e o numero de

eletrons do atomo, e como eles se distribuem nos orbitais. Sendo as-

sim, qualquer um desses isotopos, estavel ou instavel, pode participar

de uma ligacao quımica em uma substancia qualquer. Do ponto de vista

nuclear, contudo, as diferencas de massa sao fundamentais, porque al-

teram o propriedades importantes dos nucleos. Por exemplo, o 61Cu

Page 382: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

368

possui spin I = 3/2, enquanto que o 66Cu possui spin I = 1. Se

colocassemos o primeiro em um campo magnetico, terıamos 4 nıveis de

energia, enquanto que com o segundo terıamos apenas 3, o que acar-

retaria diferencas nas suas propriedades magneticas.

Na proxima secao vamos discutir os principais tipos de decaimento

dos nucleos instaveis.

7.2 Alfa, Beta e Gama

Nucleos que espontaneamente emitem partıculas sao chamados radioa-

tivos. A radioatividade e um fenomeno natural, mas pode tambem ser

produzida em laboratorio. O fenomeno foi descoberto em 1896 pelo

frances Henri Becquerel e, em 1934, foi produzido pela primeira vez em

laboratorio por Irene Curie e Pierre Joliot, que bombardearam alumınio

com partıculas alfa emitidas por polonio, e produziram o isotopo de

fosforo 30P. Irene e Pierre levaram o Nobel de Quımica de 1935 pelo

seu trabalho. Os pais de Irene, Pierre e Marie Curie, ja haviam em-

bolsado o Nobel de Fısica de 1903 (com Becquerel), pelo seu trabalho

com radioatividade natural, e, como se nao bastasse, Marie emplacou

o Estocolmo novamente em 1911, desta vez o de Quımica!

A radioatividade e a liberacao de energia por um nucleo excitado.

Esse processo e chamado de decaimento radiaotivo, e pode ocorrer ba-

sicamente de tres modos distintos: por emissao alfa, por emissao beta

ou por emissao gama. Alfa, beta e gama sao nomes dados a tipos de

radiacao cuja natureza era desconhecida na epoca em que foram des-

cobertas. Radiacao gama, ja sabemos, sao ondas eletromagneticas, ou

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 369

fotons. Partıculas alfa, sao nucleos do atomo de helio, composto por

dois protons e dois neutrons, e partıculas beta podem ser de dois tipos:

eletrons ou positrons. O positron e uma partıcula identica ao eletron,

com excecao da sua carga que e positiva (igual a do proton).

Partıculas alfa, beta e gama podem ser identificadas atraves da trajetoria de cadauma delas em um campo magnetico.

“Epa! Espera aı! Nucleos nao sao formados de protons e neutrons?

Como e que agora ta saindo eletron e esse tal de positron la de dentro?”

E quem disse que protons e neutrons sao os constituintes mais simples

da materia? Eles sao feitos de objetos ainda menores!

Tres anos apos a descoberta da radioatividade foi verificado que a

taxa de decaimento, ou seja, o numero de decaimentos por unidade

de tempo de uma certa quantidade de material radioativo, seguia uma

lei exponencial. Isso quer dizer o seguinte: se em um dado instante

existirem N0 nucleos radiativos de determinada substancia, o numero

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370

de nucleos que existirao em um instante posterior t, denotado por N(t),

sera igual a:

N(t) = N0e−t/τ

onde τ e chamado de meia-vida, um parametro caracterıstico do tipo de

decaimento e da especie nuclear. Por exemplo, se em um dado instante

tivermos 20 gramas de uma dada substancia radiativa hipotetica cuja

meia-vida seja τ = 1 segundo, apos 5 segundos teremos apenas

20 × e−5/1 = 0, 0067 gramas

Um outro tempo caracterıstico importante e a chamada vida-media

(t1/2), definido como o tempo para que o numero de nucleos inicial seja

reduzido a metade, ou seja, N(t1/2) = N0/2. E facil encontrar a relacao

entre t1/2 e τ a partir da lei de decaimento acima :

N(t1/2) =N0

2= N0e

−t1/2/τ =⇒ e−t1/2/τ =1

2

Tomando o logaritmo dos dois lados da equacao obtemos:

−t1/2τ

= ln1

2⇒ t1/2 = τln2 = 0, 693τ

Como exemplos numericos mencionaremos a meia-vida do 38Ca (calcio),

de 0,44 segundos, a do 42K (potassio), 12,4 horas, e a do 93Mo (molibdenio),

de 3500 anos.

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 371

.

A quantidade de um determinado material radioativo diminui segundo uma lei ex-ponencial. A chamada meia-vida e uma caracterıstica que distingue um isotoporadioativo do outro.

Decaimentos nucleares sao eventos quanticos: e impossıvel dizer

quando um dado nucleo ira decair. Os tempos acima expressam uma

media, e portanto dizem respeito a um numero muito grande de eventos

ocorrendo nos nucleos em uma dada quantidade de material radioativo.

O decaimento gama e o mais simples de ser compreendido. Ele

pode ser comparado ao caso das transicoes eletronicas em um atomo. O

nucleo faz uma transicao de um nıvel de energia mais alto Ei para um de

energia mais baixo Ef , emitindo um foton com energia ∆E = Ei−Ef ,

que pode variar de uns poucos keV (1 keV = 1000 eV = kilo eletronvolt)

ate a faixa de MeV (milhoes de eletronvolts). Valores para meias-vidas

no decaimento gama em geral sao menores do que 10−9 segundos. O

decaimento gama ocorre, em geral, apos um decaimento alfa ou beta,

Page 386: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

372

e como a massa de repouso e a carga do foton sao zero, o decaimento

gama nao altera a massa do nucleo, e nem o seu numero atomico. Um

exemplo de nucleo que decai emitindo partıculas gama e o isotopo da

prata 110Ag.

Partıculas alfa, como ja mencionamos anteriormente, sao nucleos de

atomos de helio, e portanto possuem numero de massa A = 4 e numero

atomico Z = 2 (dois protons e dois neutrons). Consequentemente, um

nucleo que decai via emissao de uma partıcula alfa, tem sua massa

reduzida de 4 unidades, e sua carga reduzida de duas unidades. Se

representarmos um nucleo X com numero de massa A, numero atomico

Z e numero de neutrons N por

AZXN

podemos representar o decaimento alfa de tal nucleo generico da seguinte

maneira esquematica:

AZXN →A−4

Z−2 XN−2 + α

onde designamos por “α” a partıcula alfa emitida, ou seja, o 42He2. Um

exemplo de emissor alfa e o 226Ra, cujo decaimento e mostrado abaixo:

22688 Ra138 →222

86 Rn136 + α

Neste caso, o radio 226 decai no radonio 222 emitindo uma partıcula

alfa. A meia-vida deste processo e de 1600 anos.

O decaimento beta e o mais complexo dos tres tipos de decaimento.

Ele pode envolver a emissao de eletrons, como no caso em que um

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 373

neutron se transforma em um proton, aumentando assim o numero

atomico do nucleo de 1 unidade:

n → p + e−

onde representamos por e− o eletron, para distinguir do positron e+.

Pode envolver a emissao de um positron, como na transformacao de

um proton em um neutron (neste caso o numero atomico diminui de 1

unidade):

p → n + e+

ou pode ainda acontecer de um proton capturar um eletron. Neste caso

o processo e chamado de captura eletronica, e representado por:

p + e− → n

Alem disso, a Natureza parece que resolveu mesmo complicar no decai-

mento beta. Ao contrario das partıculas α e γ que sao sempre emitidas

com valores de energia bem definidos, o espectro de emissao β varia

continuamente de um valor inicial a um valor maximo. Esse fato le-

vou Pauli a postular, em 1931, que no decaimento β havia uma outra

partıcula emitida com o eletron. Para explicar o processo, foi necessario

adotar a ideia que tal partıcula era eletricamente neutra (ou seja, sem

carga eletrica, como o neutron), e com massa de repouso virtualmente

igual a zero (como o foton). A estranha partıcula foi batizada com

o nome de neutrino, representada pela letra grega ν (le-se ‘ni’). Um

exemplo de decaimento por emissao beta (omitindo-se o neutrino) e

mostrado abaixo:

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374

2513Al12 →25

12 Mg13 + e+

A meia-vida deste decaimento e de apenas 7,2 s. Note que o decaimento

beta so muda o numero atomico do nucleo, enquanto que o alfa muda

tanto Z quanto N ; o gama nao muda nada. E importante ressaltar que

no caso do decaimento alfa, considera-se que a partıcula emitida existia

previamente dentro do nucleo (sao dois protons e dois neutrons), mas

no caso do decaimento beta, o eletron - ou o positron - emitido (com

o neutrino) nao “estava la” antes do decaimento. Essas partıculas sao

produzidas no momento da emissao.

A Fısica Nuclear e o ramo da fısica que estuda as propriedades dos

nucleos atomicos. Isto nao inclui somente o decaimento radiativo, mas

uma serie de outras coisas, como momentos nucleares, reacoes nucleares,

fissao nuclear, fusao nuclear, astrofısica nuclear, aplicacoes medicinais

(Medicina Nuclear), reatores nucleares, etc.

7.3 Fissao Nuclear: Xo Satanas!

De maneira analoga aos atomos, que podem reagir quimicamente, nucleos

tambem podem reagir entre si. Reacoes nucleares podem ser provo-

cadas bombardeando-se partıculas sobre os nucleos de um alvo. De

forma geral, tais reacoes sao representadas da seguinte maneira:

a +X → Y + b

No esquema acima, uma partıcula a incide sobre um nucleo X (de um

alvo), resultando em um novo nucleo Y e uma partıcula b. Cada tipo de

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 375

reacao possui uma probabilidade de ocorrencia. Exemplos de reacoes

nucleares sao:

α +14 N →17 O + p

Nesta reacao uma partıcula alfa incide sobre um nucleo de 14N resul-

tando em 17O e um proton. Outro exemplo:

p +7 Li →4 He + α

Neste caso um proton reage com o isotopo 7Li, resultando no 4He e

uma partıcula alfa.

Um tipo particularmente importante de reacao nuclear e a de cap-

tura de neutrons. Enrico Fermi, um importante fısico italiano (Premio

Nobel de 1938), mostrou que muitos nucleos quando expostos a neutrons,

tornam-se radioativos e decaem emitindo eletrons (decaimento beta).

Como o uranio e o elemento natural mais pesado na tabela periodica

(A = 238), uma questao que logo colocou-se apos a descoberta de

Fermi foi acerca da possibilidade de se produzir elementos “artifici-

ais” transuranicos, ou seja, mais pesados que o uranio, expondo-se

uma amostra de uranio a um fluxo de neutrons. Os resultados dessas

pesquisas mostraram que seguindo a captura de neutrons, nucleos de

uranio decaem emitindo nao apenas partıculas subatomicas, como partı-

culas alfa, beta, mas tambem outros nucleos mais leves, e uma quan-

tidade de energia muito maior do que a observada nos outros tipos de

reacao nuclear! Foi entao proposto (em 1939) que de fato o que es-

tava ocorrendo nessas reacoes nao era um mero decaimento do uranio

seguindo a captura de um neutron, mas sim que o nucleo do uranio em

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376

si estava se dividindo, ou sofrendo uma fissao! Apos capturar neutrons,

nucleos de uranio se tornam altamente instaveis e simplesmente “explo-

dem” em nucleos menores, emitindo grande quantidade de partıculas e

energia.

Em princıpio, qualquer nucleo pode sofrer fissao, mas o processo

e mais facilmente realizavel nos nucleos pesados, como o torio (Th,

A = 232), o uranio, o netunio (Np, A = 237), o plutonio (Pu, A = 244),

etc. A caracterıstica “diabolica” deste tipo de reacao nuclear e o fato de

que para cada nucleo que e fissionado, alem dos nucleos mais leves e da

energia emitidos, outros dois neutrons sao liberados! Entao imagine:

voce tem uma certa quantidade de uranio. Suponha que um unico

neutron seja capturado por um dos nucleos; este se divide, libera energia

e mais dois neutrons. Estes dois neutrons adicionais sao por sua vez

capturados por outros dois nucleos de uranio que se dividem emitindo

mais energia e outros quatro neutrons, que sao capturados, ...etc. E

uma reacao em cadeia que se auto-sustenta! Obviamente este processo

e uma fonte de energia em potencial: uma especie de pilha nuclear.

Mas, se a reacao nao for controlada...bum!

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 377

.

A probabilidade de que o isotopo do uranio 235U sofra fissao seguindo a captura deneutrons de baixa energia e muito maior do que a do isotopo 238U . Isto torna oprimeiro mais apropriado para aplicacoes em reatores e armamentos nucleares.

Um exemplo de reacao por captura de neutrons e mostrado abaixo:

235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n

Nesta reacao um nucleo de uranio 235 captura um neutron e se divide

em um nucleo de rubıdio 93, um de cesio 141 e mais dois neutrons.

Os produtos de fissao, como sao chamados o 93Rb e o 141Cs, nao sao

unicos; em geral havera uma distribuicao de massas, dando origem a

varios radioisotopos. Os produtos de fissao sao altamente radiativos,

e sofrem uma serie de decaimentos gama e beta logo apos terem sido

criados. Da reacao acima, por exemplo, segue-se para o isotopo de

rubıdio:

93Rb6s−→93

Sr7min−→93

Y10h−→93

Zr106anos−→

93

Nb

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378

A probabilidade de que um nucleo bombardeado por neutrons sofra

uma fissao e expressa por uma quantidade chamada secao transversal

para fissao induzida por neutrons. Cada tipo de reacao nuclear possui a

sua secao transversal. A secao transversal para a ocorrencia da reacao

depende primariamente da energia do neutron incidente. Comparando

os isotopos 235U e 238U, encontra-se que para neutrons de baixa ener-

gia (correspondendo a energia termica ambiente) o 235U e muito mais

fissionavel do que o isotopo mais pesado. Por esta razao o 235U e

preferıvel para ser utilizado em reatores e armas nucleares. O grande

problema (ou talvez a grande salvacao!) e que sua abundancia e de ape-

nas 0,720%, comparada a 99,275% para o 238U. Como quimicamente os

dois isotopos sao identicos, sua separacao e um problema complicado.

7.4 Energia de Fissao: Quantos Nucleos

Fervem uma Piscina?

Vamos agora calcular, a tıtulo de curiosidade, a energia liberada na

fissao de um nucleo de uranio 235. Para isso sera util considerar a

nossa reacao generica:

a +X → Y + b

onde uma partıcula a incide sobre um nucleo X, resultando em Y e b.

Vamos chamar de TX e Ta as respectivas energias cineticas da partıcula

incidente e do nucleo X, e TY e Tb o analogo para os produtos da

reacao. Alem da energia cinetica, sabemos da teoria de relatividade

que as partıculas envolvidas no processo possuem energias de repouso,

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 379

que devem ser levadas em consideracao no balanco energetico (veja

capıtulo dois). Estas serao respectivamente representadas por mac2,

mXc2, mY c

2 e mbc2, onde ma, etc., sao as massas de repouso das

partıculas envolvidas na reacao. Como a energia total no processo se

conserva, a energia total antes da reacao tem que ser igual a energia

total depois da reacao. Ou seja:

mXc2 + TX +mac

2 + Ta = mY c2 + TY +mbc

2 + Tb

Podemos reorganizar os termos desta equacao para obter:

(mX +ma −mY −mb)c2 = TY + Tb − TX − Ta

Define-se entao uma quantidade importante que caracteriza a reacao

do ponto de vista energetico: o seu valor Q:

Q = Tf − Ti = (minicial −mfinal)c2 = (mX +ma −mY −mb)c

2

onde Tf e a energia cinetica final, e Ti a inicial. Se Q > 0 a reacao

libera energia, e e chamada de exotermica, e se Q < 0 ela e dita ser uma

reacao endotermica, e neste caso consome energia. Note que a energia

liberada ou consumida, dependendo do sinal de Q, aparece sob a forma

de energia cinetica das partıculas envolvidas no processo.

Vamos entao calcular como exemplo de aplicacao da formula acima,

o valor de Q para a seguinte reacao de fissao do uranio 235:

235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n

As massas de repouso das partıculas envolvidas sao expressas em unidades

de massa atomica u, que vale 1, 66 × 10−27 kg. Assim:

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380

mU = 235, 0439u

mn = 1, 0087u

mRb = 92, 9217u

mCs = 140, 9195u

Logo, para a reacao de fissao acima, teremos:

Q = (mU +mn −mRb −mCs −m2n)c2

Q = +0, 1940uc2

Entao, a reacao de fissao do 235U e exotermica. A vantagem de ter o

resultado expresso em termos da unidade de massa atomica, u, esta no

fato de que o produto uc2 e constante, e vale:

uc2 = 931, 502 MeV

onde MeV significa “milhoes de eletron-volts”, a unidade de energia

que se usa em fısica nuclear. 1 MeV corresponde a 1, 60×10−13 Joules.

Consequentemente, o valor Q da reacao de fissao do 235U , em MeV sera:

Q = +180, 71 MeV

e em joules sera:

Q = +2, 89 × 10−11 J

So para efeitos ilustrativos, vamos avaliar quantos nucleos de uranio

235 seriam necessarios para produzir energia suficiente para fazer ferver

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 381

a agua de uma piscina que inicialmente se encontra a zero graus Celsius.

Vamos supor que a nossa piscina tenha 50 metros de comprimento, 10

metros de largura e 2 metros de profundidade. O volume sera portanto

igual a 50×10×2 = 1000 m3 ou 106 litros (1 milhao de litros de agua).

Agora, usaremos uma conhecida expressao para calcularmos a energia

necessaria para aquecer um objeto com massa m de uma temperatura

inicial Ti para uma temperatura final Tf :

Q = mc(Tf − Ti)

(nao confunda este ‘Q’ com o outro ‘Q’ da reacao nuclear. E a crise

de escassez de letras atacando de novo!). Nesta formula, c e o calor

especıfico do objeto (nao confunda com velocidade da luz!), que para

a agua e de 4190 J/kg K. A temperatura inicial e Ti = 0 C ou 273

K, e a temperatura final Tf = 100 C, ou 373 K. Para utilizarmos esta

formula, ainda precisamos saber qual e a massa de agua correspondente

a 1 milhao de litros. Tomemos a densidade da agua como 1 g/cm3 =

10−3/10−3 kg/dm3 = 1 kg/dm3 = 1 kg/l. Logo, em 1 milhao de litros de

agua teremos m = 106 kg (mil toneladas). Substituindo esses numeros

na formula acima, obtemos:

Q = 106 × 4190 × 100 = 4, 19 × 1011 joules

Como cada nucleo fissionado fornece cerca de 2, 89× 10−11 joules, o

numero de fissoes necessarias para ferver a piscina seria de (4, 19/2, 89)×1022 ≈ 1, 44× 1022 fissoes. Se pudessemos agrupar um igual numero de

nucleos de 235U , cada um realizando 1 fissao apenas, isto equivaleria a

1, 44 × 235 × 1022/(6, 02 × 1023) ≈ 6 gramas de 235U para obtermos a

energia necessaria para ferver 1 milhao de litros de agua!

Page 396: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

382

7.5 Reatores-N & Bombas-A

A liberacao de energia em reacoes de fissao do uranio obviamente su-

gere que o processo possa ser utilizado como fonte para obtencao de

energia em larga escala. As duas aplicacoes principais do fenomeno

sao os chamados reatores de fissao, que convertem essa energia em

eletricidade, e as chamadas bombas atomicas, que convertem cidades

inteiras em po. O princıpio de funcionamento de ambos e o mesmo, e

pode-se de certa forma afirmar que um reator e uma bomba atomica

“explodindo de maneira controlada”.

Em tese, qualquer material fissionavel serve como combustıvel para

um reator. Os isotopos mais comuns utilizados sao o 235U, 233U e o

239Pu. Destes, somente o primeiro e “natural”, sendo os outros pro-

duzidos artificialmente. O minerio de uranio, ou seja, o uranio extraıdo

da Natureza consiste basicamente de 238U, que nao e pratico para fins

de fissao. Torna-se entao necessario separar o 235U do material natu-

ral. O processo de separacao e extremamente difıcil e caro. O material

separado e em geral chamado de uranio enriquecido: e a materia prima

utilizada nos reatores e nas bombas.

Para que seja mantida uma reacao auto-sustentavel em um reator,

e necessario controlar a perda de neutrons que ocorre no processo. Ini-

ciada a reacao, os neutrons produzidos precisam ser absorvidos por

outros nucleos de uranio. Mas, inevitavelmente havera perdas, pois al-

guns neutrons escaparao pela superfıcie do material. Quanto maior

a superfıcie, maior a perda. Isso pode ser resolvido simplesmente

aumentando-se a quantidade de material, pois quanto maior o volume

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 383

de material fissionavel, menor sera a perda relativa porque a producao

de neutrons e proporcional ao volume, enquanto que a perda e propor-

cional a area superficial. A partir de uma certa quantidade de material,

a perda de neutrons pela superfıcie deixa de ser importante. Quando

a quantidade de substancia e tal que a producao de neutrons e exata-

mente balanceada pela perda, diz-se que o material atingiu a sua massa

crıtica.

Esquema de um reator nuclear. A agua evaporada pela fissao do material radioativomove uma turbina e depois de condensada retorna para o tanque do reator.

Em um reator utilizado para gerar eletricidade, a energia liberada

pela fissao do uranio e convertida em calor. Este aquece uma certa

quantidade de agua gerando vapor a alta pressao que faz funcionar uma

turbina. E interessante notar que a parte do custo de um reator devida

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384

ao seu nucleo, onde a fissao do uranio de fato ocorre, e menor do que

aquela do equipamento que vai gerar eletricidade, com a blindagem,

etc. Consequentemente, um reator de alta potencia tende a ser eco-

nomicamente mais vantajoso do que varios de baixa potencia. Em um

esquema simples, a agua circula pelo nucleo do reator, e absorve calor.

Ela serve ao mesmo tempo para mover a turbina que vai gerar eletrici-

dade, e como refrigerante para o nucleo.

Reatores operam com uma quantidade de uranio abaixo da massa

crıtica, para evitar que um acidente leve a uma explosao nuclear. A

operacao e manutencao de reatores nucleares e algo altamente complexo

e perigoso. Eles operam a altas potencias e precisam de refrigeracao.

Materiais utilizados como refrigerantes devem ter propriedades termicas

especiais, nao serem corrosivos, nao reativos, e nao podem capturar

neutrons (ou, tecnicamente falando, devem ter uma pequena secao

transversal para captura de neutrons). A ma operacao e manutencao

de um reator pode ser fatal e catastrofica, como ocorreu no dia 26 de

abril de 1986 com o reator de Chernobyl na antiga Uniao Sovietica. A

temperatura do reator subiu fora de controle, uma explosao ocorreu,

destruindo parte do reator e do predio, e lancando grande quantidade

de material radiativo no ambiente. 30 pessoas, entre trabalhadores do

reator e bombeiros, morreram no acidente. Mais de 130 mil quilometros

quadrados de area tiveram que ser isoladas em torno do predio do

reator. Uma populacao de quase 5 milhoes de habitantes teve que ser

deslocada. O acidente com o reator de Chernobyl chamou a atencao do

mundo (em particular da opiniao publica) sobre a seguranca deste tipo

de producao de energia.

Page 399: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 385

Bombas atomicas, como ja foi dito, funcionam essencialmente como

reatores fora de controle. Para fazer um explosivo nuclear, quantidades

de material abaixo do valor crıtico (ou seja, com uma massa tal que a

perda de neutrons seja maior do que a producao por fissao), devem ser

reunidas rapidamente de modo a atingir um valor supercrıtico (ou seja,

com massa acima da massa crıtica). A bomba que foi jogada sobre Hi-

roshima em 1945 utilizava 235U. O material fissionavel tinha um buraco

no meio, de modo a manter a massa abaixo do valor crıtico. A parte

central, na forma de um cilindro do mesmo material era “explodida”

para dentro do buraco, levando o sistema para o regime supercrıtico, e

a consequente explosao nuclear.

A segunda bomba, jogada sobre Nagasaki, utilizava um outro “de-

sign”. O material fissionavel nesse caso era o 239Pu. O mecanismo

utilizava um explosivo quımico para comprimir o seu nucleo esferico

acima do valor supercrıtico.

Esquema de uma bomba atomica. O explosivo quımico comprime o material fis-sionavel elevando sua massa a um valor supercrıtico, desencadeando a reacao defissao.

Page 400: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

386

PAINEL XIII

O PROJETO MANHATTAN

O projeto secreto para a construcao da primeira bomba atomica nos Estados

Unidos durante a Segunda Grande Guerra era chamado Projeto Manhattan. O

projeto envolveu varios cientistas europeus e americanos, alguns dos quais haviam

ido para a America fugindo da guerra na Europa. O projeto nasceu do receio de

que os alemaes estivessem desenvolvendo uma bomba atomica apos a descoberta da

fissao em 1938, mas so foi organizado a partir de 1942, sob o comando do General

Leslie Groves. O General apontou o fısico Julius Robert Oppenheimer como o

diretor do projeto.

Embora nao tenha participado diretamente do projeto, Albert Einstein teve um

importante papel na decisao de construir a bomba. A partir de 1939, 1 ano apos

a descoberta da fissao do uranio, Einstein escreveu uma serie de cartas ao entao

presidente americano Franklin Delano Roosevelt, alertando-o sobre a possibilidade

da construcao de “um novo tipo de bombas extremamente poderosas”. Abaixo,

transcrevo uma traducao (de minha autoria) da primeira dessas cartas:

Albert Einstein

Old Grove Rd.

Nassau Point

Peconic, Long Island

2 de agosto de 1939

F.D. Roosevelt

Presidente dos Estados Unidos

Casa Branca

Washington, D.C.

Senhor,

Trabalhos recentes por E. Fermi e L. Szilard, comunicados a mim sob

a forma de manuscritos, convenceram-me de que o elemento uranio pode se

Page 401: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 387

tornar uma nova e importante fonte de energia no futuro imediato. Alguns

aspectos da situac~ao presente merecem atenc~ao e, se necessario, rapidas

decis~oes por parte da Administrac~ao devem ser tomadas. Acredito, portanto,

que e meu dever chamar Vossa atenc~ao para os seguintes fatos e recomendac~oes:

Durante os ultimos quatro meses tornou-se claro - atraves do trabalho

de Joliot na Franca, bem como o de Fermi e Szilard na America - que uma

reac~ao nuclear em cadeia seja possıvel de ser estabelecida em uma grande

massa de uranio, atraves da qual uma enorme quantidade de energia e de

novos elementos semelhantes ao radio seriam produzidos. No momento nos

parece quase certo que isto poderia ser alcancado no futuro imediato.

O novo fenomeno levaria tambem a construc~ao de bombas, e e concebıvel

- embora menos certamente - que bombas extremamente poderosas de um novo

tipo pudessem ser construidas. Uma unica bomba deste tipo, transportada

em um barco e detonada em um porto, poderia muito bem destruir todo o

porto, com parte da sua vizinhanca. No entanto, pode ser que tais bombas

se revelem muito pesadas para serem transportadas por meios aereos.

Os Estados Unidos s~ao muito pobres em minerio de uranio. Existem boas

reservas no Canada e na antiga Tchecoslovaquia, mas as reservas mais importantes

se encontram no Congo belga.

Diante da presente situac~ao talvez fosse conveniente estabelecer um

contato permanente entre a Administrac~ao e o grupo de fısicos que no momento

trabalham no fenomeno de reac~oes em cadeia na America. Isto poderia ser

feito atraves da nomeac~ao de uma pessoa de sua confianca para a tarefa.

Suas atribuic~oes seriam as seguintes:

a) manter os Departamentos Governamentais informados dos progressos

realizados, e transmitir recomendac~oes para as ac~oes do Governo, com atenc~ao

especial ao problema de garantir um suprimento de minerio de uranio para

os Estados Unidos;

b) acelerar os trabalhos experimentais, que no momento est~ao sendo

realizados dentro dos limites dos orcamentos universitarios, fornecendo

fundos, se necessario, atraves de contatos com pessoas interessadas em

Page 402: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

388

contribuir com esta causa, e talvez tambem atraves da cooperac~ao com laboratorios

industriais que possuam o equipamento necessario.

A Alemanha interrompeu a venda de uranio das minas da Tchecoslovaquia,

que agora ela domina. Tal decis~ao talvez possa ser compreendida com base

no fato de que o filho do sub-Secretario de Estado Alem~ao, von Weizsacker,

e vinculado ao Instituto Kaiser-Wilhelm em Berlim, onde pesquisas com

uranio realizadas na America est~ao sendo no presente momento repetidas.

Albert Einstein

Alem de Oppenheimer, trabalharam no projeto da construcao da bomba-A nos

Estados Unidos, os fısicos Niels Bohr, Enrico Fermi e Richard Feynman. Apos

muitas dificuldades para realizar a separacao do uranio 235 do minerio, material

suficiente para fazer explodir uma bomba foi finalmente conseguido em 1945. No

dia 16 de julho daquele ano, em Alamagordo, no Novo Mexico, a primeira explosao

nuclear foi observada em um teste. No dia 6 de agosto seria a vez de Hiroshima.

Page 403: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 389

7.6 Lixo Atomico: um Sub-Produto Inde-

sejavel

Considere novamente o processo de fissao do 235U, seguido do decai-

mento dos produtos de fissao:

235U + n →93 Rb +141 Cs + 2n

93Rb6 s−→93

Sr7 min−→ 93

Y10 h−→93

Zr106 anos−→

93

Nb

141Cs25 s−→141

Ba18 min−→ 141

La4 h−→141

Ce33 dias−→ 141

Pr

Vemos que para cada fissao do 235U, nada menos que oito novos ra-

dioisotopos sao criados (o 93Nb e o 141Pr sao estaveis). E mais, os

subprodutos de fissao acima sao apenas alguns dos muitos que podem

ocorrer. A cada evento de fissao uma enormidade de radioisotopos

que nao existiam antes aparecem. Alguns destes radioisotopos simples-

mente existirao “para sempre”, como e o caso do 93Zr, que leva em

media 1 milhao de anos para decair em 93Nb. O que fazer com este lixo

atomico?

O preco a ser pago para a obtencao de eletricidade via reatores

nucleares e algo que tem sido altamente questionado. Durante algum

tempo argumentou-se que esta seria uma forma barata e segura de

se obter energia, mas os argumentos tem sido colocados em duvida

por varios especialistas, em particular aqueles ligados a entidades de

protecao ao meio-ambiente. Os problemas com esta forma de geracao

de energia sao muitos. Para inıcio de conversa, devido as dificuldades

de mineracao do uranio e estocagem do lixo atomico, o processo se

torna tao caro quanto outras formas de obtencao de eletricidade. Por

Page 404: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

390

exemplo, um reator com capacidade para gerar 1 Gigawatt de energia

eletrica consome 33 toneladas de uranio por ano, sendo que para isso

nada menos do que 440 000 toneladas de minerio devem ser escavadas.

Estima-se que cerca de 40 mil pessoas morram todos os anos no mundo

como decorrencia da atividade de mineracao do uranio. Dentro do

reator a fissao ocorre em tubos feitos a partir de ligas de zirconio e

magnesio, que aprisionam a maior parte dos produtos de fissao, mas

deixam escapar os neutrons, que podem ativar outros nucleos. Das 33

toneladas iniciais restarao, alem de uranio, cerca de 300 kg de plutonio,

e mais os produtos de fissao altamente radioativos. Este material que

“sobra” do processo de fissao e o lixo atomico. A sua radioatividade

e centenas de milhoes de vezes maior do que a radioatividade natural

das minas. O contato direto com esse material significa morte certa.

A contaminacao do ambiente e tao seria, que o proprio reator apos

algumas decadas de uso tem que ser fechado e desmontado. Ou seja, o

proprio reator se torna lixo atomico!

O lixo atomico, em geral, tem o seguinte destino: os cilindros sao

dissolvidos em acido, e o plutonio e separado para uso em armas nucle-

ares. O restante do material e estocado em caixas de carbono ou aco

inoxidavel que sao enterradas. A radioatividade dentro dessas caixas

continuara existindo por milhoes e milhoes de anos. Como garantir

que nao havera vazamento deste material para o meio ambiente?! As

geracoes futuras herdarao este problema da atualidade. Provavelmente

o material tera que ser re-empacotado por cada nova geracao para

garantir que nao havera vazamento!

Balanco: reatores nucleares possuem vida util de apenas algumas

Page 405: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 391

dezenas de anos, produzem eletricidade a um preco comparavel a outras

formas de obtencao de energia, podem vazar ou explodir como aconte-

ceu como o de Chernobyl (apesar de ser afirmado pelas autoridades que

eles sao absolutamente seguros). Como se nao bastasse, geram o inde-

sejavel lixo atomico que permanecera ativo por milhoes de anos. Nao

parece ser muito vantajoso, principalmente para paıses como o nosso,

com vastos recursos hidroeletricos.

7.7 Fusao Nuclear

Existe uma forma alternativa de se obter energia nuclear que nao polui

o ambiente: a fusao nuclear. Neste processo dois nucleos leves sao

combinados para formar um nucleo mais pesado. Um exemplo e a

reacao abaixo:

2H +2 H →3 He + n

Nesta reacao, dois nucleos de deuterio (ou deuterons) se fundem para

formar um nucleo de helio. A reacao libera um neutron e 3,3 MeV

de energia. Existem duas vantagens principais em reacoes de fusao,

quando comparadas com as de fissao: primeiro, os produtos da reacao

(no caso acima o helio) sao nucleos estaveis, e nao radioisotopos como

ocorre no caso da fissao. A segunda vantagem e que os nucleos envolvi-

dos na fusao (no caso acima o deuterio) sao abundantes, e nao precisam

ser escavados em minas como o uranio.

Mas, nem tudo sao flores com a fusao. Se fosse facil fazer fusao,

a fissao ja teria sido aposentada ha muito tempo! A fim de que dois

Page 406: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

392

nucleos sejam fundidos e preciso, obviamente, coloca-los perto um do

outro. Perto o suficiente para que a forca nuclear, que age a uma

distancia de apenas 10−15 m (veja capıtulo quatro), possa fazer o tra-

balho de fusao. Para isso e preciso superar a forte “barreira” repul-

siva coulombiana (pois nucleos possuem cargas iguais e se repelem a

distancias maiores do que 10−15 m).

A fusao pode ser alcancada simplesmente acelerando um nucleo ate

que ele tenha uma energia cinetica suficientemente alta, e lanca-lo sobre

outro nucleo. No entando, para fins praticos este processo nao produz

energia suficiente que possa ser utilizada. Uma outra possibilidade e

aquecer um gas formado pelos constituintes a serem fundidos a tempe-

raturas tao altas que a agitacao termica faria com que que os nucleos se

aproximassem o suficiente para realizar a fusao. Este processo e de fato

realizado no interior das estrelas, e e chamado de fusao termonuclear.

Tem um pequeno probleminha: a temperatura para que o processo

possa ocorrer deve ser de bilhoes de graus!

Apesar dessas dificuldades, devido as suas possıveis importantes

consequencias, a fusao nuclear e um campo de pesquisas muito frutıfero

e promissor na fısica. Uma das dificuldades tecnicas basicas e simples-

mente arranjar um local onde a reacao termonuclear possa ser realizada!

A temperaturas de bilhoes de graus, nao ha material na Terra que re-

sista. A saıda encontrada foi confinar o gas onde a fusao vai ocorrer sob

a acao de campos magneticos. Isso e possıvel porque a temperaturas

tao altas, as partıculas do gas estao totalmente ionizadas. Ou seja, o

gas e composto por eletrons e nucleos “carecas”. Este tipo de gas e

chamado de plasma. Como as partıculas de um plasma sao carregadas

Page 407: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 393

(positivas e negativas em igual numero), elas podem ser aprisionadas

em campos magneticos, via acao da forca de Lorentz (veja capıtulo um).

Reatores de fusao termonuclear, como os chamados tokamaks, utilizam

este princıpio de confinamento magnetico.

Page 408: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

394

XIV

ESPELHOS MAGNETICOS E TOKAMAKS

As “paredes” do recipiente que contem o plasma onde reacoes de fusao sao

realizadas sao “feitas” de campo magnetico. Como vimos no capıtulo um, partıculas

carregadas em campos magneticos ficam sujeitas a forca de Lorentz,

F = qv ×B

que faz com que elas espiralem em torno da direcao do campo.

Campos magneticos podem ser produzidos com geometrias especiais de modo a

manterem o plasma confinado em uma certa regiao do espaco. Existem dois dese-

nhos basicos, que utilizam campos axiais ou toroidais. No caso axial, um campo e

gerado de modo que seja uniforme na sua regiao central, e inomogeneo nas extre-

midades. A inomogeneidade faz com que uma partıcula que se aproxime dessa regiao

experimente uma forca contraria ao seu movimento, que a reflete de volta para a

regiao homogenea do campo. O fenomeno e as vezes chamado de espelhamento

magnetico, porque a partıcula carregada e refletida pelo campo como a luz em um

espelho.

Nos chamados tokamaks a geometria e diferente. O campo magnetico e gerado

por bobinas enroladas sob a forma de um toroide (veja figura). Com esta geometria,

as linhas de campo serao paralelas ao eixo do toroide. As partıculas do plasma

espiralam em torno dessas linhas e sao deste modo mantidas em confinamento.

Page 409: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 395

.

Reacoes de fusao sao realizadas confinando-se um plasma em campos magneticoscom duas configuracoes basicas: os espelhos magneticos e os tokamaks.

Como nao poderia deixar de ser, a liberacao de energia no pro-

cesso de fusao, sugeriu nao so a construcao de reatores de fusao para

pesquisa cientıfica e producao de energia, mas tambem as chamadas

bombas termonucleares. Essas “belezocas” possuem um poder de de-

struicao inimaginavelmente maior do que as obsoletas bombas de fissao

que foram largadas sobre as cabecas dos moradores de Hiroshima e Na-

gasaki. De fato, uma bomba termonuclear possui em seu interior uma

outra de fissao so para produzir a temperatura necessaria para iniciar

o processo de fusao. Pense nisso: uma bomba nuclear usada como uma

mera espoleta! Milhares dessas bombas foram construıdas pelos Esta-

dos Unidos e pela ex-Uniao Sovietica durante a chamada Guerra Fria.

Um conflito termonuclear entre esses dois paıses nao deixaria rastro de

vida sobre a Terra.

Page 410: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

396

7.8 Como Funciona o Sol?

O Sol e um gigantesco reator de fusao termonuclear que transforma

hidrogenio em helio. Estrelas sao como seres vivos: nascem, vivem

por um tempo e depois morrem. Estima-se em cerca de 5 bilhoes de

anos a idade do Sol, e que ele vivera outros 5 bilhoes. A conversao

do hidrogenio em helio passa por varias etapas, mas a reacao geral e

representada por

41H →4 He + 2e+ + 2ν

ou seja, quatro protons sao fundidos em uma partıcula alfa liberando

dois positrons e dois neutrinos. Esta reacao libera 26,7 MeV de energia,

que chega ate nos sob a forma de luz e calor. O “reator-Sol” e altamente

estavel: por mais de 1 bilhao de anos esta energia tem se mantido

constante.

A vida de uma estrela como o Sol e uma eterna batalha entre a

forca de gravidade que tende a colapsar a sua massa, e as reacoes ter-

monucleares que a expande. A aceleracao da gravidade na superfıcie

do Sol e de 274 m/s2. Sua densidade de 1410 kg/m3 e seu raio de

6, 96 × 108 m sao o resultado da competicao entre essas duas forcas

com tendencias opostas. Em 5 bilhoes de anos o hidrogenio do Sol

acabara, e a forca da gravidade vencera a expansao causada pela fusao,

fazendo com que sua massa se contraia, aumentando a temperatura no

seu centro, e iniciando um novo ciclo de fusao, desta vez usando o helio

como combustıvel nuclear.

O destino final de uma estrela depende em ultima analise da sua

massa, mas o processo de queima de combustıvel nuclear partindo do

Page 411: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 397

hidrogenio e fundindo elementos cada vez mais pesados, e o mesmo

para todas elas. O produto final desta queima e o ferro. A partir

daı nao e mais possıvel produzir energia por fusao. Neste ponto, se

a estrela for muito grande, ela explodira em uma supernova. Com o

nosso Sol acontecera algo diferente: ao final de sua vida sua superfıcie

se expandira e ele se transformara em uma gigante vermelha. Neste

ponto os planetas mais proximos do Sol - incluindo a Terra - serao

engolidos por ele, e seu diametro sera tao grande que visto da Terra

parecera preencher metade do ceu. A vida na Terra sera entao extinta

(por sorte ainda e cedo para nos preocuparmos com isso!). O proximo

estagio sera novamente de contracao, mas desta vez a gravidade nao

sera suficiente para reiniciar uma reacao de fusao termonuclear. O “ex-

Sol” entao se transformara em uma estrela chamada ana branca.

7.9 Efeitos Biologicos da Radiacao

No dia 13 de setembro de 1987 duas pessoas abriram um recipiente

abandonado em um local onde havia existido uma clınica medica na

cidade de Goiania. O conteudo do recipiente eram 18 gramas de cesio

137 (137Cs), um radioisotopo com meia-vida de 30,2 anos utilizado para

fins medicos. A irresponsabilidade dos donos da clınica e a completa

falta de informacao daquelas pessoas, aliada a total negligencia das au-

toridades do governo local na epoca, levaram o cesio a se espalhar e

causar a morte de varios moradores locais, e a contaminar centenas de

outras pessoa. Depois de Chernobyl, o acidente de Goiania e consider-

ado o mais grave acidente com radiacao.

Page 412: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

398

Radiacao pode ser extremamente danosa para organismos vivos.

Explosoes de bombas atomicas em testes nucleares, e a mineracao de

uranio para reatores de fissao liberam radioisotopos na atmosfera que

podem se combinar com o ar, com a agua, com plantas e animais, e ter

como destino o corpo de alguem. Por exemplo, o processo de mineracao

de uranio libera o radonio sob a forma de gas, que decai em chumbo

radiativo, que por sua vez causa danos ao cerebro. Ja o plutonio prefere

se agarrar a superfıcie dos nossos ossos e despejar partıculas alfa, que

possuem alto poder de ionizacao.

E no poder de ionizacao que reside o perigo da radiacao. Como vi-

mos, moleculas sao formadas por atomos que se ligam quimicamente en-

tre si. As propriedades das moleculas sao reflexos da estrutura eletronica

dos atomos que as compoem. Radiacao de qualquer tipo tem o poder de

alterar esta estrutura quımica e consequentemente alterar o funciona-

mento de moleculas, como por exemplo o ADN. O tipo e a extensao

do dano biologico e funcao das caracterısticas da radiacao. Partıculas

alfa, por exemplo, causam maior dano do que a mesma dose de protons,

partıculas beta ou gamas. Isto porque partıculas alfa sao facilmente

freadas, e consequentemente depositam sua energia mais localizada-

mente no organismo.

Os possıveis danos variam tambem em grau, dependendo do tipo

de radiacao e sobretudo da dose. O efeito e acumulativo e piora se

a dose for tomada em um curto intervalo de tempo. De um modo

geral, a exposicao a radiacao pode levar a morte em pouco tempo, ou

levar a alteracoes do funcionamento de celulas, causando doencas como,

por exemplo, o cancer. Pode ainda alterar a estrutura do material

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 399

genetico das celulas, causando defeitos que serao transmitidos as futuras

geracoes.

Existem duas unidades que quantificam a dose absorvida de ra-

diacao por um organismo: o rad, que equivale a uma energia de 100

erg/g, e o Gray (Gy), que equivale a 1 J/kg. Portanto, 1Gy = 100

rad. Exposicoes de 0,5 a 1 Gy comecam a gerar problemas de saude

em adultos. Doses entre 6 a 10 Gy causam problemas gastrointestinais

(diarreias, desidratacao, etc.). Problemas no sistema nervoso central

aparecem com doses acima de 10 Gy (disturbios de equilıbrio, agitacao,

convulsoes, e ocasionalmente, morte do indivıduo). Em mulheres entre

15 e 40 anos de idade doses entre 2,5 e 5,0 Gy podem causar a supressao

de ovulacao. Acima de 40 anos, a supressao ocorre em 100% dos casos.

Nos homens a mesma dose causa supressao na producao de esperma

(aspermia). Dependendo da fase de desenvolvimento em que o orga-

nismo atingido pela radiacao se encontra, esta pode produzir alteracoes

diferentes no sistema nervoso; estruturas cerebrais podem nem chegar

a se formar ou se apresentar anomalamente.

Comecamos este capıtulo com o belo poema Rosa de Hiroshima de

Vinıcius de Moraes. E notavel como a miseria e a destruicao nuclear

inspiram os poetas. Terminaremos esta secao transcrevendo um outro

poema, intitulado Radiophobia (Radiofobia), que expressa a dor e o

desespero dos habitantes de Chernobyl. O poema foi traduzido do

Russo para o ingles por Leonid Levin e Elisavietta Ritchie. Nao me

atrevi a tentar uma segunda traducao para o portugues, e portanto

mantive a sua forma em ingles.

Page 414: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

400

RADIOPHOBIA

Is this only–a fear of radiation?

Perhaps rather–a fear of wars?

Perhaps–the dread of betrayal,

cowardice, stupidity, lawlessness?

The time has come to sort out

what is–radiophobia.

It is–

when those who’ve gone through the Chernobyl drama

refuse to submit

to the truth meted out by government ministers

(“Here, you swallow exactly this much today!”)

We will not be resigned

to falsified ciphers,

base thoughts,

however you brand us!

We don’t wish–and don’t you suggest it!–

to view the world through bureaucratic glasses!

We’re too suspicious!

And, understand, we remember

each victim just like a brother! . . .

Now we look out at a fragile Earth

through the panes of abandoned buildings.

These glasses no longer deceive us!–

These glasses show us more clearly–

Page 415: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 401

believe me–

the shrinking rivers,

poisoned forests,

children born not to survive . . .

Mighty uncles, what have you dished out

beyond bravado on television?

How marvelously the children have absorbed

radiation, once believed so hazardous! . . .

(It’s adults who suffer radiophobia–

for kids is it still adaptation?)

What has become of the world

if the most humane of professions

has also turned bureaucratic?

Radiophobia

may you be omnipresent!

Not waiting until additional jolts,

new tragedies,

have transformed more thousands

who survived the inferno

into seers–

Radiophobia might cure

the world

of carelessness, satiety, greed,

bureaucratism and lack of spirituality,

so that we don’t, through someone’s good will

mutate into non-humankind.

Page 416: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

402

7.10 Medicina Nuclear

Gracas aos Ceus, nem tudo na historia das aplicacoes da fısica nuclear e

destruicao. A compreensao dos fenomenos envolvendo nucleos atomicos

possibilitou o desenvolvimento de varias tecnicas de diagnostico e trata-

mento que tem ajudado a salvar muitas vidas. A ressonancia magnetica

nuclear, discutida no capıtulo anterior, e um belo exemplo de aplicacao

que nao existiria se as propriedades magneticas dos nucleos nao tivessem

sido estudadas1. Nesta secao comentaremos brevemente algumas outras

aplicacoes medicas que envolvem o uso da radiatividade. Esta parceria

entre fısica nuclear e medicina e uma area de especializacao chamada

Medicina Nuclear.

Os medicos estao sempre interessados em olhar o que se passa dentro

do corpo das pessoas, sem que para isso seja necesario - na medida do

possıvel - nelas abrir um buraco. A ideia de utilizar radiacao para pro-

duzir imagens do interior do corpo nao e nova. Seguindo a descoberta

dos raios X (ondas eletromagneticas com comprimentos de onda entre

10−9 e 10−15 metros), em 1895 pelo cientista alemao Wilhelm Rontgen,

logo verificou-se o poder de penetracao deste tipo de radiacao em teci-

dos macios, propriedade esta que contrasta com sua forte atenuacao

por tecidos osseos. Esta observacao prontificou a utilizacao dos raios

X para produzir imagens do esqueleto humano (e de outros bichos!),

tornando-o um poderoso auxiliar no diagnostico de ossos quebrados.

1Como curiosidade, note a diferenca nas escalas de energia dos dois problemas:na RMN lidamos com fracoes ınfimas de eletronvolts, enquanto que na desintegracaonuclear lidamos com milhares a milhoes de eletronvolts. Sao 10 a 15 ordens demagnitude de energia acima!

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 403

Existem varias tecnicas de exames medicos que se utilizam de gamas

emitidos por radioisotopos. Muitas delas se utilizam do fato de que

determinadas substancias tendem a se acumular em determinados teci-

dos ou orgaos dentro do corpo. Por exemplo, a glandula tiroide, que

se situa diante da traqueia, e que possui importante papel no nosso

metabolismo, possui a propriedade de acumular iodo (I). A atividade

da tiroide pode entao ser estudada atraves da introducao de iodo no

corpo, contendo isotopos radiativos desse elemento, como o 131I e o 132I.

A utilizacao do primeiro e menos desejavel, por possuir meia-vida de

oito dias, o que prolonga demasiadamente a permanencia do material

radioativo dentro do corpo do paciente. O segundo possui meia-vida de

2,3 horas, e e mais utilizado. Mais recentemente, motivado pelo desen-

volvimento nas tecnicas de producao de radioisotopos, tem-se utilizado

o 123I, que possui meia-vida de 13 horas, e decai via captura eletronica

(ou seja, absorve um eletron e depois emite o gama que e utilizado no

exame), e nao por emissao de eletrons, o que diminui a quantidade de

radiacao.

De uma maneira geral, substancias radiativas sao introduzidas no

corpo dos pacientes, e se acumulam em determinados orgaos ou tecidos,

com os quais possuem afinidade quımica. Uma vez acumuladas essas

substancias, o estudo do padrao espacial da radiacao emitida permite

a reconstrucao da imagem interna do orgao. Um exemplo corriqueiro

sao as imagens de tumores no cerebro produzidas a partir dos gamas

emitidos pelo 99Tc. O cerebro possui uma tendencia natural de nao

acumular impurezas que viajam no sangue, exceto quando existe um

tumor. O 99Tc e acumulado entao na regiao do tumor, o que permite

Page 418: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

404

a visualizacao da area afetada e do tamanho do tumor.

Uma outra importante tecnica que tem se desenvolvido nos ultimos

anos e a tecnica de PET (do ingles Positron Emission Tomography,

ou Tomografia por Emissao de Positrons). Positrons sao partıculas

identicas ao eletron, com excecao da sua carga, que e positiva; podemos

dizer que sao uma especie de eletrons positivos. Trata-se da partıcula

de antimateria associada ao eletron (mais sobre isto no capıtulo nove).

Varios nucleos radiativos decaem emitindo positrons. A utilizacao

dessas partıculas em exames medicos se baseia na seguinte propriedade

fısica: quando um positron encontra um eletron, os dois se aniquilam

mutuamente, dando lugar a um par de fotons. Sao estes fotons pro-

duzidos pela aniquilacao do par eletron-positron dentro do organismo

de uma pessoa, que trazem informacoes sobre a regiao onde o fenomeno

ocorreu. Exemplos de radioisotopos emissores de positrons, utilizados

em exames PET sao o 15O (t1/2 = 2 min), o 13N (t1/2 = 10 min), o 13C

(t1/2 = 20 min), e o 18F (t1/2 = 110 min).

A diferenca essencial entre as imagens produzidas por PET e aquelas

produzidas por outras tecnicas, como por exemplo a RMN, esta no fato

de que enquanto as outras tecnicas produzem imagens anatomicas do

organismo (ou seja, imagens estaticas), PET e capaz de gerar imagens

funcionais, exibindo a atividade metabolica no organismo2. A pratica

envolve a ingestao dos radioisotopos, como nos casos anteriores. Subs-

tancias quımicas utilizadas pelo corpo, como por exemplo a glicose,

contendo radioisotopos emissores de positrons, sao introduzidas no pa-

2Existe, no entanto, a chamada RMN funcional, que tambem fornece informacoessobre as atividades metabolicas do organismo.

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CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 405

ciente. A medida em que os positrons emitidos pelos radioisotopos vao

encontrando eletrons no organismo e sendo aniquilados, os fotons resul-

tantes sao detectados, e as atividades metabolicas envolvendo glicose

(por exemplo, nos musculos, no coracao, no cerebro, em um tumor, etc)

vao sendo monitoradas. Com isso, as imagens de PET fornecem uma

medida direta das atividades bioquımicas e funcionais do organismo.

Na cardiologia a tecnica PET tem sido utilizada para o diagnostico de

problemas nas coronarias (arterias que irrigam o coracao), reducao de

fluxo sanguıneo, necessidade de pontes e transplantes, etc. Na neurolo-

gia a PET tem auxiliado na deteccao de doencas neurologicas como o

Mal de Alzheimer, Doenca de Parkinson, Sındrome de Down, etc. O

exame e ainda capaz de localizar focos epileticos, e qualificar a regiao

para intervencao cirurgica.

Tratamentos utilizando radioterapia incluem tecnicas para destruicao

de tumores ou tecidos que apresentem problemas. Tais tratamentos

baseiam-se na capacidade da radiacao de ionizar moleculas. A io-

nizacao faz com que as moleculas afetadas pela radiacao se recombinem

quimicamente com radicais livres no organismo, e sejam incorporadas

em estruturas biologicas mais complexas, alterando assim suas funcoes

quımicas.

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. A Seguranca de Angra I, Luiz Pinguelli Rosa, vol. 9, no. 53, p 24.

2. Como Funciona o Reator de Angra, David Simon, in Angra Entra emOperacao, vol. 2, no. 8, p 54.

3. Angra Entra em Operacao, vol. 2, no. 8, p 50.

4. Abalos em Angra: Nenhum Perigo a Vista, Vera Rita da Costa e Luıs

Page 420: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

406

Martins, vol. 9, no. 50, p 77.

5. A Tragedia Atomica nao Acabou, Ademar Freire-Maia, vol. 4, no. 20, p 86.

6. Do Lixo Atomico ao Lixo Industrial, Mario Epstein, vol. 12, no. 70, p 22.

7. Lixo Atomico o que Fazer? Joaquim Francisco de Carvalho, vol. 2, no. 12,p 18.

8. Cinquenta Anos da Fissao Nuclear: Ha Razoes para se Comemorar?, DanielR. Bes, vol. 9, no. 50, p. 76.

9. Materiais Radiativos e Contaminacao, Roberto Alcantra Gomes, vol. 8, no.45, p. 22.

10. Forcas Nucleares, Helio Teixeira Coelho e Manoel Roberto Robilotta, vol.11, no. 63, p. 22.

11. Fusao Termonuclear Controlada, Nelson Fiedler-Ferrari e Ivan Cunha Nasci-mento, vol. 7, no. 41, p. 44.

12. Separacao de Isotopos de Uranio por Laser, Luiz Davidovich, vol. 2, no.10, p. 82.

13. Novas Esperancas para a Fusao Nuclear, Alicia Ivanissevich, vol. 9, no. 49,p. 10.

14. Um Reator Nuclear Pode Explodir?, Arthur Moses Thompson Motta e LuizFernando Seixas de Oliveira, em Angra Entra em Operacao, vol. 2, no. 8, p.58.

15. Nucleos Exoticos, Carlos A. Bertulani, vol. 11, no. 65, p. 60.

16. Radioisotopos para Medicina, Arthur Gerbasi da Silva, vol. 3, no. 16, p.12.

17. Radioterapia com Menos Riscos, Regina Scharf, vol. 8, no. 45, p. 10.

18. O Casal Curie e os Novos Caminhos da Fısica, Lucıa Tosi, vol. 24, no.144, p. 65.

Page 421: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 7 - ENERGIA NUCLEAR 407

Resumo - Capıtulo Sete

Nucleos instaveis livram-se do excesso de energia emitindo partıculassubatomicas. O fenomeno e chamado de radioatividade. Os tres tipos dedecaimento mais comuns sao o decaimento por emissao alfa, por emissaobeta, e por emissao gama. Partıculas alfa sao nucleos do atomo de helio,formados por dois protons e dois neutrons. Patıculas beta sao eletronsou positrons, e partıculas gama sao fotons. Analogamente as reacoesquımicas, nucleos podem sofrer reacoes nucleares, dando origem a ou-tros nucleos. Um tipo de reacao nuclear muito importante e a captura deneutrons. Quando elementos pesados, como o 235U, capturam neutrons,o nucleo e fissionado, emitindo grande quantidade de energia e outrosneutrons. Esse fenomeno permite que reacoes nucleares de fissao se-jam utilizadas para gerar energia em grande escala. Bombas atomicase reatores nucleares utilizam este princıpio. A radioatividade em ex-cesso e altamente perniciosa para a nossa saude, e varios acidentes jaocorreram, sendo os mais graves a explosao da usina de Chernobyl em1986, e o acidente de Goiania com 137Cs em 1987. Na fusao nucleardois elementos leves sao fundidos em um mais pesado. Este e o pro-cesso de funcionamento do Sol e de outras estrelas. Para a fusao ocor-rer, altas temperaturas sao necessarias. Em laboratorios, a chamadafusao termonuclear e realizada utilizando-se o princıpio de confinamentomagnetico de um plasma em campos magneticos. Milhares de bombastermonucleares foram construıdas nos Estados Unidos e na antiga UniaoSovietica durante a Guerra Fria. As chamadas bombas-H possuem umpoder de devastacao incomparavelmente maior do que as primeiras bom-bas atomicas lancadas sobre Hiroshima e Nagasaki. Alem de armas dedestruicao em massa, as aplicacoes da energia nuclear tem produzidotoneladas de lixo atomico o qual permanecera ativo por milhoes e milhoesde anos. A radioatividade e tambem um poderoso auxiliar para trata-mentos medicos e diagnosticos de doencas. Existem varias tecnicas quese utilizam de isotopos radioativos para produzir imagens do interior docorpo humano, ou para combater a evolucao de tumores no organismo.

Page 422: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

Chapter 8

Relatividade Geral

Ele subitamente interrompeu a discussao...apanhou um telegrama que

estava no peitoril da janela e deu a mim dizendo: “Olhe, isso talvez

possa interessa-la”. Era o telegrama de Eddington, comunicando os

resultados colhidos pela expedicao que acompanhara o eclipse. Quando

eu expressei alegria pelo fato dos resultados coincidirem com os calculos,

ele disse tranquilamente: “Eu sabia que a teoria e correta”; e quando

lhe perguntei o que teria acontecido se nao se vissem confirmadas suas

previsoes, comentou: “Entao eu lamentaria pelo bom Deus - mas a

teoria esta correta”. (As Ideias de Einstein, J. Berstein, Ed. USP

1975)

8.1 Einstein Ataca de Novo!

Vimos no capıtulo dois que as leis da mecanica classica de Newton tive-

ram que ser substituıdas pelas leis da mecanica relativıstica de Einstein.

As leis de Newton so sao validas no limite de baixas velocidades. A

relatividade, por sua vez, e formulada sobre dois princıpios basicos, o

409

Page 423: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

410

de que as leis da fısica sao validas em todos os sistemas inerciais (ou

seja, que se movem com velocidade relativa constante), e o de que a

velocidade da luz e a mesma em todos esses sistemas. Como resultados

principais desses postulados, vimos a contracao do espaco, a dilatacao

do tempo e a famosa formula E = mc2, expressao da equivalencia entre

massa e energia. Tudo isso e valido em sistemas inerciais, ou seja,

que nao sofrem aceleracao. Por esta limitacao, a teoria ficou conhecida

como Relatividade Restrita.

Apos a publicacao da relatividade restrita, Einstein se preocupou

em desenvolver uma teoria geral, que incluisse sistemas nao inerciais, ou

seja, que sofrem aceleracao. Dez anos se passaram para o resultado final

aparecer. Em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, Einstein pub-

lica sua segunda grande contribuicao a fısica: a Teoria da Relatividade

Geral. Ao incluir sistemas de referencia acelerados, a relatividade geral

naturalmente tornou-se uma teoria de gravitacao, e portanto substituiu

a gravitacao newtoniana, ate entao a suprema teoria fısica “dos ceus”.

Alem dos ja conhecidos efeitos sobre relogios e reguas da teoria restrita,

aparece na teoria geral mais uma novidade bombastica: a de que a luz

possui “peso”. Este resultado teorico foi dramaticamente confirmado

em 1919 por uma expedicao de astronomos comandados pelo ingles Sir

Arthur Eddington!

8.2 O Princıpio da Equivalencia

Einstein costumava dizer que so conseguira chegar as suas ideias porque

pensava como uma crianca. No capıtulo dois mencionamos a experiencia

Page 424: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 411

imaginada do espelho, que ele formulara aos 16 anos de idade. Com a

relatividade geral nao foi diferente. A teoria surgiu a partir de questio-

namentos muito simples, mas que ninguem ate entao havia feito. Nas

palavras de Einstein:

Eu estava sentado em minha cadeira no escritorio de

patentes em Berna, quando subitamente me ocorreu um pen-

samento: ‘Se uma pessoa cai livremente, ela nao sentira o

proprio peso.’ Fiquei chocado. Esta ideia simples causou-

me uma profunda impressao, e levou-me a teoria da rela-

tividade geral.

Quantos de nos, fısicos profissionais, se chocam com ideias desse

tipo! A consequencia foi o princıpio da equivalencia, que pode ser com-

preendido a partir da seguinte experiencia pensada: suponha que um

observador se encontre dentro de uma caixa fechada, na superfıcie da

Terra. Ele sente o proprio peso e, ao soltar um objeto dentro da caixa,

o vera cair com uma aceleracao igual a g, a aceleracao da gravidade.

Imagine entao que, ao inves de realizar a experiencia na superfıcie do

planeta, sem que o observador saiba, a caixa seja transportada para

o espaco interestelar, longe da influencia do campo gravitacional da

Terra, ou de qualquer outro astro. Imagine ainda que embaixo da

caixa existam motores de propulsao que a acelerem com o mesmo valor

g. Ou seja, a aceleracao sentida pelo observador sera numericamente

igual a aceleracao da gravidade na Terra, porem produzida por mo-

tores, e nao pela massa do planeta. Nessas condicoes o observador

continuara sentindo o proprio peso e ao repetir a experiencia de largar

Page 425: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

412

o objeto observara uma queda exatamente como antes. Ou seja, ele sera

incapaz de distinguir as duas situacoes. Consequentemente, sistemas

de referencia uniformemente acelerados sao equivalentes a sistemas de

referencia em repouso, onde exista um campo gravitacional uniforme.

Este e o princıpio de equivalencia1. A primeira consequencia impor-

tante deste princıpio foi a explicacao para a “misteriosa” igualdade

entre a massa inercial e a massa gravitacional mencionada no capıtulo

um, considerada uma “estranha coincidencia” por Newton. De fato, se

aceitarmos que um referencial acelerado e indistinguıvel de um campo

gravitacional, podemos escrever para a segunda lei de Newton:

minercial × a = minercial × g = mgravitacional × g

e as duas massas devem coincidir.

Vamos agora, usando argumentos classicos, levar um pouco mais

adiante o experimento pensado do observador na caixa. Imagine que

haja um buraco em um dos lados da caixa que se move impulsionada

pelos motores, e que por ele entre um facho de luz. A luz atravessa a

caixa com velocidade c; se l for o comprimento da caixa, o raio atingira

o lado oposto em um tempo t = l/c. Acontece que neste intervalo

de tempo a caixa tera se deslocado para cima de uma distancia igual a

at2/2 = gl2/2c2, de modo que o observador dentro dela ve o raio atingir

o lado oposto ao buraco por onde entrou, a uma altura ligeiramente

abaixo. Em outras palavras, ele ve a luz se curvar. Mas, como o

princıpio de equivalencia afirma que a caixa acelerada e fisicamente

1No caso da pessoa que cai livremente, ela nao sente o proprio peso, mas se encon-tra em um referencial uniformemente acelerado (com aceleracao g). Ao contrario,se ela ficar parada em um refencial inercial, ela passa novamente a sentir o seu peso.

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 413

indistiguıvel de um campo gravitacional uniforme, devemos concluir

que um observador parado sobre a superfıcie da Terra tambem devera

ver a luz se curvar sob a acao de seu campo gravitacional! E como se

a luz fosse atraıda pelo campo da Terra; e como se ela tivesse peso! E

facil estimar o angulo de curvatura nesse exemplo simples da caixa: ele

e dado por θ ≈ gl/2c2.

Um observador em um elevador acelerado veria a luz se desviar. Como o Princıpio daEquivalencia iguala objetos massivos a referenciais acelerados, a luz deve igualmentese curvar ao passar perto de massas muito grandes.

A relatividade geral preve um desvio angular duas vezes maior do

que o obtido com argumentos classicos, e este e um dos seus resultados

Page 427: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

414

mais impressionantes. Em 1919 (3 anos depois da publicacao da teoria)

o astronomo ingles Sir Arthur Eddington (que ainda nao era ‘Sir’ nesta

epoca) organizou uma expedicao para medir o “peso da luz” previsto

por Einstein. Eddington sabia que no dia 29 de maio daquele ano

haveria um eclipse do Sol, e nas circunstancias especiais daquele eclipse

a deflexao da luz emitida por um conjunto de estrelas ao passar pelo

enorme campo gravitacional do Sol poderia ser medida. Uma parte da

expedicao de Eddington seguiu para o municıpio de Sobral, no estado

do Ceara, no Nordeste brasileiro, e a outra (com a qual Eddington

permaneceu) foi para a Ilha do Prıncipe, na Africa. A previsao teorica

feita por Einstein para este experimento era de que a luz deveria se

desviar de 1,74 segundos (lembre que a circunferencia tem 360 graus,

cada grau valendo 60 minutos e cada minuto 60 segundos. Portanto,

segundo aqui nao e unidade de tempo, mas de angulo). Em Sobral

o desvio medido foi de 1,98 segundos, e na Ilha do Prıncipe de 1,61

que, dentro do erro experimental, estava de bom acordo com a teoria.

Mais uma vez Einstein estava certo! Por muitos anos outras medidas

semelhantes foram feitas, todas confirmando as previsoes da teoria.

Vale a pena o leitor parar para refletir sobre esse experimento. De

um lado Einstein com as suas previsoes teoricas espetaculares; de outro,

Eddington com sua equipe e seu laboratorio incomum: as estrelas, o

Sol e a Terra. E o voo supremo da alma humana!

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 415

.

Ao passar nas proximidades do Sol, a luz de uma estrela e desviada. Vista da Terra,a estrela parece estar em uma posicao diferente da real.

Foi somente a partir dos resultados do experimento de Eddington

que Einstein realmente ganhou popularidade e deixou de ser uma pessoa

comum e passou a ser um “genio”. Em novembro de 1919 eles (os

resultados) foram apresentados em uma sessao da Royal Society em

Londres. Cabe lembrar que esta instituicao britanica tem em Isaac

Newton seu maior representante e expoente. Nesta sessao, contudo,

era precisamente a gravitacao newtoniana - a perola do Principia - que

era colocada em xeque. Jeremy Bernstein reproduz uma descricao da

atmosfera da reuniao, feita por Alfred North Whitehead, em seu livro

As Ideias de Einstein (Ed. USP 1975):

A atmosfera, impregnada de tenso interesse, era exata-

mente a dos dramas gregos. Compunhamos o coro, comen-

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416

tando o decreto do destino, tal como se revelava no desen-

volvimento de um incidente supremo. No proprio ambiente

havia qualidade dramatica - a cerimonia tradicional, e ao

fundo, o retrato de Newton para lembrarmos de que a maior

das generalizacoes cientıficas estava, agora, passados mais

de dois seculos, a ponto de receber sua primeira modificacao.

E nem faltava o elemento do interesse pessoal; uma grande

aventura do pensamento concretizava-se, enfim.

Outros dois resultados importantes foram obtidos por Einstein com

a relatividade geral. O primeiro diz respeito a variacao da frequencia

de uma onda eletromagnetica (ou foton) em um campo gravitacional,

outra consequencia do princıpio de equivalencia. Considere um foton

emitido de um ponto P em direcao a um detector D que se encontra a

uma distancia vertical L do ponto de emissao. Vamos chamar de f a

frequencia do foton emitido. Se g e a aceleracao da gravidade (consi-

derada uniforme) a relatividade geral preve que o campo gravitacional

causara uma mudanca na frequencia do foton (o que equivale a uma

mudanca na sua energia), de modo que o detector D vera o foton com

frequencia f ′. A razao calculada entre as frequencias e igual a:

f ′

f= 1 ± gL

c2

Onde o sinal ‘+’ se aplica se o foton estiver se deslocando no mesmo

sentido do campo gravitacional, e ‘−’ se estiver se deslocando em sen-

tido oposto ao do campo. De certa forma o problema e analogo a perda

ou ganho de energia cinetica de um objeto massivo, como uma pedra, se

Page 430: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 417

jogada para o alto ou largada para cair livremente de uma certa altura.

Nesta situacao poderıamos escrever:

T = E −mgz

onde mgz e a energia potencial da pedra, sendo z a sua altura do

solo. E e a energia total (ou seja, potencial mais cinetica), que neste

caso se conserva. Se a pedra for jogada para o alto, a medida em que

z aumenta, como E e constante, T diminui. Eventualmente a pedra

alcancara uma altura maxima (o que obviamente nao acontece com o

foton), onde a energia potencial sera igual a E, e T sera zero. Se, ao

contrario, a pedra estiver caindo livremente, T sera zero no inıcio do

movimento e, na medida em que ela cai, z diminui ate o valor 0, onde

T sera maxima.

A presenca do fator c2 ≈ 9 × 1016 ≈ 1017 m2/s2 no denominador

torna a fracao do lado direito na expressao do deslocamento em frequencia

muito pequena. Se, por exempo, substituirmos L = 10 m, e g ≈ 10

m/s2 teremos

gL

c2≈ 102

1017= 10−15

Comparado com ‘1’, este numero e realmente pequeno:

1 + 0, 000000000000001 = 1, 0000000000000001

para o foton “caindo”, ou

1 − 0, 000000000000001 = 0, 999999999999999

Page 431: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

418

para fotons “subindo”. Entao, para fotons que “caem” no campo gra-

vitacional da Terra de uma altura de 10 m, a sua frequencia (e con-

sequentemente energia) aumentaria de f para 1, 000000000000001f ; e

para fotons que “escapam” do campo da Terra, a 10 m de altura, a sua

frequencia diminuirira de f para 0, 999999999999999f .

O leitor desavisado poderia pensar que nao haveria qualquer espe-

ranca de tal resultado ser verificado experimentalmente. Contudo, di-

ante dos experimentos que ja vimos, que mais parecem pecas de ficcao

cientıfica, e pouco cauteloso achar que alguma coisa seja impossıvel

para certas pessoas! Em 1960 V.R. Pound e G.A. Rebka realizaram,

na Universidade de Harvard, a confirmacao experimental deste resul-

tado. Para isso eles usaram fotons emitidos do decaimento gama do

57Fe. Esses fotons possuem energia de 14,4 keV, o que equivale a uma

frequencia de:

f =E

h=

14, 4 × 103 × 1, 6 × 10−19 J

6, 6 × 10−34 Js= 3, 5 × 1018 Hz

O experimento foi realizado na Torre Jefferson, que possui cerca de

25 m de altura. Para medir o deslocamento em frequencia do foton

previsto pela relatividade geral, Pound e Rebka utilizaram um outro

importante efeito que havia sido recem-descoberto (em 1958) por R.

Mossbauer na Alemanha. O chamado efeito Mossbauer e simples de

entender: sabemos que um nucleo que se encontra inicialmente em um

estado de energia Ei, e decai para um estado de energia mais baixa Ef ,

emite um foton com uma energia igual a hω = (Ef−Ei), onde ω = 2πf e

a frequencia angular do foton emitido. Este foton pode ser re-absorvido

por outro nucleo que se encontre em um estado Ef , sendo assim ex-

Page 432: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 419

citado para Ei (ou seja, percorrendo o caminho inverso). Porem, se

os nucleos emissor e absorvedor forem partıculas livres, devido a con-

servacao do momento linear, havera um pequeno recuo, tanto do nucleo

que emite o foton quanto do que o absorve. Este recuo dificulta a ob-

servacao do efeito. Mossbauer descobriu um “truque” para contornar a

dificuldade (veja painel XIV). Ele utilizou nucleos radioativos inseridos

em redes cristalinas, com isso evitando o recuo dos nucleos.

A relatividade geral preve que sob a acao do campo gravitacional,

a frequencia do foton, f , sera alterada. Pound e Rebka colocaram

entao uma amostra contendo uma fonte de 57Co no topo (ou na base)

da torre. Este radiosotopo decai para o 57Fe emitindo os gamas men-

cionados. Estes gamas eram detectados na base (ou no topo) da torre

utilizando o efeito Mossbauer em outra amostra de ferro. Ao viajar

do topo para a base, a frequencia dos fotons deveria ser aumentada

pelo campo gravitacional, modificando ligeiramente a posicao da linha

de absorcao dos fotons no efeito Mossbauer. Se o foton viajar da base

para o topo, a sua frequencia (e portanto energia) seria diminuıda pelo

mesmo fator, como no exemplo da pedra (comparar fotons com pedras,

so mesmo em um livro igual a este!). O experimento durou 4 meses.

O resultado esperado com base na teoria era uma variacao fracional de

frequencia igual a (f ′ − f)/f = ∆f/f = 4, 905 × 10−15. O resultado

encontrado foi de (4, 902 ± 0, 041) × 10−15. Esses numeros dispensam

comentarios. . .

Page 433: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

420

PAINEL XV

O EFEITO MOSSBAUER

Vimos no capıtulo anterior que nucleos excitados podem decair emitindo fotons

(decaimento gama). Ao fazer isso, a fim de que o momento seja conservado, o

nucleo deve recuar um pouco. E como ocorre em um tiro de canhao: o projetil vai

para frente, e o canhao para tras. Se pγ e o momento do foton emitido, e pR o

momento de recuo do nucleo, a lei de conservacao de momento requer:

−pR = pγ

Alem do momento, a energia tambem e conservada. Antes do decaimento a

energia inicial era a energia do estado excitado no nucleo, Ei. Apos o decaimento

o nucleo estara em um estado Ef , e o foton tera uma energia Eγ . Temos tambem

que adicionar a energia cinetica devida ao recuo do nucleo ER. Ou seja:

Ei = Ef + Eγ + ER =⇒ ∆E = Eγ + ER

onde ∆E = Ei − Ef e a variacao de energia do nucleo.

Nao fosse pela presenca do termo de recuo, ER, um segundo nucleo que apre-

sentasse nıveis de energia separados pela mesma quantidade ∆E poderia absorver

o foton emitido. A presenca do termo ER significa que para que um nucleo absorva

este foton, ele teria que apresentar nıveis de energia ligeiramente mais proximos do

que o nucleo emissor. Mais exatamente, se tambem levarmos em conta a energia de

recuo do nucleo absorvedor, a diferenca entre os nıveis de energia dos nucleos emis-

sor e absorvedor, necessaria para que o foton pudesse ser absorvido, seria de 2ER.

Esta diferenca de energia praticamente impossibilita a observacao do fenomeno en-

tre atomos livres.

Em 1958 Rudolph Mossbauer descobriu como contornar este problema. Ele

percebeu que o recuo seria muito menor se os nucleos emissor e absorvedor es-

tivessem presos a uma rede cristalina. Neste caso a energia de recuo seria abosorvida

por toda a rede, e nao por apenas um nucleo. E mais ou menos como tentar

chutar um tijolo solto e um preso a uma parede! O da parede praticamente nao

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 421

recuara, pois toda a parede absorvera a energia do chute. Mossbauer usou fotons

com Eγ = 129 keV emitido pelo decaimento do 191Ir e demonstrou o que ficou

conhecido como o Efeito Mossbauer.

Desde a sua descoberta, o efeito Mossbauer tornou-se uma importante tecnica

de investigacao experimental, principalmente em ciencia dos materiais. Mas, na

opiniao do autor, sua aplicacao mais espetacular foi o teste do princıpio de equivalencia

por Pound e Rebka em 1960.

Page 435: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

422

O outro resultado importante da relatividade geral foi a explicacao

da precessao do perielio de Mercurio. O perielio e o ponto de maior

aproximacao do Sol na orbita de um planeta. Um problema antigo

em mecanica era o da precessao do perielio de Mercurio (o planeta

mais proximo do Sol no nosso sistema). A variacao e de apenas 5600

segundos de arco (cerca de 1,5 grau) por seculo. Destes, a mecanica

classica de Newton consegue explicar 5557 segundos de arco, em termos

da interacao gravitacional de Mercurio com outros planetas. Os outros

43 segundos so podem ser explicados pela relatividade geral2!

O perielio (ponto de maior aproximacao da trajetoria de um planeta em torno doSol) de Mercurio sofre uma precessao de 5600 segundos de arco por seculo. Estefenomeno nunca foi compreendido ate o advento da Relatividade Geral.

2E instrutivo aqui ressaltar o rigor exigido pela Fısica. 43 segundos de arco em5600 e de fato uma variacao muito pequena. Antes da relatividade geral acreditava-se que esta variacao se devia a algum detalhe nao levado em conta nas equacoes demovimento classicas. Que nada! Era a minuscula ponta de um imenso iceberg queso foi descoberto por causa desta demanda irrevogavel do rigor cientıfico!

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 423

8.3 Geometria e Gravitacao

A relatividade geral vai muito alem dos resultados descritos acima. Ela

provocou modificacoes profundas de conceitos e ideias sobre a estrutura

do Universo cujas consequencias ainda estao longe de serem esgotadas.

Vimos no capıtulo dois que na relatividade restrita espaco e tempo nao

sao independentes um do outro. Classicamente consideramos o espaco

como tendo tres dimensoes, x, y e z. O tempo pode ser considerado

uma quarta dimensao, independente do espaco. Na relatividade, espaco

e tempo se misturam. A expressao matematica desta interdependencia

aparece nas transformacoes de Lorentz. E extremamente difıcil visu-

alizarmos esta interconexao, mas no entanto ela existe, e devemos agora

pensar nao em uma estrutura tridimensional espacial, com o tempo

fluindo separadamente como considera a mecanica classica, mas sim

em uma estrutura quadridimensional, sendo tres dimensoes espaciais e

uma temporal. Chamamos tal estrutura de espaco-tempo.

Na relatividade geral a ideia de forca e abandonada, e substituıda

por geometria! Considere o seguinte exemplo, oferecido por P.C. Davies

e J. Brown (Superstrings. A Theory of Everything?, Cambridge

1988): imagine quatro objetos que caem em queda livre em um campo

gravitacional. Inicialmente, no momento em que sao soltos, os quatro

objetos formam um quadrado no plano vertical, com um dos vertices

apontando para baixo. De acordo com a mecanica classica, como a forca

gravitacional varia com o inverso do quadrado da distancia, o objeto no

vertice mais proximo da Terra sofrera uma forca ligeiramente maior do

que o que se encontra no vertice oposto. Os objetos que se encontram

Page 437: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

424

na posicao intermediaria estarao sujeitos a mesma forca, e portanto

manterao suas posicoes relativas. Consequentemente, a medida que

cai, o quadrado e alongado em uma de suas diagonais, tornando-se um

losango. Na relatividade geral entende-se que tal deformacao nao e cau-

sada pela acao da forca gravitacional, mas sim porque o proprio espaco-

tempo possui aquela geometria. E como se os objetos rolassem livre-

mente sobre uma superfıcie do espaco-tempo com determinada forma

geometrica. Com o movimento de um planeta em torno do Sol se da o

mesmo. Para a relatividade geral nao ha forcas atuando sobre o plan-

eta; este se move livremente descrevendo uma trajetoria sobre uma

superfıcie do espaco-tempo, como uma bola de gude que rola sobre

uma mesa (lembre no entanto que a geometria a que nos referimos e

a do espaco-tempo, e nao so do espaco. Embora para nos seja muito

difıcil a visualizacao da situacao, do ponto de vista matematico nao ha

problema algum em se lidar com estruturas multidimensionais).

E como essa geometria aparece? O que determina a forma da orbita

de um planeta ou da trajetoria de um objeto em queda livre na relativi-

dade geral? Resposta: amassa. A massa de planetas, estrelas, galaxias,

etc., e o que cria as distorcoes no espaco-tempo, como se ele fosse

uma folha de papel curvada. Retire a massa do Universo, e nao sobra

nada. Compare o Universo com uma sala mobiliada; mesas, cadeiras,

poltronas, quadros, etc., representam planetas, estrelas, galaxias, etc.

Retire a mobılia da sala; o que sobra? Para Newton, sobraria o espaco

que era antes ocupado pelos objetos. Para Einstein: nao sobra nada. E

como se a propria sala fosse gerada pela mobılia. Deste ponto de vista,

o desvio na trajetoria da luz no experimento de Eddington ocorre sim-

Page 438: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 425

plesmente porque nas vizinhancas do Sol o espaco-tempo e deformado.

A luz e uma especie de “linha” desenhada sobre a superfıcie espaco-

temporal, deformada pela massa do Sol. Note a mudanca conceitual

dramatica em relacao a mecanica classica. E a marca de Einstein! O

espaco e o tempo, ou melhor, o espaco-tempo, nao e mais uma mera es-

trutura estatica e absoluta dentro da qual os fenomenos da Natureza se

desenrolam, mas sim um objeto fısico, gerado e modificado pela materia

do Universo.

Para a Relatividade Geral, objetos se movem livremente sobre a superfıcie doespaco-tempo, que tem sua geometria determinada pela massa do Universo.

Obviamente embasando esses resultados espetaculares esta muita

matematica. Uma das razoes para a relatividade geral levar dez anos

para ser desenvolvida ate a forma final encontrada por Einstein foram

exatamente as dificuldades matematicas que apareceram ao longo do

caminho. Durante este perıodo, Einstein publicou uma serie de traba-

lhos, cada um deles retratando ou corrigindo algum erro do anterior.

Page 439: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

426

Por conta disso, certa vez teria dito sobre si mesmo: o camarada Eins-

tein age de acordo com suas conveniencias. A cada ano corrige o que

disse no ano anterior.

A aceitacao inicial da teoria se deu em grande parte a beleza e

elegancia de sua formulacao matematica. Este e um ponto importante,

mas que em geral nao faz parte do ensino profissionalizante do fısico.

Ha muito de sentido estetico em fısica. Resultados com significados pro-

fundos em geral sao expressos por formulas matematicas simples, como

F = ma, E = mc2, λ = h/p, etc. E o contraste entre a simplicidade e

a abrangencia que causa a sensacao do belo!

Da mesma forma em que a mecanica classica e recuperada da re-

latividade restrita no limite de baixas velocidades, ela tambem o e da

relatividade geral no limite de massas pequenas. Nao poderia ser de

outra forma. A mecanica newtoniana e uma teoria de imenso sucesso,

e obviamente nao esta errada, mas somente limitada. A relatividade

geral de Einstein e uma generalizacao da mecanica classica de Newton

para o limite de massas muito grandes (massas de galaxias), assim como

a relatividade restrita o e para o limite de velocidades muito altas,

proximas a da luz. Podemos entao afirmar que a mecanica newtoniana

e valida sempre que as massas envolvidas no problema nao forem muito

grandes, sempre que as velocidades dos objetos nao forem muito altas,

e ainda, sempre que os objetos nao forem muito pequenos, da ordem

de tamanhos atomicos, pois quem “manda” nesse limite e a mecanica

quantica.

Page 440: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 427

8.4 Nascimento e Morte das Estrelas:

Buracos Negros

No capıtulo anterior fizemos um breve comentario sobre o ciclo de vida

de uma estrela. Corpos celestes sao formados a partir da atracao grav-

itacional entre partıculas soltas no espaco. A conexao entre uma dada

distribuicao de materia e o campo gravitacional por ela gerado foi esta-

belecida por Einstein sob a forma de um conjunto de dez equacoes na

teoria da relatividade geral. A partir delas o campo gravitacional de

uma dada distribuicao de materia pode ser calculado. Dentre as muitas

solucoes destas equacoes estao aquelas das quais decorrem objetos co-

nhecidos como buracos negros. Nesta secao vamos rever com um pouco

mais de detalhes o ciclo de vida de alguns objetos celestes.

Em uma estrela como o Sol, a materia cria uma compressao gra-

vitacional forte o suficiente para iniciar uma fusao termonuclear que

transforma hidrogenio em helio. Mencionamos tambem no capıtulo an-

terior que o destino final de uma estrela depende de sua massa. Um

fato curioso sobre as estrelas e que as maiores (e mais massivas) vivem

menos do que as menores. Isso ocorre porque quanto maior a massa,

maior a contracao gravitacional, e mais rapida sera a queima do com-

bustıvel nuclear que mantem a estrela “acesa”.

Daqui a uns 5 bilhoes de anos o Sol comecara a se expandir e se

tornara uma gigante vermelha. Apos este perıodo ele comecara a res-

friar e a se contrair, mas nao “acendera” novamente. Ao contrario, se

tornara uma pequena estrela conhecida como ana branca. A massa do

Sol e usada como uma especie de unidade de massa de estrelas. Uma

Page 441: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

428

estrela cuja massa seja maior do que 8 vezes a massa do Sol tem um des-

tino diferente. Quando em tais estrelas o hidrogenio acaba, o processo

de contracao continua, queimando o helio, e entao carbono, e entao

silıcio, e finalmente produzindo ferro como o ultimo produto de fusao.

O ferro forma uma especie de nucleo do qual nao e mais possıvel retirar

energia pelo processo de fusao. Este nucleo de ferro entao colapsa sob a

acao da gravidade, fazendo toda a estrela colapsar. A pressao aumenta

tanto que ocorre uma explosao, literalmente despedacando a estrela

e lancando materia e energia no espaco: e o que chmamos de super-

nova. Este fenomeno e comumente observado da Terra. Uma das mais

famosas explosoes de supernova foi observada em fevereiro de 1987.

Pode ocorrer ainda que durante o processo de colapso da massa de

uma estrela com massa da ordem daquela de uma supernova, eletrons

sejam forcados para dentro dos protons, transformando-os em neutrons.

Quando isso ocorre, a estrela se torna estavel. Tera um diametro de

apenas alguns quilometros, mas podera ser tao massiva quanto o Sol.

Esta e chamada uma estrela de neutrons. Estrelas de neutrons podem

girar rapidamente e emitir radiacao eletromagnetica, que e detectada

na Terra sob a forma de pulsos de radiacao. Tal objeto e chamado

um pulsar, e realiza dezenas de rotacoes sao por segundo! Imagine um

objeto tao massivo quanto o Sol girando desse jeito! Pulsares foram de-

tectados pela primeira vez por astronomos ingleses no final dos anos 60.

A regularidade dos pulsos levou-os a pensar que se tratava de uma co-

municacao inteligente extra-terrestre! Atualmente sao conhecidos cerca

de 400 pulsares.

Mas, o objeto mais estranho que pode resultar da vida de uma

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 429

estrela aparece se a sua massa for tal que os proprios neutrons colapsem,

e se transformem numa especie de ponto superdenso. O espaco-tempo

em torno de tal regiao e completamente deformado, em uma especie

de rodemoinho do qual nada que se aproxime o suficiente consegue

escapar, inclusive a luz. Tal objeto e um buraco negro. Enquanto

estrelas de neutrons e pulsares podem ser detectados diretamente por

tecnicas de radioastronomia, buracos negros so podem ser “observados”

indiretamente atraves de seus efeitos gravitacionais.

A primeira evidencia da existencia de um buraco negro apareceu em

1970, atraves da observacao de uma fonte de raios-X em um sistema

binario chamado Cygnus X-1. Essas observacoes revelaram a existencia

de um objeto com raio comparavel ao de uma estrela de neutrons (pul-

sar) e uma massa da ordem de 8 a 10 vezes a massa do Sol. Acredita-se

que exista um buraco negro neste sistema a cerca de 8, 2×103 anos-luz

da Terra. Astrofısicos e cosmologos estimam que 108 (100 milhoes) de

buracos negros se formaram no Universo, um deles estando no centro

da nossa galaxia.

Resumindo: uma estrela e uma especie de fabrica cosmica de e-

lementos pesados. Pense nisso: somos feito de material produzido no

interior das estrelas! O ciclo da vida de uma estrela comeca com a

queima de hidrogenio em helio, e o seu destino final depende de sua

massa. Elas podem se transformar em gigantes vermelhas e entao

em anas brancas, ou em supernovas. Podem ainda virar estrelas de

neutrons ou buracos negros.

Page 443: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

430

8.5 Novos Desafios a Relatividade

A despeito de seu enorme sucesso, a relatividade geral carece de testes

experimentais, o que e mortal para qualquer teoria fısica (mesmo as

de Einstein!). Os testes mencionados nas secoes anteriores (deflexao da

luz, deslocamento para o vermelho, e precessao do perielio de Mercurio)

foram os unicos realizados ate hoje, mais de 80 anos apos a publicacao

da teoria. Esta situacao contrasta com a da relatividade restrita, que

foi testada milhares de vezes, ate que niguem mais duvidasse, por ex-

emplo, de que E = mc2. Pior ainda para a relatividade geral, ao longo

dos anos teorias alternativas surgiram e foram capazes de prever a ex-

istencia dos mesmos fenomenos previstos por Einstein. A unica maneira

de distinguir (e decidir) qual a melhor teoria, e realizando experimentos.

Este e um ponto particularmente dramatico para teorias de gravitacao,

pois os experimentos envolvem galaxias inteiras! Muitas das teorias

alternativas a relatividade geral puderam ser descartadas atraves de

experimentos que testaram certas previsoes teoricas que nao estao con-

tidas na teoria de Einstein. No entanto, descartar teorias alternativas

nao e suficiente para corroborar a relatividade geral. E preciso testa-la

diretamente!

Com esse intuito, a Universidade de Stanford e a NASA vem de-

senvolvendo o mais ambicioso projeto experimental deste seculo para

testar a relatividade geral. Ele e chamado de GPB, sigla em ingles para

Gravity Probe B, que poderıamos traduzir por Sonda Gravitacional B.

A ideia e simples na sua concepcao, porem imensamente complexa na

sua realizacao. O experimento se utiliza do fenomeno de precessao

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 431

de um giroscopio em um campo gravitacional, conhecido por qualquer

crianca que ja brincou de piao! Um piao possui dois movimentos: um

de rotacao em torno de seu eixo, e outro de precessao em torno do

campo gravitacional. Vamos nos referir a rotacao como sendo o “spin”

do piao (nao confundir com o ‘spin’ intrınseco de partıculas, discutido

no capıtulo tres). A precessao e causada pelo torque do campo gravita-

cional sobre o spin. Curiosamente, o fenomeno e analogo a precessao

de spins nucleares em torno de um campo magnetico (capıtulo seis).

A velocidade angular de precessao de um piao, Ω, e proporcional a

razao entre a aceleracao da gravidade g, e a frequencia angular de spin

ω:

Ω ∝ g

ω

Quanto mais rapida for a rotacao, ou seja, quanto maior for ω, mais

lenta sera a precessao, e vice-versa. Quem ja brincou de piao tambem

ja notou esse fato. A medida em que o piao vai parando, a precessao

aumenta cada vez mais. Por outro lado, na ausencia de gravidade, ou

seja g = 0, o piao nao apresentara movimento de precessao. Note que se

tivessemos um meio de medir Ω, ω e outras quantidades relacionadas

ao movimento do piao, terıamos uma maneira de medir a aceleracao

da gravidade no local onde o piao se encontra. Este e o espırito do

experimento GPB: utilizar o movimento de um giroscopio para medir

efeitos gravitacionais previstos pela relatividade geral!

A fim de se medir efeitos relativısticos, e preciso eliminar do experi-

mento outros efeitos nao-relativısticos. Por “nao-relativısticos” entenda-

se aqueles efeitos que podem ser explicados exclusivamente pela mecanica

Page 445: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

432

classica, como por exemplo o torque do campo gravitacional sobre o

piao. Em outras palavras, deve-se isolar o que e genuinamente rela-

tivıstico. Essa demanda cria problemas serios para o experimento, uma

vez que no Sistema Solar a relatividade geral fornece resultados prati-

camente identicos aos da mecanica classica (pois as massas envolvidas

nao sao suficientemente grandes!). A dificuladade deve ser contornada

com muita imaginacao!

Um giroscopio e colocado em um satelite orbitando a cerca de 600

km de altura em torno da Terra. A esta altitude, a aceleracao da gravi-

dade e muito menor do que na superfıcie da Terra, o que virtualmente

elimina o efeito de precessao causado pela gravidade terrestre sobre o

piao.

A verificacao de dois efeitos previstos na relatividade geral sera

paticularmente buscada no experimento GPB. Difıcil e apontarmos

qual o mais bizarro: o arraste do espaco-tempo, ou o efeito gravito-

magnetico. O primeiro foi previsto em 1918 por W. Lense, e H. Thirring.

Eles calcularam que a rotacao de um corpo massivo deveria “arrastar”

consigo o proprio espaco-tempo. Tal efeito, causado pelo movimento

de rotacao da Terra, seria extremamente pequeno, porem grande o

suficiente para ser percebido pelos giroscopios do experimento GPB.

O segundo e uma especie de analogo entre o campo magnetico e o

campo eletrico, como descreveu o fısico americano John Wheeler. Men-

cionamos no capıtulo um que campos eletricos em movimento geram

campos magneticos. Algo semelhante ocorreria com o campo gravita-

cional: o seu movimento geraria o efeito gravito-magnetico.

Os “pioes” utilizados no experimento (em numero de quatro) sao,

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 433

por si so, pecas de arte e tecnologia. Eles consistem de esferas per-

feitas de quatzo, revestidas de material supercondutor (capıtulo seis).

Quando postos a girar em torno de um eixo, o supercondutor da origem

a um momento magnetico chamado de momento de London, em hom-

enagem a Fritz London, um dos primeiros estudiosos da supercon-

dutividade. Como vimos no capıtulo seis, momentos magneticos sao

grandezas proporcionais a momentos angulares. Entao, variacoes nos

momentos angulares, causadas pelas alteracoes gravitacionais locais,

serao captadas atraves das respectivas variacoes dos momentos magneticos

de London dos pioes. Essa aparente complicacao se faz necessaria, pois

e muito mais simples a deteccao de variacoes em momentos magneticos

(que geram sinais eletricos), do que em momentos angulares!

A implementacao de tal experimento, como da para perceber, de-

safia a imaginacao nao so dos melhores escritores de ficcao cientıfica do

seculo, como tambem de tecnicos, fısicos e engenheiros envolvidos no

projeto. O uso de supercondutores implica que os giroscopios precisam

ser mantidos a baixas temperaturas; o fato de as medidas serem re-

alizadas observando-se variacoes minusculas dos momentos magneticos

das esferas (e nao dos momentos angulares correspondentes), implica na

necessidade de blindagens das esferas dos efeitos do campo magnetico

da Terra, etc. As variacoes nos momentos magneticos serao medidas

usando-se aparelhos extremamente sensıveis conhecidos como SQUIDs

(sigla em ingles para Superconducting Quantum Interferometer Device

- Interferometro Quantico de Supercondutores). As esferas devem ser

posicionadas de modo a manterem seus momentos alinhados com o eixo

de um telescopio que aponte para estrelas distantes fixas, fornecendo

Page 447: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

434

assim um sistema de referencia, em relacao ao qual as variacoes serao

medidas. E vai por aı afora. O experimento foi classificado por um dos

cientistas-chefes como o “mais desafiador ja realizado pela NASA”. E

aguardar para ver!

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 435

PAINEL XVI

RELATIVIDADE E IMPOSTURAS INTELECTUAIS

As ciencias humanas e sociais (sociologia, filosofia, psicologia, etc) muitas vezes

buscam inspiracao nos conceitos das ciencias exatas para aplica-los aos fenomenos

sociais e mentais, e tentar compreender melhor estes complexos fenomenos. Embora

a princıpio esta iniciativa possa parecer saudavel, dado o enorme sucesso das ciencias

exatas, particularmente da fısica, autores famosos tem “escorregado” na hora de

fazer a transposicao de uma area de conhecimento para outra. Varios destes deslizes

foram compilados em um livro chamado “Imposturas Intelectuais”, de Alan Sokal

e Jean Bricmont [Ed. Record (1999)] onde os autores criticam severamente figuras

eminentes com o peso de Jacques Lacan, Gilles Deleuze e Felix Guattari, Paul

Virilio, etc. Particularmente atingida por estas “imposturas” estao as relatividades

(especial e geral). Abaixo transcrevemos alguns trechos do livro de Sokal e Bricmont.

Se o amigo leitor nao compreender o que eles significam, nao se preocupe, pois de

acordo com os autores de “Imposturas Intelectuais” nao ha muito o que compreender

mesmo.

I. Estas lutas contra privilegios na economia ou na fısica sao lit-

eralmente, e nao metaforicamente, as mesmas [. . . ] Quem ira se bene-

ficiar com o envio de todos estes observadores para plataformas, trens,

raios de luz, Sol, estrelas proximas, elevadores acelerados, confins do

cosmos? Se o relativismo estiver correto, cada um deles se beneficiara

tanto quanto os outros. Se correta estiver a relatividade, apenas um

deles (isto e, o enunciador, Einstein ou algum outro fısico) sera capaz

de juntar num unico lugar (seu laboratorio, seu escritorio) os docu-

mentos, relatos e medicoes transmitidos por todos os seus enviados.

[Bruno Latour - Extraıdo de “Imposturas Intlectuais, Alan Sokal e

Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]

II. Algumas vezes a constante-limite surge ela propria como uma

relacao no conjunto do universo, ao qual todas as partes sao sujeitas

Page 449: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

436

sob uma condicao finita (quantidade de movimento, forca, energia...).

Novamente, e preciso que haja sistemas de coordenadas, aos quais os

termos da relacao se referem: este e pois um segundo significado do

limite, um enquadramento exterior ou uma exorreferencia. Pois os

protolimites, externos a todas as coordenadas, geram inicialmente ab-

scissas de velocidades sobre as quais serao erguidos eixos coordenaveis.

Uma partıcula tera uma posicao, uma energia, uma massa, um valor

de spin, porem com a condicao de receber uma existencia ou uma at-

ualidade fısica, ou de “aterrissar” em trajetorias que podem ser cap-

tadas pelos sistemas de coordenadas. Sao esses primeiros limites que

constituem a desaceleracao no caos ou o limiar de suspensao do in-

finito, que servem de endoreferencia e operam uma contagem: nao

sao relacoes, apenas numeros, e toda teoria das funcoes depende de

numeros. Sera invocada a velocidade da luz, o zero absoluto, o quan-

tum da acao, o big-bang: o zero absoluto da temperatura e de -273,15

graus centıgrados, a velocidade da luz, 299.796 quilometros por se-

gundo, onde as distancias se contraem a zero e os relogios param.

Tais limites nao tem o valor empırico que assumem somente dentro

dos sistemas de coordenadas; agem primeiramente como a condicao

de desaceleracao primordial, que se estende com relacao ao infinito

sobre toda a escala das velocidades correspondentes, sobre suas acel-

eracoes ou desaceleracoes condicionadas. Nao e somente a diversi-

dade desses limites que nos habilita a duvidar da vocacao unitaria da

ciencia. Na verdade, cada limite gera por si so sistemas de coorde-

nadas heterogeneas irredutıveis, e impoe limiares de descontinuidade,

dependendo da proximidade ou distanciamento da variavel (por ex-

emplo o distanciamento das galaxias). A ciencia esta obcecada nao

por sua propria unidade, mas pelo plano de referencia constituıdo por

todos os limites ou fronteiras sob as quais a ciencia enfrenta o caos.

Sao estas fronteiras que dao ao plano suas referencias. No que diz re-

speito ao sistema de coordenadas, eles povoam ou guarnecem o proprio

Page 450: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 437

plano de referencia. [Deleuze e Guattari - Extraıdo de “Imposturas

Intlectuais, Alan Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]

III. Como podemos entender plenamete tal situacao senao com a

aparicao de um novo tipo de intervalo, O INTERVALO TIPO LUZ

(sinal nulo)? A inovacao relativista deste terceiro intervalo e real-

mente em si mesma um tipo de revelacao cultural nao-observada.

Se o intervalo de TEMPO (sinal positivo) e o intervalo de ESPACO

(sinal negativo) dispuseram a geografia e a historia do mundo atraves

da geometrizacao das areas agrarias (parcelamento) e das areas ur-

banas (o sistema cadastral), a organizacao dos calendarios e a me-

dida do tempo (os relogios)igualmente presidiram uma vasta regula-

mentacao cronopolıtica das sociedades humanas. O recentıssimo surg-

imento de um intervalo de terceiro tipo sinaliza, portanto, para nos um

brusco salto quantitativo, uma profunda mutacao no relacionamento

entre o homem e seu meio ambiente.

TEMPO (duracao) e ESPACO (extensao) sao inconcebıvei sem

LUZ (limite-velocidade), a constante cosmologica da VELOCIDADE

DA LUZ. . .

[Paul Virilio - maiusculas no original. Extraıdo de “Imposturas Intlectuais, Alan

Sokal e Jean Bricmont, Ed. Record (1999)]

Page 451: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

438

8.6 O Universo teve um Inıcio?

A Grande Explosao

Em 1923 o astronomo americano Edwin Hubble fazia medicoes da luz

emitida por galaxias distantes, e comparava com a luz emitida pelos

mesmos tipos de atomos em laboratorios na Terra. Ele verificou que o

comprimento de onda da luz emitida pelas galaxias era deslocado em

direcao ao vermelho. Desta observacao ele chegou a conclusao que as

galaxias estavam se afastando da Terra com uma velocidade igual a

v = Hd

onde d e a distancia da galaxia a Terra e H o chamado parametro de

Hubble, que vale:

H = 67km/s

Mpc

onde Mpc e uma unidade de distancia utilizada em astronomia chamada

megaparsec. Para entender esta unidade, precisamos entender primeiro

o que e o ano-luz. 1 ano-luz e a distancia percorrida pela luz em 1

ano. E facil calcular este valor em quilometros: como a velocidade da

luz e de aproximadamente 3 × 108 m/s, e 1 ano possui 3 × 107 s, 1

ano-luz equivale a uma distancia de 9 × 1015 ≈ 1016 metros, ou 1013

km (10 trilhoes de quilometros). Agora, 1 pc (1 parsec), e igual a

3,16 anos-luz; e finalmente 1 Mpc e igual a 1 milhao de parsec. Ou

seja: 1 Mpc = 3, 26 × 106 anos-luz, ou seja, cerca de 1019 km (10 mil

quatrilhoes de quilometros). A constante de Hubble nos diz que se

uma galaxia se encontra a uma distancia da Terra igual a 1 Mpc, ela

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 439

se afastara com uma velocidade de 67 km/s. Se a distancia for de

10 Mpc, a velocidade de afastamento sera de 670 km/s. Para efeitos

de comparacao, a velocidade orbital da Terra em torno do Sol e de

aproximadamente 29 km/s.

Esta foi uma das descobertas mais significativas do seculo XX, com

profundas implicacoes nao somente para a Fısica, mas para a Filosofia,

em particular para a Teologia3. A razao e simples: se as galaxias se

afastam umas das outras, e porque o Universo esta se expandindo. Con-

sequentemente em algum instante remoto do passado, toda a materia

do Universo deveria estar concentrada em um so ponto. Ou seja, o Uni-

verso foi criado em algum instante, estimado em cerca de 15 bilhoes

de anos atras. O quadro que se tem deste momento da criacao do

Universo tornou-se conhecido como a Grande Explosao (ou o “Big

Bang”). Ele nao deve contudo ser visto como uma explosao ordinaria,

porque o proprio espaco-tempo estava sendo criado neste momento.

Uma das questoes mais intrigantes e precisamente para onde se da tal

expansao. Algumas vezes comparamos a situacao com a de uma bola

sendo enchida, as galaxias sendo representadas como pontos sobre a

superfıcie da bola, que se afastam a medida que aumenta a sua area

superficial. A medida em que ocorre a expansao, o espaco-tempo vai

sendo criado.

Os elementos constituintes da materia foram sendo criados a me-

3A Fısica do seculo XX fez a festa dos filosofos e deve ter confundido a cabeca demuitos teologos. Primeiro acabou com o absolutismo do espaco e do tempo com arelatividade. Depois acabou com o determinismo classico com a mecanica quantica.Nos colocou como senhores absolutos de nossa propria existencia com a explosao daprimeira bomba atomica. Depois, com a radioastronomia descobriu que o Universonao era eterno, e que houve um “inıcio absoluto”. O que mais vira por aı?!

Page 453: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

440

dida em que o Universo se expandia e se resfriava. Nucleos atomicos

apareceram quando o Universo tinha apenas 3 minutos de idade. Nao

havia ainda eletrons em torno dos nucleos, ou seja, nao havia atomos.

De fato, os cosmologos sao capazes de calcular o numero de nucleos

que foram formados durante esses 3 primeiros minutos e comparar com

resultados experimentais. Essas comparacoes tem reforcado a teoria do

Big Bang. Atomos so foram formados a partir de 500 mil anos apos o

Big Bang.

Uma outra importante evidencia a favor da teoria do Big Bang foi

a observacao, em 1964, pelos radio-astronomos Arno Penzias e Robert

Wilson da chamada radiacao de fundo do Universo. Trabalhando com

aparelhos de deteccao de microondas, Penzias e Wilson detectaram on-

das eletromagneticas que chegam a Terra por todos os lados. Esta

radiacao foi interpretada como o calor que “sobrou” da energia libe-

rada apos o Big Bang. Ela corresponde a uma temperatura de ape-

nas 2,7 K (abaixo da temperatura de liquefacao do helio!). O estudo

dessa chamada radiacao de fundo pode ajudar a compreender como

o Universo surgiu, quando e como as galaxias se formaram, etc. Em

1992 o telescopio COBE (Cosmic Background Explorer), da agencia

espacial americana, NASA, detectou flutuacoes extremamente peque-

nas na radiacao de fundo: o telescopio media um temperatura de

2,7281 K quando apontado para uma determinada direcao, e 2,7280

K quando apontado para outra. Note a precisao da medida! Essa

diferenca de apenas 1 decimo de milesimo de graus Kelvin esta asso-

ciada a uma possıvel diferenca na densidade da materia do Universo

em seus primordios, e e fundamental para entendermos o surgimento

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CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 441

das galaxias. Estudar a radiacao de fundo, e portanto olhar para o

Universo como ele era ha bilhoes de anos atras!

8.7 O Universo tera um Fim?

O Grande Colapso

A ideia de que o Universo teve um inıcio sugere a pergunta obvia se

ele tera um fim. Em outras palavras, o Universo continuara se ex-

pandindo para sempre, ou em algum momento a expansao cessara e

o movimento reverso comecara a ocorrer? Se isso acontecer, toda a

materia do Universo sera novamente comprimida em um ponto. Os

fısicos se referem a essa situacao como o Grande Colapso. A resposta

para essa pergunta depende da massa total do Universo. Se esta for

grande o suficiente a reversao ocorrera e em algum ponto do futuro

o Universo colapsara. Por outro lado, se a massa nao for suficiente,

o Universo continuara se expandindo para sempre. No jargao da cos-

mologia um Universo que se expande para sempre e chamado de aberto,

e um que se expande e depois se contrai de fechado. Existe ainda uma

terceira categoria entre o aberto e o fechado, que e o Universo plano.

Um Universo plano tambem se expande para sempre. A massa do

Universo calculada da teoria do Big Bang corresponde a um Universo

plano, ou seja, nem fechado nem aberto. Acontece que a massa que e

observada atualmente pelos astronomos corresponde a apenas 10% da

massa total esperada. Os outros 90% que nao se veem sao chamadas

de materia escura do Universo (dark matter), uma especie de “sombra

com substancia”. Uma das questoes mais importantes da cosmologia

Page 455: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

442

na atualidade e saber do que e feita a materia escura, e existem varios

possıveis candidatos, com siglas estranhas: os WIMPs (Weakly Inter-

acting Massive Particles - partıculas massivas com fraca interacao); os

axions, partıculas com pequena massa produzidas durante a transicao

dos quarks para barions; e os MACHOS4, objetos massivos compactos

que incorporam anas-brancas, planetas e buracos negros.

Existe ainda um outro candidato bizarro a materia escura: as cor-

das cosmicas. Estas foram propostas em 1976 pelo fısico ingles Iom

Kibble, e seriam relıquias do Big-Bang. Tratam-se de tubos de energia

extremamente finos e longos, com diametro da ordem daquele de um

nucleo atomico, porem com comprimentos que se estendem por todo o

Universo. Cada centımetro desta corda pesaria milhoes de vezes mais

que o Monte Everest. Devido a sua incrıvel densidade e dimensoes as-

tronomicas, tais objetos agregariam em torno de si enorme quantidade

de materia sob a forma de aglomerados galacticos.

Por fim, os neutrinos sao os mais serios candidatos a materia escura,

ou pelo menos boa parte dela. Estes abundam no Universo, propagam-

se a velocidades altıssimas e interagem muito fracamente com a materia.

Seja la qual for a sua natureza, a quantidade de materia escura

no Universo e o que determinara em ultima instancia o seu destino:

se houver materia suficiente, a atracao gravitacional interrompera a

expansao causada pelo Big Bang, e o Universo iniciara seu longo retorno

ate o Grande Colapso.

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

4Por enquanto ainda nao descobriram partıculas chamadas FEMEAS.

Page 456: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 8 - RELATIVIDADE GERAL 443

1. Estamos Descobrindo Efeitos Antigravitacionais?, Jose Antonio de FreitasPacheco, vol. 3, no. 15, p 20.

2. Novas Teorias do Cosmo, Mario Novello, vol. 1, no. 3, p. 54.

3. A Teoria do Big Bang e o Deuterio do Meio Interestelar, Jose Antonio deFreitas Pacheco, vol. 2, no. 7, p. 22.

4. Nascimento, Vida e Morte das Estrelas, Augusto Damineli Neto, vol. 1, no.2, p. 10.

5. Formacao de Galaxias: uma Teoria em Crise, Ivano Damiao Soares, vol. 13,no. 75, p. 11.

6. Nebulosas Planetarias de nossa Galaxia, Walter Junqueira Maciel, vol. 30,no. 18, p. 11.

7. Galaxias em Grupos Compactos, Claudia Mendes de Oliveira, vol. 14, no.79, p. 8.

8. Qual a Origem das Galaxias?, Mario Novello e Hans Heintzmann, vol. 4, no.24, p. 16.

9. Gravitacao e Relatividade em Debate, Mario Novello, vol. 6, no. 31, p. 72.

10. Duplas Imagens de Lentes Gravitacionais, Ronaldo Santos Barbieri, vol. 6,no. 31, p. 18.

11. Manchas Estelares, Carlos Alberto P.C. Oliveira Torres, vol. 2, no. 9, p.42.

12. A Materia do Universo, Jose Antonio de Freitas Pacheco, vol. 13, no. 74,p. 8.

13. O Poder dos Buracos Negros, Jose P.S. Lemos, vol. 13, no. 74, p. 12.

14. Vento Solar e Ventos Estelares, Jose Antonio de Freitas Pacheco, vol. 1,no. 1, p. 54.

15. Supernova em NGC5128, Francisco Jablonski e Rodrigo Prates Campos,vol. 5, no. 26, p. 12.

16. A Genese do Big Bang, Antonio Augusto Passos Videira, vol. 25, no. 145,p. 36.

17. Ha uma Galaxia Gigante a Nossa Porta, Renee C. Kraan-Kortweg, vol. 20,no. 117, p. 44.

18. A Prova Cearence das Teorias de Einstein, Jean Eisenstardt e AntonioAugusto Passos Videira, vol. 20, no. 115, p. 24.

19. O Destino das Estrelas, Jose P.S. Lemos, vol. 17, no. 97, p. 42.

Page 457: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

444

Resumo - Capıtulo Oito

A Teoria da Relatividade Geral foi publicada por Einstein em 1916,dez anos apos a publicacao da Relatividade Restrita. Nesta teoria Eins-tein estende a descricao dos fenomenos fısicos para sistemas nao inerciais(ou seja, acelerados). O Princıpio de Equivalencia postula que e im-possıvel distinguirmos sistemas uniformemente acelerados de camposgravitacionais. As duas consequencias principais deste princıpio sao odesvio da luz por campos gravitacionais e o deslocamento da frequencia(e consequentemente mudanca da energia) de fotons em campos gravita-cionais. Ambas previsoes foram confirmadas experimentalmente inumerasvezes. Outro resultado importante da relatividade geral foi a explicacaoda precessao do perielio de Mercurio. Ao incluir campos gravitacionais,a relatividade geral tornou-se uma teoria de gravitacao, aperfeicoando agravitacao newtoniana que existia ha 300 anos. A relatividade geral de-screve o movimento de objetos, nao em termos da acao de forcas, comona mecanica classica, mas em termos de trajetorias descritas sobre a su-perfıcie do espaco-tempo. A geometria do espaco-tempo e determinadapela distribuicao de massas no Universo. Ou seja, o espaco e o temponao sao estruturas absolutas e estaticas como na teoria newtoniana, masobjetos fısicos em si, gerados pela materia do Universo. Acredita-se queo Universo teve inıcio com uma grande explosao que ocorreu ha cerca de15 bilhoes de anos atras. Esta explosao, conhecida como o ‘Big Bang’,gerou nao so a materia do Universo, mas tambem o espaco-tempo. Nosdias de hoje uma das principais evidencias de que tal explosao ocorreue a chamada ‘radiacao de fundo’ do Universo, o calor que restou do BigBang. O destino do Universo dependera da massa total que nele existe.Se esta for grande o suficiente, a atracao gravitacional acabara por freara expansao causada pelo Big Bang, e o Universo iniciara uma contracaoate o Grande Colapso. Caso contrario, ele se expandira para sempre.

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Chapter 9

O Sonho da Unificacao

Ha alguns anos atras, Stephen Hawking disse que talvez o fim da fısica

teorica estivesse proximo. Eu acho que ele estava se referindo aos re-

centes sucessos na tentativa de unificar a fısica dentro de um unico

sistema descritivo. Parece uma afirmativa bastante provocativa. O que

voce acha disso, tendo gasto uma vida tentando unificar certos aspectos

da fısica?

Eu gastei uma vida nisso, e por toda a vida vi pessoas acreditando

que a resposta estava logo ali na esquina. Mas nunca funcionou. Ed-

dington pensava que com a mecanica quantica tudo seria simples, e

fez suposicoes sobre tudo, porque pensava que tudo era simples, mas

pensou errado. Einstein pensava que tinha uma teoria unificada nas

maos, mas nao sabia nada sobre nucleos, e obviamente nao podia adi-

vinhar. Hoje existem varias coisas que ainda nao sao compreendidas,

e mesmo assim as pessoas acham que estao proximas da resposta. Mas

eu acho que nao. (Richard Feynman em Superstrings. A Theory of

Everything?, P.C.W. Davies e J. Brown, Cambridge 1995)

445

Page 459: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

446

9.1 As Quatro Damas da Criacao

O que uma bola rolando ladeira abaixo tem a ver com um aviao voando,

um giroscopio em movimento, ou a orbita da Terra em torno do Sol?

Simples: tratam-se de movimentos mecanicos e portanto podem ser

todos descritos a partir da mesma equacao

F = ma

Imagine se para cada um desses fenomenos existisse uma lei fısica

diferente! A segunda lei de Newton os unifica sob a mesma categoria.

Sendo assim, tudo que temos a fazer e escrever corretamente para cada

um deles a expressao de forca do lado esquerdo desta equacao e resolve-

la, para conhecermos tudo sobre o movimento.

Agora, o que um raio de luz tem a ver com a emissao de partıculas

beta por nucleos radiativos, ou com a atracao da Lua pela Terra? A

luz e um fenomeno eletromagnetico, partıculas beta sao emitidas por

nucleos pela acao da interacao fraca, e a Lua e atraıda pela Terra atraves

da acao da forca gravitacional. Aparentemente esses sao fenomenos

cujas origens fısicas sao completamente desconexas. Ou sera que eles

podem ser unificados em um nıvel mais fundamental?

Todos os fenomenos da Natureza sao provocados por apenas quatro

interacoes: a forte, a eletromagnetica, a fraca, e a gravitacional, assim

listadas em ordem de intensidade decrescente. Protons e neutrons den-

tro de nucleos sao mantidos juntos pela interacao forte. A interacao

fraca e a responsavel pelos processos de decaimento beta nos nucleos

atomicos. Uma maca que cai ou um planeta que se move respondem a

Page 460: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 447

acao da forca gravitacional. Uma onda eletromagnetica que se propaga,

como a luz ou ondas de radio, ou as reacoes quımicas que ocorrem den-

tro dos neuronios nos nossos cerebros sao devidas a interacoes eletro-

magneticas. E assim por diante. Um fato importante a ser lembrado

e que dessas quatro interacoes somente a gravitacional tem um carater

universal, ou seja, atua sobre toda a materia, independentemente da

carga, ou qualquer outra propriedade. A interacao eletromagnetica,

por exemplo, tem sua origem na carga eletrica, e portanto nao atua

sobre partıculas neutras, como por exemplo os neutrons.

Mas, porque a Natureza escolheu quatro, e nao cinco, ou tres, ou

dez, interacoes fundamentais? Ou ainda, porque nao somente uma?

Imagine se pudessemos descrever essas quatro interacoes como ori-

ginarias de uma unica entidade fısica; uma unica interacao ou forca

fundamental da qual todos os fenomenos da Natureza derivariam. E o

sonho da unificacao!

Os fısicos acreditam que de fato esta unificacao ja existiu durante

os primeiros instantes do Universo. Na medida em que este foi se ex-

pandindo e se resfriando apos o Big Bang, as interacoes fundamentais

foram se separando umas das outras. Como veremos abaixo a acao

entre corpos que interagem via uma ou mais dessas forcas se da atraves

de determinadas partıculas. Por exemplo, a interacao eletromagnetica

entre duas cargas ocorre via uma “troca” de fotons, que sao os “men-

sageiros” do campo eletromagnetico. O fato de que as quatro forcas

estiveram unificadas no inıcio do Universo estabelece uma interessante

conexao entre a Cosmologia e a Fısica de Partıculas, e nos leva a ques-

tionar se as condicoes do Universo apos o Big Bang poderiam ser repro-

Page 461: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

448

duzidas em aceleradores de partıculas na Terra! Falaremos mais sobre

isso na secao 9.4. A tabela abaixo, parcialmente compilada do interes-

sante livro de James Trefil, 1001 Things Everyone Should know

about Science(1001 Coisas Sobre Ciencia que Todos Deveriam Saber)

(Doubleday 1992), resume a evolucao do Universo em seus primeiros

10 bilhoes de anos. Mais a direita, entre parenteses, sao mostradas as

temperaturas do Universo em cada momento.

10−43 segundos - separacao da gravitacao das outras forcas (1032

oC)

10−36 segundos - interacao forte se separa (1029 oC)

10−10 segundos - interacoes fraca e eletromagnetica se separam (1016

oC)

10 microssegundos - partıculas sao formadas (1014 oC)

3 minutos - formacao de nucleos de atomos leves (1010 oC)

500 mil anos - atomos sao formados (105 oC)

100 milhoes de anos - quasares sao formados (104 oC)

10 bilhoes de anos - estrelas e galaxias sao formadas (102 oC)

Page 462: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 449

.

Nos primeiros instantes apos o Big Bang as quatro interacoes fundamentais da Na-tureza estavam fundidas em uma so. Na medida em que o Universo foi se resfriando,elas se separaram.

9.2 Newton:

Unificacao do Ceu com a Terra

Newton nasceu no ano em que Galileu morreu. Antes de Galileu nao

existia ciencia, na concepcao moderna do termo. Galileu pagou um

preco alto por ter desafiado o mito aristotelico, a “ciencia” oficial, im-

posta pela Inquisicao durante toda a Idade Media. Seus dois grandes

trabalhos foram o Dialogo sobre os dois Principais Sistemas do Mundo,

de 1632, e os Discursos sobre duas novas Ciencias de 1638. Foi Galileu

quem introduziu a ideia de modelo, onde a linguagem da fısica deve ser

a matematica e, que na medida do possıvel, os modelos teoricos devem

Page 463: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

450

ser testados em experimentos de laboratorio.

Newton por sua vez costumava dizer que se conseguira enxergar tao

longe e porque havia subido sobre ombros de gigantes como Galileu.

O metodo cientıfico iniciado por Galileu foi levado ao seu extremo por

Newton, e resultou no Philosophiae Naturalis Principia Mathematica,

onde a primeira grande unificacao da fısica e feita. De fato, a Gravitacao

Universal de Newton unifica a fısica do Ceu com a fısica da Terra.

Objetos celestes se movem de acordo com as mesmas leis que governam

a simples queda de uma maca na superfıcie da Terra.

A obra de Newton e dividida em tres livros, e e no Livro III onde ele

aplica as leis de movimento ao sistema solar, incluindo o movimento da

Lua, o problema das mares, o movimento dos planetas em torno do Sol,

etc. E neste livro onde Newton enuncia as suas Regras para o estudo da

Filosofia Natural, abaixo transcritas do livro de Pierre Lucie (Fısica

Basica. Mecanica 1, Campus 1979):

Regra 1 - Nao se devem admitir outras causas dos

fenomenos naturais alem das verdadeiras e suficientes para

explicar os fenomenos.

Regra 2 - Os efeitos de mesma natureza devem ser sem-

pre atribuıdos a mesma causa, no que possıvel for.

Regra 3 - As qualidades dos corpos, que sao suscetıveis

de acrescimo ou decrescimo e que pertencem a todos os cor-

pos com os quais e possıvel experimentar, devem ser con-

sideradas como pertencentes a todos os corpos em geral.

Page 464: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 451

Tivesse Newton enunciado essas regras com cem anos de antecedencia,

certamente teria virado torresmo em alguma fogueira!

A teoria da gravitacao de Newton, hoje com 300 anos, causa grande

admiracao. Ela teve tambem um profundo efeito sobre o proprio New-

ton. Tendo tido uma educacao religiosa, escreveu ao final da obra:

Essa ordenacao admiravel do Sol, dos planetas e dos

cometas so pode ser obra de um Ser todo-poderoso e in-

teligente. . .

Esse Ser infinito governa tudo, nao como a alma do

mundo, mas como Senhor de todas as coisas. . .A dominacao

de um Ser espiritual e obra de Deus. . . e fala-se que Ele se

alegra, se encoleriza, ama, odeia, deseja, constroi, fabrica,

aceita, da, porque tudo que se diz de Deus procede da com-

paracao com as coisas humanas. . .

E isso o que eu tinha a dizer de Deus e suas obras cons-

tituem o objeto da Filosofia Natural. . .

Nao consegui ainda deduzir dos fenomenos a razao das

propriedades da gravitacao e nao finjo hipoteses. Pois tudo

o que nao se deduz dos fenomenos e uma hipotese: e as

hipoteses, sejam elas metafısicas ou fısicas, ou mecanicas,

ou de qualidades ocultas, nao tem lugar na Filosofia Expe-

rimental. Nessa Filosofia, as proposicoes sao deduzidas dos

fenomenos e a seguir generalizadas por inducao. (Pierre

Lucie, Fısica Basica. Mecanica 1, Campus 1979)

Page 465: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

452

9.3 Maxwell:

Unificacao da Eletricidade com o Mag-

netismo

e com a Otica Fısica

A segunda grande unificacao da fısica ocorre com Maxwell, tendo como

principais predecessores o ingles Michael Faraday e o dinamarques Chris-

tian Oersted. Esses dois ultimos descobriram conexoes entre a eletri-

cidade e o magnetismo. O famoso experimento de Oersted e muito

simples, e pode ser realizado em casa com um pedaco de fio, pilhas

grandes e uma pequena bussola. Passando uma corrente eletrica pelo

fio, o ponteiro da bussola se move. Ou seja, a corrente eletrica gera no

espaco um campo magnetico.

O experimento de Faraday demonstra a mesma conexao, mas de

maneira oposta: um fio formando um circuito fechado atraves do qual

se faz mover um ıma, gera uma corrente eletrica. E a variacao temporal

do fluxo magnetico atraves do circuito que gera a corrente. Maxwell

formalizou essas descobertas em linguagem matematica, escrevendo um

conjunto de quatro equacoes, uma obra de arte conhecida na fısica por

equacoes de Maxwell. Nas equacoes de Maxwell, eletricidade e entao

unificada ao magnetismo. Mais espetacular ainda e o fato de que a

partir dessas equacoes deduz-se que campos eletromagneticos podem

se propagar como uma onda, sendo a sua velocidade constante e igual

a c, a velocidade da luz. Ou seja, a luz entra para a categoria dos

fenomenos eletromagneticos. A partir daı tudo passa a ser uma questao

de comprimento de onda! Otica e eletromagnetismo passam assim a ser

Page 466: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 453

regidos pelas mesmas leis.

Essas sao as duas grandes unificacoes da Fısica Classica. O advento

da mecanica quantica levou a descoberta de uma enormidade de novos

fenomenos e a uma compreensao muito mais profunda sobre os proces-

sos de interacao entre partıculas na Natureza. A mecanica quantica

abriu caminho para novas unificacoes.

9.4 Partıculas Elementares:

A Ducha Cosmica

A descoberta da estrutura atomica com seus protons, neutrons e eletrons,

com o fenomeno da radioatividade, deixaram claro duas coisas: (1) o

atomo nao e indivisıvel, e (2) o atomo nao e o constituinte elementar da

materia. Este segundo ponto e particularmente importante, e tem sido

debatido por cientistas desde os tempos de Democrito: afinal, do que

e feita a materia? Protons e neutrons possuem estrutura interna, ou

seja, sao construıdos de objetos mais simples. E esses objetos, sao por

sua vez simples ou tambem possuem alguma estrutura interna? Existe

uma partıcula fundamental da qual toda a materia deriva?

A descoberta da radioatividade na virada do seculo XX atraiu a

atencao de muitos cientistas. Ao final da primeira decada, partıculas

emitidas por nucleos radiativos podiam ser detectadas com facilidade.

Um fato estranho que logo atraiu a atencao dos fısicos da epoca era que

os aparelhos de deteccao registravam a presenca de partıculas mesmo

quando nao havia fontes radioativas por perto! De onde estariam vindo

essas partıculas? Experimentos mostraram que em qualquer lugar elas

Page 467: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

454

estavam presentes, mesmo quando os detectores eram blindados!

Em 1910 um fısico (e tambem padre jesuıta) chamado Theodor Wulf

descobriu algo notavel. Ele mediu esta radiacao misteriosa do alto da

torre Eiffel em Paris e verificou que havia mais radiacao do que era es-

perado. O padre-cientista entao imaginou que o unico lugar de onde a

misteriosa radiacao poderia estar vindo era do espaco. Ou seja, a origem

da radiacao misteriosa era extraterrestre! Assim foram descobertos os

hoje chamados raios cosmicos. Wulf entao sugeriu que o experimento

poderia ser realizado de dentro de baloes, que a grandes altitudes dev-

eriam registrar radiacao ainda mais intensa.

Wulf nao foi corajoso o suficiente para subir em baloes ele mesmo,

mas entre 1911 e 1912 o austrıaco Victor Hess fez varias medicoes a

altitudes de ate 5 mil metros. O padre estava certo! Acima de 1000

metros a radiacao cosmica se torna muito intensa, e a 5 mil metros

ela e cerca de 5 vezes maior do que ao nıvel do mar. Hess concluiu

que a Terra e constantemente bombardeada por partıculas que vem do

espaco, e que sao fortemente atenuadas pela atmosfera terrestre. Con-

tudo, ninguem ainda conhecia a natureza dessa radiacao. No inıcio

pensou-se que os raios cosmicos eram partıculas gama de alta energia.

Robert Millikan, do California Institute of Technology (Instituto Tec-

nologico da California), Caltech, sugeriu que a suposta radiacao gama

era originaria das reacoes de fusao que ocorrem nas estrelas.

Page 468: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 455

.

A Terra e permanentemente bombardeada por “partıculas extraterrestres” alta-mente energeticas. Ao penetrarem na atmosfera, essas partıculas decaem em outrasgerando uma verdadeira ducha: sao os raios cosmicos.

Em 1923 um passo decisivo foi dado por Dmitry Skobeltzyn traba-

lhando em Leningrado. Ele resolveu colocar seu detector de partıculas

entre os polos de um ıma para se livrar dos eletrons que eram pro-

duzidos quando os supostos gamas atingiam as paredes do detector.

Lembre do capıtulo um que um campo magnetico desvia a trajetoria

de partıculas carregadas como o eletron. Quando atingiam o detector,

os supostos raios gama arrancavam eletrons das suas paredes inter-

nas, que acabavam por mascarar a observacao das partıculas extrater-

restres. Aplicando entao um campo magnetico, Skobeltzyn pensou que

se livraria assim dos indesejaveis eletrons. O detector utilizado era uma

camara de Wilson (veja Painel XVII), onde a presenca da partıcula e

acusada por um rastro deixado ao longo de sua trajetoria. Alem das tra-

Page 469: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

456

jetorias dos eletrons de que Skobeltzyn queria se livrar, havia alguns

tracos quase retos indicando a presenca de partıculas altamente en-

ergeticas. Contudo, Skobeltzyn continuou ainda achando que se tratava

de eletrons arrancados das paredes do detector pelos raios cosmicos.

Page 470: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 457

XVII

A CAMARA DE WILSON

O princıpio de funcionamento da camara de Wilson e semelhante ao efeito que leva

os avioes que voam muito alto deixarem um rastro no ceu. Aqueles rastros aparecem

devido a condensacao de vapores de agua em torno da turbina do aviao, deixando

assim um desenho da sua trajetoria no ceu. A invencao de Wilson foi utilizada nos

primeiros experimentos de deteccao de partıculas subatomicas.

Charles Wilson era um jovem fısico que estudava fenomenos atmosfericos em

um observatorio meteorologico em 1894. A fim de reproduzir certos efeitos em

laboratorio, ele decidiu construir uma camara que pudesse encher com vapor de

agua. A camara continha um pistao com o qual ele controlava a pressao dentro dela.

Ao expandir subitamente o volume do recipiente, o gas se resfriava produzindo uma

nevoa dentro da camara. Durante esses experimentos Wilson notou a formacao

de tracos no vapor de agua. Ele sabia que os tracos estavam se formando em

torno de “alguma coisa”, que ele concluiu se tratar de partıculas carregadas que

atravessavam a camara. Posteriormente ele repetiu os experimentos atravessando

partıculas alfa e beta pelo aparelho, confirmando as suas previsoes. Era a primeira

vez que partıculas subatomicas se tornavam “visıveis”. Os experimentos foram

realizados no Laboratorio Cavendish, em Cambridge, na Inglaterra. Pelo seu invento

Wilson recebeu o Premio Nobel de Fısica de 1927.

Page 471: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

458

Em 1930 Carl Anderson, aluno de Millikan no Caltech, teve uma

ideia: colocou uma folha de chumbo atravessada na camara a fim

de frear essas partıculas de alta velocidade. Com isso ele esperava

que as partıculas emergindo do outro lado da folha tivessem uma ve-

locidade menor, e poderiam assim ser melhor defletidas pelo campo

magnetico. O resultado foi outro momento magico da historia da fısica.

As partıculas foram defletidas em uma direcao contraria a dos eletrons,

ou seja, elas eram na verdade carregadas positivamente1. Mas havia

algo bizarro: o raio da trajetoria revelava uma partıcula com a mesma

massa que a dos eletrons. Ou seja, tratava-se de uma especie de “eletron

positivo”. Era a primeira observacao do positron. Estava assim fundada

a Fısica de Partıculas.

O positron e uma das partıculas que formam a chamada antimateria.

Este nao e, convenhamos, um nome muito feliz, porque sugere que an-

timateria seja algo contrario a materia. Uma partıcula de antimateria

e identica a uma de materia, sendo a unica diferenca entre elas a carga

eletrica. Cada partıcula de materia possui sua contrapartida de an-

timateria. A existencia do positron havia sido prevista teoricamente

em 1927 pelo fısico britanico Paul M. Dirac, o homem que inventou a

mecanica quantica relativıstica. Portanto, o resultado de Anderson foi

outro grande triunfo das fısicas teorica e experimental!

A fısica de partıculas se desenvolveu enormemente, e grande parte

da historia da fısica neste seculo, e de fato a historia da fısica de

partıculas. Centenas de partıculas foram descobertas. Uma delas tem

1Lembre do Cap. 1 que para direcoes fixas dos vetores v e B, a direcao da forcade Lorentz e determinada pelo sinal da carga: F = qv ×B.

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 459

um significado especial para nos brasileiros, o pıon, que esta associado

ao nome de Cesar Lattes, fısico brasileiro, um dos fundadores do Centro

Brasileiro de Pesquisas Fısicas (CBPF).

Page 473: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

460

PAINEL XVIII

VIDA E OBRA DE CESAR LATTES2

Cesare Mansueto Giulio Lattes, ou simplesmente Cesar Lattes, e curitibano nascido

a 11 de julho de 1924. Sua carreira cientıfica teve enormes repercussoes para o

desenvolvimento da fısica no Brasil. Seu trabalho mais importante foi feito com

Giuseppe Occhialini e Cecil Powell durante a decada de 40 sobre partıculas e-

lementares. Primeiramente eles expunham chapas fotograficas altamente sensıveis

a 2.800 metros de altitude nos montes Pirineus. A ideia era de que partıculas da

radiacao cosmica penetrassem nas chapas, e a partir dos tracos deixados pudessem

ser identificadas. Posteriormente Lattes expos chapas fotograficas a 5.600 metros

de altitude no Monte Chacaltaya, na Bolıvia, e a partir da sua analise confirmou

a existencia do meson-π. A participacao de Lattes tambem foi decisiva para o

sucesso dos primeiros experimentos que produziram essas partıculas no laboratorio

Lawrence Berkeley, na California, marcando o inıcio da fısica de aceleradores.

A repercussao internacional do trabalho de Lattes resultou no Brasil na criacao

do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas (CBPF), hoje um dos institutos de pesquisa

do Ministerio da Ciencia e Tecnologia, localizado no Rio de Janeiro. Durante mea-

dos dos anos 50, trabalhando nos Estados Unidos, Lattes foi convidado a substituir

Enrico Fermi na chefia do Instituto de Fısica da Universidade de Chicago, tendo

contudo recusado o posto. Criou na Universidade de Sao Paulo (USP) um labo-

ratorio para o estudo da radiacao cosmica, e participou da criacao da Universidade

de Campinas. Deu varias outras contribuicoes importantes para a fısica, e recebeu

varios premios e honrarias.

2Veja o livro Cesar Lattes, a descoberta do meson π e outras historias, Eds. F.Caruso, A. Marques e A. Troper, CBPF (1999).

Page 474: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 461

Mas, o que isso tudo tem a ver com a unificacao das quatro in-

teracoes fundamentais? Calma, o Brasil (ainda) e nosso! Nos vamos

chegar la!

Partıculas sao classificadas de acordo com seus atributos fısicos,

como a carga e a massa. Nos ja vimos um tipo de classificacao se-

gundo o spin, no capıtulo tres. Partıculas com spin semi-inteiro sao

fermions, e aquelas com spin inteiro sao bosons. De acordo com a massa,

as partıculas sao divididas em leptons - as mais leves, como eletrons,

positrons e neutrinos; os mesons - de massa intermediaria, como o pıon,

e os hadrons - partıculas pesadas, como protons e o neutrons3.

Os leptons sao considerados partıculas elementares, ou seja, que nao

possuem estrutura interna. Ao contrario, os mesons e hadrons nao sao

elementares, mas sim formados a partir de partıculas ainda menores

chamadas de quarks. Quarks possuem spin 1/2, e portanto tambem

sao fermions. Cada quark possui um antiquark associado. Hadrons sao

formados por combinacoes de quarks, de duas maneiras possıveis: na

primeira 3 quarks se combinam, de modo que o spin total da partıcula

formada sera 1/2 ou 3/2. S = 1/2 significa que dois dos tres quarks

possuem spins antiparalelos, e S = 3/2 significa que os tres spins sao

paralelos. Qualquer que seja a combinacao, a uniao de 3 quarks resulta

sempre em um fermion. A segunda opcao e a combinacao de um quark

com um antiquark, e neste caso o resultado e um boson, com S = 1

(spins paralelos) ou S = 0 (spins antiparalelos). Quanto a sua massa,

a partıcula formada neste caso e um meson.

3Uma tendencia mais atual e classificar os leptons como aquelas partıculas quenao sentem a interacao forte.

Page 475: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

462

Resumindo: partıculas sao classificadas de acordo com sua massa

em leptons, mesons e hadrons. Leptons sao partıculas elementares,

ou seja, nao possuem estrutura interna. Mesons sao formados por um

quark e um antiquark, e portanto sao bosons. Hadrons sao formados

por tres quarks, e portanto sao fermions.

Mesons sao formados por um quark e um antiquark, e portanto sao bosons. Hadronssao formados por tres quarks e portanto sao fermions.

Existe outra coisa importante a ser dita acerca dos quarks. Con-

sidere um hadron como o proton. Ele possui spin 1/2 e carga +e. O

spin do proton, de acordo com o que foi dito acima, deriva da com-

binacao dos spins de dois quarks que se alinham antiparalelamente e

se anulam, restando apenas o spin de 1 quark. Mas, e com relacao a

carga do proton, como explica-la em termos da carga dos quarks? E

um fato que e e a carga elementar, ou seja, a unidade fundamental de

carga. Para 3 quarks se combinarem e dar origem a um proton com

carga igual a e, a carga de cada um deles deveria ser e/3, ou seja, uma

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 463

fracao da carga elementar. Acontece que, ate hoje, nunca uma partıcula

foi observada com tal valor de carga, caso contrario a carga elementar

nao seria elementar! A maneira de contornar o problema e dizer que

os quarks nunca podem ser observados separadamente. Ou seja, eles

estao sempre “grudados” uns nos outros formando mesons e hadrons.

Nos referimos a esta situacao como o confinamento dos quarks. Quarks

so existem confinados, e nao podem ser observados isoladamente.

Chegamos portanto a uma conclusao importante: como os quarks

sao fermions, e os leptons tambem, os “blocos fundamentais” da materia

sao os fermions. Assim, nao existe uma unica partıcula da qual toda

a materia deriva, mas uma “categoria”, os fermions, que forma toda a

materia4.

Vamos agora examinar um importante boson fundamental: o quan-

tum da radiacao eletromagnetica, o foton. Ele possui spin 1 e carga

zero. Quando dizemos por exemplo que cargas eletricas se repelem de

acordo com a lei de Coulomb, nada esta sendo afirmado a respeito do

mecanismo de repulsao (ou atracao). O mesmo ocorre com os planetas:

o Sol atrai a Terra de acordo com a lei da gravitacao de Newton. Mas

qual o mecanismo? As expressoes matematicas

F = GmM

r2ou F =

1

4πε0

qQ

r2

simplesmente descrevem a dependencia funcional da forca com as mas-

sas (ou cargas) e a distancia entre os objetos interagentes. Elas nos4Aqui uma observacao importante: de acordo com a sua massa, quarks deveriam

ser classificados como leptons. Mas, se classificarmos os leptons como partıculasque nao sentem a interacao forte, quarks nao podem ser classificados como tal.A partıcula “mensageira” da interacao forte e o gluon. Quarks ligam-se entre sitrocando gluons.

Page 477: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

464

dizem de quanto a forca varia quando as massas, cargas, ou distancias

variam. Nada afirmam sobre como a interacao se propaga de um objeto

ao outro.

Aqui entram os bosons. Segundo a mecanica quantica dos campos

eletromagneticos, uma carga eletrica interage com outra carga eletrica,

a atraindo ou repelindo, via troca de fotons. Ou seja, o foton e uma

especie de mensageiro da interacao eletromagnetica. Veja como essa

ideia e interessante, e possui um aspecto unificador poderoso: uma

partıcula carregada interage com outra partıcula carregada, trocando

partıculas de campo. Nao so a materia e feita de partıculas funda-

mentais, mas tambem as interacoes entre objetos materiais! Nesta

perspectiva, tudo o que existe sao partıcula: fermions interagindo com

fermions atraves de bosons formam tudo o que existe! No capıtulo seis

vimos algo semelhante na materia condensada, onde as interacoes en-

tre atomos, eletrons e spins se da atraves de fonons, magnons, etc, que

tambem sao partıculas de interacao dentro da materia.

As outras interacoes fundamentais tambem possuem suas partıculas

associadas. No caso do campo gravitacional a partıcula e o graviton,

no caso da interacao forte sao os gluons os mensageiros de campo, e no

caso da interacao fraca existem 3 partıculas mensageiras, chamadas de

W+, W− e Z0.

9.5 Unificacao Eletrofraca

A interacao eletrofraca unifica as interacoes eletromagnetica e fraca.

A chamada teoria eletrofraca foi alcancada por Sheldon Lee Glashow,

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 465

Abdus Salam e Steven Weinberg, que foram agraciados com o Nobel

de 1979. No Brasil, o nome de Jose Leite Lopes, um dos fundadores

do CBPF, esta associado a propostas que foram importantes para o

desenvolvimento da teoria eletrofraca.

Um exemplo de processo envolvendo o boson W− e o decaimento

beta de um neutron em um proton. A teoria eletrofraca de Glashow-

Weinberg-Salam postula que a altas energias as interacoes eletromagnetica

e fraca sao equivalentes; partes de uma mesma teoria. Nesta situacao

as partıculas mensageiras da interacao seriam partıculas sem massa.

A baixas energias, contudo, como por exemplo no processo de decai-

mento de um neutron em um proton, esta equivalencia entre as in-

teracoes eletromagnetica e fraca deixa de existir (dizemos que ha uma

quebra de simetria), e as partıculas mensageiras, que a altas energias

nao possuem massa, tornam-se os bosons W± e Z0.

Page 479: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

466

PAINEL XIX

VIDA E OBRA DE JOSE LEITE LOPES

Jose Leite Lopes, com Cesar Lattes, e um dos nomes mais importantes da

ciencia do Brasil no seculo XX. Nascido no Recife no dia 28 de outubro de 1918,

ingressou no Curso de Fısica da Faculdade Nacional de Filosofia, do Rio de Janeiro

em 1940. Em 1944 seguiu para os Estados Unidos para fazer o doutoramento

na prestigiada Universidade de Princeton, onde trabalhavam na epoca Wofgang

Pauli e Albert Einstein, tendo recebido o tıtulo de Ph.D em 1946. Em 1949, com

Lattes, fundou o Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas, para logo depois retornar

a Princeton como pesquisador, a convite de J.R. Oppenheimer. Em 1958 realizou

importante trabalho sobre a natureza da interacao fraca, onde varios resultados

foram confirmados posteriormente na teoria de Glashow, Weinberg e Salam. Foi

professor da Universidade de Orsay, na Franca, entre 1964 e 1967, e depois diretor

do Instituto de Fısica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Retornou a

Franca em 1970 a convite da Universidade de Estrasburgo, onde permaneceu ate

1985. Atualmente e Pesquisador Titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.

Page 480: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 467

A teoria eletrofraca faz diversas previsoes, entre as quais os valores

das massas dos bosons W± e Z0. Em fısica de partıculas e costume

expressar as massas das partıculas nao em unidade de massa (kg), mas

em unidade de energia (eV). Para isso basta multiplicar a massa da

partıcula por c2, o quadrado da velocidade da luz. Nesta unidade, a teo-

ria eletrofraca preve os seguintes valores para as massas das partıculas

da interacao:

mW c2 = 82 GeV

mZc2 = 93 Gev

onde ‘GeV’ significa gigaeletronvolts, o equivalente a bilhoes de eletron-

volts. A vantagem de se expressar a massa de uma partıcula em

unidades de energia reside no fato de que o valor obtido nos da direta-

mente uma ideia da energia necessaria para produzı-la em laboratorio.

Em termos de unidades de massa, as partıculas acima sao aproximada-

mente 100 vezes mais pesadas que o proton! Veja que coisa estranha: o

decaimento de um neutron em um proton envolve uma partıcula men-

sageira que e 100 vezes mais pesada que o proprio neutron! E a equi-

valencia entre massa e energia descoberta por Einstein que da origem

a esse tipo de coisa.

As primeiras evidencias da existencia das partıculas W± e Z0 apare-

ceram em 1983 em experimentos realizados no CERN por um time de

cientistas liderados pelo fısico italiano Carlo Rubbia. As partıculas nao

sao detectadas diretamente, mas atraves dos seus produtos de decai-

mento mostradas a seguir:

W± → e± + ν

Page 481: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

468

Z0 → e+ + e−

Dos resultados experimentais eles obtiveram os seguintes valores de

massa para os bosons da interacao eletrofraca:

mW c2 = 80, 8 ± 2, 7 GeV

mZc2 = 92, 9 ± 1, 6 Gev

Bingo! Os resultados experimentais estao de pleno acordo com as pre-

visoes da teoria eletrofraca de Glashow-Weinberg-Salam. Resultado:

unificacao das interacoes fraca e eletromagnetica confirmada, e Carlo

Rubbia embolsando o Estocolmo de 1984.

9.6 E Possıvel Recriar o Universo em um

Laboratorio?

Partıculas elementares podem ser criadas em maquinas chamadas acel-

eradores de partıculas. Um acelerador possui algumas semelhancas com

um simples tubo de televisao, onde eletrons sao emitidos de um fila-

mento e acelerados por uma tensao eletrica atraves do tubo ate atin-

gir a tela do aparelho. Em um acelerador, partıculas altamente en-

ergeticas sao lancadas contra alvos. A ideia e que ao colidir com o alvo,

a partıcula literalmente se despedaca, e sua estrutura interna e reve-

lada. Desse modo teorias sobre partıculas elementares e suas interacoes

podem ser testadas. Por exemplo, no experimento de Carlo Rubbia um

feixe de protons foi acelerado a uma energia de 270 GeV e feito colidir

com um feixe de antiprotons (a antipartıcula do proton), tambem a

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 469

270 GeV. Com essa energia o proton e o antiproton se despedacaram

deixando “escapar” os bosons W± e Z0 previstos pela teoria eletrofraca.

A fısica de partıculas estuda os produtos de colisoes entre partıculas altamenteenergeticas, e a partir deles tenta descobrir a estrutura interna das partıculas quecolidiram.

O projeto de um acelerador depende do uso a que ele se destina.

Eles sao classificados, de acordo com sua energia, em aceleradores de

baixa, media ou alta energia. Os de baixa energia produzem feixes de

partıculas entre 10 e 100 MeV e sao em geral utilizados em estudos

de reacoes nucleares ou espalhamento. Aceleradores de media energia

operam na faixa de 100 a 1000 MeV (1000 MeV = 1 GeV). Colisoes

de protons e neutrons com energias dessa ordem sao capazes de liberar

mesons π, a partıcula associada a interacao forte nos nucleos. Tais

aceleradores sao em geral usados no estudo da natureza desta interacao.

Aceleradores de alta energia, por sua vez, operam acima de 1 GeV e

produzem partıculas elementares. E mais ou menos como quebrar um

Page 483: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

470

daqueles relogios suıcos, cheios de pecinhas e engrenagens delicadas.

Se dermos uma pancada fraquinha, quebraremos somente o mostrador.

Com uma pancada mais forte, alem do mostrador quebraremos tambem

os ponteiros. Mas se batermos com muita forca, o relogio se despedaca.

Catamos entao as delicadas pecinhas espalhadas pelo chao, e tentamos

adivinhar como elas estavam montadas e funcionando no relogio antes

da pancada ser dada!

Partıculas carregadas sao aceleradas quando atravessam diferencas

de potencial eletrico. O primeiro acelerador eletrostatico foi construıdo

em 1932 por Cockcroft e Walton; ele gerava potenciais da ordem de

800 kV. Com este acelerador foi produzida a primeira reacao de desin-

tegracao nuclear mostrada abaixo:

p +7 Li →4 He +4 He

Os primeiros aceleradores eletrostaticos evoluiram para os chama-

dos geradores de Van de Graaff, onde um eletrodo e continuamente

carregado ate produzir tensoes eletricas de milhoes de volts. Essa tec-

nologia tem produzido aceleradores que operam acima de 20 milhoes

de volts, e feixes de ıons com energias na faixa de dezenas a centenas

de MeV.

Em aceleradores eletrostaticos as partıculas sao aceleradas em um

unico estagio. Os chamados aceleradores cıclotron apresentam uma al-

ternativa. A partıcula carregada e acelerada em um anel circular, e a

cada volta recebe um acrescimo de energia cinetica atraves de um pe-

queno aumento de uma diferenca de potencial eletrostatico, desse modo

alcancando energias da ordem de MeV. Em um acelerador deste tipo a

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 471

partıcula orbita dentro de uma especie de camara circular dividida em

duas metades. Um campo magnetico e aplicado perpendicularmente ao

plano da camara de modo a curvar a trajetoria da partıcula. Uma volt-

agem eletrica e aplicada no hiato que separa as duas metades, de modo

que a cada volta da partıcula ela recebe um aumento de energia cinetica.

Para que o mecanismo funcione, e necessario que a tensao eletrica seja

aplicada em exato sincronismo com o movimento da partıcula. Este

ganho de energia ocasiona um aumento do raio da orbita da partıcula,

cujo valor maximo dependera das caracterısticas da maquina. Na orbita

de raio maximo, a energia cinetica da partıcula sera dada por:

T =q2B2R2

2m

onde q e a carga da partıcula, B o valor do campo magnetico, R o

raio da orbita maxima, e m e a massa da partıcula. Esta formula

mostra que para aumentarmos a energia da partıcula temos que au-

mentar o raio de sua orbita, e consequentemente as dimensoes do acel-

erador. Obviamente aumentar as dimensoes do acelerador significa au-

mentar o tamanho do magneto utilizado para mante-la. Atualmente

cıclotrons podem acelerar partıculas a energias da ordem de 500 MeV.

Uma maquina de 1 GeV teria um custo absurdo, principalmente devido

a construcao do magneto. Alternativas tiveram que ser encontradas.

Page 485: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

472

.

Nos aceleradores cıclotrons, partıculas carregadas sao aceleradas em trajetorias cir-culares antes de colidirem. O raio da orbita aumenta com a energia da partıcula.

Os chamados sıncrotrons vieram solucionar (parcialmente) o pro-

blema. Ao contrario dos cıclotrons, as partıculas nos sıncrotrons pos-

suem uma trajetoria com raio fixo. Ao inves de um unico magneto,

um acelerador sıncrotron utiliza varios magnetos que desviam a orbita

da partıcula em secoes. A energia da partıcula e, como no caso dos

cıclotrons, aumentada a cada volta atraves da aplicacao de um campo

eletrico em um hiato, em sincronia com o movimento.

Partıculas sao injetadas no anel de um acelerador sıncrotron atraves

de um acelerador linear. As primeiras maquinas apareceram no inıcio

dos anos 50 e podiam gerar feixes de partıculas com varias centenas de

MeV. Os dois principais aceleradores deste tipo atualmente no mundo

estao no CERN, que e um laboratorio conjunto de varios paıses eu-

ropeus, localizado em Genebra, Suıca, e no FERMILAB (Fermi Na-

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 473

tional Accelerator Laboratory) em Chicago, nos Estados Unidos. O

acelerador do CERN e chamado de SPS (Super Proton Synchrotron).

Ele acelera protons a energias de 400 GeV. Partıculas sao injetadas no

anel do acelerador com uma energia de 26 GeV. O diametro do anel e de

2,2 km, e atravessa a fronteira entre a Suıca e a Franca. Foi no CERN

que a teoria da interacao eletrofraca foi confirmada experimentalmente.

Nos sıncrotrons o raio da trajetoria da partıcula acelerada e fixo. O anel de umsıncrotron e seccionado em varios campos magneticos que mantem as partıculas emsuas trajetorias.

O acelerador do FERMILAB possui um diametro de 2 km, e pode

acelerar partıculas a estonteantes energias de 1000 GeV, ou 1 TeV (=

teraeletronvolts = trilhao de eletronvolts). Ele e conhecido como um

tevatron. Nao so a energia do acelerador e exuberante, mas todos os

numeros ligados a atividade cientıfica que ali se desenrola: sao mais de

2000 empregados, cerca de 1000 fısicos de mais de 200 paıses e, quando

em completa operacao, consome cerca de 60 megawatts de eletricidade,

Page 487: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

474

o suficiente para alimentar uma cidade com 175 000 habitantes. O

acelerador opera abaixo do chao. Acima dele existe uma rodovia para

facilitar o deslocamento de um lado ao outro do anel. Cerca de 1013

protons por minuto circulam dentro de tubos de aco inox com diametro

de cerca de apenas 10 cm. Nada menos que 2000 magnetos sao utiliza-

dos na operacao do feixe.

Espera-se que entre em funcionamento no CERN uma nova geracao

de aceleradores ate 2005: o LHC (Large Hadron Collider), e o NLC

(New Lepton Collider). O primeiro sera utilizado em experimentos

de colisao do tipo proton-antiproton, e o segundo em experimentos do

tipo eletron-positron. Essas maquinas operarao com energias na faixa

de TeV e varias previsoes teoricas poderao ser verificadas, como por

exemplo, a existencia de um verdadeiro zoologico de novas partıculas

com massas entre 400 GeV e 1 TeV: o selectron, o squarks, o fotino

(fermion massivo e neutro, parceiro do foton), o Z-ino, o W±-ino e o

gluıno. Santo Deus!

Nessas maquinas, partıculas serao aceleradas e feitas colidir umas

contra as outras. Devido as altas energias alcancadas, espera-se nesses

experimentos produzir, em uma regiao ınfima do espaco, a situacao

do Universo no momento da sua criacao. Em outras palavras, estes

experimentos visam “recriar” o Universo em um laboratorio de fısica,

e revelar a estrutura das interacoes fundamentais tais como elas eram

ha 15 bilhoes de anos atras!

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 475

PAINEL XX

O LABORATORIO NACIONAL DE LUZ SINCROTRON

O Brasil tambem possui um acelerador sıncrotron, que e utilizado na pesquisa

em Materia Condensada, e nao em Fısica de Partıculas. O LNLS (Laboratorio

Nacional de Luz Sıncrotron) localiza-se em Campinas, no estado de Sao Paulo, e

as primeiras discussoes a respeito do projeto de sua construcao foram realizadas no

Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.

O acelerador e um anel armazenador de eletrons. Quando acelerados em orbitas

circulares, eletrons emitem um tipo de radiacao chamada de luz sıncrotron. Esta

radiacao e utilizada para a investigacao das propriedades fısicas de diferentes tipos

de materiais, a nıvel atomico e molecular. Exemplos de aplicacoes sao estudos

de processos de corrosao e fadiga em estruturas metalicas, estudo de propriedades

magneticas de novos materiais, estudo de catalisadores para a industria petroquımica,

estudo das propriedades de polımeros, semicondutores, etc.

O LNLS e o unico laboratorio deste tipo no Hemisferio Sul. Ele foi inteiramente

projetado, desenvolvido e e operado por cientistas, engenheiros e tecnicos brasileiros.

Page 489: Fisica moderna para iniciados, interessados e aficionados

476

9.7 Gravitacao: outra Pedra no Caminho!

Os fısicos acreditam que a interacao gravitacional se separou das outras

forcas quando o Universo tinha apenas 10−43 segundos de idade. Nao e

difıcil perceber que as energias envolvidas a esta altura da vida do Uni-

verso estao completamente alem da capacidade de qualquer acelerador

de partıculas que possa ser construıdo na Terra! Estima-se em 1019 GeV

a energia necessaria para tornar visıvel a unificacao da gravitacao com

as outras forcas (lembre que o mais potente acelerador no momento e

o do FERMILAB com seus “meros” 103 GeV).

Mas a gravitacao possui outros problemas fundamentais que estao

deixando os fısicos “carecas”. Por um lado, em uma escala cosmologica,

existe a teoria de Einstein da relatividade geral. A despeito de sua

elegancia e consistencia interna, esta teoria esta necessariamente incom-

pleta. A razao e que ela nada diz sobre efeitos quanticos5. A tentativa

de conciliacao entre a mecanica quantica e a relatividade geral tem sido

o “ganha-pao” de muita gente inteligente pelo mundo afora, mas ate

agora sem sucesso. As primeiras tentativas apareceram de fato poucos

anos apos a publicacao da relatividade geral por Einstein em 1916. Um

matematico alemao chamado Theodor Kaluza reformulou a teoria de

Einstein em 5 dimensoes (4 espaciais e 1 temporal) ao inves de 4 (3

espaciais e 1 temporal), e como resultado obteve nao so as equacoes

de Einstein da gravitacao, mas tambem as de Maxwell do eletromag-

netismo! O problema da teoria de Kaluza e que ela vai de encontro a

propria relatividade, que afirma que vivemos em um mundo quadridi-

5Talvez porque Einstein fosse um forte opositor a teoria quantica!

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 477

mensional e nao pentadimensional! Em 1926 o fısico sueco Oscar Klein

veio com uma saıda no mınimo estranha, mas muito criativa. Ele disse

que nos nao percebemos a suposta “quinta dimensao” postulada na teo-

ria de Kaluza simplesmente porque ela esta dobrada (ou compactada)

sob a forma de um tubo com o diametro incrivelmente pequeno, de

10−32 metros! A teoria de Kaluza-Klein foi na epoca considerada uma

mera curiosidade matematica.

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478

PAINEL XXI

O MODELO PADRAO

O modelo teorico que descreve as famılias de partıculas elementares existentes

e suas interacoes e conhecido entre os fısicos como o Modelo Padrao. As partıculas

de materia sao os leptons e os quarks. Existem ao todo seis leptons. Alem do

ja conhecido eletron, os outros leptons sao: o muon, o tau, e tres neutrinos. Os

quarks tambem aparecem em numero de seis, e possuem nomes esquisitos: o up,

o down, que formam protons e neutrons, e os outros: o strange, o charm, o botton

e o top. Ate 1995, cinco dos seis quarks haviam sido detectados em experimentos

com aceleradores, exceto o top. A razao para isso e a sua massa, muito maior do

que a massa das outras partıculas. O top foi finalmente produzido no FERMILAB

por um time de centenas de cientistas, tecnicos e engenheiros. A descoberta contou

com a participacao de varios brasileiros vinculados ao Laboratorio de Altas Energias

(LAFEX) do Centro Brasileiro de Pesquisas Fısicas.

A descoberta do top quark foi de tremenda importancia, porque confirmou as

previsoes do Modelo Padrao, reforcando nossas ideias sobre os elementos constitu-

intes da materia e suas interacoes. Alem disso, o top quark pode ajudar a esclarecer

uma questao ainda muito mais fundamental, e que ainda nao sabemos responder:

porque afinal de contas a massa existe, e de onde ela aparece?

O top quark aparece de colisoes entre protons e antiprotons que sao acelerados

uns contra os outros. A cada colisao, dezenas de partıculas sao criadas, uma delas

podendo ser um top quark. A deteccao nao e feita diretamente, mas atraves dos pro-

dutos de decaimento do top, e a proporcao dos eventos que indicam a sua presenca

em relacao a todos os outros e somente de um para varios bilhoes! As partıculas

criadas deixam tracos de suas trajetorias, que sao analisadas por programas de

computadores que tentam “garimpar” a presenca do top.

A despeito de seu sucesso, os fısicos comecam a ter razoes para acreditar que o

Modelo Padrao nao e - ainda - a suprema teoria da materia. O modelo preve que

os tres neutrinos associados ao eletron, ao muon e ao tau nao possuem massa de

repouso (do mesmo modo que o foton). O ano de 1998 pode vir a ser lembrado como

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 479

aquele em que esta crenca foi por terra - e com ela o Modelo Padrao! Em junho deste

ano, pesquisadores americanos e japoneses apresentaram evidencias experimentais

de que neutrinos podem ter massa. Esta massa seria somente algo entre 0,01 e

0,1 eV (para efeitos de comparacao, a massa de repouso do eletron e de 500 mil

eV). Mas como para cada eletron existem 600 milhoes de neutrinos (neste exato

momento voce esta sendo atravessado por trilhoes deles!) uma pequena massa de

0,1 eV seria suficiente para explicar uma boa parte da massa “invisıvel” do Universo

(a chamada materia escura, ou dark matter, em ingles). Essas descobertas recentes

jogam nova luz e injetam novo animo na Fısica de Partıculas.

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480

9.8 Teorias de Tudo

A despeito das enormes dificuldades em se formular uma teoria que

unifique as forcas da Natureza, os fısicos (pelo menos grande parte de-

les) seguem firmes na crenca de que um dia isso sera possıvel. Nesta

pretensao, tudo o que existe seria derivado de um unico princıpio. A

fısica teorica teria entao chegado de fato ao seu objetivo supremo: uma

teoria de tudo. E preciso entender que tal teoria nao necessariamente

seria capaz de reproduzir ou prever detalhes experimentais de sistemas

fısicos particulares, como por exemplo, o movimento de uma ameba.

O que se entende por uma teoria de tudo e uma teoria que aglutinasse

em um so princıpio todas as forcas da Natureza. Como afirmou Leon

Lederman, ex-diretor do FERMILAB, esta unificacao deveria ser ex-

pressa por uma simples formula matematica que voce poderia usar na

sua camiseta!

Indicacoes de que tal superteoria poderia ser de fato formulada

apareceram somente no inıcio dos anos 80. A historia comeca, contudo,

no final dos anos 60, quando Gabrielle Veneziano estudava a interacao

forte entre hadrons produzidos em aceleradores. Para explicar dados

experimentais, Veneziano propos um modelo em que as partıculas nao

eram vistas como pequenos objetos localizados no espaco, mas como

pequenas cordas vibrantes. Essa ideia, que esta claramente em con-

traste com todas as teorias fısicas ate entao formuladas em termos de

partıculas localizadas, inicialmente nao chamou muito a atencao. A

partir dos anos 70, contudo, com o trabalho principalmente de John

Schwartz e Michael Green a ideia de representar a materia como cor-

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 481

das vibrantes ganhou forca e se transformou no esquema de unificacao

mais promissor ja alcancado pelos fısicos, principalmente por incluir o

graviton, a partıcula mensageira do campo gravitacional. Tal e a teoria

de supercordas (ou superstrings). Nesta teoria partıculas sao represen-

tadas pelos modos de vibracao dessas cordas. E como se cada partıcula

fosse uma “nota musical” em um instrumento de cordas. Controversa,

e ainda cheia de dificuldades conceituais, a teoria chamou a atencao de

grandes nomes da fısica teorica contemporanea, dividindo as opinioes.

Para terminar esse capıtulo (e o livro!) transcrevemos o depoimento de

algumas figuras centrais envolvidas no problema, compilados do livro

de P.C.W. Davies e J. Brown Superstrings. A Theory of Every-

thing?.

O que seriam essas cordas? Devemos imaginar partıculas como

eletrons ou quarks como feitas de cordas que existem dentro delas? Se-

riam aneis, ou algo assim?

John Schwartz (Professor de Fısica do Caltech) - Bem, eu expres-

saria isso um pouco de forma diferente. Uma corda pode vibrar e oscilar

de maneiras diferentes. Cada uma dessas maneiras pode ser vista como

um tipo de partıcula diferente. Ou seja, o eletron e um modo normal

de vibracao da corda, um quark e um outro, o graviton outro, etc.

Entao nao devemos mais pensar no mundo como feito de partıculas,

mas de pequenas cordas que oscilam?

Edward Witten (Instituto de Pesquisas Avancadas de Princeton)

- Certo. Quando pensamos em partıculas, devemos lembrar que desde

o advento da mecanica quantica, tudo no mundo passou a ser visto

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como um pouco incerto, um pouco “borrado”. Na teoria de cordas,

essas partıculas “borradas” sao substituıdas por pequenas cordas.

Qual o tamanho dessas cordas?

A corda que corresponde ao eletron possui cerca de somente 10−33

centımetros de comprimento, e portanto e infinitamente menor do que

um atomo.

A teoria de supercordas se transformara em uma Teoria de Tudo?

Michael Green (Professor de Fısica, Queen Mary College - Lon-

dres) - Deixe-me dizer que e porque entendemos tao pouco da estrutura

da teoria, que tenho objecoes a esta terminologia que e frequentemente

usada, esta “Teoria de Tudo”. Nao sabemos as previsoes da teoria,

e nao sabemos nem mesmo as perguntas que devem ser feitas. Te-

nho a impressao de que ao compreendermos a teoria de uma maneira

mais profunda, questoes serao levantadas, e provavelmente nao terao re-

spostas. Acho que a denominacao “Teoria de Tudo” e neste momento

uma afirmativa de que ela pode vir a responder questoes importantes

em fısica de partıculas.

Voce acha que temos o direito de supor que a Natureza e unificada -

que existem formulas matematicas que podem conter toda a realidade?

Richard Feynman (Professor de Fısica do Caltech - Premio Nobel

de Fısica de 1965) - Em nosso campo temos o direito de fazer o que

bem entendermos. E so uma hipotese. Se voce faz a hipotese que tudo

pode ser incorporado em um numero muito pequeno de leis, voce tem o

direito de tentar. Nao temos que temer nada, porque se algo sai errado

voce simplesmente compara com experimentos, e experimentos podem

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 483

lhe dizer se voce esta certo ou nao. Nao existe perigo nisso. Pode ser

que haja perigo psicologico, se voce investir muito em uma direcao, mas

em geral nao e uma questao de estar certo ou errado. Se a Natureza

possui ou nao uma formulacao ultima, simples, unificada e bela, e uma

questao em aberto que eu nao sei responder.

Um dos problemas acerca dos testes experimentais dessas ideias re-

centes, e que a teoria sugere que a unificacao ocorre somente a energias

muito altas. Acho que estamos comecando a chegar ao final da linha

para a fısica de partıculas, pelo menos no que diz respeito aos acele-

radores. Voce acha que a fısica teorica esta degenerando em filosofia?

Pode ser que a fısica teorica esteja degenerando, mas nao sei em que.

Deixe-me dizer uma coisa primeiro. Quando eu era mais jovem, eu no-

tava que varias pessoas mais velhas nao conseguiam entender ideias

novas muito bem, e resistiam de uma maneira ou de outra, e pareciam

estupidas ao dizerem que certas ideias estavam erradas - como Einstein,

que nao foi capaz de aceitar a mecanica quantica. Agora eu sou um

velho, e essas sao ideias novas, e elas parecem malucas para mim, e pare-

cem que vao na direcao errada. Sei que outros homens foram estupidos

dizendo coisas assim, e portanto eu serei tambem estupido em dizer que

isso tudo nao tem sentido. Eu serei de fato muito estupido porque te-

nho a forte sensacao que isso tudo nao faz o menor sentido! Nao posso

fazer nada, mesmo sabendo o perigo que corro com este ponto de vista.

O que voce nao gosta na teoria?

Eles nao calculam nada. Eles nao checam suas ideias. Costuram

explicacoes para qualquer coisa que discorde de experimentos. Por

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exemplo, a teoria requer 10 dimensoes. Bem, pode ser que seja possıvel

“enrolar” 6 dimensoes. Sim, isso e possıvel matematicamente, mas

porque nao 7? As equacoes e que deveriam decidir quantas dimensoes

devem ser compactadas, e nao o desejo de fazer a teoria concordar com

os experimentos.

Na teoria de cordas, partıculas elementares sao representadas por diferentes modosde vibracao de cordas com comprimentos incrivelmente pequenos, da ordem de10−33 cm .

Chegamos ao fim do livro. As questoes acima mostram claramente

que na fronteira da Fısica nao existe certo ou errado, e mesmo quando

gigantes da ciencia contemporanea se enfrentam, muito do que e dito

esta baseado em uma crenca ıntima e irredutıvel.

Estamos novamente atravessando outro daqueles momentos em que

nossas ideias sobre a Natureza encontraram seus limites, e precisarao

ser aprimoradas em todos os nıveis: a nıvel fundamental, o Modelo

Padrao para as partıculas elementares e suas interacoes tera que ser al-

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CAPITULO 9 - O SONHO DA UNIFICACAO 485

terado, ou mesmo substituıdo, se for comprovada a existencia de massa

no neutrino. A nıvel intermediario, os modelos da materia condensada

sao esfacelados e varios fenomenos (como a supercondutividade a altas

temperaturas) nao possuem explicacao satisfatoria. Finalmente, o Big

Bang, aceita por decadas como “A Teoria” de formacao do Universo,

precisara ser revista se confirmadas recentes observacoes de que o Uni-

verso acelera na medida em que se expande, ao contrario do que preve

esta teoria.

A Fısica e uma deusa que se alimenta de novas ideias e, como teria

dito certa vez Max Plank, as vezes novas ideias sao aceitas nao porque

elas convencem a todos, mas porque aquelas pessoas que discordam

eventualmente envelhecem e morrem. E atraves deste debate angusti-

ado e fascinante que os segredos da Natureza vao sendo desvendados.

Acreditem, ha muita poesia nisso. . .

Onde saber mais: deu na Ciencia Hoje.

1. Antimateria, Juan Alberto Mignaco, vol. 1, no. 5, p 54.

2. Morre Dirac, o Pai da Antimateria, Guido Beck, vol. 3, no. 16, p 9.

3. Fısica de Altas Energias: Ha Espaco para o Brasil?, Ronald Cintra Shellard,vol. 33, no. 74, p. 26.

4. Encontrada a Partıcula Z: Confirma-se a Teoria das Interacoes Eletrofracas,Ronald Cintra Shellard, vol. 2, no. 7, p. 19.

5. Feynman e a Fısica no Brasil, Jose Leite Lopes, vol. 9, no. 51, p. 72.

6. As Surpresas da Interacao Luz e Materia, Cid B. de Araujo e Jose R. RiosLeite, vol. 5, no. 27, p. 38.

7. O que e a Maquina Tokamak, Aluısio Neves Fagundes, vol. 2, no. 9, p. 72.

8. A Materia Indivisıvel, Juan Alberto Mignaco e Ronald Cintra Shellard, vol.3, no. 14, p. 42.

9. A Materia Superaquecida e Supercomprimida, Carlos A. Bertulani, vol. 8,

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486

no. 46, p. 48.

10. Neutrino, Neutrinos, Joao Carlos dos Anjos, vol. 9, no. 50, p. 9.

11. Os Neutrinos Pesados, Ronald Cintra Shellard, vol. 13, no. 73, p. 8.

12. Novas Partıculas no Horizonte da Fısica, Ronald Cintra Shellard e SergioLeo, vol. 3, no. 13, p. 20.

13. A Origem dos Raios Cosmicos: Finalmente uma Pista, Gil da Costa Mar-ques, Oscar J.P. Eboli e Ely Silva, vol. 4, no. 24, p. 9.

14. Radiacao de Sıncrotron, Ramiro Muniz e Roberto Lobo, vol. 2, no. 11, p.38.

15. Energias Extremas no Universo, Carlos Ourivio Escobar e Ronald CintraShellard, vol. 26, no. 151, p. 24.

16. Neutrinos: Partıculas Onipresentes e Misteriosas, Adriano A. Natale eMarcelo M. Guzzo, vol. 25, no. 147, p. 34.

17. A Assimetria do Universo: por que Existe mais Materia do que Anti-materia?, Leandro de Paula e Miriam Gandelman, vol. 25, no. 148, p. 30.

18. A Massa do Neutrino e suas Consequencias, Adriano A. Natale, vol. 24,no. 142, p. 20.

19. Supercordas, em Busca da Teoria Final, Victor O. Rivelles, vol. 23, no.138, p. 46.

20. Meson Pi: o Inıcio da Fısica de Altas Energias, E.H. Shibuya, vol. 22, no.132, p. 36.

21. Eletron em Velocidade Maxima, Marcia Begalli e Maria Elena Pol, vol. 22,no. 131, p. 32.

22. O Eletron Revela o Invisıvel, Aldo Craievich e Daniel Ugarte, vol. 22, no.131, p. 34.

23. Cesar Lattes. Modestia, Ciencia e Sabedoria, Micheline Nussenzvieg, vol.19, no. 112, p. 10.

24. Do Eletron ao Quark Top, Gilvan Augusto Alves, Alberto Santoro, MoacyrHenrique Gomes e Souza, vol. 19, no. 113, p. 34.

25. Neutrinos Solares, Carlos A. Bertuloni, vol. 18, no. 108, p. 52.

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Resumo - Capıtulo Nove

Uma parte dos fısicos teoricos se dedica a tentar construir uma teoriaunificada das forcas da Natureza. Em tal teoria, as quatro interacoes fun-damentais - gravitacional, eletromagnetica, fraca e forte - derivariam deum unico princıpio, uma unica interacao fundamental. Acredita-se queesta unificacao existiu durante os primeiros 10−43 s de vida do Universo,quando entao as forcas comecaram a se separar. Ideias de unificacao defenomenos aparentemente diferentes ja foram realizadas na fısica classica.Newton unificou a ‘fısica do Ceu’ com a da Terra, e Maxwell unificou aeletricidade, o magnetismo e a otica fısica. A fısica de partıculas estudaos constituintes fundamentais da materia e suas interacoes. Os objetosmais simples que formam a materia sao os leptons e os quarks. Leptonssao partıculas leves, como o eletron e o positron, e podem ser observadosseparadamente. Os quarks, ao contrario, so existem em estado de confi-namento. Essas partıculas se combinam para formar os hadrons - comoprotons e neutrons, e os mesons - como o pıon. A deteccao experimen-tal do pıon nos raios cosmicos, e a sua producao em laboratorio teve aimportante participacao do fısico brasileiro Cesar Lattes. As interacoesentre objetos materiais se dao via partıculas de campo. O exemplo maissimples e o caso do foton, que e o mensageiro do campo eletromagnetico.A partıcula do campo gravitacional e o graviton, e a da interacao forteo gluon. As interacoes eletromagnetica e fraca foram unificadas porGlashow, Salam e Weinberg. Jose Leite Lopes, fısico brasileiro, teveimportante participacao na chamada teoria eletrofraca. As partıculasde campo da interacao eletrofraca sao chamadas W+, W− e Z0. Essaspartıculas foram detectadas experimentalmente em 1983 pela equipe doitaliano Carlo Rubbia, trabalhando no CERN. Ate agora as tentativas deunificacao total falharam. A teoria de supercordas apareceu durante adecada de 70 como um esquema promissor de unificacao. Nesta teoria osobjetos fundamentais da materia nao sao partıculas, mas pequenas cor-das, com comprimentos infinitamente menores do que o diametro de umproton. Cada partıcula e representada por um modo normal de vibracaodestas cordas. Esta teoria, contudo, possui varias dificuldades conceitu-ais e tem recebido duras crıticas de importantes fısicos contemporaneos.O sonho da unificacao permanece, no momento, em suspense.