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FISSURAS E ABERRAÇÕES: OS PARADOXOS DE DELEUZE APLICADOS À CRIAÇÃO ARTÍSTICA FISSURES AND ABERRATIONS: DELEUZE'S PARADOXES APPLIED TO ARTISTIC CREATION Lívia Mara Botazzo França / UNESP RESUMO O artigo traz para analisa os termos fissuras e aberrações na dimensão da arte e do processo de criação artística, orientando-os a partir da seleção de determinadas séries de paradoxos analisados pelo filósofo Gilles Deleuze em Lógica do Sentido, de 1969: o paradoxo dos efeitos de superfície, em fissuras, e o paradoxo do puro devir, em aberrações, sob os quais aludimos aos modos de operar cisões de causalidades (devir-criação) e como designações estéticas (linguagem) em relação ao duplo autoria-obra ou obra-autoria, contextualizados por meio da apresentação de referenciais artísticos e de interlocuções filosóficas e historiográficas da arte. PALAVRAS-CHAVES: Fissuras; Aberrações; Paradoxos; Deleuze; Criação Artística. ABSTRACT The article brings to analyze the terms fissures and aberrations in the dimension of art and the process of artistic creation, orienting them from the selection of determinate series of paradoxes analyzed by the philosopher Gilles Deleuze in Logic of Sense, 1969: the paradox of surface effects, in fissures, and the paradox of pure becoming, in aberrations, under which we allude to the modes of operating scission of causality (becoming-creation) and as aesthetic designations (language) in relation to the double authorship-work or work- authorship, contextualized through the presentation of artistic references and philosophical and historiographic interlocutions of art. KEYWORDS: Fissures; Aberrations; Paradoxes; Deleuze; Artistic Creation.

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FISSURAS E ABERRAÇÕES: OS PARADOXOS DE DELEUZE APLICADOS À CRIAÇÃO ARTÍSTICA

FISSURES AND ABERRATIONS: DELEUZE'S PARADOXES APPLIED TO ARTISTIC CREATION

Lívia Mara Botazzo França / UNESP

RESUMO O artigo traz para analisa os termos fissuras e aberrações na dimensão da arte e do processo de criação artística, orientando-os a partir da seleção de determinadas séries de paradoxos analisados pelo filósofo Gilles Deleuze em Lógica do Sentido, de 1969: o paradoxo dos efeitos de superfície, em fissuras, e o paradoxo do puro devir, em aberrações, sob os quais aludimos aos modos de operar cisões de causalidades (devir-criação) e como designações estéticas (linguagem) em relação ao duplo autoria-obra ou obra-autoria, contextualizados por meio da apresentação de referenciais artísticos e de interlocuções filosóficas e historiográficas da arte. PALAVRAS-CHAVES: Fissuras; Aberrações; Paradoxos; Deleuze; Criação Artística. ABSTRACT The article brings to analyze the terms fissures and aberrations in the dimension of art and the process of artistic creation, orienting them from the selection of determinate series of paradoxes analyzed by the philosopher Gilles Deleuze in Logic of Sense, 1969: the paradox of surface effects, in fissures, and the paradox of pure becoming, in aberrations, under which we allude to the modes of operating scission of causality (becoming-creation) and as aesthetic designations (language) in relation to the double authorship-work or work-authorship, contextualized through the presentation of artistic references and philosophical and historiographic interlocutions of art. KEYWORDS: Fissures; Aberrations; Paradoxes; Deleuze; Artistic Creation.

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FRANÇA, Lívia Mara Botazzo. Fissuras e aberrações: os paradoxos de Deleuze aplicados à criação artística, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2620-2633.

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INTRODUÇÃO

As dimensões da arte, no que diz respeito ao pensar, criar e fazer artístico

pressupõem encontros com outras áreas do conhecimento e, neste sentido, a

filosofia tem sido o meio primordial de oferecimento e ampliação de instrumentais à

arte desde os primeiros filósofos da Grécia Antiga. Assim, no entendimento da arte

como atividade construtora de conhecimento e produtora de sentidos, o presente

artigo se lança no desafio de propor os termos fissuras e aberrações, como

propriedades qualificadoras dos modos de operar cisões de causalidades (devir-

criação), assim como de designar componentes estéticos (linguagem), tendo em

vista a relação autoria-obra ou obra-autoria em permanente estado de movimento e

de agenciamento de fluxos que se manifestam ora de modo convencional, ora

inverso, se dobrando e desdobrando em multiplicidades rizomáticas infinitamente.

É neste sentido que as reflexões do pensador francês Gilles Deleuze (1925-1995),

se encarnam, tendo em seu livro “Lógica do Sentido”, de 19691, nosso ponto de

partida para a presente proposição e onde encontramos a lógica paradoxal apontada

por Deleuze nas obras de Lewis Carroll, em Alice e Através do Espelho2, sobre os

quais estendemos para uma análise processual artística e estética, pautadas no

sistema filosófico erigido por Deleuze neste livro e que ressoaram em todos os seus

demais livros posteriores, inclusive nos escritos em parceira com Felix Guattari, nos

quais também pudemos beber.

Desse modo, nosso intento foi aproximar os conceitos filosóficos para a arte, de

maneira a oferecer um modo prático e ao mesmo tempo interrogativo da validade

destes mesmos indicadores, quando submetidos às esferas da estrutura e da forma

da visualidade artística, cujo enfoque nosso é a criação contemporânea.

Se para Deleuze todo conceito é forçosamente um paradoxo (1992, p. 174), pois

comportam no mínimo duas dimensões, as dos perceptos e dos afectos, onde os

primeiros não seriam as percepções, mas “pacotes de sensações e relações que

sobrevivem àqueles que o vivenciam” e os afectos não seriam os sentimentos, mas

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FRANÇA, Lívia Mara Botazzo. Fissuras e aberrações: os paradoxos de Deleuze aplicados à criação artística, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2620-2633.

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“devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro)” (ibidem, p.

175); é inevitável que nossa rubrica assinale como paradoxo da criação artística a

concepção da coexistência de perceptos e afectos, em conexões múltiplas que se

dobram e desdobram sem se repetir, sempre se transformando, se dividindo, se

multiplicando, se conectando, povoando.

Alhures FISSURAS e ABERRAÇÕES

Entendemos por fissuras as formações longitudinais que formam marcas estreitas,

ora mais ou menos compridas e às vezes mais ou menos profundas, sobre dado

elemento material – corpóreo ou incorpóreo; fendas, dobras, pregas, rugas, sulcos,

cortes, brechas, trincas, rachaduras, arranhaduras, texturas; se alastrando para

outros sentidos, como forte apego, loucura, paixão, fissuração. Por aberrações

encontramos os seguintes significados: 1) desvio do que é considerado padrão; 2)

qualidade, condição ou estado de irregularidade que resulta desse desvio; 3) defeito

ou distorção de uma forma da natureza; imperfeição, deformidade, anomalia física;

4) desvio de qualquer regra, padrão, costumes estabelecidos; anomalia moral,

anormalidade; 5) desvio da lógica ou do bom senso; absurdo, extravagância,

desatino; 6) desvio angular aparente de um astro na direção do observador,

provocado pela composição da velocidade da luz e da velocidade do nosso planeta

(em astronomia); 7) desvio dos raios luminosos que atravessam um sistema óptico,

provocando uma distorção na imagem (em óptica); 8) desarranjo na disposição dos

órgãos ou no exercício de suas funções (em medicina); 9) monstro (em teratologia).

PARADOXO DOS EFEITOS DE SUPERFÍCIE - FISSURAS

Atribuímos à fissura o mesmo sentido dado por Deleuze à dobra, em que a relaciona

ao Barroco e aos territórios artísticos de maneira inteiramente inovadora, prática e

diríamos didática, “há dobra em toda parte: nos rochedos, rios e bosques, nos

organismos, na cabeça e no cérebro, nas almas ou no pensamento, nas obras ditas

plásticas... Mas nem por isso a dobra é um universal.” (1992, p. 199), ao contrário, “é

um ‘diferenciador’, um ‘diferencial’” (ibidem, p. 199), que projeta singularidades sobre

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FRANÇA, Lívia Mara Botazzo. Fissuras e aberrações: os paradoxos de Deleuze aplicados à criação artística, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2620-2633.

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a matéria e abre caminho para que novas formas sejam criadas. É por isso que

Deleuze nos diz que o barroco possui uma dobra iluminada, que há uma luz no

interior do barroco, pois investiu novas maneiras das coisas se dobrarem, é pelo

Barroco que, pela primeira vez, a arte se liberta de estruturas canônicas3 que até

então a perseguia desde o período romântico, gótico e clássico.

Heinrich Wölfflin atribuiu ao barroco o caráter pictórico4, cujo princípio fundador é

imprimir a percepção de movimento na composição artística, seja ela plana ou

tridimensional. O que importa para o pictórico não é a realidade material, mas aquilo

que “parece ser” (2000, p. 40). Wölfflin explica que no Barroco há a substituição da

linha por massas de luz e sombra, o contorno é destruído e substituído por massas

de claros e escuros e na pintura procura-se arredondar o plano, dando volume às

figuras sobrepostas, escurecendo o fundo e iluminando superfícies isoladas,

conferindo presença material, pois a imagem salta do plano e “as diversas partes

parecem avançar ou recuar no espaço” (ibidem, p. 41), os olhos não param de

percorrer a superfície da obra. O exemplo citado por Wölfflin é o afresco de Rafael

(Figura 1) para o Palácio do Vaticano

Figura 1: RAFAEL, detalhe do afresco “Heliodoro Expulso do Templo”. Fonte: disponível em

https://post-italy.com/salas-de-rafael-nos-museus-vaticanos; acesso em 09/06/19).

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A expressão de toda movimentação é demonstrada pela força dramática dada pelo

efeito de luzes e sombras,

“o espaço se torna mais profundo. A moldura circundante nos quadros posteriores é executada de modo a fazer crer que se está olhando através de um arco. Em seguida, tem-se não um só plano, uma série de personagens; o olho é, ao contrário, atraído bem para o fundo até para insondáveis profundezas”. (WÖLFFLIN, 2000, p. 42)

É possível a partir desta breve análise, identificarmos o indicativo paradoxal

deleuziano: o paradoxo dos efeitos de superfície. O agenciamento de fluxos que

Rafael opera são os efeitos de luz e sombra, que denotam o que Deleuze chama de

acontecimentos incorporais, isto porque estes efeitos não são corpos, nem estados

de corpos, mas se trata de efeitos incorpóreos, não se trata de um ser corpóreo,

mas de uma maneira de ser, e esta maneira de ser só se realiza como resultado na

superfície do ser, como um atributo (não há passividade ou atividade, estas só

operam no ser, do mesmo modo não podem ser operados no passado, tão pouco no

futuro, só operam no presente, que se produz como presente infinito).

O paradoxo se delineia enquanto há a coexistência de múltiplas dimensões, a

existência de dois planos de imanência, chamados originalmente pelos estoicos de

planos de ser: “de um lado o ser profundo e real, a força; de outro, o plano dos fatos,

que se produzem na superfície do ser e instituem uma multiplicidade infinita de seres

incorporais”5 (DELEUZE, 2015, p. 6).

A figura 2, na pintura de Gerhard Richter, Woman Descending the Staircase, pode-

se identificar nos efeitos de superfície o agenciamento de fluxos de fissuras de

múltiplas qualidades, o quadro apresenta efeitos de rugas, dobras, sulcos, texturas e

principalmente de efeitos de luz e sombra, nos é apresentado uma sensação de

movimento elevado a sua potência máxima. Há o movimento do próprio personagem

mulher descendo a escada, mas também o movimento que se imprime no vestido e

echarpe, traduzido pelos efeitos de pregas e esfumados, o movimento dentro do

movimento, da pincelada envolvida na produção pictórica da pintura, que é raspada

e deslizada horizontalmente por toda a superfície do quadro. Além de tudo que nos é

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FRANÇA, Lívia Mara Botazzo. Fissuras e aberrações: os paradoxos de Deleuze aplicados à criação artística, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2620-2633.

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mostrado, a própria composição se faz em movimento as linhas paralelas da escada

se desdobram de cima para baixo em movimento oblíquo, começando em linhas

horizontais até terminar com uma peque inclinação perpendicular.

Figura 2: Gerhard Richter , "Woman Descending the Staircase", 1965. Fonte: disponível em

https://www.dnainfo.com/chicago/20150306/loop/art-institute-shelving-pollock-warhol-pieces-this-weekend/; acesso em 09/06/19.

Nossa ideia é que as fissuras, as quais definimos anteriormente, sejam atributos,

efeitos de superfície dobradas, produzidos a partir de acontecimentos que se

efetuam no operador (artista) e se refletem no objeto (obra). O que Deleuze indica

como acontecimento incorpóreo, podemos aproximar de experiência do sensível,

pois se refere aquilo que advém por meio dos sentidos (sensações) e, portanto, o

acontecimento como sendo o algo que origina no devir como quase-causa, e no

caso da criação artística, podemos chamar daquilo que se origina no devir-criação.

O devir-criação está dimensionado na esfera da criação artística, de tudo que se

passa no estado anterior à produção dos atributos exprimíveis, e que se estendem

na duração processual e no resultado refletido de modo infinito. O devir-criação é

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uma qualidade que se opera no artista por uma vontade de se fazer chegar o

acontecimento ou mesmo por ele esperar, para estabelecer condições para que seja

emergido o elemento volitivo interno e se produza uma imagem, um pensamento-

imagem do objeto (ou estado de coisas) que existe internamente pela força dessa

imagem-pensamento, e que para se efetuar necessita ser produzida por uma

relação de causalidade externa, a qual Deleuze chama de Proposição (DELEUZE,

2015, p. 13-23), e neste momento que é pela linguagem que a proposição é operada

e assim passamos para o próximo paradoxo.

PARADOXOS DO PURO DEVIR - ABERRAÇÕES

Devir é o vir a ser, é o tornar a ser algo, é o que está sempre em movimento, o

processo, o entre, pois não está no passado, apesar de se projetar nele, se pretende

no futuro, sem ao menos ser certo sua efetuação, há no devir um “furtar-se ao

presente” (DELEUZE, 2015, p. 2). PURO DEVIR é o devir-louco, é o que não tem

medida, é o ilimitado, é a matéria do simulacro, é onde há o paradoxo (afirmação de

dois sentidos ao mesmo tempo) da “identidade infinita dos dois sentidos ao mesmo

tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do

demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a

linguagem que fixa os limites” (ibidem p. 2), é quem estabelece o onde/quando

começa ou termina o demasiado (neste sentido esta palavra foi utilizada por Deleuze

que acreditamos dizer respeito às qualidades objetivas – quantitativas: propriedades

reais em verdades e natureza como formas, grandezas, proporções, movimento, isto

é, aquelas que se referem às quantidades). Assim movimento está para

repouso/aceleração, assim como devir está para linguagem e vice-versa.

MOVIMENTO REPOUSO/ACELERAÇÃO

| ↔ |

DEVIR-CRIAÇÃO LINGUAGEM

(declinação de causas) (conjugação de efeitos)

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De modo que, encontramos no seio do devir, do devir-ilimitado, os acontecimentos,

acontecimentos incorporais, que é o verbo, o resultado, o presente infinito, os

atributos-efeitos, os quais, como antes mencionado, designa uma maneira de ser

que é expressa por um verbo e esta maneira de ser que se situa na forma da

linguagem só pode se manifestar delimitando signos, isto é, conjugando efeitos na

superfície do ser sem poder mudar sua natureza “ela não é a bem dizer nem ativa

nem passiva, pois a passividade suporia uma natureza corporal que sofre uma ação.

Ela é pura e simplesmente um resultado, um efeito não classificável entre seres”

(DELEUZE, 2015, p. 6).

O paradoxo do puro devir é um deslocamento do foco de reflexão, o que Deleuze

coloca em jogo é a relação de causalidade que foi cindida pelos estoicos, separando

causa do efeito e vice-versa, trazendo como exemplo Alice e Através do Espelho de

Lewis Carroll, as sujeições as quais Alice é submetida, sujeições estas de ordem

quantitativa – diríamos – e por ele chamada de inversões, inversão do crescer e do

diminuir, do mais e do menos, do efeito e da causa, invertendo a lógica dos sentidos.

Portanto, demos aproximar este paradoxo do puro devir para as aberrações nos

sentidos dados anteriormente, com o exemplo singular da história da arte, na pintura

do holandês Hieronymus Bosch (1450?-1516). Na figura 3 podemos ver no detalhe

do painel central do Tríptico dos Prazes (1504) um mundo fantástico e transfigurado

nos é mostrado, ou melhor dizendo, somos catapultados para este mundo

atemporal, de seres monstruosos (figura 4), de proporções fora dos padrões

normais, bizarros, seriam os pássaros gigantes, ou os seres representados é que

seriam minúsculos? Este jogo de inversões, de estranhamentos, de estarrecimentos

exige daquele que se encontra diante do quadro de grande esforço, pois mesmo que

tente procurar uma conexão lógica, não encontrará resposta, justamente porque a

pintura é toda desprovida de um sentido lógico e é justamente isto que interessa

para Deleuze, a desterritorialização dos territórios da linguagem.

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Figura 3: H. Bosch, detalhe do painel central do Tríptico dos Prazes, 1504. Fonte: PISCHEL, Gina.

História Universal da Arte 2. São Paulo: Cia Melhoramentos de São Paulo, 1996.

Figura 4: H. Bosch, Estudos de Monstros (Wiesbaden, Neues Museum). Fonte: PISCHEL, Gina.

História Universal da Arte 2. São Paulo, Cia Melhoramentos de São Paulo, 1996.

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O exemplo de Bosch é perfeito para demonstrar o pensamento estoico que trabalha

a cisão causa-efeito – causa é causa em si e efeito é efeito em si mesmo –, de modo

que entra em operação este desmembramento para que cada um deles possa ser

exprimido em unidade relativa ou mistura de corpos, sob o aspecto da liberdade de

se ver a interioridade do destino, como ligação das causas, e a exterioridade dos

acontecimentos, como laço dos efeitos.

Porém evidencia o ponto de vista dos epicuristas cuja cisão da causalidade é

operada dentro da proposta atomista e que a liberdade (autonomia) entre causa-

efeito seria garantida pelo clinamen6 – “não mais destino sem necessidade, mas

causalidade sem destino” (DELEUZE, 2015, p. 7). Portanto, exprime que há uma

dissociação entre causa e efeito, de um lado há declinação das causas (clinamen) e

de outro há conjugação dos efeitos (acontecimentos incorporais), sempre por meio

da linguagem.

De modo que como é na linguagem que os efeitos de superfície são operados por

proposições de um operador, ator, agente, no nosso caso, o artista, que está imerso

no devir-criação, ele estabelecerá os “limites” da linguagem para justamente

desviar-se deles. É pelo desvio que se cria algo novo (DELEUZE, 1992, p. 215), foi

assim com o Barroco, assim como com os grandes movimentos artísticos advindos.

Tomemos como exemplo as obras de Diego Velázquez (1599-1660), na figura 5, e

Francis Bacon (1561-1626), na figura 6. Em Velázquez o que se imprime é a

obscura figuração do pontífice, cuja representação foi construída nos moldes de

pinceladas de efeitos de luz e sombra, o fundo ganha profundidade e a figura central

ganha evidência pelo jogo de claros e escuros e ao mesmo tempo, devido às

matizes de vermelhos serem próximas, tendem a certo momento se misturarem

entre parede, trono, barrete (chapéu clérigo) e murça (espécie de capa),

diferenciados pelo dourado do assento papal.

Já a pintura de Bacon da figura 6 é perturbadora, há quem diga que trata-se de uma

releitura do retrado de Inocêncio X de Velázquez, sob a qual Bacon realizou uma

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série de pinturas. Mas o fato é que há forte apelo dramático, o fundo escuro pode

ser a representação de uma câmera frigorífica, mas a carne pendurada e a figura

central estão ali como que coladas, e não são agradáveis, entre a carne e a

personagem uma mistura por esfumados horizontais, pinceladas atravessam e

conectam as figuras centrais, criam uma atmosfera de horror e medo.

Figura 5: D. Velázquez, Retrato de Inocêncio X, 1650. Óleo sobre tela, 141x119cm. Fonte: Coleção

Folha Grandes Mestres da Pintura Vol. 7, 2007.

Figura 6: Francis Bacon, "Figure With Meat", 1954. Fonte disponível em https://www.dnainfo.com/

chicago/20150306/loop/art-institute-shelving-pollock-warhol-pieces-this-weekend/. Acesso em 09/06/19.

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A arte já não é mais o lugar apenas do belo, agradável ou monumental, é uma

torrente de emoções vacilantes e perturbadoras, novamente operam-se conjunções

de efeitos desprovidos de suas causas, por mais que tentemos estabelecer

conexões lógicas, sempre fica um vácuo, uma lacuna a ser preenchida, mas nunca

será, porque esta sequer existe ou existiu. O que há são somente efeitos enquanto

acontecimentos sem causa, talvez uma brincadeira de Bacon a mexer com nossos

instintos racionalizantes é estabelecer a relação figurativa com o papa de Velázques,

e nem assim sairemos vitoriosos na empreitada de desvendar sua pintura.

ENTRE DEFORMIDADES, ABERRAÇÕES,

FISSURAS e PARADOXO a ARTE

Buscamos nos paradoxos de Deleuze estabelecer relação com a arte e seu modo de

operar por meio do que chamamos por fissuras e aberrações, pois entendemos

assim como Deleuze, que o que confere potência, intensidade e duração para a obra

de arte, será a instauração de agenciamentos capazes de insurgirem contra os

“decalques” (modelos) estéticos, ou contra achatamentos de aparelhos de controle

em termos de micropolíticas legitimadoras de obras e escolas, chamado de

“agenciamentos maquínicos de desejo, assim como os agenciamentos coletivos de

enunciação” (DELEUZE, 1995, vol. 1, p. 45), pois “um agenciamento em sua

multiplicidade trabalha forçosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos semióticos,

fluxos materiais e fluxos sociais” (ibidem, p. 45), ou seja, um rizoma que nunca

cessa de se multiplicar, dobrar, crescer.

Mas toda a linguagem está repleta de disciplinas e códigos de controle, cheias de

palavras de ordem, endividamento de sujeitos sujeitados, divididos sob o signo da

servidão maquínica, sujeição à servidão de nossa subjetividade. Deleuze deixa-nos

como saída o desvio.

Para Jacques Rancière a história da arte é algo absolutamente divergente da

sucessão de obras e escolas com as quais fomos submetidos, como se fosse uma

sequência progressiva de movimentos e estilos.

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“É a história dos regimes de pensamento da arte, entendendo-se por regimes de pensamento da arte um modo específico de conexão entre as práticas e um modo de visibilidade e de pensabilidade dessas práticas, isto é, em última análise, uma ideia do próprio pensamento” (RANCIÈRE, 2009, p. 46)

E se para Deleuze é pelo pensamento-imagem que o Devir e a Linguagem

trabalham, que tenhamos em mente que seja preciso agenciar desejos e libertarmos

de paixões, sejamos: Devir – corpo, pensamento, movimento, multiplicidade, eterno

retorno, sentido –; e Linguagem – acontecimento, simulacro, limite, pluralidade,

sentido, verdade.

Notas

1 Ano da primeira publicação na França pela Les Éditions de Minuit, com título original francês Logique Du Sens. 2 O título original é Alice’s Adventures in Wonderland (trad. brasileira As Aventuras de Alice no País das Maravilhas e frequentemente abreviado para Alice no País das Maravilhas), publicado em 1865, com autoria de Charles Lutwidge Dodgson sob o pseudônimo de Lewis Carroll. A continuação do romance veio com sob o título de Through the Looking-Glass and What Alice Found There (trad. brasileira Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá), publicado em 1871. 3 Wölfflin chama de “lei fundamental”. Observa, porém, principalmente em arquitetura, que esta lei não foi totalmente rompida, e que em muitas pinturas, devido à complexidade das composições, não se percebe a regra apesar dela estar lá (cf. Heinrich Wölfflin “Renascenta e Barroco: estudos sobre a essência do estilo barroco e a sua origem na Itália, São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000, NR 7, pag. 42). 4 Segundo Wölfflin o conceito de “pictórico” é um dos conceitos mais importantes da história da arte e ao mesmo tempo dos mais complexos, uma vez que o sentido de pictórico seja atribuído não somente à pintura, mas à arquitetura e escultura, ao passo que historicamente há períodos da pintura denominados de “pictóricos”, onde há o emprego de efeitos de luz, desordem e riqueza pictórica. (ibidem pag. 39). 5 Este é um fragmento da citação feita por Deleuze a Emile Brèhier em seu livro La Theorie dês incorporels dans l’ancien stoïcisme. Vrin, 1928, p. 11-13 (Deleuze em Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015; NR 1, segunda série de paraxodos: dos efeitos de superfície, pag. 6) 6 Clinamen, do latim = declinação (subs.masc.), inclinação, pendor. Em etimologia, clinâmen se aproximada por significado de “clínica”, de origem grega em: /klinikós/, que concerne ao leitor; /kliné/, leito, repouso; e /klino/, inclinar, dobrar. Em Filosofia, clinâmen é a definição dada por Lucrécio (Tito Lucrécio Caro, 98-55 a.C.) no poema De rerum natura ou “Da natureza das coisas”, a partir da doutrina atomista de Epicuro (341-270 a.C.), doutrina esta desenvolvida a partir do atomismo de Demócrito (cerca de 460-370 a.C.), sendo Lucrécio quem nomeou de clinâmen ao desvio imprevisível dos átomos, causado por um movimento através do vazio na trajetória retilínea, pelo seu próprio peso, de modo espontâneo e lateral e cujo encontro desses átomos de diferentes pesos produziriam a matéria.

Referências

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FRANÇA, Lívia Mara Botazzo. Fissuras e aberrações: os paradoxos de Deleuze aplicados à criação artística, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2620-2633.

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Lívia Mara Botazzo França

Mestranda em Artes, na área de Artes Visuais, do Programa de Pós-Graduação em Artes, do Instituto de Artes de São Paulo, da Universidade Estadual Paulista – IA/UNESP, pesquisadora integrante do GIIP – Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia e bolsista no programa de apoio à pesquisa da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Contato: [email protected]