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1 FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE EMPREGO Introdução Ao nos lançarmos na discussão do tema deste artigo, veremos que, como em toda e qualquer matéria polêmica, há sempre que se analisar com exatidão as teses antagônicas ou conflitantes entre si. Sobre a temática da flexibilização das relações de emprego, temos como certo que há dois interesses distintos a serem analisados: primeiro, o daqueles que entendem que o trabalho é um mero componente contratual das relações de produção, em que deve prevalecer a livre negociação entre as partes sobre o legislado; segundo, a que nos filiamos, o dos que o encaram como um valor social, tal como hoje o reconhecemos, enaltecido em nível de princípio constitucional e de consolidação de leis trabalhistas 1 . Assim, sob esse raciocínio, é inevitável trazermos à tona o velho conflito entre capital e trabalho: de um lado, diante de um Estado cada vez mais omisso às questões sociais, incluindo-se as de caráter protetivo do trabalhador assalariado, temos o desmedido e perverso modo de acumulação de riquezas 2 , este justificado pelas mudanças trazidas pela tecnologia e pela concorrência hostil entre empresas no mundo globalizado; de outro, em face de um contexto histórico marcado pela constante luta por melhores condições de trabalho, principalmente a partir dos séculos XVIII e XIX, temos a vertente social, que situa o trabalhador como a parte mais fraca da relação laboral, devendo, portanto, este ser protegido, tal como originalmente lecionado pelo Manifesto comunista, de Karl Marx, e pela Encíclica Rerum Novarum, esta compilada pelo Papa Leão XIII. Logo, ao tentarmos investigar o fenômeno da flexibilização, objetivamos encontrar um caminho que nos permita afirmar se é possível dar seguimento ou não a essa diretriz dos novos tempos, ou até mesmo buscar um ponto de equilíbrio, se é que 1 José Augusto F. Affonso, “O valor social do trabalho”. Disponível em http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/ler_Artigos . Acesso em: 25 mar. 2008. 2 Grijalbo Fernandes Coutinho, “Governos do mundo desumano”. Disponível em http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/ler_Artigos . Acesso em 25 mar. 2008.

FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE … · 6 Segundo Flávia Piovesan, ... Vide desta autora Direitos humanos e o direito constitucional internacional, ... objetivam

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FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE EMPREGO

Introdução

Ao nos lançarmos na discussão do tema deste artigo, veremos que, como em

toda e qualquer matéria polêmica, há sempre que se analisar com exatidão as teses

antagônicas ou conflitantes entre si.

Sobre a temática da flexibilização das relações de emprego, temos como certo

que há dois interesses distintos a serem analisados: primeiro, o daqueles que

entendem que o trabalho é um mero componente contratual das relações de produção,

em que deve prevalecer a livre negociação entre as partes sobre o legislado; segundo,

a que nos filiamos, o dos que o encaram como um valor social, tal como hoje o

reconhecemos, enaltecido em nível de princípio constitucional e de consolidação de leis

trabalhistas1.

Assim, sob esse raciocínio, é inevitável trazermos à tona o velho conflito entre

capital e trabalho: de um lado, diante de um Estado cada vez mais omisso às questões

sociais, incluindo-se as de caráter protetivo do trabalhador assalariado, temos o

desmedido e perverso modo de acumulação de riquezas2, este justificado pelas

mudanças trazidas pela tecnologia e pela concorrência hostil entre empresas no mundo

globalizado; de outro, em face de um contexto histórico marcado pela constante luta por

melhores condições de trabalho, principalmente a partir dos séculos XVIII e XIX, temos

a vertente social, que situa o trabalhador como a parte mais fraca da relação laboral,

devendo, portanto, este ser protegido, tal como originalmente lecionado pelo Manifesto

comunista, de Karl Marx, e pela Encíclica Rerum Novarum, esta compilada pelo Papa

Leão XIII.

Logo, ao tentarmos investigar o fenômeno da flexibilização, objetivamos

encontrar um caminho que nos permita afirmar se é possível dar seguimento ou não a

essa diretriz dos novos tempos, ou até mesmo buscar um ponto de equilíbrio, se é que

1 José Augusto F. Affonso, “O valor social do trabalho”. Disponível em http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/ler_Artigos. Acesso em: 25 mar. 2008. 2 Grijalbo Fernandes Coutinho, “Governos do mundo desumano”. Disponível em http://www.anamatra.org.br/opiniao/artigos/ler_Artigos. Acesso em 25 mar. 2008.

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isso pode ser alcançado, entre os interesses econômicos e sociais, pois não se pode

negar que o Direito do Trabalho vivencia uma nova etapa das relações laborais no

mundo globalizado.

Para o desenvolvimento da temática a que nos propomos, cumprindo nosso

papel como estudiosos do Direito3, discorreremos sobre os limites constitucionais

impostos à flexibilização, se não há como resistir a esse movimento em face da atual

conjuntura econômica e mais: diante das propostas de rompimento dos paradigmas no

Direito do Trabalho, defenderemos a tese de que os direitos sociais mínimos devem ser

respeitados.

Para tal, ao longo deste trabalho vamos nos valer não apenas de princípios e

pressupostos jurídicos, mas também de uma investigação histórica e de um estudo que

em determinados trechos e notas de rodapé buscamos inspiração na Teoria Geral do

Direito e na Filosofia do Direito.

2. Direito do Trabalho e relação de emprego – quadro geral, importância e contextualização na atualidade

O que não se pode tirar de um homem? Em sentido amplo, à luz da dimensão

jurídica, tudo aquilo que deriva dos princípios, direitos e garantias fundamentais

constitucionais, pois, nessa perspectiva e com base na atual Carta Magna, é possível

afirmar que, do ser humano, são invioláveis a vida, a liberdade, a igualdade e a

segurança.

Em sede constitucional, podemos afirmar que há muito que discutir sobre a

importância do trabalho à luz dos princípios e dos direitos e garantias fundamentais,

uma vez que este se trata de direito social; portanto, enaltecido ao mesmo patamar ou

grau de importância da educação, da saúde, do lazer, da segurança, da previdência

social, da proteção à maternidade e à infância e da assistência aos desamparados.

Dito isso, ou seja, ao situarmos o trabalho como um direito social (art. 5° da CF),

já que erigido como direito e garantia fundamental (Título I), se a Carta Magna é a lex

3 Para Maria Helena Diniz, “a função do cientista do direito não é a mera transcrição de normas, já que estas não se agrupam num todo ordenado, mas sim a descrição e a interpretação, que consistem, fundamentalmente, na determinação das conseqüências que derivam dessas normas” (Conflito de normas, São Paulo : Saraiva, 2008, 8.ed, p. 9).

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legum (lei das leis), não se pode olvidar de seu papel, tampouco não atermos a

temáticas correlatas que hoje ganham cada vez mais terreno, como é a da flexibilização

trabalhista e sua precarização.

Retomando a questão inicial ainda sob olhar constitucional, ao lançarmos a

pergunta “o que não se pode tirar de um homem?”, podemos nos referir à ofensa aos

bens materiais e aos personalíssimos. Quanto aos primeiros, o que dizer da angústia

de alguém perder sua moradia, quer por desapropriação, enchente, fogo ou mesmo por

dívida4? Quanto aos últimos, o que falar do risco à própria vida ou como explicar o a

sensação advinda do dano moral, suponhamos este causado pela humilhação de um

homem ser preso injustamente e rechaçado do meio social? E o que dizer da perda do

emprego5 ou da submissão de um trabalhador a uma atividade laborativa degradante

ou que atente a sua dignidade6?

Quanto ao último caso, exemplos não faltam da jurisprudência, como o

transporte de trabalhadores em meio a fezes de suínos e bovinos em Minas Gerais. A

decisão em sede de recurso? Desfavorável ao Reclamante7, mesmo diante de

afrontosa ofensa a dispositivos do Diploma Maior:

4 Neste caso, as hipóteses contidas na Lei n. 8.009, de 29-3-1990 (art. 3º, incisos I a VII). 5 Para Nelson Mannrich, Dispensa coletiva – da liberdade contratual à responsabilidade social, São Paulo : LTr, 2000, “A perda do emprego é muito mais do que a mera interrupção de uma relação jurídica material. Ao ser dispensado, o trabalhador perde, de uma hora para outra, sua fonte ordinária de renda, deixando, ainda, de colaborar com grupo com o qual convivia diariamente com evidente capitis diminutio perante sua família e a sociedade. Surge normalmente um sentimento de fracasso, às vezes acompanhado da culpa pela inaptidão, má sorte ou mesmo incapacidade de adaptar-se às novas necessidades e circunstâncias vigentes”. 6 Segundo Flávia Piovesan, “Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como unidade e como sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de 1988 elege o valor da dignidade humana como valor essencial, que lhe dá unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular” (grifos nossos). Vide desta autora Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 9.ed., São Paulo : Saraiva, 2008, p. 28. 7 “EMENTA: DANOS MORAIS. TRANSPORTE INADEQUADO. AUSÊNCIA DE OFENSA À DIGNIDADE HUMANA. Poder-se-ia questionar no âmbito administrativo uma mera infração das normas de trânsito do Código de Trânsito Brasileiro quanto a transporte inadequado de passageiros em carroceria de veículo de transporte de cargas, o que não é da competência da Justiça do Trabalho. Mas se o veículo é seguro para o transporte de gado também o é para o transporte do ser humano, não constando do relato bíblico que Noé tenha rebaixado a sua dignidade como pessoa humana e como emissário de Deus para salvar as espécies animais, com elas coabitando a sua Arca em meio semelhante ou pior do que o descrito na petição inicial (em meio a fezes de suínos e de bovinos)” (TRT, 7ª T., RO 484/03).

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“A República Federativa do Brasil, formada pela união

indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,

constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como

fundamentos: (...) a dignidade da pessoa humana” – inciso III do

art. 1º.

"Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" – inciso II do art. 5º (grifos nossos).

Ao analisarmos o exemplo em destaque à luz da concepção doutrinária de Oscar

Ermida Uriarte, teremos uma espécie de flexibilização chamada flexibilidade

jurisprudencial, que se insere em uma modalidade indireta ou dissimulada, ou, para

usar a expressão de Barbagelata, “formas de flexibilização por extensão”8.

Na verdade, trata-se de “reformas” cujos efeitos, ao seu final, são flexibilizadores

ou desreguladores de direitos trabalhistas. Aliás, oportuno revelar desde logo que em

nossa opinião “flexibilização” e “desregulação” ou “desregulamentação” convergem,

quanto aos seus efeitos, a um sentido unívoco, embora apresentem, em sua essência,

sob o ponto de vista terminológico, significados diferentes, tanto que “flexibilização”, em

um primeiro momento ou sob um ponto de vista prematuro ou superficial, evoca a idéia

de algo mais ameno ou passível de negociação, ao passo que “desregulamentação”,

um sentido mais traumático ou que nos remete a uma quebra de status antes vigente9.

Assim, nesse pensar, se considerarmos os verdadeiros efeitos (práticos) no

plano jurídico tanto da “flexibilização” quanto da “desregulamentação”, iremos constatar

que, seguramente, estes se equivalem, uma vez que ambos objetivam a diminuição ou

redução de normas estatais protetivas ao instituto do trabalho10.

8 Oscar Urmida Uriarte, A flexibilidade, São Paulo : LTr, 2002, p. 13 e 14. Outro exemplo de forma indireta ou dissimulada de flexibilização é o caso da reforma processual ocorrida no Uruguai pela Lei n. 16.906, de 22-12-1997, que regulou a impossibilidade de serem reclamados créditos ou prestações trabalhistas exigíveis há mais de 2 anos, uma vez que o prazo anterior era de 10 anos. Com isso, a partir da edição da nova lei, permitiu-se que as infrações patronais, na opinião de Uriarte, se convertessem em “riscos reduzidos, calculáveis e facilmente assumíveis”. 9 Segundo o Dicionário Houaiss, flexibilização significa “tornar (-se) menos rígido” e desregulamentação, “ato ou efeito de desregulamentar; eliminação das regras; das normas”. 10 No mesmo sentido, Nelson Mannrich, A modernização do contrato de trabalho, São Paulo : LTr, 1998, p. 72; e Nei Frederico Cano Martins, Os princípios do Direito do Trabalho, o protecionismo, a flexibilização ou desregulamentação, in Rita Maria Silvestre e Amauri Mascaro Nascimento, Os novos paradigmas do direito do trabalho – homenagem a Valentin Carrion, São Paulo : Saraiva, 2001, p. 171-2.

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Como visto no caso do transporte de trabalhadores em meio a fezes de suínos e

bovinos em Minas Gerais, a jurisprudência acenou indubitavelmente sua orientação não

apenas a uma interpretação desreguladora ou desregulamentadora dos direitos em lei

previstos ao empregado, mas também a um entendimento favorável e protecionista ao

empregador, a ponto de inverter o pólo original de um dos princípios basilares do Direito

do Trabalho: o primado da proteção do trabalhador. Aliás, essa decisão até mesmo se

desvirtua das origens da disciplina, que nasceu como reação justamente às precárias e

degradantes condições do trabalhador à época da Revolução Industrial do século XVIII,

por isso seu notório caráter protetivo em face das imposições do poder econômico do

empregador da época11.

Por outro lado, precisamos enaltecer as decisões que velam pelo justo12 e que

objetivam preservar os direitos indisponíveis dos trabalhadores. Referimo-nos ao voto

do relator, Ministro José Simpliciano Fernandes (RR 158/1999-007-017-00.5), que

reconheceu expressamente os limites da flexibilização de direitos trabalhistas. No

caso, embora um funcionário da Vale fizesse manutenção de locomotivas com

inflamáveis e maçarico, solda elétrica, fogo e outros agentes inflamáveis a dois metros

de um tanque que reservava doze mil litros de óleo diesel, o acordo coletivo da

categoria não assegurava que neste local de trabalho o referido funcionário trabalhasse

em meio periculoso nem enfrentasse condições de risco à sua própria vida! Mesmo

sendo indeferido o pedido do adicional ao trabalhador pela 7ª Vara do Trabalho de

Vitória e ante a concordância da decisão pelo Tribunal Regional do Trabalho da 17ª

Região, para a 2ª Turma do TST não se poderia negar o pagamento do adicional de

periculosidade ao trabalhador nessas condições. Assim, para o Ministro do TST não

Em sentido contrário, Sérgio Pinto Martins, Flexibilização das condições de trabalho, São Paulo : Atlas, 1999, p. 256, segundo o qual “não se confunde flexibilização com desregulamentação (...). Na desregulamentação a lei simplesmente deixa de existir. Na flexibilização, são alteradas as regras existentes, diminuindo a intervenção do Estado, porém garantindo um mínimo indispensável de proteção ao empregado (...)”. E na mesma esteira temos Floriano Vaz da Silva, Os princípios do Direito do Trabalho e a sociedade moderna, in Rita Maria Silvestre e Amauri Mascaro Nascimento, ob. cit., p. 144, para quem pela flexibilização admite-se que “alterem-se direitos que não sejam básicos e irrenunciáveis do empregado, mediante compensação (...). Já a desregulamentação admite a redução dos direitos trabalhistas, visando a preservar a prosperidade e a sobrevivência das empresas (...)”. 11 Amauri Mascaro Nascimento, Curso de direito do trabalho, 22.ed, São Paulo : Saraiva, 2007, p. 153. 12 Para Dalmo de Abreu Dallari, O renascer do direito, São Paulo : Saraiva, p. 44, “O Direito é o padrão objetivo do justo, eis a primeira idéia fundamental. (...) Assim, pois, o Direito autêntico não é mera expressão da preferência de alguns indivíduos ou de alguns grupos, mas é o reflexo do sentimento generalizado de Justiça”.

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está em jogo desrespeitar o acordo coletivo, mas “fixar os limites da flexibilização de

direitos trabalhistas” em face desse instrumento13 (grifos nossos).

Servindo-nos dos casos acima e, em especial, do primeiro exemplo,

perguntamos como flexibilizar nossa legislação trabalhista se ainda convivemos com

ofensas à dignidade humana daquela natureza e a muitas outras, tais como a

discriminação da mulher, o trabalho análogo ao de escravo, o trabalho insalubre e

periculoso do supostamente apto a trabalhar e também do menor, o assédio moral do

trabalhador; enfim, condições laborativas que atestam ainda em pleno século XXI a

precarização das relações trabalhistas.

Esse retrato da situação trabalhista brasileira nos impede de concordar até

mesmo com Hannah Arendt14, para quem o labor teria perdido hoje aquele significado

primitivo que dizia respeito a “fadigas e penas”, ou seja, algo verdadeiramente

insuportável que, submetido a esforço e dor tamanhos, conduziria a uma “deformação

do corpo humano”, condição esta somente comparável a extrema miséria ou pobreza.

Logo, não temos receio de afirmar que em boa parte do mundo, como no Brasil,

nos países da América do Sul, da Ásia e África, isso ainda persiste.

Mas há casos que, embora não possam ser equiparados às situações de

extrema violação aos direitos humanos como acima descrito, representam da mesma

forma uma ameaça em potencial às garantias sociais contidas no art. 7º da

Constituição. Vejamos alguns ajustes na Carta Magna e na legislação extravagante que

refletem, nada mais nada menos, os interesses econômicos globalizantes, que acabam

por flexibilizar ou precarizar efetivamente as relações de emprego. Ora, basta observar,

por exemplo, que a Constituição Federal legitimou em seu inciso VI, art. 7º, a

possibilidade de redução salarial por meio de convenção ou acordo coletivo e extinguiu

a estabilidade decenal mediante indenização para os casos de dispensa arbitrária (art.

7º, I)15. Ou, ainda, que a CLT, em seu § 2º, art. 59, regulou o banco de horas. Cremos

que a flexibilidade já atingiu o seu limite.

13 Disponível também em http://conjur.estadao.com.br/static/text/6429,1. 14 A condição humana, 10.ed., Rio de Janeiro : Forense Universitária, 7ª reimpr., 2008. 15 Antes denunciada por Fernando Henrique Cardoso em seu governo presidencial, hoje com Luiz Inácio Lula da Silva o cenário se volta para a revalidação da Convenção n. 158 da OIT, cujos termos, em linhas gerais, prevêem a justificação da dispensa imotivada ou arbitrária.

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Mesmo nos opondo à forma como se conduzem hoje os rumos das relações

humanas, em especial no que diz respeito à temática dos direitos sociais, parece-nos

quase impossível encontrar uma solução16 para os efeitos negativos do capitalismo

sobre a classe trabalhadora sem que continue a prevalecer essa forma perversa –

como qualificamos alhures – e conhecida de acumulação de riquezas, tendo como

cenário a incontrolável privatização de funções essenciais do Estado e a redução

contínua de direitos sociais dos trabalhadores17. Portanto, cumpre-nos reiterar o bordão compartilhado pela doutrina de escol no

sentido de que não podemos abrir mão dos princípios fundamentais, tampouco dos

direitos humanos fundamentais em face do fenômeno da flexibilização18.

3. Elementos delineadores da flexibilização Em palestra realizada em 24 de abril de 2008 na Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo, intitulada “Estabilidade x Fim da Multa do FGTS“, para a maioria dos especialistas presentes, a ratificação da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Brasil não garante a estabilidade dos empregados, nem impõe o fim da multa do FGTS. Na exposição do douto Renato Rua de Almeida, por ser “aberto”, o texto da convenção é flexível e deixa para cada país que o ratificar a regulamentação das inúmeras questões existentes, como a da nulidade da dispensa imotivada, por exemplo. Para o estudioso Nelson Mannrich, não haverá “engessamento” de fato das relações do trabalho, tampouco a estabilidade do emprego. Segundo Davi Meirelles, desembargador federal do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (2ª Região), “tenho dúvidas se ela, caso aprovada, terá forças para impedir as dispensas imotivadas. O que deve acontecer é que serão aplicadas regras para que o trabalhador receba indenização, considerando o tempo de serviço e o montante do salário”. Já o doutrinador Amauri Mascaro Nascimento, “não vejo inconveniente nenhum na ratificação, uma vez que, mesmo vigorando, o texto não impede a empresa de demitir, apenas organiza a forma da dispensa. Alguns procedimentos mudam, sim. Um exemplo é que a dispensa não poderá ser à revelia do empregado, mas sim, seguirá procedimentos prévios, como o direito ao contraditório e a ‘procedimentalização’ da dispensa”. No entanto, para o economista José Pastore, “nos países em que a convenção foi ratificada, o processo de dispensa dura cerca de seis meses. Se instaurado sistema semelhante no Brasil, o custo das demissões pode ser 100% superior ao dos dias atuais”. Disponível em http://www.aatsp.com.br/Conteudo/ConteudoBusca.aspx?idpagina=319&IdNavegacao=15&IdPortal=1&IdFerramenta=9. Acesso em 26 abr. 2008. 16 Parafraseando Miguel Reale, conhecer é conhecer algo, por isso a necessidade de determinar-se a natureza daquilo que é conhecido, o que nos leva a formular perguntas sobre a "coisa em si" ou o absoluto, mesmo que depois se chegue à conclusão de ser impossível alcançar respostas dotadas de certeza. V. Filosofia do direito, 20. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, 4° tir. 17 Grijalbo Fernandes Coutinho, Fragmentos do ativismo da magistratura, São Paulo : LTr, 2006. 18 Amauri Mascaro Nascimento, Curso de direito do trabalho, São Paulo, Saraiva, 2007. A propósito, atenção dirigida à preservação das questões sociais é o exemplo da iniciativa alemã, visto que de mister interesse àquela nação. Ingo Wolfgang Sarlet, “O Estado social do direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental de propriedade”. Disponível em http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-9-MAR%C3%87O-2007-INGO%20SARLET.pdf. Acesso em 13 abr. 2008. V. também Celso Antonio Pacheco Fiorilho, Princípios do processo ambiental, 3.ed., São Paulo, Saraiva, 2008, p. 19: “A obtenção do lucro como razão de ser da economia capitalista, delimitada juridicamente por nossa Constituição Federal, deve obedecer aos valores sociais do trabalho, ou seja, o lucro em nosso País deverá sempre ser balizado pelos valores maiores e superiores da dignidade da pessoa humana”.

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Como bem lembrado por José Affonso Dallegrave Neto19, em 1896, durante

plena industrialização da era moderna, sob influência do estudo de Frederick Taylor,

“Princípios de administração científica”, este propôs uma racionalização da produção,

de forma que a atividade do operário estava condicionada à velocidade do movimento

das esteiras à sua frente.

Vinte anos mais tarde, Henry Ford propõe o parcelamento da produção, de modo

que o operário, fixado em categorias profissionais definidas, passou a realizar apenas

uma parte do processo de fabricação. Sempre com o intuito de aumentar a

produtividade, nesse sistema o trabalho fragmentado é regido por uma empresa

verticalizada que controla todas as áreas e fases da produção, ao contrário do

toyotismo, que, sob um modelo em que não há um gerente superior hieráquico, uma

vez que grupos de empregados se fiscalizam mutuamente, introduz a produção

inflexível, cuja produção industrial se dá sob medida (just in time), pois não há a

preocupação em estocar produtos, mas atender às necessidades do consumidor. O que

se vê nesse caso são empresas horizontalizadas que terceirizam e subcontratam a

maior quantidade possível de setores da produção20. Observa-se que em relação aos

trabalhadores, estes são polivalentes e versáteis, uma vez que devem assumir múltiplas

funções de responsabilidade ao mesmo tempo.

Com o toyotismo, importante que se diga, intensifica-se o desemprego, já que a

política das empresas inseridas nesse contexto é otimizar e enxugar mão-de-obra.

Diante da precarização das relações de emprego, na medida em que, para dar

sustentação a esse modelo, flexibilizam-se as leis, que adotam novos critérios de

admissão, pagamento de salário e compensação de jornada, são identificadas

verdadeiras fraudes ao vínculo empregatício, como as formas disfarçadas de contrato

de trabalho, pois, na realidade, os empregados se fazem passar por cooperados,

terceirizados, representantes comerciais, autônomos, estagiários etc21.

Para Oscar Ermida Uriarte22, a flexibilização nas relações trabalhistas sempre

existiu como "válvulas de escape", ou seja, nas hipóteses de adaptação da legislação

19 V. Prefácio, in José Hortêncio Ribeiro Júnior et alii, Ação coletiva na visão de juízes e procuradores do trabalho, São Paulo : LTr, 2006, p. 13. 20 Idem, ibidem. 21 Idem, p. 14-15. 22 Ob. cit., p. 18.

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trabalhista a um determinado contexto econômico, social ou político, de forma que isso

poderia ensejar uma melhora ou piora dos termos legais.

Ocorre que, justamente para evitar tal dubiedade ou relatividade de análise,

ponderamos que a perspectiva considerada neste artigo é a do ponto de vista dos seus

efeitos negativos sobre o trabalhador, pois, nessa linha, flexibiliza-se de baixo para

cima ou a favor daquele que se encontra ou pertence a uma camada social superior.

Repetimos: sempre houve flexibilização, mas por questões intrínsecas à razão

de ser do Direito do Trabalho, que é a proteção do trabalhador, estudamos o instituto

sob esse ponto de vista, de forma que não há registros de uma flexibilização em sentido

contrário ou de cima para baixo, isto é, não identificamos políticas de garantia ou

ampliação do bem-estar do trabalhador. Assim, se estas tivessem sido mesmo

implementadas, seriam encaradas como uma afronta ao empresariado, a ponto de ser

inimaginável ou insano para alguns, por exemplo, cogitar de aumento salarial

semestral, extinção das horas extras, reembolso cultural ao trabalhador, ou jornada de

36 ou 40 horas semanais de trabalho sem redução do salário.

Antes de situarmos precisamente o início da marcha flexibilizatória no próximo

item, aquela entendida como uma forma de desregulamentar ou precarizar direitos

assegurados ao trabalhador em um arcabouço normativo, entendemos que seja

necessário frisar algo que desperta interesse no cenário histórico.

Em período anterior ao atual declínio das normas protetivas ao obreiro, em um

contexto às avessas, que precede, portanto, os chamados “direitos de segunda

geração”, ou seja, aqueles que passaram a dominar o século XX, como os direitos

sociais, culturais, econômicos e coletivos, o trabalhador do século XVIII encontrava-se

submetido a um regime assalariado de exploração de sua capacidade laborativa, o que

levou o Estado a adotar uma política intervencionista, quer no âmbito da normatização

ou da economia, visando a disciplinar condições mais dignas ao trabalhador da época.

Assim, se no século XVIII temos uma verdadeira efervescência sindical, a ponto

de despertar a atenção do Estado ao jugo dos trabalhadores pelo empregador, é

curioso e oportuno estabelecermos um paralelo com a nova ordem mundial adotada a

partir da década de 1990, pois, diferentemente daquele período de Revolução

Industrial, a partir da criação da Organização Mundial do Comércio em 1º de janeiro de

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1995 nunca se viu por parte desse mesmo Estado e dos empresários tamanha avidez

comercial e financeira comandada por um sistema de telecomunicações eficiente em

que trilhões de dólares são transferidos diariamente de um ponto do mundo a outro em

busca de investimentos e, é claro, de rendimentos23, a ponto de colocar em primeiro

plano o “mundo corporativo” e em segundo plano a condição física e psíquica do

trabalhador. Vivenciamos um retrocesso nesse aspecto? Certamente.

Como exposto, o velho ditado, “quanto mais se tem, mais se quer”24 é bem

apropriado ao que destacamos. Eis o porquê. A partir da Revolução Industrial, período

em que se intensificam novos meios de produção em razão da competitividade, estes

capazes de conduzir à produção industrial em larga escala e proporcionar o equivalente

em lucratividade, os donos das indústrias, em meio à possibilidade de auferirem cada

vez mais lucros, não medem esforços para continuar nesse ritmo e, não se importando

com os limites daquilo que um ser humano pode suportar, impõem ao assalariado não

somente jornadas excessivas de trabalho, sejam homens, mulheres e crianças, mas

também condições de trabalho das mais degradantes25, até que sobrevenha a fixação

de limites impostos por lei ao que seja tolerável por um homem médio.

23 Octavio Bueno Magano, Princípios do direito do trabalho e os avanços da tecnologia, in Rita Maria Silvestre e Amauri Mascaro Nascimento, ob. cit., p. 82. 24 Aliás, se consideramos cada indivíduo da sociedade, parece uma característica inata do ser humano o desejo de querer sempre algo mais em sua vida. Mas é preciso dizer que esse “algo mais”, em vez de uma incessante busca pelo aperfeiçoamento ético-moral, é movido por uma contagiante e decidida corrida pela aquisição do “conforto” material, mesmo que essa momentânea e aparente felicidade justifique ou represente a mais tormentosa infelicidade interior do indivíduo, causando-lhe uma sensação de vazio em seu espírito a ponto de esse perguntar-se: “de que levo dessa vida?”. Santo Tomás de Aquino já dizia que a pleonexia é o grande inimigo da igualdade, que é o vício de se querer ter sempre mais, da ambição desmedida. V. Frei Carlos Josaphat, Tomás de Aquino e a nova era do espírito, São Paulo, Loyola, 1998, p. 178, apud Sonia Aparecida Menegaz, Flexibilização, desemprego e direito do trabalho (tese apresentada ao Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito de São Paulo, como requisito para a obtenção do título de mestre em direito, sob a orientação do Prof. Cássio de Mesquita Barros Jr.). Ainda no trilhar dessas reflexões existenciais, cujas indagações dizem respeito ao que denominamos “Metafísica”, interessante aludir ao conceito dado pelo jus-filósofo Miguel Reale: "o perene esforço do homem no sentido de atingir uma fundação racional válida para a totalidade de seu existir histórico". Nesse passo, oportunas também as reflexões adicionais do mesmo autor: "Não se trata de perguntar apenas sobre o que vale o pensamento ou o que vale a conduta, mas sim de considerar o valor de nós mesmos e de tudo aquilo que nos cerca". 25 O clássico Germinal, de Émile Zola, conforme aponta Sérgio Pinto Martins, Curso de direito do trabalho, “retrata o trabalho abusivo a que eram submetidos os trabalhadores nas minas (...). O trabalhador prestava serviços em condições insalubres, sujeito a incêndios, explosões, intoxicação por gases, inundações, desmoronamentos, prestando serviços por baixos salários e sujeito a várias horas de trabalho, além de oito. Ocorriam muitos acidentes do trabalho, além de várias doenças decorrentes dos

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Hoje, alheios à coisificação do trabalhador, momento em que as empresas dele

exigem polivalência, exacerbada proatividade, acúmulo de responsabilidades sem o

correspondente aumento salarial26, rumamos a passos firmes ao fim do sistema

protetivo, já que o Estado parece fazer vistas grossas ao momento por que passamos.

Por isso, pode-se afirmar que em razão da luta por novos empregos, os

sindicatos se enfraqueceram, e os trabalhadores não ousam discutir melhores

condições de trabalho, seja qual for a imposição contratual imposta pelo empregador.

Eis o cenário dos elementos delineadores da flexibilização, principalmente a

partir da década de 1990: desenvolvimento tecnológico e globalização da economia,

esta conceituada como um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de

produção e processo civilizatório de alcance mundial27. Como esperado, a indústria

eletrônica dispensou milhares de trabalhadores, já que as máquinas (computadores e

robôs) podem fazer o mesmo trabalho melhor, unido tudo isso ao desejo de redução de

seus custos em face do mercado competidor.

4. Breve histórico da flexibilização brasileira

Feitas as considerações anteriores, apresentado o contexto atual do Direito do

Trabalho e do emprego, e estabelecidos os elementos condicionantes ou delineadores

da flexibilização, passamos agora a traçar o seu quadro histórico-evolutivo no Brasil.

Aliás, a importância da precisão histórica de qualquer tema no Direito é bem

lembrada por Sérgio Pinto Martins28:

“É impossível ter o exato conhecimento de um instituto

jurídico sem se proceder a seu exame histórico, pois se verificam

gases, da poeira, do trabalho em local encharcado, principalmente a tuberculose, a asma e a pneumonia”. 26 Pelo visto, o inciso V do art. 7º da Constituição está fadado ao desuso, ainda que um salário condizente com o desempenho de uma função de maior complexidade e extensão seja algo minimamente exigível em razão da dignidade do trabalhador. 27 Octavio Ianni, A era do globalismo, 3.ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997, p. 7, apud João Marcos Castilho Morato, Globalização trabalhista, Belo Horizonte, Inédita, 2003. 28 Curso de direito do trabalho, 23.ed., São Paulo, Atlas, 2007, p. 3. Para Theodor Sternberg, Introducción a la ciência Del derecho, trad. José Rovira y Ermengol, 2.ed., Barcelone, Labor, 1930, p. 32, o estudo da evolução histórica de qualquer tema jurídico é imprescindível para a compreensão ou análise dos problemas jurídicos. Aduz o autor nestes termos: “El que quiera hacer Derecho sin Historia, no es um jurista, nin siquiera um utopista: no traera a la vida espírito de ordenación social consciente, sino mero disorden y destrucción” (apud Maria Helena Diniz, ob. cit., p. 1).

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suas origens, sua evolução, os aspectos políticos ou econômicos

que o influenciaram”.

Estudos indicam que a flexibilização contemporânea originou-se na Europa, mais

precisamente na década de 1960, e os primeiros reflexos em nosso país deram-se a

partir de 1965, com a edição da Lei n. 4.923, que tratou, mediante acordo sindical, da

redução geral e transitória dos salários até o limite de 25%, na hipótese de a empresa

encontrar-se em crise, esta motivada por inesperada conjuntura econômica.

Depois, em 1966, tivemos a edição da Lei n. 5.107, que criou a Lei do Fundo de

Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, possibilitando ao empregador, diferentemente

do verificado então na Europa, despedir o empregado de forma imotivada.

Posteriormente, é publicada a Lei n. 6.019/74, apelidada de “Lei do Trabalho

Temporário”, isto porque em São Paulo havia cerca de 50.000 trabalhadores a prestar

serviços a aproximadamente 10.000 empresas de trabalho temporário, de maneira que

estas insistiam em conseguir mão-de-obra mais barata, mas segundo os ditames

trabalhistas vigentes de proteção29.

Observa-se que a partir do advento da Constituição Cidadã de 1988, dá-se

continuidade ao processo flexibilizatório no âmbito trabalhista, destacando-se a

introdução por via legal dos contratos por tempo parcial e do banco de horas (art. 59, §

2º)30. No caso deste último, a hora extra passa a não ser necessariamente paga, uma

vez que há a possibilidade de se compensá-la com folga a ser concedida ao

trabalhador, contanto que esse sistema não ultrapasse o período de um ano do total de

horas permitido, sob pena de se pagar a incidência de 50% sobre o montante devido.

Cumpre lembrar que quanto à adoção do contrato de trabalho a tempo parcial,

instaurado pela Medida Provisória n. 10.952-20/2000, foi acrescentado o art. 58-A à

29 Sérgio Pinto Martins, Flexibilização das condições de trabalho, São Paulo, Atlas, 2000, p. 51, apud Marcelo Oliveira Rocha et al, Flexibilização do trabalho – negociado e legislado, Campinas, LZN, 2005. 30 Temos também: redução de salários por convenção ou acordo coletivo de trabalho (art. 7º, VI); a compensação ou a redução da jornada de trabalho só por acordo ou convenção coletiva (art. 7º, XIII); o aumento da jornada de trabalho nos turnos ininterruptos de revezamento para mais de seis horas diárias por negociação coletiva (art. 7º, XIV); reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (art. 7º, XXVI). Para Sérgio Pinto Martins, Curso cit., p. 507, há a flexibilização de certas regras que nos levam a identificar condições de trabalho in mellius, como, p. ex., a redução da jornada, e in peius, como acima referido, o aumento da jornada nos turnos ininterruptos de revezamento ou na redução de salários.

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CLT, cuja previsão é a de que essa espécie contratual não durará mais do que 25 horas

semanais.

Como foi dito anteriormente, se considerarmos o início da flexibilização no Brasil

o ano de 1965, veremos que se pretendia garantir a sobrevivência da empresa em

momentos de crise econômica, de forma que o emprego, bem social maior, fosse

preservado. Lembrando que, apenas abrindo parênteses, mais tarde, na década de

1970, seria sistematizado pelo uruguaio Américo Plá Rodriguez, em sua obra Los

principios del derecho del trabajo, o princípio da proteção, no caso, uma forma de

compensar a dependência econômica do trabalhador com sua proteção jurídica.

Ainda focados na questão econômica acima referida, hoje o leitmotiv da

flexibilização é a sobrevivência da empresa em um cenário de avanço tecnológico,

concorrência setorial e globalização. Por isso, é evidente que a discussão permeia as

searas trabalhista e econômica ou, como também designado, o capital e o trabalho31.

O caso brasileiro atual é marcado por uma flexibilização também efetivada no

contexto da jurisprudência, observando-se notória abdicação de direitos trabalhistas

também em instrumentos normativos pactuados pelos sindicatos obreiros. Aliás, se

tivéssemos liberdade sindical, diferentemente da vigente unicidade, teríamos a

presença mais incisiva de diversos sindicatos perante as empresas, a ponto de fazê-las

a cumprir as leis trabalhistas, podendo-se, por conseguinte, encontrar soluções

convencionais para a solução de conflitos e assim evitando o crescimento geométrico

de demandas.

5. As acepções terminológicas dos vocábulos “flexibilização” e “precarização” e seus respectivos conceitos

Antes de qualquer referência à acepção dos termos “flexibilização” e

“precarização” no contexto trabalhista, é preciso lembrar que alguns doutrinadores até

mesmo evitam o termo “flexibilização”, pois entendem que este identifica uma ideologia

31 Amauri Mascaro Nascimento é enfático ao afirmar, em outras palavras, que os fatos econômico-trabalhistas que se seguiram à Revolução Industrial constituem a base sobre a qual foi erigida a disciplina do direito do trabalho (Curso, cit. p. 5). E Sérgio Pinto Martins (Direito do trabalho, cit., p. 3) lembra que “Esse ramo do Direito [Direito do Trabalho] é muito dinâmico, mudando as condições de trabalho com muita freqüência, pois é intimamente relacionado com as questões econômicas” (grifos nossos).

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liberal que eles próprios condenam, daí sua preferência, p. ex., pela expressão

“modernização do direito do trabalho”32.

Aliás, como demonstramos na parte relativa à evolução histórica da

flexibilização, cumpre dizer que o fenômeno se ajusta à conjuntura do mundo atual, isto

é, um momento em que as empresas empregam métodos destinados a suportar a

competição econômica, tendo como pano de fundo uma revolução tecnológica antes

nunca vista, pois, principalmente a partir da década de 1990, em um cenário de

globalização da economia, observam-se empresas preocupadas em enxugar seus

quadros de funcionários, bem como conter despesas, uma vez que o lucro deve ser

obtido a qualquer preço, de forma que os ideários flexibilizatórios, que reúnem em seu

bojo propostas de desregulamentação, perda de direitos trabalhistas arduamente

consagrados ao longo do tempo e uma justificativa um tanto quanto discutível de

combater o desemprego, vão ao encontro dos anseios dos grandes grupos

econômicos.

Feita essa consideração inicial, passamos agora ao estudo a que nos propomos.

“Flexibilizar: tornar (-se) menos rígido”33. Diante da acepção primitiva da palavra,

vemos que o sentido é tornar algo mais maleável, de forma a permitir, no que pertine às

relações humanas, negociação entre as partes interessadas.

Na seara trabalhista, propomo-nos a colher entendimentos de doutos

doutrinadores sobre o tema. Para a desembargadora mineira Alice Monteiro de

Barros34, a flexibilização, em outros termos, implica a capacidade de adaptação das

normas trabalhistas às relevantes trocas levadas a efeito no mercado laboral.

Ives Gandra da Silva Martins Filho35 afirma que a flexibilização é o resultado da

atenuação do caráter protetivo do Direito do Trabalho, mediante a adoção de condições

menos favoráveis do que as previstas em lei, tornando-se possível pela negociação

32 Esta escolha terminológica abraçada por alguns doutrinadores é apenas lembrada por Amauri Mascaro Nascimento, ob. cit., p., mas não comungada abertamente pelo douto autor. No entanto, para Arion Sayão Romita, Sindicalismo, economia, Estado democrático, São Paulo, LTr, 1993, p. 23-4, “o certo seria se falar de adaptabilidade das normas de direito do trabalho às novas exigências do momento econômico, social, histórico e cultural que atravessamos”. Como se percebe, este jurisconsulto não adota o termo “flexibilização”. 33 Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, Editora Objetiva, 2002. 34 Flexibilização e garantias mínimas, Gênesis, Curitiba, 13(73), p. 12, jan. 1999, apud João Marcos Castilho Morato, ob. cit. 35 Manual esquemático de direito e processo do trabalho, 7.ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 9.

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coletiva, cuja perda de vantagens econômicas poderá ser compensada pela instituição

de outros benefícios, como os de valor social, na medida em que não onerarão

excessivamente a empresa, quer nos períodos de crise econômica, quer nos de

transformação na realidade produtiva.

Já Nelson Mannrich36 caracteriza o instituto como instrumento de política social

destinado a garantir a adaptação constante das normas jurídicas à realidade

econômica, social e institucional, mediante intensa participação de trabalhadores e

empresários, para eficaz regulação do mercado de trabalho, tendo como objetivos o

desenvolvimento econômico e o progresso social.

O Prof. Cássio Mesquita Barros Jr.37 diz que “a flexibilidade do Direito do

Trabalho consiste nas medidas ou procedimentos de natureza jurídica que têm a

finalidade social e econômica de conferir às empresas a possibilidade de ajustar a sua

produção, emprego e condições de trabalho às contingências rápidas ou contínuas do

sistema econômico”.

Segundo José Pastore38, a flexibilização não apenas condiz com

“desregulamentação”, mas também com “direito do trabalho da crise”, “impacto das

novas tecnologias”, “contratos atípicos”, “direito da adaptação”. Enfim, indica o processo

de ajustamento do direito do trabalho às atuais realidades da sociedade pós-industrial.

Para Arnaldo Süssekind39, “a flexibilização tem por objetivo conciliar a fonte

autônoma com a heterônoma, tendo por alvo a saúde da empresa e a continuidade do

emprego”.

No entendimento de José Francisco Siqueira Neto40, em consonância com

Pastore e muitos outros especialistas, “o conceito de flexibilização está intimamente

ligado ao de desregulamentação. Como as próprias expressões indicam, para

desregulamentar e flexibilizar um dado sistema de relações de trabalho pressupõe-se a

existência de uma regulamentação inflexível”.

36 Limites da flexibilização das normas trabalhistas, Revista do Advogado-AASP, 54, dez. 1998, p. 29. 37 Flexibilização no Direito do Trabalho, Trabalho & Processo, n. 2, p. 43-54, set. 1994. 38 Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva, São Paulo, LTr, 1994, p. 17. 39 Instituições de direito do trabalho, 14.ed., São Paulo, LTr, 1993, v. 1, p. 199. 40 Flexibilização, desregulamentação e o direito do trabalho no Brasil, in Carlos Alonso Barbosa de Oliveira; Jorge Eduardo Levi Mattoso, Crise e trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado?, 2.ed., Campinas, Scritta, 1997, p. 327-344.

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A Organização Internacional do Trabalho - OIT conceitua emprego flexível como

toda forma de trabalho que não seja a tempo completo e não tenha duração indefinida

incluindo o de tempo parcial, o temporário, o eventual, o para qualificação profissional,

o banco de horas.

Como vemos dos ensinamentos acima, à flexibilização são dedicadas algumas

considerações pertinentes a “adaptação”, “ajustamento” e “desregulamentação”.

A exemplo da perspectiva do direito comparado, segundo Marcelo Oliveira et

alii41, a doutrina européia reserva à flexibilização a noção de "desregulamentação" ou

aquela que, imposta pelo Estado ou empregador, acaba por eliminar ou diminuir

benefícios ao trabalhador.

Mas entendemos que a conceituação mais completa é a sedimentada a partir

dos ensinamentos de Amauri Mascaro Nascimento42, cuja transcrição vale aqui

apresentar: "é uma decorrência da transformação do cenário do trabalho na sociedade

contemporânea, ampliando-se as formas de contratação, além do padrão tradicional do

contrato por tempo indeterminado e horário integral que vem das origens do direito do

trabalho no início da sociedade industrial, admitidas, que hoje são, novas formas

contratuais como o contrato a tempo parcial, o contrato de reciclagem profissional, a

ampliação das hipóteses autorizadas para os contratos a prazo, o trabalho temporário,

o job sharing, a terceirização, o teletrabalho ou trabalho a distância (...)".

6. O homem e o trabalho à luz dos princípios fundamentais e dos direitos e garantias fundamentais contidos na Constituição Federal

Os princípios fundamentais no Direito são a base, o pilar ou a viga-mestre de um

arcabouço legal. Portanto, se erigimos e situamos expressamente no Título I da

Constituição Federal, mais precisamente no art. 1º da Constituição Federal, “os valores

sociais do trabalho”43 à condição de “princípios fundamentais”, a proteção contra

qualquer ofensa ou ameaça à estabilidade das regras mínimas que sustentam o que 41 Flexibilização do direito do trabalho - negociado e legislado, Campinas, 2005, p. 49. 42 Curso, cit., p. 170. 43 José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, 9.ed., São Paulo, Malheiros, p. 261, dá ainda mais peso ao que sustentamos: “Tudo isso tem o sentido de reconhecer o direito social ao trabalho, como condição da efetividade da existência digna (fim da ordem econômica) e, pois, da dignidade da pessoa humana, fundamento, também, da República Federativa do Brasil (art. 1º III)”. Apud João Marcos Castilho Morato, ob. cit., p. 81.

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podemos chamar de bem-estar laboral está acima de qualquer coisa, ainda que boa

parte do conteúdo da Carta Magna seja o resultado não apenas de reflexões

estritamente jurídicas ou protetivas do trabalhador, mas também de discussões que

visam ao acerto da barganha, de interesses corporativistas e do poder persuasivo dos

políticos44. Por “qualquer ameaça”, no contexto de discussão de nosso artigo, entenda-

se qualquer proposta ou efetiva medida flexibilizadora que afronte os direitos mínimos

do trabalhador.

Para situarmos o rol dos direitos fundamentais, cumpre dizer que,

historicamente, dada sua evolução, a doutrina situa o direito ao trabalho como um dos

direitos fundamentais de segunda geração, juntamente com o direito à saúde,

previdência, educação e assistência social, cuja denominação, conforme já antevemos,

é “direito social”. Esse direito se encontra não apenas constitucionalizado no inciso IV

do art. 1º como princípio fundamental, mas também positivado no Capítulo II do Título II

da Carta Magna sob a rubrica “Dos Direitos Sociais”, bem como previsto no Título VII,

Da Ordem Econômica e Financeira, cujo art. 170 prevê expressamente a “valorização

do trabalho humano” mediante a observação de nove princípios, dentre eles a “busca

do pleno emprego” (inciso VIII), e no art. 193, Título VII, Da Ordem Social, que

determina: “A ordem social tem como base o primado do trabalho”.

Para o constitucionalista baiano Uadi Lammêgo Bulos, denominação mais

apropriada seria “Dos Direitos dos Trabalhadores”, uma vez que os incisos do art. 7º

são específicos da seara trabalhista.

Importante dizer que a constitucionalização dos direito trabalhistas iniciou-se na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Depois, foi inserida na

Constituição francesa de 1848 (art. 2º, n. 13), no Manifesto Comunista (1848) e na

Carta Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII (1891). Mas tarde, no século XX, já com

maior incidência e força, por ocasião das Constituições do México (1917), da ex-União

Soviética (1918) e da Alemanha de Weimar (1919)45. No Brasil, de forma tardia, isso

44 Ensina-nos Uadi Lammêgo Bulos que a Constituição brasileira de 1988 é compromissória justamente por esse motivo e mais: “O procedimento constituinte de elaboração das constituições compromissórias é tumultuado pelas correntes convergentes e divergentes de pensamento, mas que ao fim encontram o consenso” (compromisso constitucional). In Curso de direito constitucional, São Paulo, Saraiva, 2007, p. 33. 45 Uadi Lammêgo Bulos, Direitos Sociais e Direitos dos Trabalhadores, ob. cit., p. 621.

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ocorre na Carta de 1934, na medida em que tivemos com Getúlio Vargas (1937-1945) a

organização da Justiça do Trabalho e a Consolidação das Leis do Trabalho (1943)46.

Como se vê, a importância do Direito do Trabalho enquanto direito fundamental

de segunda geração é relevante não apenas no curso da compilação positiva mundial,

mas também no contexto nacional. Lembrando que os direitos fundamentais de

primeira geração são aqueles que abraçam o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à

dignidade47.

Quando nos referimos ao princípio da dignidade humana, devemos lembrar que

este congrega o rol dos direitos e garantias fundamentais do homem e, o que mais nos

interessa, o trabalho, este considerado direito social. Portanto, no âmbito trabalhista

devemos considerar que um trabalho digno é aquele que garante ao trabalhador uma

renda mínima, capaz de lhe proporcionar bem-estar; um ambiente social amistoso entre

os colegas e os demais ocupantes da cadeia hierárquia, de forma a existir respeito

mútuo; direito ao descanso, este sob a forma de jornada diária de trabalho limitada,

repouso semanal e férias anuais; proteção à vida, saúde e segurança; não-

discriminação da mulher e do menor etc48.

Assim, insistimos que o princípio da dignidade da pessoa humana no meio

laboral está atrelado à garantia dos direitos mínimos de proteção e na tese de que os

princípios sociais do trabalho se encontram erigidos à condição de cláusula pétrea, de

forma que, perante o momento flexibilizador das relações de emprego, sentimo-nos na

obrigação de defender a bandeira de que tais garantias são incólumes, visto que há

Projeto de Lei visando prevalecer o negociado sobre o legislado, a ponto de nos

opormos à tese de que tudo possa ser flexibilizado, tampouco negociar a garantia

mínima de direitos do trabalhador.

Se o § 4º do art. 60 da Constituição prevê que os direitos e garantias individuais

– e, por conseqüência, os direitos sociais, incluindo-se, por inevitável, o direito do

trabalho – não serão abolidos em face de propositura de emenda, não há como admitir

qualquer iniciativa do poder constituinte derivado no sentido de restringir ou abolir

46 Eduardo Henrique Raymundo von Adamovich, Direito do trabalho, São Paulo : Saraiva, 2008, p. 3 (Col. Roteiros Jurídicos). 47 Paulo Santos Rocha, Flexibilização e desemprego, Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 12. 48 Amauri Mascaro Nascimento, ob. cit., p. 168.

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direitos trabalhistas. Repetimos: os direitos sociais do trabalho estão erigidos à

condição de cláusula pétrea. É assunto bem consolidado em sede jurisprudencial49.

O adjetivo “pétrea” já traz consigo o significado “de pedra; duro”; enfim, que tem

mesmo a resistência desse mineral sólido. E aprendemos com os professores e

doutrinadores que as cláusulas pétreas são insuscetíveis de mudança formal;

portanto, são elas imodificáveis, irreformáveis, inalteráveis.

Como abertamente defendemos, a cláusula pétrea é uma cláusula imutável.

Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco50 sintetizam

sua aplicabilidade: “(...) tem a missão de inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto

básico. Pretende-se evitar que a sedução de apelos próprios de certo momento político

destrua um projeto duradouro”.

Ainda sim, data maxima venia, há quem compactue com a tese de que é

possível alterar, modificar ou regulamentar as cláusulas pétreas51, na medida em que o

art. 60, § 4º, da Constituição Federal utiliza expressamente apenas o verbo abolir, isto

é, o sentido seria o de que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda

tendente a abolir” os direitos e garantias individuais; portanto, se o § 4º do art. 60 da

Lei Maior impede qualquer proposta de emenda vocacionada a abolir direitos e

garantias individuais, poder-se-ia ler também que os direitos sociais do trabalho se

submeteriam a alteração, modificação ou regulamentação (grifo nosso). Opomo-nos a

essa tese.

49 Decidiu o STF (grifos nossos a seguir): “O inciso IV, do § 4º, do art. 60, da Constituição do Brasil, veicula regra dirigida ao Poder Constituinte derivado, que é quem não deverá deliberar sobre proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais. (...) vale dizer não excluir do texto da Constituição qualquer dos direitos ou garantias individuais (...) mercê do que o Minsitro Carlos Ayres Brito chama de interpretação generosa ou ampliativa das cláusulas pétreas” (STF, Pleno, RE 3.105-8/DF, Rel. orig. Min. Ellen Gracie, Rel. P/ acórdão Min. Cezar Peluso, voto do Ministro Eros Grau, decisão de 18-8-2004). O Ministro Marco Aurélio consignou que as garantias do art. 60, § 4º, aplicam-se aos direitos sociais: “Tivemos, Senhor Presidente, o estabelecimento de direitos e garantias de forma geral. Refiro-me àqueles previsto no rol, que não é exaustivo, do art. 5º da Carta, os que estão contidos, sob a nomenclatura ‘direitos sociais’, no art. 7º e, também, em outros dispositivos da Lei Básica Federal, isto sem considerar a regra do § 2º do art. 5º” (STF, Pleno, ADIn 937-7/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, decisão de 15-12-1993, DJ, 1, de 18-3-1994, p. 5165, trecho do voto do Ministro Marco Aurélio, RTJ, 150:68). 50 Curso de direito constitucional, São Paulo : Saraiva, 2007, p. 213 a 215. 51 Manoel Gonçalves Ferreira Filho, O poder constituinte, 3.ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 181. Diametralmente em oposição, temos Gilmar Mendes et alii, Curso, cit., p. 213, uma vez que a esses autores: “No tocante aos direitos e garantias individuais, mudanças que minimizem a sua proteção, ainda que topicamente, não são admissíveis (grifos nossos).

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Fazendo-se um paralelo, interessante recordar que não há muito tempo cogitou-

se de permitir a pena de morte no Brasil em outras circunstâncias, além daquela contida

na alínea a do inciso XLVIII do art. 5° da Constituição Federal – em caso de guerra

declarada, nos termos do art. 84, XIX. Ocorre que, por desconhecimento de alguns ou

oportunismo político de outros incautos em momento de crise social, vale dizer que a

vida humana é erigida à condição de princípio fundamental (Título I da CF) e direito e

garantia fundamental (Título II, alínea a do inciso XLVII do art. 5º da CF). A proposta

repercutiu e ainda repercute em todos os setores da sociedade, mas a imposição da

pena de morte só se pode talvez efetivar-se em virtude de uma nova Constituição,

dado que somente ao poder constituinte originário, a quase tudo, como se vê, é

possível em razão de sua qualidade fundacional, genuína, primária, primogênita ou de

primeiro grau, ainda que subliminarmente tenhamos limites extrajurídicos, ideológicos,

institucionais e substanciais52. Assim, a título comparativo, por tudo o que dissemos,

como flexibilizar direitos trabalhistas?

7. Flexibilização no direito comparado – referências históricas Até hoje, não temos conhecimento de que as medidas flexibilizadoras adotadas

em alguns países latino-americanos, no caso Uruguai, Chile, Colômbia, Argentina,

Peru, Panamá e Brasil, tenham beneficiado suas economias a ponto de reduzir o

número de desvalidos53, pois, ao que tudo indica, a “excessiva normatização

trabalhista” não é responsável pelo desemprego, mas sim a falta de investimento em

saúde e educação, bem como a total omissão dos governos em adotarem uma política

econômica robusta, capaz esta de promover uma verdadeira revolução tributária, além

de uma corajosa iniciativa política no sentido de salvaguardar a res pública, haja vista

que a imprensa e a própria história de nosso país nos revelam como nosso dinheiro tem

sido desviado para atender a fins no mínimo suspeitos.

52 Para Uadi Lammego Bulos, tais limites situam-se fora do campo jurídico-positivo, uma vez que o poder constituinte originário se limita: “pelas estruturas políticas, sociais, econômicas e culturais dominantes na sociedade, bem como pelos valores ideológicos de que são portadores” (ob. cit., p. 289). Nesse sentido, Marcelo Rebelo de Sousa, Direito constitucional, p. 62. 53 Em alusão a Oscar Ermida Uriarte, v. “Especialista aponta fracasso da flexibilização na América Latina”, disponível em http://www.direito2.com.br/tst/2003/abr/9. Acessado em 15 fev. 2008.

21

Nos países da América do Sul, ao contrário do que acontece na Europa, onde

encontramos um contexto econômico, social e cultural totalmente diverso que dispensa

maiores considerações por razões óbvias, segundo Mauro de Azevedo Menezes o que

aqui existe é a denominada flexibilização predatória, isto é, o Estado simplesmente não

tutela com eficácia as relações mínimas de trabalho nem há uma organização sindical

plena, como se poderia esperar, capaz esta de proporcionar um equilíbrio nos acordos

ou convenções coletivas ou de motivar uma adesão maior por parte dos trabalhadores,

tanto que, como observado na maioria dos casos, o interesse empresarial sempre

prevalece – vejamos que, contra a maré, insistimos na unicidade sindical54.

Na verdade, as normas de origem estatal poderiam ser flexibilizadas desde que

ao trabalhador não houvesse prejuízo das garantias mínimas, estas atreladas à

preservação de sua dignidade, haja vista o exemplo alemão55.

Como nos propusemos neste momento a investigar a seara alienígena, não

podemos deixar de referenciar as principais impressões do Professor uruguaio Oscar

Ermida Uriarte, que, aliás, nos apresenta estudos reveladores sobre a flexibilização e

desregulamentação trabalhista nos países latinos, uma vez que essa proposta, em

apoio aos interesses neoliberais, tem como primado a não-intervenção do Estado nas

relações individuais de trabalho, de forma que cada trabalhador seja forçado a negociar

com o empregador a venda de sua força de trabalho56.

Cumpre destacar que na opinião do estudioso são, de um lado, essencialmente

econômicos os fundamentos teóricos da flexibilização e, de outro, como ele mesmo diz,

54 Prevista na Constituição Federal, art. 8º, inciso II, unicidade sindical significa em linhas gerais que não pode haver mais de um sindicato de mesma categoria profissional ou econômica em uma mesma base territorial, ou seja, no respectivo município. Para maior aprofundamento do tema, v. Amauri Mascaro Nascimento, Compêndio de direito sindical, 4.ed., São Paulo : LTr, 2005; e José Cláudio Monteiro de Brito Filho, Direito sindical, 2.ed., São Paulo : LTr, 2007. 55 Para Wolfgang Däubler, os novos tempos acenam para uma necessária flexibilização do trabalho e do mercado, mas com a manutenção de institutos que assegurem direitos tradicionais do trabalhador (“Direito do Trabalho na União Européia e na Alemanha”, curso realizado pela Fundação Friedrich Ebert, Porto Alegre, 28 e 29 de agosto de 2000, apud Mauro de Azevedo Meneses, Principais aspectos jurídicos da reforma trabalhista no Cone Sul, Policy Paper, n. 27, maio de 2001). Quanto ao aspecto sindical, opina Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena: “(...) com o reconhecimento da organização sindical, dos contratos coletivos de trabalho, da ação coletiva, que são instituições jurídicas exclusivas do novo Direito, admite o Estado Moderno meios de pressão, juridicamente organizados, que traduzem a permanente necessidade de resguardar, com maior tônus jurídico, a defesa dos interesses de uma das partes do contrato individual do trabalho: o empregado” (Relação de emprego – estrutura legal e supostos, 2.ed. São Paulo : LTr, 1999, p. 38-09). 56 Flexibilidade, ob. cit.

22

“tecnológico-produtivos”, observando-se também nesse contexto um notório

enfraquecimento do poder de negociação dos sindicatos latino-americanos, quer pela

supremacia do capitalismo, esta culminada com os reflexos da queda do muro de

Berlim, quer pelo menosprezo ao solidarismo social e sim pelo cultivo ao individualismo

no trato das relações humanas.

Assim, em oposição aos postulados da heteroproteção, uma vez que ao Estado

caberia promover a defesa do trabalhador, com o intuito de adotar uma postura

intervencionista como forma de dispensar ao segmento social mais fraco uma base de

sustentação jurídica a seu favor57, encontramos nesses países, à margem de uma

miséria que parece não ter mais fim, os reflexos de uma visão economicista subsidiada

pelo neoliberalismo.

Portanto, em face do que nos é permitido discorrer no formato deste trabalho,

não esgotaremos a temática por meio de uma seleção quase inesgotável de casos,

mas procuraremos relacionar as principais iniciativas flexibilizatórias que mereçam

destaque.

Necessário dizer que para Uriarte58, embora pouco lembrado em termos de

desregulamentação imposta na América Latina, o Brasil representa o marco inicial. Isto

se deve à Lei n. 5.107, de 13 de setembro de 1966 (FGTS), que substituiu a

estabilidade decenal, pois, até então, esta conferia ao trabalhador com mais de dez

anos de antigüidade na empresa a possibilidade de ser incorporado caso não houvesse

justa causa para sua eventual demissão. A adoção do referido fundo acabou por

consolidar o fim da estabilidade absoluta para trabalhadores com mais de 10 anos de

emprego, uma vez que acabou por culminar em maior rotatividade no emprego, já que,

nos padrões brasileiros, o trabalhador não permanece mais de dois anos numa mesma

empresa. E cumpre-nos lembrar o viés da moeda: quanto mais tempo estiver o

trabalhador na empresa, os eventuais 40% a título de indenização na hipótese de

demissão sem justa causa incidirão sobre um montante de depósitos sempre maior. E o

empregador, sabidamente, não quer arcar com isso, haja vista os “acordos” entre as

partes quanto à parcela indenizatória.

57 Amauri Mascaro Nascimento, A concepção heterotutelar do trabalhador, ob. cit., p. 154. 58 Ob. cit., p. 30 e 31.

23

Iniciando nossas considerações acerca do Uruguai, ainda que nesse país,

segundo Uriarte59, não tenha sido promulgada uma “lei geral de flexibilização”, mas

“normas de efeitos flexibilizadores indiretos”, dando a impressão de que não tenha

havido sequer flexibilização na legislação daquele país, o fato é que houve. Embora a

legislação seja protetora, como prevê o art. 53 de sua Constituição, por não dispor de

um código ou lei geral do trabalho, mas sim leis especiais, o ordenamento uruguaio

permite lacunas, daí dando azo à flexibilidade. Por exemplo, há no país casos de

flexibilidade gratuita ou incondicional que são verificados nas convenções coletivas a

ponto de elas serem ilegais. Outro caso de desregulamentação é o do art. 29 da Lei n.

16.906/88 – aliás, uma lei não trabalhista, mas de iniciativas direcionadas à área de

investimentos –, que reduziu de 2 para 1 ano o prazo para o trabalhador propor

reclamatórias e de 10 para 2 anos o período correspondente a uma dívida trabalhista

acumulada não paga e possível de ser discutida na justiça obreira.

Como se pode observar da norma acima referida, ela acabou por cercear

eventual acumulação de direitos do trabalhador.

Por fim, gostaríamos de citar dois decretos de 9 e 11 de fevereiro de 2000, que

procuraram introduzir desregulamentações em matéria de descanso intermédio e de

salário de férias, mas que, dada a ilegalidade, acabaram por não prosperar.

Nesse cenário de normas flexibilizantes, cuja justificativa é a de atrair

investimentos e ampliar a oferta de empregos, decorrente não apenas do fracasso

uruguaio, mas também do insucesso geral na América Latina – como indicaremos a

seguir –, a OIT, em relatório, divulgou em 1998 que os modelos de flexibilização de

direitos trabalhistas “não conseguem gerar empregos, servindo para deteriorar as

condições de trabalho”60.

No Chile, principalmente a partir do Código do Trabalho de 1973, na mesma

toada de gerar empregos por meio da flexibilização – mas que na verdade só aumentou

o desemprego –, o poder do empregador assumiu patamares até então nunca vistos,

uma vez que este passou livremente a alterar as funções dos empregados, o local de

trabalho e seus horários. A nova ordem legal vetou a duplicidade de indenizações de

dispensa, a legal e a convencional, e a reintegração do trabalhador no emprego pela via 59 Idem, ibidem, p. 48. 60 “Especialista aponta fracasso da flexibilização na América Latina”, ob. cit., acesso em 15.fev.2008.

24

judicial. Em 1978, temos o período desolador implantado pelo general Augusto

Pinochet, que estabelece seu “plano laboral”, tendo reduzido ainda mais os direitos

trabalhistas individuais e coletivos ao proibir as greves. Nessa década, o desemprego

no país era de 7% e, em seguida, aumentou para 17%, chegando a 20%.

Em 1982, segundo Uriarte, o Chile editou novas leis, mas de cunho econômico,

não alterando a legislação trabalhista. Foi então que o desemprego passou a reduzir de

forma gradual, atingindo depois o patamar de 10%61.

Na Colômbia, temos como destaque a Lei n. 50 da Reforma do Trabalho, em 28

de dezembro de 1990, consagrando a desregulamentação em mais de cem artigos do

Código Trabalhista. Nesse sentido, autorizou-se o funcionamento de empresas de

trabalho temporário; a contratação precária ou por tempo determinado; a derrogação da

estabilidade decenal; novas hipóteses de ampliação da jornada de trabalho.

No Equador, destaca-se a Lei n. 133/91, que permitiu: novas modalidades de

contratos precários ou de tempo determinado; modalidades mais amplas de dispensa;

restrições ao exercício do direito de greve.

Quanto ao Peru, houve a edição de mais de cem decretos legislativos, em 1991,

com vistas à criação de novos empregos por meio de uma política desregulamentadora.

Depois, uma nova lei de relações coletivas de trabalho impôs a renegociação de todas

as convenções coletivas “a partir do zero”; por fim, temos o advento das cooperativas,

estas destinadas a fomentar a externalização da atividade laboral, que consiste,

segundo a visão de Huw Beynon62, na transformação de trabalhadores assalariados em

autônomos ou em prestadores de serviço.

No Panamá, a Lei n. 1/86 é conhecida por diminuir a sobretaxa das horas extras

e instituir a terceirização, além de não mais se aplicar ao trabalho em domicílio a

legislação trabalhista.

Ainda que vigente a Lei Orgânica do Trabalho na Venezuela, tal norma contém

várias disposições flexibilizadoras e, ao mesmo tempo, desreguladoras. Quanto às

primeiras, o dispositivo que autoriza a flexibilização da distribuição da jornada de

trabalho mediante acordo entre patrões e trabalhadores. Quanto às últimas, a

61 Idem, ibidem. 62 “O fim da classe operária inglesa?”, RBCS, n. 27, fev., 1995.

25

disposição que derroga a estabilidade numérica pela substituição por um regime

indenizatório.

Quanto à Argentina, o país onde a reforma trabalhista foi implantada com maior

intensidade63, na concepção de Uriarte, a flexibilização iniciou-se com a Lei Nacional de

Emprego de 1991, pois, visando a regularização do trabalho clandestino ou não

registrado, criou diversas medidas de flexibilidade, como a introdução de numerosas

formas de contratação de trabalho, atípica, precária ou menos protegida.

Depois, tivemos como segundo grande momento o Acordo-Modelo para

Emprego, Produtividade e Eqüidade Social, de 25 de julho de 1994, que se destacou

por conter numerosas disposições flexibilizadoras pactuadas pelas cúpulas sindical,

empresarial e governamental e também por inserir a legislação negociada. Nesse

período, acorda-se legislar sobre novos contratos atípicos, como os de experiência e de

aprendizagem, para as empresas de pequeno e médio porte, além de incentivos fiscais

para a solução extrajudicial de conflitos.

Em 1995, promulgou-se a Lei n. 24.465, que modificou a Lei de Contrato de

Trabalho ao introduzir quatro novas modalidades de contratação atípica: a de

aprendizagem; a de tempo parcial; a de maiores de 40 anos; a de mulheres, portadores

de deficiência e ex-combatentes da guerra das Malvinas; e a de experiência.

Por último, destacamos a Lei n. 24.467/95, que concede às pequenas e médias

empresas o poder de contratação precária sem prévia habilitação por convenção

coletiva, o que resultou, por exemplo, dentre outras possibilidades, no parcelamento do

pagamento do 13º salário.

8. Questões conclusivas quanto ao nosso ordenamento: é possível flexibilizar? Em 2004, o então presidente do TST, Vantuil Abdala, afirmou que os exemplos

de flexibilização implementados na Espanha, Chile, Uruguai e Colômbia são

verdadeiros casos de frustrada tentativa de desregulamentação trabalhista, pois, em

vez do esperado aumento de emprego, o resultado final foi exatamente o contrário64.

63 Nos dizeres de Ricardo E. Medina Mailho, “se há utilizado la flexibilidad laboral más como sinónimo de precarización que de adaptación” (Empleo y flexibilidad laboral, Buenos Aires : Astrea, 1996, p. 3). 64 “Em todo o país, discursos e tributos a Vargas”, O Estado de S.Paulo, 25 ago. 2004, disponível em http://pdt12.locaweb.com.br/paginas.asp?id=57, acessado em 15-2-2008.

26

De acordo com o que dissemos anteriormente, a flexibilização, ao que tudo

indica, não parece ser a solução para a conquista de novos empregos pelo trabalhador

brasileiro, pois, ainda que algumas disposições constitucionais atendam aos preceitos

neoliberais, não foram estas capazes de aumentar o número de vagas no mercado de

trabalho. Aliá, como vimos, países que adotaram tal procedimento em suas

constituições também não obtiveram bons resultados.

Para comprovar essa tese, basta atentarmos para o fato de que no Brasil a

verdadeira causa do aumento recente do nível de emprego foi o desenvolvimento

econômico da Nação principalmente no segundo mandato do governo Lula, na medida

em que o contexto mundial em dado momento se mostrou propício às exportações, sem

contar que a estagnação econômica que data do final do governo anterior de Fernando

Henrique Cardoso permitiu, em razão desse gargalo, inevitável recuperação econômica.

A questão, que não é novidade a ninguém, é a seguinte: o poder econômico já

se infiltrou nos meandros do Estado, a ponto de diminuir o espaço tão arduamente

conquistado pelas camadas assalariadas e dependentes. Segundo Luiz Gonzaga

Belluzo, “A economia se transfigura num mecanismo despótico que subordina a vida do

cidadão comum a seus desígnios”65.

Nesse cenário de consternação, o ministro do Tribunal Superior do Trabalho,

José Luciano de Castilho Pereira66, indaga se a classe trabalhadora brasileira, diante de

possível flexibilização dos direitos trabalhistas, principalmente aquela dos rincões mais

inóspitos do território nacional, é de fato capaz de negociar ou “debater” com os

empregadores as disposições de seu contrato de trabalho, tais como as garantias que

hoje lhe são devidas, como salário digno, adicionais, ambiente sadio, dentre outros

benefícios que lhe garantam o mínimo ideal a sua sobrevivência e a de sua família.

É claro que esse trabalhador não tem condições de argüir coisa alguma perante

seu empregador nessas condições. Apenas a título de comparação, a fim de

argumentar que a questão não provém apenas das regiões mais recônditas, citamos,

no caso, o questionamento perante o Tribunal Superior do Trabalho de cláusulas de

Convenções Coletivas de Trabalho ou de Acordo Coletivo atentatórias à segurança do

65 Artigo publicado no jornal Correio Brasiliense, 30 set. 2001, disponível em www.tst.gov.br, José Luciano de Castilho Pereira, “Rumos do direito do trabalho”, acessado em 15-2-2008. 66 “Rumos do direito do trabalho”, ob. cit., p. 4.

27

trabalho e segurança pública, uma vez que o Ministério Público, por meio de ações

anulatórias, tem provocado a Justiça a se pronunciar sobre nulidades como estas: a

permissão do trabalho de motoristas de transportes coletivos sem intervalo; e até

mesmo a possibilidade de reduzir-se a garantia de emprego para a mulher a partir do

parto!67

A realidade do século XXI apresenta-nos de forma indisfarçável: crescimento

populacional exacerbado; transporte caótico; poluição desenfreada; escassez dos

recursos naturais; pobreza; descontrole de epidemias e aparecimento de novas

doenças; desenvolvimento tecnológico frenético acessível a uma minoria. Mesmo diante

de um cenário pessimista como esse há sempre alguma esperança, pelo menos em

relação ao primado do trabalho. Vejamos.

Mesmo apontado e combatido por muitos como uma ameaça aos empregos, no

caso, o desenvolvimento tecnológico, que se dá num ritmo tão assustador que não

conseguimos acompanhá-lo, a ponto de ficarmos totalmente desinformados em relação

à última inovação tecnológica de um dia para o outro, quem diria, como bem lembrado

por Leonardo Rabelo de Matos68, que esse algoz da classe trabalhadora em algum

momento poderia ser apontado como uma ferramenta de empregabilidade e, melhor

ainda, de garantia de direitos trabalhistas indisponíveis. Estamos falando do empregado

móbile. Aquele trabalhador que trabalha em casa e cujo ramo de atuação, ligado à

tecnologia da informação, permite-nos identificar os elementos formadores do vínculo

empregatício: subordinação; habitualidade ou não eventualidade; onerosidade;

pessoalidade; e pessoa física.

Por estar conectado em tempo real, esse trabalhador não tem como disfarçar

que não deixou de cumprir as 44 horas semanais de trabalho (habitualidade), ou que

deixou de se submeter ao cumprimento de ordens de seu superior hierárquico para

atingir determinadas metas (subordinação), tampouco não detinha o conhecimento

especializado para a realização de determinada tarefa (pessoalidade), muito menos que

por essa relação percebia o pagamento de salário (onerosidade).

67 Idem ibidem. 68 Empregado móbile – como são as relações de emprego para quem trabalha em casa. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/63528,1. Acessado em 31 mar. 2008

28

Mas o que mais suscita indignação, não sem razão, entre empregadores são os

encargos sociais que incidem na folha de pagamento de seus empregados. Na outra

ponta, a questão da “globalização”, que até parece assunto ultrapassado e trivial como

uma das razões da exclusão social, isto de tanto nós brasileiros falarmos a respeito e

não agirmos de uma vez por todas para impedir o que seja certamente seu efeito mais

devastador: a flexibilização e conseqüente precarização das relações de emprego, que

há tempos já se incorporou, quer em nossa própria Constituição Federal “cidadã”, como

relacionamos ao tratarmos do histórico da flexibilização brasileira, quer em normas

infraconstitucionais, na jurisprudência e até, por incrível que pareça, no discurso de

alguns estudiosos que acenam favoravelmente a esse cenário desolador para o

trabalhador brasileiro.

Quanto às normas infraconstitucionais, o professor e magistrado Jorge Luiz

Souto Maior69 traz os seguintes exemplos: é permitida dispensa do empregado sem

justo motivo mediante o pagamento de aviso prévio mais 40% do montante de todos os

depósitos efetuados durante o contrato de trabalho (Decreto n. 99.684/90), além de

outras verbas devidas; contrato temporário (Lei n. 6.019/74); contrato provisório (Lei n.

9.601/98); contrato a tempo parcial (art. 58-A da CLT); estágios (Lei n. 6.494/77);

cooperativas de trabalho (art. 442, parágrafo único, da CLT); várias utilidades

concedidas ao trabalhador que não mais se consideram salário (art. 457, § 2º, da CLT);

prazo prescricional dos direitos dos trabalhadores rurais fixado em cinco anos (EC n.

28); compensação de horas de trabalho pelo sistema de banco de horas (art. 59 da

CLT); comissões de conciliação extrajudicial, com o poder de mediar acordos com

efeito liberatório das obrigações trabalhistas (Lei n. 9.958/2000).

E posição favorável ao fenômeno da flexibilização que temos a exemplificar é a

de José Pastore70, para quem “a flexibilização do Direito do Trabalho é uma

necessidade para a diminuição dos encargos sociais trabalhistas, o que aumentaria,

consideravelmente, as possibilidades de contratação regular”.

O fato é que diante a tudo isso não reagimos. Há alguma coisa no

comportamento do brasileiro que o impede de mudar as coisas para melhor. Talvez seja

69 “A fúria”, ANAMATRA, Revista Trabalhista, 5 set. 2006, p. 11. 70 A agonia do emprego, São Paulo, LTr, 1997, apud João Marcos Castilho Morato, Globalismo e flexibilização trabalhista

29

a falta de consciência. Consciência de seu papel na sociedade, de que os políticos e

legisladores devem honrar o voto em prol do bem comum; enfim, falta de consciência

de que sem educação ele não vai a lugar nenhum. Estamos acostumados ao velho

chavão: somos “bonitos por natureza”71. E esvai-se nossa dignidade.

Aliás, por mais repetitivos que possamos parecer, é necessário retomar a

questão da dignidade humana. Mesmo não sendo possível estabelecer uma linha

temporal nem fixar precisamente a transição de um momento para outro, ou seja,

quando começam ou terminam os direitos fundamentais de primeira geração e os de

segunda geração72, o fato é que quando se menosprezam direitos trabalhistas ou se

colocam em cheque os princípios sociais trabalhistas contidos na Constituição, estes

sopesados à condição de cláusula pétrea73, desestimulados, até pensamos

sinceramente que não há muito que fazer ou como enfrentar a questão, mas quando

tomamos conhecimento de que figuras ilustres, cada um a seu modo e em sua área de

atuação, com sua rara inteligência e perspicácia, conseguem nos fazer despertar para

esse estado de coisas, acabamos mudando de idéia e criamos forças para seguir em

frente e lutar, pois, por mais aculturado que seja nosso povo e coniventes os governos

que se sucedem, “The pen is powerful than the sword”!

Lembramos primeiro do sociólogo Herbert José de Souza na televisão, o

Betinho74, dando entrevista sobre exclusão social e anistia pós-período militar. Depois,

71 Como indicado anteriormente, oportuna a leitura do artigo do magistrado Jorge Luiz Souto Maior, “A fúria”, que, em epígrafe de Renato Russo, nos coloca uma bela carapuça: “... até bem pouco tempo atrás poderíamos mudar o mundo, quem roubou nossa coragem?”. 72 Paulo Bonavides prefere o termo “dimensões” a “gerações” dos direitos fundamentais, por entender que: “dada sua imprecisão terminológica, aqueles transmitem a idéia de direitos que se sucedem em linha linear ao longo das épocas, o que não é certo, posto que se encontram em incansável processo de transferência, acumulação, transformação, irradiação ou refortalecimento”. Apud, Paulo Santos Rocha, ob. cit., p. 9. No mesmo sentido, Andréas Joachim Krell, Realização dos Direitos Fundamentais Sociais mediante Controle Judicial da Prestação dos Serviços Públicos Básicos (uma visão comparativa), Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal, subsecretaria de Edições técnicas, n. 144, out./dez., 1999, p. 240 e s. 73 Para Gilmar Ferreira Mendes et alii, ob. cit., p. 214, “(...) os direitos sociais não podem deixar de ser considerados cláusulas pétreas. No Título I da Constituição (Dos Princípios Fundamentais) fala-se na dignidade da pessoa humana como fundamento da República e essa dignidade deve ser compreendida no contexto também das outras normas do mesmo Título em que se fala no valor social do trabalho, em sociedade justa e solidária, em erradicação da pobreza e marginalização e em redução de desigualdades sociais”. Em sentido contrário, data maxima venia, Ives Gandra da Silva Martins Filho (intervenção no 1º Congresso de Direito Constitucional do IDP, outubro de 1998). 74 Cumpre-nos transcrever ao leitor alguns pensamentos do sociólogo mineiro: “O que nos falta é a capacidade de traduzir em proposta aquilo que ilumina a nossa inteligência e mobiliza nossos corações: a construção de um novo mundo" (1993); "Um país não muda pela sua economia, sua política nem

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não podemos esquecer jamais de Miguel Reale75 neste parágrafo: “O que mais me

impressiona nas divergências sobre o papel do Estado em nossa economia é a

absoluta falta de consciência constitucional. Esse é um dos piores males que afligem o

País, estendendo-se até os mais altos postos de governo, sem exclusão do Judiciário,

pois magistrados há que continuam a sentenciar segundo o espírito e os parâmetros da

tão malfadada Carta do regime tecnocrático-militar, acolhendo decisões burocráticas

que consubstanciam inadmissível abuso de poder”. Finalmente, quem não se lembra da

voz de Renato Russo76, lá de Brasília, em brado retumbante: “Ninguém respeita a

Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação. Que País é este?”.

Os preceitos constitucionais, que têm por fundamento o solidarismo, ainda

resistem à verdadeira e nociva intenção da flexibilização: a desregulamentação do

direito do trabalho. Se concretizado esse ideal do capital, teríamos nesse estágio

programático do ideário neoliberal, o mais pleno ápice orgástico dos ensinamentos

preconizados por Hayek e Friedman.

Mas enquanto os direitos dos trabalhadores e os de sindicalização forem

reconhecidos universalmente, tal como sempre o foram desde os mais remotos tempos,

como direitos constitucionais de segunda geração, o emprego com salário continuará a

existir como dever de o Estado promovê-lo, pois a Constituição da OIT proclama que o

trabalho não é mercadoria!77. E o melhor: “a justiça constitui o valor maior de todo e

qualquer ramo do direito, e a valorização do trabalho humano é, além de princípio

fundamental da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, IV), também um dos

princípios gerais da atividade econômica (CF, art. 170, caput)”78.

mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura" (1993); “É possível pensar nesta realidade: ter não somente um balanço financeiro das empresas, mas um social, para que o conjunto da sociedade tome conhecimento do que já avançamos e do que teremos ainda a avançar nessa direção” (1997). V. Transformações e sociedade, disponível em http://www.conversascombetinho.org.br/ , acesso em 11 fev. 2008. 75 O Estado democrático de direito e o conflito das ideologias, 2.ed., São Paulo, Saraiva, 1999, p. 47. 76 Que País é este, in Que País é este, EMI Music, 1978-1987, faixa 1. 77 Paulo Santos Rocha, Flexibilização e desemprego, Rio de Janeiro : Forense, 2006, p. 57. 78 Henrique Hinz, Direito individual do trabalho, São Paulo : Saraiva, 2006, p. XVIII (Apresentação).

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