383

FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído
Page 2: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Orelhas

Florbela Espanca

Bíblia de iniciação amorosa,

dicionário das vicissitudes da

mulher, libro-de-horas da dor −

assim é a poesia de Florbela

Espanca. Dela emana um feitio

insurrecto que tem

escandalizado e encantado,

desde 1930, seus leitores,

quando apenas depois de

morta, a poetisa se torna

(afinal) conhecida. Daí por

diante suas obras em verso têm

cumprido uma história de

acirradas polêmicas e de

veemente best-seller, todas aqui

publicadas, a começar pelo

manuscrito inaugural, ainda há

pouco inédito, além da seleção

dos poemas esparsos: Trocando

Olhares (1915-1917), Livro de

Mágoas (1919), Livro de Sóror

Saudade (1923), Charneca em

Flor (1931) e Reliquiae (1931).

A interlocução com o universo

masculino e o exercício

permanente do amor imprimem

a tal obra uma continuada

verrumagem acerca da condição

feminina, que vasculha os ritos

sociais, os jogos de sedução, os

interditos, os privilégios − a

maldição. Nessa rota,

assenhorando-se do estatuto

tradicional da mulher para pô-

lo em causa, Florbela acaba

retirando dele um corolário que

o torna ativo, visto que

redimensionado em bem

literário. E eis que o infortúnio,

tornado na acepção de

prerrogativa feminina, se

converte, por seu turno, numa

estética em que a dor é a

matéria prima, capaz de criar,

apurar e transfigurar o mundo −

única e verdadeira senda de

conhecimento reservada à

mulher.

Como o leitor há de constatar,

Florbela consegue, através dos

seus poemas, o prodígio de

transmutar a histórica

inatividade da mulher em...

genuína força produtiva! E esse

(a bem dizer) é apenas um dos

seus muitos dons.

Maria Lúcia Dal Farra

Page 3: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Poemas de

Florbela Espanca

Estudo Introdutório, Organização e Notas de

Maria Lúcia Dal Farra

Martins Fontes

São Paulo - 1977

Page 4: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Copyright Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

São Paulo, 1996, para a presente edição

1ª edição - dezembro de 1966

2ª tiragem - outubro de 1997.

Organização da edição e estabelecimento do texto

Maria Lúcia Dal Farra

Revisão

Sonia Maria Amorim

Preparação do original

Vadim Valentinovitch Nikitin

Revisão Gráfica

Juliane Rodrigues de Abreu

Lilian Jenkino

Produção Gráfica

Geraldo Alves

Paginação

Moacir K. Matsusaki

Fotolitos

Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Capa

Suzana Laub

Page 5: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela,

um caso feminino e poético

******************************************

Digitalização,

Revisão e Formatação

U

Luis Antonio Vergara Rojas

******************************************

LAVRo

Page 6: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

A Renata Dal Farra Carsava

Page 7: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

I.

O Affaire Florbela Espanca

Pode-se dizer de Florbela Espanca o mesmo que de

Inês, já que aquela se tornou, tanto quanto esta, rainha − e

apenas depois de morta.

Até a passagem do dia 7 para 8 de dezembro de 1930

− data em que, ritualisticamente, Florbela se suicida no

momento em que completa trinta e seis anos −, ela havia

alcançado publicar, tão-somente às próprias custas, a

pequena tiragem de duzentos exemplares para cada um

dos seus dois volumes de poesia: o Livro de Mágoas, em

1919, e o Livro de "Sóror Saudade", em 1923.

Ignorada por completo pelo público leitor e pela

crítica, sua obra tinha sido vagamente saudada na altura,

pelos comentaristas de plantão, como mais uma das

(abundantes e inexpressivas) flores do galante ramalhete

das poetisas de salão, onde, logo mais, se iniciaria o

fulgurante (e hoje absolutamente esquecido) reinado de

Virginia Victorino. Deveras; o Correio da Manhã

parabenizava alegremente, através de Florbela, o

"contingente de senhoras" poetisas, que "cresce dia a dia",

aclamando-as e considerando serem sempre "benvindas

quando, como esta, saibam versejar"!

Gastão de Bettencourt, em O Azeitonense, aplaudia o

Livro de Mágoas como "missal de amargura que a nossa

Page 8: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas X

alma compreende, sente e partilha, subindo numa

ascensão maravilhosa em que suavíssimos cânticos nos

envolvem"... Dos recortes que conservou sobre o primeiro

livro, Florbela lera que imprimia a seus versos "toda a

ternura, todo o sentimento de uma alma de mulher". Que o

volume se irradiava como um... "verdadeiro mimo", o que,

sem dúvida, na suspeita hierarquia de tais considerações,

angariava para ela uma (sic) "formosíssima estréia no

mundo das letras", como bem o assegurava o Século da

Noite.

Do Livro de "Sóror Saudade", o mesmo periódico dizia

que se tratava de uma obra "de ternura e de bondade, um

pouco dolorosa, talvez, impregnada de uma tristeza de

renúncia", altruísmo consoante ao que se aguarda das

mulheres, o que, supostamente, deveria alçá-lo à

benquerença e à cumplicidade das colegas de infortúnio.

E o Diário de Lisboa comentava que Florbela tinha

ingressado, então, numa "fase de confidências

murmuradas com lábios levemente tocados do exílio do

claustro"...

Mas, por entre esse coro afinado de pasmaceiras,

Florbela tivera a oportunidade de conhecer o solo de uma

voz, cujo reacionarismo pontuava solto com saliências de

prima-dona, e no qual a complacência preconceituosa era

substituída pelo seu reverso: a indignação. O jornal lis-

boeta católico A Época acusava o Livro de "Sóror Saudade"

de "revoltantemente pagão" e "digno de ser recitado em

honra da Vênus impudica"1 Florbela "blasfema", tem

atitudes de "requintada voluptuosidade", de típica "escrava

1 Todos os comentários que gloso sobre o Livro de Mágoas e sobre o Livro de

''Sóror Saudade" foram encontrados nos papéis pessoais de Florbela, em recortes

que ela conservou e que se acham hoje depositados no seu espólio da Biblioteca

Nacional de Lisboa. Tais guardados provam que a poetisa teve conhecimento

completo dessas amenidades controversas...

Page 9: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XI

de harém", porque nem sequer chegou a descobrir "o

tesouro escondido no Evangelho"! Era preciso, pois,

infringir a ela que purificasse, com "carvão ardente", os

"lábios, literariamente manchados", e que pedisse "perdão"

a Deus por ter feito "mau emprego" das aptidões com que o

Criador a galardeara... O diretor J. Fernando de Sousa,

escondido no pseudônimo de "Nemo", terminava o artigo −

e, este sim, deve ter queimado a vista da poetisa! −

esclarecendo: "Com pesar afirmo que é um livro mau o seu,

um livro desmoralizador."

Já se vê que, das críticas recebidas em vida por

Florbela, a única veemência que ressoa dentre as pérolas

da apatia benevolente, sacramentadora dos preconceitos, é

aquela descarnadamente moral e depreciativa, aliás, da

mesma natureza que estes... De resto, é a sua

contemporânea Thereza Leitão de Barros quem informava,

na altura e com conhecimento, sobre o "frio acolhimento"

que as obras da poetisa tinham obtido. Ela mesma,

interessada em levantar uma história da literatura

feminina em Portugal, se ocupara em 1927, em duas meias

páginas dos seus dois volumes de Escritoras de Portugal,

em indicar os "tão evidentes 'senões'" da poesia de Florbela

Espanca. Enquanto se comprazia em comentar, com fartos

elogios, a obra de Virginia Victorino, restringia-se em

reparos inócuos sobre o estranho nome da poetisa,

dedicando-se sobretudo ao que julgava serem seus

defeitos: o "exagerado subjetivismo elegíaco", o

"egocentrismo por vezes fatigante", embora surpreendesse

nos versos de Florbela uma "qualquer coisa", que não sabia

bem definir, mas que lhes imprimia "rara amplitude e

elevação lírica".

O parecer de Thereza Leitão de Barros vai-se

modificar, e muito, depois do suicídio de Florbela... Já

então porque será filtrado tanto pela admiração ao

póstumo Charneca em Flor quanto pelo testemunho da

Page 10: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XII

tácita e distante convivência que ambas mantiveram na

Portugal Feminino − revista na qual Florbela colaborara no

último ano de vida, que reunia uma facção do extinto

Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Aliás, será

Leitão de Barros uma das mais vibrantes articulistas da

primeira hora a tentar provar a legitimidade feminina e

poética da obra de Florbela, num esforço sutil e antecipado

em defesa das insinuantes acusações biográficas que, a

seguir, iriam grassar. Para tal, concorre imenso um fato

primordial: o de a imolada Florbela estar se constituindo,

involuntariamente, em bandeira política para a reativação

dos grupos feministas, dissolvidos pelo Estado Novo logo

em 1926.

Por outro lado, saliento que compreensão, mesmo,

Florbela só recebera, em vida, dos poetas seus pares. Em

1919, Américo Durão fizera publicar, na página literária de

O Século, de Lisboa, o soneto "Sóror Saudade", a ela

dedicado, cujo título Florbela adotará para o livro de 1923,

que ali comparecia acompanhado da resposta da poetisa –

"O meu nome". No mesmo ano, o volume de poemas Sol

poente, de Botto de Carvalho, estampava, numa de suas

páginas, uma peça dirigida "Para a Senhora Dona Florbela

Dalma". E é bizarro como ''A Princesa incompreendida",

deste que foi seu colega na Faculdade de Direito de Lisboa,

já revela, nessa altura, algo que a hoje divulgada biografia

da poetisa não registrava:

Frio e esguio, num dos seus pulsos,

Finos, nervosos, convulsos,

Terrível, pequenino e inapagável

O primeiro sinal dum suicídio em vão...

O fato é que Florbela sabia como ninguém que, para

ter leitores e ser reconhecida no seu trabalho, tinha de se

preocupar com o "mercado, com a publicidade, coisas

Page 11: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XIII

imprescindíveis a quem quer vencer". Desde as tentativas

que empreende a partir de 1916 para ser publicada,

quando já tinha pronto o seu primeiro livro de versos, o

Trocando Olhares, vai-se adensando nela essa convicção,

através da sua correspondência com as diretoras de

suplementos femininos, Madame Carvalho e Júlia Alves, e,

já de maneira mais lúcida e crítica, com Raul Proença2 Mas

o "horror" que demonstra, nesta carta de 1928 a José

Emídio Amaro, a "tudo quanto de perto ou de longe se

assemelha à popularidade" levara-a, como assevera por

último, a se fechar em si "como num sacrário". E é no

mínimo patético que só às custas da profanação desse

santuário Florbela se tivesse tornado... lida!

Apenas em 1930 ela conhecera Guido Battelli,

professor italiano, visitante na Universidade de Coimbra.

E, como ele se oferecera para editar suas últimas

produções, encantado com as próprias versões que, de

alguns poemas de Florbela, publicara na Itália (espécie de

passaporte para o exercício da sua corte a uma certa

nobreza decadente), ela então lhe confiara os originais de

2 Em Florbela Espanca, Trocando Olhares (Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da

Moeda), elaborei o estabelecimento dos oitenta e oito poemas do primeiro

manuscrito de Florbela Espanca, o Trocando Olhares, bem como a reconstituição

literária e histórica de cada um dos projetos poéticos nele contidos, que incluem,

inauguralmente, o homônimo Trocando Olhares, a que agora me refiro. A propósito

da interlocução de Florbela com Raul Proença, fundamental para a definição dos

rumos da sua poética, esclareço que, ao contrário do que afirma Rui Guedes, na

publicação que de Florbela empreendeu (Obras completas, Lisboa, Dom Quixote,

1985-1986), ele jamais "mexeu" nos versos da poetisa. No meu mencionado

trabalho, quando da análise do manuscrito Primeiros Passos, antologia que Florbela

remetera ao intelectual republicano logo após 18 de julho de 1916, comprovo que

a participação de Proença nesse manuscrito é impecável: anotações feitas a lápis e

à margem dos versos, identificadas por sua rubrica, e uma apreciação geral

assinada e esclarecendo os reparos. Assim fica definitivamente patenteado que o

alarde sensacionalista relativo às chamadas "ingerências" do impoluto republicano

sobre a obra de Florbela não passa de falso chamariz comercial, fabricado por Rui

Guedes, para a vendagem da sua coleção de oito volumes.

Page 12: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XIV

Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a

poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli,

certamente perplexo e condoído do acontecimento, dividido

entre a responsabilidade moral da edição e o montante

investido nela, vai procurar se desincumbir da tarefa pelo

menos a contento.

Nem ele nem os amigos próximos ignoravam como se

dera o desenlace, embora a versão oficial fosse a da morte

natural. O atestado de óbito, fixado nas declarações do...

carpinteiro Manuel Alves de Sousa, apontava "edema

pulmonar" como causa mortis, muito embora o terceiro

marido de Florbela fosse o Doutor Mário Lage − médico!

Há uma maciça mistificação em torno desse

acontecimento (família católica, interdição da palavra

"suicídio" na imprensa, receio de falatório), o que não

escapa a Battelli. De modo que, matreiro, enquanto a

família do marido da poetisa insiste em abafar a tragédia, o

nosso emérito professor vai manipulá-la, com o seu tanto

de mistério e de insinuações, como isca de vendagem para

a campanha publicitária que empreende, a seguir, a

preparar o iminente lançamento de Charneca em Flor3.

3 Os textos imediatos de Battelli aparecem em Coimbra ("Florbela Espanca",

Correio de Coimbra, em 20/12/1930), no Porto ("Elegia à morte de Florbela

Espanca", Jornal de Notícias, em 21/12/1930), em Lisboa ("Elegia", Portugal

Feminino, em 31/1/1931), alcançando o mais importante periódico português, o

Diário de Notícias de Lisboa, através do correspondente alentejano Celestino David

("Florbela Espanca, poetisa alentejana", em 14/12/1930, e "Charneca em Flor", em

25/1/1931, ambos no mesmo jornal), e cunhando definitivamente a obra e a vida

de Florbela por meio de um "In Memoriam", inserido na edição inaugural do

Charneca em Flor. Ali, ele apresentava as suas "Traduzioni" de onze peças do livro

(onde altera os titulas de duas delas) e publicava o "Irmã de Ariel" que,

desenvolvendo o "Florbela Espanca" do Correio de Coimbra, identificava agora a si

mesmo como sendo o tal "alguém" muito próximo a Florbela, que a versão anterior

não nomeava.

Page 13: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XV

No afã de prestigiar e de promover a poetisa pelas

suas próprias mãos, não se dá conta de que a equação que

veicula - a da aderência completa da biografia à obra, a

ponto de o leitor poder conhecer, através desta, as razões

secretas do insinuado suicídio –, é uma moeda de duas

caras4. Tal, digamos, avaliação, que não passa de um mero

expediente de especulação comercial, acarretará de

imediato, para a pessoa e a obra de Florbela, num contexto

social onde a moral pudibunda impera, o nariz torcido do

bom comportamento salazarista. Este se empenhará então

em interditar a obra e o recém-composto busto da poetisa,

enquanto a facção contrária tentava erguê-lo no Jardim

Público de Évora, em homenagem àquele símbolo

progressista que, sem o saber, Florbela começava então a

representar. Battelli, completamente fora de contexto, está

pouco atento às questões pelas quais passa a história

portuguesa nesse momento. Interessa-se, tão-somente, em

fazer Florbela divulgada por seus próprios meios. E é assim

que, ironicamente, o professor italiano se converte, sem o

consentimento dela, no grande anexo de Florbela, no porta-

voz oficial de tudo quanto a essa desconhecida e ignorada

escritora se referia...

O extraordinário boom editorial obtido por Charneca

em Flor é inédito na história da imprensa portuguesa.

4 Battelli entra em contato com roda a imprensa portuguesa, que, convencida do

seu conhecimento "íntimo" com a poetisa, lhe dará fé, divulgando, por todo o país,

a versão que ele lhe passa. Mais tarde, em 1937, o ilustre professor terá de

responder por isso, quando as sementes do que plantou lhe redundarão adversas.

Sobre tal específica polêmica, que ele manterá da Itália, cf. "Através da obra de

Florbela Espanca I e II", de J. Silva Júnior (Gil Vicente n. 13, vol. 3/4, Guimarães,

março-abril de 1937, pp.33-40, e n. 14, vol. 5/6, maio-junho de 1937, pp.68-77),

"À propos du 'narcisisme' de Florbela Espanca (lettre ouverte à M. Silva Júnior)",

de Battelli (Gil Vicente n. 15, vol. 9/10, setembro-outubro de 1937, pp. 135-136) e

"Florbela Espanca e a crítica: carta aberta ao ilustre Prof. Dr. Guido Battelli", de J.

Silva Júnior (Gil Vicente 11. 14, vol. 7/8, julho-agosto de 1938, pp.113-116).

Page 14: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XVI

Em pouco mais de uma semana a edição de janeiro de

1931 se esgota, e outra e mais outra são produzidas a

partir de então, insuflado que está o público leitor pelos

comentários veiculados pela imprensa - e, sobretudo, pelo

extenso e apaixonado editorial de António Ferro, no mais

importante periódico português de então, o Diário de

Notícias de Lisboa5. Assim, o entusiasmado Battelli pu-

blica, durante os próximos meses, tudo o que encontra de

Florbela. Reúne, no volume Juvenília, os poemas esparsos

que aqui e ali a poetisa divulgara na mocidade; reedita os

dois livros de poesias, acresce o Charneca em Flor de uma

seção, a que chamou de Reliquiae, e aproveita a boa maré

para fazer editar também o livro de contos inéditos, As

Máscaras do Destino, bem como a correspondência de

Florbela com Júlia Alves e... consigo. Tudo isso, pois, ainda

no ano de 1931! Apenas restaram inéditos os contos de O

Dominó Preto, o Diário do Último Ano, editados

5 António Ferro era casado com Fernanda de Castro, também escritora, com quem

Florbela procurara em vão se comunicar na véspera do seu suicídio (fato registrado

por aquela, na altura, e também recentemente em Ao fim da memória (vol. II

(1939-1987), Lisboa, Verbo, s/d, pp. 89-95)). Fatos bizarros esclarecem, no

affaire, a atuação móvel de Ferro, que transita de defensor loquaz e carismático da

primeira hora da causa florbeliana a opositor ferrenho e poderoso.

Ele havia sido contemporâneo de Florbela na Faculdade de Direito, segundo os

registros da Universidade de Lisboa; fora também o editor do n. 2 do Orpheu.

Graças à sua inteligência, erudição e desenvoltura, alçara-se rapidamente no

jornalismo e era, então, em 1931, diretor desse jornal. Agora toma para si a tarefa

de promover Florbela e de encabeçar uma campanha de donativos para a

confecção do busto sugerido por Celestino David no mesmo jornal, fazendo confluir

para aí também as forças das escritoras portuguesas, dentre as quais sua mulher

desempenha papel ativo. Todavia, Ferro é, em seguida, cooptado pelo Estado

Novo: torna-se Secretário da Instrução Pública em 1936 e, posteriormente, diretor

do Secretariado da Propaganda Nacional. Como tal, e já como componente do

governo salazarista, ele será o principal responsável por toda a sorte de embargos

criados contra o levantamento do busto da poetisa, segundo atestam testemunhos

da época e, em particular, um documento de António Bartolomeu Gromicho,

Presidente da Direção do Grupo Pró-Évora.

Page 15: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XVII

respectivamente em 1982 e 19816. E também o caderno

Trocando Olhares, caído, por acaso, nas mãos do

empresário português Rui Guedes, que o vendeu ao Estado

Português e que o publicou, aliás estapafurdiamente, em

19857.

Mas aqui a coisa se agrava. Com receio de se

comprometer, em vista da proporção espantosa que a

relação mecanicista vida-e-obra, da sua autoria, já

dimensionara, Battelli retira das cartas trechos que julga

indiscretos à sua pessoa, confunde ou extrai datas,

interfere nos originais, fabricando, enfim, a seu gosto,

interpolações de toda sorte. De maneira que a Florbela que

resulta dessa correspondência, e que serve de padrão para

a posteridade, não passa de um modelito que ele forjou e

esculpiu segundo seus próprios padrões, por meio de

específico diapasão moral e ideológico. Em uma palavra:

Guido Battelli se apropria do manancial Florbela Espanca,

que lhe pende dos céus, e indevidamente o veste como uma

luva que ganha as marcas das suas digitais, fabricando

também outras tantas que a sua fantasia lhe queria

impingir.

Tal equívoco tinha tudo para ser esclarecido logo a

partir de 7 de dezembro de 1940, quando, cumpridas as

exigências do professor para o depósito das cartas de

Florbela – ele deixa definitivamente Portugal em janeiro de

1932 –, a Biblioteca Pública de Évora colocava à disposição

6 Os apontados volumes foram publicados pela Berrrand e contam com as

extraordinárias apresentações de, respectivamente, Yvette Kate Centeno e Natália

Correia. A segunda edição de As Máscaras do Destino, também da Berrrand (a

primeira é do Porto, Editora Maranus, 1931, revisada pelo Dr. Cláudio Basto),

vinda à luz em 1979, estampava a lucidez e a sensibilidade de Agustina Bessa-Luís

como prefácio. 7 Acerca da mencionada publicação de Rui Guedes, cf. o meu ''A primeira edição do

manuscrito Trocando Olhares", em Homenagem a Florbela Espanca, Cadernos de

Teoria e Crítica Literária, Araraquara, Unesp, 1988, pp. 93-105.

Page 16: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XVIII

dos leitores esse material para consultas. Mas o bizarro é

que não há nenhum registro de que florbelianos ou

salazaristas tivessem se dado conta da enorme vala entre as

cartas originais e as engendradas. Os primeiros, quem sabe,

afeitos à imagem que o professor tinha dela patenteado, e os

segundos, sobejamente acomodados ao estereótipo maldito

que a pecha do suicídio outorgava, portanto, a essa mulher.

Quase quarenta anos depois, quando em 1979

Agustina Bessa-Luís se vale desse espólio para escrever o

seu Florbela Espanca, a vida e a obra é que pela primeira vez

os disparates perpetrados por Battelli vêm finalmente à luz.

E desde então pode-se avaliar o que atravessa a

inaugural apresentação que o professor faz de Florbela aos

leitores portugueses (partidários ou não da xenofilia), onde

a contradição romântica está presente, mas não o

anarquismo, onde a pagã e a panteísta são apagadas em

nome de uma quase ortodoxa mulher de fé, onde a

desafiadora e irreverente "pantera" está domada em ovelha,

só momentaneamente desgarrada, a oferecer-se em ritual

de sacrifício, mercê da desatenção, incompreensão e

desdém dos seus contemporâneos, e onde também o seu

orgulho resta triturado em pedidos de compaixão...

A imagem que Florbela lhe oferecia era, em

contrapartida, bem outra!8 A da mulher escritora, rebelde e

irreverente, avessa à publicidade, à glória, aos críticos e

jornalistas, sem editor e sem dinheiro para dar a lume seus

livros; orgulhosíssima, a ponto de jamais mendigar favores,

o que "tem sido a minha suprema defesa", "o meu amparo e

a minha forca". Florbela não se diz a ele católica, nem

8 A correspondência de Florbela com Battelli, tal como se acha depositada na

Biblioteca Pública de Évora, compõe-se de vinte e quatro peças (entre cartas e

cartões); foi iniciada em 14 de junho de 1930 e encerrada em 5 de dezembro do

mesmo ano, nas vésperas da sua morte.

Page 17: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XIX

protestante, nem budista, nem maometana ou teosofista;

enfim, afirma apenas não ser "nada": "O meu racionalismo

à Hegel, apoiado numa espécie de filosofia à Nietzsche,

chegou-me por muito tempo. Hoje... a minha sede de

infinito é maior do que eu, do que o mundo, do que tudo, e

o meu espiritualismo ultrapassa o céu."

Acerca da sua biografia, não permite a Battelli que

acuse a educação que recebeu "dos defeitos do meu

caráter. Eu sou hoje o que fui sempre". Trata-se, segundo

ela, da "eterna história da lâmina corroendo a bainha",

porque o certo é que há "transformações irrealizáveis: uma

figueira nunca poderá dar rosas".

A mãe morreu de "nevrose", o irmão desapareceu num

vôo de treino mergulhando no Tejo, e esse "horror arrasou-

me, esfacelou-me". Mas nem por isso tornou-se uma

Jeremias; ela se diz ser, antes de mais nada, uma revol-

tada Job, o que não a impede de saber-se, hoje, "um

canceroso: podem as várias morfinas aliviar-me, curar-me

nunca. Estou doente, tenho os nervos destrambelhados".

Vive só e retirada, não porque seja incompreendida,

mas porque é alguém "que não compreende nada", deixando-

se rodear tão-só pelos seus livros, flores e cão, uma vez que

por vontade própria se acha enclausurada na "cela de Sóror

Saudade". Só dorme às custas de "Veronal" (de cuja dosagem

letal se valeria para morrer), e seu estado de espírito está

"desejoso da transformação universal pela morte".

Como se vê, a relação que mantém com a morte não

inclui nem culpa nem perdão. É a mais telúrica possível,

como a reencontramos na sua obra, desprendida e ausente

da sombra de qualquer consciência cristã – muito diversa,

portanto, daquela que Battelli lhe imputaria. Florbela

declara: ''A pantera está enjaulada e bem enjaulada, até que

a morte lhe venha cerrar os olhos, e da sua miserável

Page 18: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XX

carcaça cinzele um tronco robusto a latejar de seiva, ou uma

sôfrega raiz a procurar fundo a água que lhe mate a sede."9

Ora, se a obra de Florbela passou, a partir do seu

falecimento, por inúmeras apropriações ideológicas, tanto

da parte dos aficionados quanto da parte dos detratores,

imagine-se, pois, o que ocorreu com a biografia da poetisa,

assim tão atrelada por Battelli à sua produção!

Insinuações, as mais contraditórias, sobre o seu

comportamento moral abrangiam – graças ao fato de estar

sendo erigida em emblema das renascentes causas

feministas – desde o lesbianismo até a ninfomania! E é

bom não esquecer que Florbela nunca teve filhos; que se

casara três vezes, num tempo em que o divórcio, acionado

pela recente e fulminante República, ainda não era em

verdade praticado... Também do incesto ela não escapou!

De resto, como a moral salazarista poderia explicar o seu

afeto desmedido pelo irmão e pelo pai?

Contestada também no nível político pelos processos

de difamação, seus amigos chegaram ao cúmulo de invocar

trechos de suas cartas, distorcendo-os, apenas para provar

9 O perfil que Florbela constrói do professor, nessa correspondência, a partir do

que ele lhe informa, é o seguinte: trata-se de um senhor de meia-idade (ele

contava sessenta e um anos na altura), ansioso por remoçar diante da juventude

dela, de um estudioso de literatura apaixonado por Portugal e sua cultura, inimigo

de Eugénio de Castro, para a depreciação de cuja obra, empenhado em

ridicularizar, pede em vão o concurso da poetisa... Situa-se politicamente como

cidadão simpático ao fascismo e a seus chemises noires, como católico praticante e

fervoroso, como uma espécie de relações-públicas do mundo artístico italiano. É

sobretudo o tradutor e divulgador das produções da poetisa na Itália, bem como o

versejador que almeja sempre o seu parecer.

A partir de 10 de julho, propõe-se a bancar a edição do Charneca em Flor, faz

empenho em conhecer pessoalmente a poetisa, o que ocorre entre 10 e 25 de

setembro, em Matosinhos. Na época, ou logo após, se insinua a Florbela, mas

retrocede de imediato, uma vez que; ela entende estrategicamente suas palavras

"como versos dum poeta a quem a imaginação bastas vezes ilude". Além disso,

jamais se tutearam, ao contrário da intimidade que ele arrota ter com ela, quando

a trata por "tu" nos textos que lhe redige depois de morta.

Page 19: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXI

que "Florbela não foi inimiga do Estado Novo, e, ao

contrário, eu posso considerá-la sua (sic) precursora"! Eis o

que o desesperado José Emídio Amaro – que, em 1949,

publicaria com Azinhal Abelho as Cartas de Florbela

Espanca – reitera, em 1936, na imprensa, demonstrando

como "Florbela causticava, com a sua ironia profunda, a

comédia vergonhosa dos partidos, antes da gloriosa

Revolução Nacional"10.

Nunca ninguém teve tão vasculhada a sua

intimidade, em busca de provas tanto a favor quanto

contra, como essa mulher insurrecta! Rainha, sim, mas a

duras penas, a ponto de terem profanado aviltantemente a

sua privacidade, o bem que lhe era mais caro,

vilipendiando-a, denegrindo-a! À proporção que, ano a ano,

se tornava best-seller – lugar que a sua obra ainda

conserva hoje em dia –, mais ataques lhe eram dirigidos no

sentido de evitar o risco de ser tomada como "exemplo"

para as gerações femininas criadas à sombra do

salazarismo. E o expressivo e volumoso material a respeito

desse affaire me autoriza a afirmar que – desde 25 de

janeiro de 1931, quando Celestino David sugere a idéia do

busto em homenagem à poetisa (logo concretizada por uma

campanha que angariou fundos para a escultura de Diogo

de Macedo e para o plinto de Jorge Segurado), até, pelo

menos, 17 de maio de 1964, quando a campanha para a

exumação dos restos mortais da poetisa alcança vitória,

realizando uma verdadeira peregrinação nacional de

10 A matéria em questão se intitula "Florbela Espanca e o Estado Novo", publicada

em Noticias do Alentejo, Vila Viçosa, em 13/9/1936. Aliás, a respeito dos amigos

que a causa florbeliana angariou, não posso deixar de referir a devoção com que

sobretudo três mulheres a ela se dedicaram: Aurélia Borges, Maria Alexandrina e

Hortense de Almeida. Também é digna de nota a presença eficiente e permanente

do Grupo Amigos de Vila Viçosa (do qual se destacam Alexandre Torrinha, Azinhal

Abelho e José Emídio Amaro) e do Prô-Évora (em que tem grande importância o

referido Antônio Bartolomeu Gromicho, também Reitor do Liceu Nacional).

Page 20: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXII

desagravo, que parte de Matosinhos (com escala nas

diferentes cidades entre Porto e Alentejo, notadamente na

Universidade de Coimbra, onde Florbela foi saudada em

cerimônia formal pelos estudantes), para aportar

finalmente em Vila Viçosa, sua terra natal – as polêmicas

em torno da obra e da vida de Florbela permaneceram

assiduamente acesas na vida literária e política

portuguesa11.

Em vista das várias manifestações contrárias da

Igreja ("a obra que deixou não pode merecer a aprovação da

Igreja, a qual por conseguinte não pode associar-se à sua

glorificação") e das bizarras artimanhas políticas

(considera-se o busto de Florbela uma obra de arte, o que

significa que não pode ficar exposto em praça pública; deve

ser recolhido ao Museu de Évora, onde de fato se

encontrou por um bom tempo – no porão... ) – o incansável

e republicano pai João Maria Espanca toma uma decisão

que lhe era absurda porque gratuita. Na altura com oitenta

e três anos de idade, ele, convencido de que a ilegitimidade

de Florbela se constituísse num dos entraves para o

reconhecimento literário da filha, acaba por pateticamente

perfilhá-la em cartório, depois de dezenove anos de seu

falecimento – em 13 de junho de 1949!

Cinco dias depois, em 18 de junho, e já então

desatentos da necessária autorização e decididamente à

revelia, alguns florbelianos, dentre os quais Celestino

David e António Bartolomeu Gromicho, inauguram

finalmente o busto de mármore, retirado dos porões do dito

Museu e acimentado à socapa, no Jardim Público de

Évora, onde até hoje se encontra. 11 Constam de mais de trezentos títulos os móveis dessa questão, em pauta na

imprensa portuguesa de então. É sobre tal objeto que atualmente trabalho, na

tentativa de compreender de perto as apropriações ideológicas de que padeceram

a vida e a obra da poetisa.

Page 21: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXIII

As reações se seguiram de imediato, indignadas, e

lembro apenas, dentre o arsenal posto em uso, os libelos

de José-Augusto Alegria e de Narino de Campos, na década

de 50, obras subvencionadas pelo Centro de Estudos D.

Manuel Mendes da Conceição Santos, arcebispo de Évora12.

O fato é que, hoje em dia, após a queda do

salazarismo, Florbela começa, paulatinamente, a ser

redimida pelo clero português, que recupera, também

através de fortes marcas ideológicas, sua biografia e obra13.

Após o 25 de Abril, tende-se, pois, a justificar, pela

"histeria", e a legitimar, graças à caridade cristã do

"perdão", a figura dessa mulher, sobretudo nos estudos de

António Freire (1977) e António Capão (1982). E é bom

recordar que a recente publicação das Obras completas de

Florbela Espanca, pelo referido empresário português Rui

Guedes, conhecido pela sua atuação junto à televisão

portuguesa antes do 25 de Abril (associada a programas

como A visita de Cornélia e Topo Gigio), e a arbitrariedade e

a incompetência utilizadas por ele na reconstituição dessa

obra tornam-se ainda mais graves porque, implicitamente

ou não, revolvem todo o peso dessa memória política de

que se impregnou a produção de Florbela Espanca14.

12 Trata-se de A poetisa Florbela Espanca: processo de uma causa, de José-

Augusto Alegria (Évora, 1956), e de A poesia, o drama e a glória de Florbela

Espanca, de Narina de Campos (Lisboa, 1955). 13 Recordo apenas que o clero português foi o mais forre aliado político de Salazar,

uma vez que, tendo sido banido do poder durante a curta República Portuguesa

(1910-1926), regressou a toda a força no Estado Novo, encabeçado pelo então

cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira. Claro está que a

situação política da Igreja mudou consideravelmente após a queda do salazarismo. 14 Consulte-se a respeito dessa publicação os meus reparos nas revistas

Colóquio/Letras n. 92 ("Florbela Espanca. Contos, Contos e Diário, Fotobiografia",

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, junho de 1986, pp. 87-90), n. 94 ("Cartas

(1906-1922), Cartas (1923-1930)" e ''Acerca de Florbela Espanca", idem,

setembro-outubro de 1987, respectivamente pp. 109-111 e 111-113) e a

repercussão deles junto à imprensa portuguesa ("Florbela em questão na

'Colóquio/Letras"', de Luís Miranda Rocha, no Diário de Lisboa de 18/9/1986).

Page 22: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXIV

Mas é no contexto de tais fatos, em extremo densos,

complexos e repletos de um sem-número de peripécias, que

é preciso situar o descobrimento que fazem, da obra de

Florbela Espanca, José Régio (em 1944), Jorge de Sena (em

1946) e Vitorino Nemésio (em 1949), os primeiros críticos a

se dedicarem, não só à causa política que ela representava,

mas também a seus poemas. Da perspectiva presencista,

de cujo projeto Régio é o mentor, ele observa a obra de

Florbela como uma "literatura viva", como "a expressão

poética de um caso humano", discernindo e imprimindo

um estatuto literário àquilo que, para Battelli, não passava

de uma relação mecanicista. Para Jorge de Sena, é já o

"ideário do destino feminino", de que se alimenta a obra de

Florbela, o que emperra e justifica a morosidade com que

transcorria, naquele momento, aquilo que ele viu

certeiramente como sendo o "processo disciplinar" de

Florbela, a passagem das suas produções e do seu

comportamento pelos "trâmites do costume". Nemésio, por

sua vez, focando a obra de Florbela no seu aspecto

regionalista (que também se constituiu num dos objetos da

polêmica), procura separar a "lenda de Florbela" da "poesia

de Florbela" e conclui que as "relutâncias e resistências

que retardaram a imagem de mármore nos calmos jardins

de Évora" se deveram ao fato de que a sua produção

encarna os mitos literários alentejanos, o próprio genius

Numa dessa obras, na Fotobiografia, "a reconstrução de uma época descamba,

de álbum de retratos, para uma lição de anatomia que devassa, não a intimidade

poética ou a vida particular de Florbela, mas a sua integridade física e a sua

legítima privacidade post-mortem", constato eu. Isso porque ali se exibem, ao lado

de outras, duas fotos que são apresentadas como – pasme, ó esclarecido leitor! –

"metade esquerda do maxilar inferior de Florbela" e "pedaços do seu cabelo"! A

meu ver, é apenas ali que se pode compreender o acentuado e propalado "rigor

científico" da edição.

Page 23: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXV

loci errante das planícies, a alma alentejana, "uma

insistência, uma crença, um poder de afirmar

verdadeiramente puro"15.

É essa pureza telúrica, essa sinceridade alva de

sentimentos o que, já em 1941, Manuel da Fonseca, como

poeta e alentejano, identificava e cantava no seu "Para um

poema a Florbela", onde a malquerença, a ela destinada,

também não lhe escapa enquanto dado definidor de uma

certa classe social citadina:

Senhora numa cidade,

a cidade abandonou ...

– porque lá ninguém a queria...

Jogou-se às estradas da vida,

caminhos do Alentejo,

esbanjando braçadas cheios

da grande vida que tinha!

E os campaniços leais

que bem a compreendiam!

Raparigas de olhos pretos

o modo como a olhavam!

Maiorais de largo gado

(navios atalhos desciam

até as estradas reais.

15 Régio entra em campo a propósito do monumento, a partir de 1944, no Jornal de

Noticias do Porto, e o seu célebre ensaio "Sobre o caso e a arte de Florbela

Espanca" data de 1946. Sena profere a conferência "Florbela Espanca ou a

expressão do feminino na poesia portuguesa" numa homenagem do Clube dos

Penianos Portuenses a Florbela, em 1946. Nemésio, na sua coluna "Leitura

Semanal" do Diário Popular de Lisboa, dedica-se a "Florbela" em 29/6/1949.

Page 24: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXVI

Moinhos presos nos cerros,

velas pelo céu giravam;

nos longes do descampado

ardem queimadas vermelhas!...

E Florbela, de negro,

esguia como quem era,

seus longos braços abria

esbanjando braçadas cheios

da grande vida que tinha!

E deve datar de ainda antes, já que Pessoa faleceu em

1935, um poema datilografado, encontrado no seu espólio

e "à memória de Florbela Espanca" dirigido, que, incitando-

a a dormir e a encontrar finalmente paz na sepultura,

identifica-a como "alma sonhadora / Irmã gêmea da

minha!".

Page 25: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

II

A obra de Florbela Espanca

Quem acompanha, pois, as produções de Florbela

desde o seu primeiro manuscrito conhecido, o Trocando

Olhares (1915-1917) – que compreende oitenta e oito

poemas e três contos, matriz de onde se irradiam poemas

para a formulação de Livro de Mágoas e Livro de "Sóror

Saudade'; e cuja temática vai atravessar toda a sua

produção futura – sabe que a predileção inaugural da

jovem poetisa recai sobre as quadras em redondilha

maior, ao gosto popular16. Para que se tenha uma idéia

do influxo de tal cultura anônima e oral sobre a sua

nascente poética, adianto que só o primeiro projeto de

Florbela Espanca encerra cerca de cinqüenta e dois 16 Para o conhecimento pormenorizado dos projetos contidos nesse manuscrito

inaugural (Trocando Olhares, Alma de Portugal, O Livro d'Ele, Minha Terra, Meu

Amor) e das antologias produzidas a partir dele (Primeiros Passos e Primeiros

Versos), remeto o leitor para o meu ensaio "A nascente poética de Florbela

Espanca" (Estudos Portugueses e Africanos 17, Campinas, Unicamp, 1991, pp.

97-108), refundição de "O primeiro manuscrito de Florbela Espanca (1915-

1917)" (XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura

Portuguesa, Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992, pp.

224-228), e também ao mencionado Florbela Espanca, Trocando Olhares. Acerca

do segundo desses projetos, o Alma de Portugal, em que a natureza amorosa de

Florbela deixa o amado para cantar a pátria, cf. também o meu "Especulações

em torno da reconstituição de um projeto inédito de Florbela Espanca: Alma de

Portugal" (Actas do III Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas,

Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991, pp. 319-324).

Page 26: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXVIII

poemetos desse tipo, dispostos em três grandes

conjuntos intitulados ''As quadras dele".

O exame minucioso desse caderno17 mostra, pois, que

a interlocução inicial de Florbela ocorre com uma literatura

de oitiva, típica da cultura alentejana de onde a poetisa se

origina, e que, desse fecundo e ilimitado manancial, ela

recorta e adota para si as trovas de cunho lírico-amoroso.

Precisamente as que retêm resquícios das cantigas d'amigo

e d'amor medievais, pendendo então para as ditas de

"desgraça" e de "elegia abstrata", e adotando, como seu,

esse mundo mítico-mágico de raízes populares, onde

imperam o panteísmo e a força telúrica. O perfil poético

próprio de Florbela, que se delineia nessas quadras, e que

se expande para as formas que vai experimentando até

alcançar o soneto decassílabo, começa a se erigir, então, a

partir de um específico tratamento da emissão poética e do

destino que a jovem poetisa confere aos temas eleitos

dentre tal tradição folclórica.

A introdução do "tu" no coração do poema, a torná-lo

uma comunicação direta, imediata e coloquial com o outro,

esse cativo amado, confere sempre à peça a impressão de

um movimentado dialogismo. Este, todavia, é desmentido

em seguida graças ao recurso imantador do "eu" emissor,

que desloca a atenção sobre si mesmo e atrai para si o

mundo ao redor. O amor, por sua parte, é valorizado

sobretudo segundo a dor que acarreta, e o receio da

solidão, o medo da rejeição, o uso da indiferença na relação

amorosa, a propensão para o funéreo – são os elementos

que, da poesia oral, Florbela redimensiona sublinhando

para si. Por outro lado, ao mesmo tempo em que segue, de

perto, a convenção amorosa da cantiga d'amigo, altera a

17 O leitor encontrará, neste volume, a reprodução dos poemas do manuscrito

Trocando Olhares.

Page 27: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXIX

seu favor a cantiga d'amor, transformando, então, as

prerrogativas masculinas em... femininas, como a atualizar

e a desmistificar, a partir da sua própria experiência de

mulher, o verdadeiro agente da vassalagem.

Aderem-se, a tais recortes, a implicitação da

sensualidade e do erotismo (seja através de uma figura

elíptica, seja por meio da atribuição de sentimentos

amorosos conferidos às manifestações da natureza,

sempre tratada animicamente), a escolha do "sonho" como

registro de capturação da realidade, o peso concreto da

morte, associado ao amor, e a escolha de valores noturnos

enquanto específicos designadores do feminino. E desde

aqui, desde a nascente poesia de Florbela, ficam defini-

tivamente seladas e imbricadas as suas mais significativas

constantes: a condição feminina e a marginalidade.

Tanto a morte quanto o sonho abrem a vida, para

esta jovem poetisa, em um espaço intervalar, revertem-na

num universo de exceção, num mundo-fora-da-existência

que, gratificantemente, descobre uma brecha na ordem

inabalável e convencional. Aí, a vida se desloca do curso

habitual e as regras se tornam outras. Há uma suspensão

do tempo real e do espaço físico, que contraria o princípio

de realidade – visto por Florbela como prerrogativa

masculina – e que instaura, ao contrário, o princípio do

prazer, atribuição feminina.

Eis como, já na primeira Florbela, a morte ganha

uma avaliação positiva, de universo liberto das cadeias da

convenção, das hierarquias, das referências codificadas,

da proibição, das restrições. E o motivo do sonho e o da

morte se imbricam então para compor esse estado

paralelo ao real, que descobre um espaço de

marginalidade, habitado apenas pelo princípio feminino.

Há, como se vê nessa poesia inaugural, uma

ascendência do mundo masculino sobre a mulher, e,

Page 28: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXX

nesse contexto, a dor – dote exclusivamente feminino –

decorre da instabilidade do olhar solar do amado,

tornando-se esta motor para a produção literária,

convertendo-se em móvel de poesia. É a ausência do

sentido protecional de tal olhar – e, por que não dizer,

patriarcal – que lança essa jovem mulher no seu mundo

noturno, livre mas marginal, o que, contraditoriamente,

lhe é em absoluto fecundo, visto que a incita a escrever e

a converte em poeta. E não é à toa que a tópica da solidão,

da ausência do amado, é aqui (ou em toda a sua poesia) a

grande permanência. De um lado, explica a natureza da

sua produção, a maneira de reverter o infortúnio numa

estética, embora, de outro, situe Florbela numa espécie de

limbo, de imagem sem definição e sem auto-

reconhecimento, porque não é delineada e, por

conseguinte, não identificada pelos olhos dele. Somente

através dessa visão masculina, discernidora, é que essa

jovem poetisa adquire identidade.

E, já agora, observo como, desse ponto de vista, a

emergente poética de Florbela Espanca se apropria da

histórica e tradicional condição feminina, com o seu tanto de

fiat Maria, de percalços de abnegação e conformismo, para

problematizá-la, para retirar dela um corolário que a torne

ativa – para redimensioná-la em dom literário. Repare o leitor

como Florbela transforma expressivamente a histórica

"inatividade" social da mulher, decorrente da tutoria que o

mundo masculino exerce sobre ela, em força produtiva.

Num dos sonetos desse manuscrito, dedicados de

maneira direta a ''A Mulher", Florbela advertia: "sê em

Vênus sempre Marte", máxima que, no contexto da peça, se

assentava como uma espécie de divisa para o procedimento

feminino. Assim, longe de ser ineficaz, essa colocação em

discordância entre masculino e feminino, esse embate

entre dois inconciliáveis é fortemente motivador, porque, de

Page 29: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXI

um lado, autoriza o jogo de sedução feminino e a densidade

dos movimentos psicológicos que, aliás, movimentam toda

a poesia, passada ou futura, de Florbela. De outro,

remetendo a mulher para o âmbito da marginalidade,

provoca o sofrimento, o requerido impulso para a criação

artística. E o poema se torna, então, uma operação

sensitiva, onde a dor é a matéria-prima capaz de criar,

apurar e transfigurar o mundo, a grande e original via – o

único atalho verdadeiramente feminino – de conhecimento.

E é justo essa aprendizagem que um curioso ciclo de

sonetos – com que o caderno Trocando Olhares se encerra

entre 24 e 30 de abril de 1917, conjunto de sonetos que se

constitui, ao mesmo tempo, em passaporte para o Livro de

Mágoas – registra. Trata-se, agora, do primeiro exercício

direto e continuado de interlocução, do primeiro esboço

claro e evidente do encontro da poética de Florbela com

uma outra alheia, que não a tradição oral,

intertextualização, aliás, exposta metalingüisticamente

nos referidos poemas18.

Nessa precisa ocasião, Florbela acabara de tomar

contato com o Vitral da Minha Dor, de Américo Durão, com

o qual se encanta. Numa carta de 5 de janeiro de 1920 ao

poeta, confessando a estima que há tempos nutre pelos

versos dele, a poetisa rememora o dia em que esse livro

lhe caiu por acaso nas mãos e o deslumbramento com que

o leu "duas ou três vezes", quando com o volume topou às

18 Refiro-me a uma precisa prática, indiciada pela dedicatória ao ciclo de poemas

em causa, que tive a oportunidade de constatar ser a mais prolongada e de

maior influxo sobre a sua poética de então. De resto, a interlocução de Florbela

com a literatura erudita já vinha sendo marcada ao longo do caderno, através do

uso de uma epígrafe de Júlio Dantas, através de referências claras a Antônio

Nobre, da imitação da temática ou do estilo de Cesário Verde, de Antero de

Quental etc. No entanto, esse ciclo de sonetos atesta um nível de

intertextualidade muito mais vincado que nos outros casos, visto que esclarecido

metalingüisticamente, o que justifica a minha afirmação.

Page 30: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXII

quatro da manhã, depois de ter chegado de um baile,

"cansada, sonolenta". E conclui explicando:

Do seu livro veio o meu livro.

Obrigado, Amigo meu!

O arrebatamento de Florbela por tal volume é em

absoluto sincero: essa obra de Américo Durão filtra e

atualiza, para ela, toda uma tradição poética com que se

identifica e que tem como horizonte. Ela realiza uma

espécie de amálgama entre Antônio Nobre e Antero de

Quental, presidida por uma tonalidade um tanto maldita,

de origem baudelairiana, com ressaibos irônicos de

Cesário Verde, onde a sensibilidade malade de Nobre toma

convulsões quase epilépticas, e onde a grandiloqüência do

ideal anteriano é puxada ao extremo mais patético. E tudo

isso permeado por uma postura que corrige qualquer

ilusão de sinceridade, já que se desmascara sempre como

uma atitude puramente estética.

Dita assim, essa obra, embora partindo das mesmas

vertentes que a da jovem Florbela, é em tudo o seu

contrário: tanto daquela já produzida quanto da que a

poetisa engendraria a partir de então. Todavia, nos

sonetos do referido ciclo dedicado, no manuscrito, "Ao

grande e estranho poeta A. Durão", cujos três primeiros,

refundidos, surgirão no Livro de Mágoas com os títulos de

''A Minha Tragédia", ''A Um Livro" e ''A Maior Tortura" –

esse imenso desacordo entre ambos aparece apenas

enquanto identificação profunda, a ponto de Florbela

adotar, posteriormente, para o seu primeiro livro de

poemas publicado, o titulo que confere, no ciclo de

sonetos, a tal obra de Durão: "livro cheio de mágoa".

Apenas um cuidadoso estudo das apropriações que

a jovem empreende diante da referida obra de Durão, e o

Page 31: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXIII

exame das transformações efetuadas nessas matrizes do

caderno, aquando da passagem de tais sonetos para o

Livro de Mágoas, podem atestar, com clareza, como esse

ciclo de sonetos se assenta, na história da poética de

Florbela Espanca, enquanto o seu primeiro fundamental

ritual de diferenciação e de individuação poética que,

aliás, já se esboçara desde as apreciações que Raul

Proença lhe enviara sobre a sua antologia Primeiros

Passos19.

Deles, sobretudo o segundo soneto desse ciclo, o ''A

Um Livro", registra com clareza a semelhança que a

Florbela desse manuscrito surpreende existir entre ambas

as poéticas. Em tal peça, ela declara ler-se a si mesma no

livro de Durão; ou não bem isso, mas é como se a obra dele

a mimetizasse, a copiasse, a salmodiasse, com a diferença

de que aquela lhe é superior, uma vez que, em Durão, ela

se depara com o que não sabe – por muito sentir –

expressar. Donde a obra de Durão é a de Florbela, se ela

tivesse capacidade poética para imprimir a seus versos

uma objetividade que, em Durão, compreende a

desmistificação do sofrimento enquanto atitude estética,

divisa geral do Vitral da minha dor, que o poema ''Abúlicos''

se incumbe de esclarecer: ''Antes de sermos nós, somos

estetas". Ora, tal objetividade Florbela não pode ter – o que,

por decorrência, torna formalmente imperfeitos os seus

versos – simplesmente porque é... mulher!

E o poema se encerra assim:

Poeta igual a mim, ai quem me dera

Dizer o que tu dizes! ... Quem soubera

Velar a minha Dor desse teu manto! ...

19 E remeto o leitor para o meu estudo "A interlocução de Florbela com a poética

de Américo Durão", Colóquio/Letras n. 132/133, Lisboa, Fundação Calousre

Gulbenkian, 1994, pp. 99-110.

Page 32: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXIV

Ou seja: para obter a almejada perfeição formal,

como a que ela crê que ele detenha, seria necessário a ela

"velar", a partir da capa "estética" e objetiva de Durão, a

sua "Dor". Mas, para tal, segundo o testemunha a sua

produção anterior – e a posterior o confirmará –, seria

preciso que Florbela desistisse da imensa prerrogativa

poética que a sua condição feminina lhe confere!

Ora, a chave de ouro de "A Um Livro", embora

desenhe um sinal de menos para a poética de Florbela

diante da de Durão, revela que a jovem poetisa deve ver

nessa impossibilidade de descartar-se das conturbações

emotivas antes um atestado da sua superioridade feminina,

da qual, aliás, jamais abdica. E é isso mesmo o que torna

ambas as poéticas tão desconformes: uma é... masculina –

quer confessar a dor como fingimento; a outra é... de

mulher e tem a convicção de que sofre, o que transfigura o

poema naquela operação sensitiva a que me referi.

Pois bem. Se na discussão da condição feminina,

empreendida por Florbela desde o caderno Trocando

Olhares, a lição luminosa que ela retira dali é a dessa

especificidade poética própria tão-somente da mulher, tal

virtude, recordo, não pode deixar de conviver com o seu

reverso noturno, visto que a dor, matéria-prima desse

fazer artístico, se origina do embate amoroso desigual

entre masculino e feminino, o que também angaria o

estatuto de marginalidade.

Já no Livro de Mágoas, no Livro de "Sóror Saudade"

e no Charneca em Flor20, que se regem por esse mesmo

20 Registro aqui três importantes estudos sobre a obra poética de Florbela

Espanca: o "No trilho de um sítio incerto", de José Carlos Seabra Pereira (Poesia

1903-1917, Lisboa, Dom Quixote, 1985, pp. I-XXVII), o "Florbela Espanca: o

discurso do outro e a imagem de si", de Zina Bellodi Silva (Cadernos de Teoria e

Critica Literária n. 19, Araraquara, Unesp, 1992) e o Images of the self a study

of Florbela Espanca, de Cláudia Pazos Alonso (Oxford, 1994). No Brasil, também

têm-se ocupado dela Lúcia Castelo Branco, Haquira Osakabe e Renata Junqueira.

Page 33: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXV

princípio de criação literária, Florbela procederá a um

reexame desses motivos, reatualizando poeticamente os

rituais ancestrais destinados à mulher. Trata-se de igual

reflexão acerca dessa verdade histórica: o fato de, como

apêndice social do homem, ela carecer de uma identidade

própria, independente da que ele lhe outorga21, de

maneira que, nessas obras, o "olhar" masculino de

Trocando Olhares, princípio de vida (ou de morte), será a

rigor ampliado enquanto graus de formalizações

nitidamente sociais. Observe-se, pois, como os passos

que Florbela adota na travessia poético-amorosa têm o

pendor de questionar os papéis culturais oferecidos à

mulher, enquanto regras do pacto social. E, da maneira

como são percorridos pela sua poesia a partir de Livro de

Mágoas, tendem a constituir-se numa via arguta de

busca de identidade.

Relembro que o alvo almejado e tantas vezes

acalentado pela sua poética é a fusão amorosa – o estar

um-no-outro, a transformação do amador na causa

amada e vice-versa, da matéria-prima na forma, que,

para Florbela, se erige na imagem da casa, onde ela mora

– "tão bom" – dentro dele, e ele - "Oh, meu amor!" –

dentro dela! É também a metáfora do universo:

São os teus braços dentro dos meus braços,

Via Láctea fechando o Infinito!

Mas antes que ela aí mergulhe e se integre no outro,

a vontade de amor a encaminha para um processo

conturbado de autoconhecimento22. Uma expressiva porção

21 Para a história do antifeminismo e das diferentes formulações históricas a

respeito da condição feminina, cf. La Femme. Antiféminisme et christianisme, de

Jean-Marie Aubert (Paris, Cerf/Desclée, 1975). 22 Refleti alongadamente sobre essa questão em "O amor na poesia de Florbela

Espanca" ("Suplemento Cultural" de O Estado de S. Paulo, São Paulo,

21/6/1986, pp. 10-11).

Page 34: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXVI

da sua poesia é atravessada por pungentes apelos para que

lhe respondam "quem sou eu", ao mesmo tempo em que se

representa como reflexo, sombra, prolongamento, como

sonho de um Alguém, que tem o poder de metamorfoseá-la.

Diante dele, ela se põe à mercê, invertendo, como já

apontei, a vassalagem da cantiga d'amor, sempre pronta a

se transfigurar na denominação que ele lhe conferir. Assim,

ora é a "Princesa Desalento", ora a "Maria das Quimeras",

ora a "Sóror Saudade". Ele a chama por um nome... e logo

ela se torna esse próprio nome:

E na minh' alma o nome iluminou-se

Como um vitral ao sol,

tal como Florbela o assegura em "Sóror Saudade", o poema

que confere título ao segundo dos seus livros publicados.

Chamo a atenção, aqui, para o fato de que esse

poema apreende e reflete, diretamente, um ritual que,

como mulher, Florbela também experimentou. A menção

ao "vitral" não é gratuita! O leitor se recorda de que esse

era o título do livro de Durão – Vitral da Minha Dor –, do

mesmo poeta que em 1919 estampara, em O Século, um

"Soneto" a ela dedicado, onde a denominava "Sóror

Saudade", ao qual Florbela respondera com o seu "O Meu

Nome", que, aliás, não é outro senão o "Sóror Saudade"

de que agora me ocupo.

Ter tido enorme admiração pelo livro de Durão não

lhe passou incólume junto aos contemporâneos da

Faculdade de Direito de Lisboa, que Florbela começara a

freqüentar em 1917, onde travou conhecimento com o

próprio poeta em questão. O exame da sua

correspondência demonstra também que é como "Sóror

Vitral", como "prolongamento" do livro de Durão, que

Augusto D'Esaguy se refere a ela, cognome corrente

Page 35: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXVII

durante essa ocasião e anterior, aliás, ao de "Sóror

Saudade", pelo qual também será conhecida23.

Esclareço, a propósito, que na sua deliciosa

Memória das palavras o poeta José Gomes Perreira,

também contemporâneo da poetisa na Universidade de

Lisboa, testemunhava, em 1966, o período acerbo

atravessado por ela nos meios acadêmicos, aquando da

divulgação do recentemente publicado Livro de Mágoas.

Ela que, por mais perto que estivesse dos colegas, distava

deles léguas, graças à sua altivez, ao orgulho e ao

desdém que lhe eram próprios... Cito-o:

Autoriza-me a atestar o que afirmo o exemplar da 1ª

edição do Livro de Mágoas em meu poder, anotado com

exuberância por amigos e companheiros de todos-os-

dias de então. Pelas apostilas à margem e escólios

imbecis, tendentes a frisar os ridículos e possidonices

do texto, infere-se que, no bando, o único defensor

leonino de Florbela era eu. Os mais, todos à uma, em

esquadrão compacto, num escarnir cabeçudo,

forcejavam por desconvencerem-me do talento da

estreante, autora dum livro "licoroso para homens",

como aventura um dos comentadores, e escrito, segundo

outro, por um "António Nobre de saias, de dor

imaginária", asserção que os primeiros versos

traduzidos do Só provavam de sobejo.

As revelações de Gomes Perreira comprovam

escancaradamente a porção de preconceito com que

topou Florbela nos meios universitários e intelectuais que

freqüentou. E a atitude digna com que enfrentou a

hostilidade masculina, que também atribuíam, à sua

poesia, as ingerências de Durão, não escapa ao poeta.

23 O tratamento em pauta pode ser atestado por Uma carta inédita de "Sóror

Saudade" (Lisboa, Editorial Império, 1954). A carta data de 15/1/1920, e, nela,

dirigindo-se a D'Esaguy, Florbela se nomeia ao amigo apenas como "Sóror

Vitral".

Page 36: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXVIII

Diante de tal acusação, diz ele, Florbela jamais a negou;

antes exibiu-a "com orgulho de artista suficientemente

pujante para transformar em ouro tudo em que tocasse".

Ora, o que sua poesia registra em "Sóror Saudade",

portanto, enquanto passos da travessia pelos

comportamentos sociais predeterminados à mulher, é que

sua identidade está disponível, é ainda um lugar vago,

somente uma candidatura, pois que padece, então, do

feitiço da nomeação. Ignora quem seja, e a sua identidade

emana do homem. Todavia, esse ritual, que é tardio dentro

do universo feminino – o da cerimônia inicial do batismo –,

vai tomar, ao lado daquele concernente a um outro ritual, o

da eterna espera pelo homem redentor, direções bem

insuspeitadas durante esse longo percurso poético.

Acerca do aguardo desse "Prince Charmant", que virá

para despertar a mulher de um sono mágico, de uma

imobilização feiticeira e, por decorrência... salvá-la, refiro

as advertências de Virginia de Castro que, em 1913,

penetrando no que há de suspeito tanto no "sono" quanto

no "beijo" que vem desencantá-la – maneira mais eficaz de

paralisia e alienação social – deplorava estarrecida:

Mulheres da minha terra! Gatas Borralheiras com o

cérebro vazio, que esperam, sentadas à lareira e com

estremecimentos mórbidos, a hipotética aparição do

príncipe encantado; criadas graves, que passam a vida

com as chaves da despensa e a agulha na mão, sem

terem a menor noção de economia doméstica nem de

higiene; (...) bonecas de luxo, vestidas como as senhoras

de Paris e com a inteligência toda absorvida na

decifração das modas, incapazes de outro interesse ou

de outra compreensão! (...) Pobres mulheres da minha

terra!24

24 Cf. da autora A mulher, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1913, pp.16-17.

Page 37: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XXXIX

Tais reparos têm como alvo, sem dúvida, as

vicissitudes pelas quais passam as mulheres portuguesas

no momento em que vive Florbela. Mas esta, que não se

inseria em nenhum desses protótipos visados, e que não

tinha receio de ser chamada "literata" – o epíteto que,

segundo Ana de Castro Osório, era o "mais desagradável

que poderia ser dito a uma senhora que era vista com um

livro na mão"25 –, sonha com um Príncipe Encantado, um

herói das demandas que,

Como audaz cavaleiro em velhas lendas

Virá, talvez, nas névoas da manhã!

Mas, se ele é devaneado como o Infante, o Eleito, o

Desejado, "o que há de vir e amar-me em doida ardência",

ele também realiza, para essa Florbela, um desencontro

emblemático, já que, afinal, será sempre aquele que

chegou tarde demais – e "há cem anos eu era nova e

linda...". Ora, apesar da súplica para que ele lhe mostre a

luz, que lhe ensine o "preceito", que a salve e que a

"levante redimida"; apesar do enaltecimento que lhe dirige

– "Águia real, aponta-me a subida!" –, o herói de Florbela

é, contra o mito oficial feminino, um D. Sebastião que

jamais romperá a cortina de névoa da sua espera. Isso

porque a mulher, que a poetisa põe a suplicar por ele, é

permanentemente a insatisfeita, a insaciável, a que não

pode ser encontrada, visto que, ativa, Florbela transfere,

para aquela, as prerrogativas desse "outro", desse mesmo

Príncipe que era destino feminino aguardar. E eis que em

tal interlocução com esse protótipo masculino ela acaba

por se reconhecer e por se denominar, antes, como a

"Princesa Encantada da Quimera", o que, aliás, como

conclui, a torna em tudo diversa das "outras raparigas"...

25 Cf. da autora As mulheres portuguesas, Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares

Cardoso, 1905, p. 107.

Page 38: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XL

Sublinho, pois, que a nossa poetisa se apodera dos

mitos sociais masculinos, não para suportá-los enquanto

tais, não para reproduzi-los, mas para dialogar com eles,

para conhecê-los, vasculhando-os por dentro a ponto de

vestir deles a máscara, num esforço crítico de

descerramento da sua própria feição íntima.

O primeiro sintoma de desconfiança diante do

empréstimo de que padece – o de ser tomada como alguém

que talvez não seja – surge sintomaticamente num

deslocamento psicológico muito significativo! Porque o "eu"

que lhe conferiram não flui de si mesma, Florbela,

intuindo a vala entre o que lhe dizem ser e a incógnita que

para si mesma é, cria, para se designar, um pronome

pessoal que lhe é impessoal: o "tu". E o intervalo entre o

"eu" desconhecido e o "tu" de empréstimo fica

espantosamente delineado num soneto em que busca se

definir, não por acaso denominado "O que tu és...".

Ora, esse mesmo recurso de verrumagem, de

autoconhecimento por meio de um desempenho alheio, o

"tu" na medida em que o uso da máscara privilegia um

espaço entre o que se representa e o que se é –, vai ser

manipulado por Florbela na abordagem dessa figura

inicial que toma de empréstimo: a da "Sóror", a da monja.

Porque assumir uma atribuição oferece, sem dúvida, a

oportunidade de descerrar, desempenhando-a, aquilo que

nela não compactua com o que não se sabia ser. De

maneira que aceitar a identidade de "Sóror Saudade" é,

contraditoriamente, discernir o que nesse molde há ou

não há de si mesma. E trata-se, novamente, do mesmo

esforço de diferenciação e de individuação poética, de um

processo de busca de identidade.

E essa assunção se revela absolutamente prodigiosa!

Por meio dela, Florbela recupera, de um lado, uma porção

Page 39: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLI

sua que a produção anterior já patenteava: a da

abnegação e do despojamento, resultantes da inversão da

vassalagem amorosa, de que, por exemplo, o soneto "De

joelhos", cuja matriz, que se encontra no manuscrito

Trocando Olhares, e que aparece refundida em Livro de

Mágoas, dava conta:

E se mais que eu, um dia, te quiser

Alguém, bendita seja essa Mulher,

Bendito seja o beijo dessa boca!

Ela consegue reaver, ao mesmo tempo, aquilo que,

no Livro de Mágoas, a dor exibia de emparedamento, de

labiríntico, de convulsivo e solitário, na metáfora, então

incipiente, de convento:

A minha Dor é um convento ideal

Cheio de claustros, sombras, arcarias,

Aonde a pedra em convulsões sombrias

Tem linhas dum requinte escultural.

E sublinho que, não como freira, mas como princesa

– como a "Castelã da Tristeza" –, Florbela lia, em Livro de

Mágoas, "toda de branco, um livro de horas, à sombra

rendilhada dos vitrais...".

Agora no seu segundo livro, vestindo com o título o

hábito e recolhendo-se, então, à cela da "Sóror", ela tem

oportunidade de estabelecer, para a sua poética, o que a

dor encerra de recolhimento, de renúncia, de unção, de

humilhação atualizada e precisa no diapasão semântico

de "hóstia comungada". A partir de tal tonalidade

religiosa, o amor toma a conformação condizente de

martírio, de "calvário", de desistência do mundo, sondado

na imagem do claustro, remodulando e re-significando,

assim, mais um motivo anterior que, aliás, é recorrente

Page 40: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLII

desde Trocando Olhares: o da "precoce velhice", Já agora,

nos seus arrebatamentos amorosos, tonificados enquanto

êxtases francamente místicos, Florbela, se oferecendo "de

rastros" diante do amado – transfigura-o em..., "Deus:

Princípio e Fim!", ou acolhe-o, então caridosamente,

como a um... irmão, a um amigo, num "fervor de crente"

e de "Irmã compadecida".

Claro está que a inferioridade ou a superioridade

feminina, resultantes desse jogo, se dispõem conforme ela

mobilize o seu caleidoscópio poético... Mas até da

submissão Florbela se prevalece, albergando nela a outra

face do conformismo! Os poemas atestam que é apenas

através dos seus "versos", da sua força, da vontade, dos

seus dotes femininos, enfim, da sua criação literária, que o

amado se capacita a ser... divino, já que é ele quem emana

dela a demiurga! – como "prolongamento"..., poético seu!

Tão-somente por meio do verso de amor que ela lhe oferece,

o amado pode ser "eterno por toda a eternidade...".

É, portanto, a arte poética dessa mulher, revertendo

em bem, em força produtiva, as vicissitudes negativas da

condição feminina – o sofrimento amoroso e a margina-

lidade – que permite a Florbela, como "freira", a

consecução de..., milagres!

Como se observa, o batismo de Sóror Saudade lhe

descerra um privilégio dialético fantástico! Permite que ela

recupere e expanda os traços anteriores da sua poética,

atualizando-os e redimensionando-os segundo a nova

referência semântica, e que explore, dentro desse nome,

aquilo que, como natureza adversa debatendo-se no

interior de uma armadura de empréstimo, a sua

experiência poética em trânsito pode constatar. E o que

Florbela descobre nesse espaço conventual, nesse ritual

poético de iniciação por dentro desse "outro" que é o hábito

Page 41: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLIII

negro – tão diferente dos claros trajes daquela Princesa do

Livro de Mágoas! – é que a vestição não passa de uma...

"mortalha" e que a experiência amorosa que esta alberga

não é outra senão a da "morte"! De maneira que o patético

soneto em que a Sóror se debate contra a tentação da vida

e da luz de Eros, ditas, indicialmente – "Satanás" –, não por

acaso é o "Renúncia": e nele está uma vez mais cunhado o

mencionado intervalo entre o "eu" e o "tu".

Assim, é no cerne dessa travessia poética por dentro

do burel e da estamenha, dessa interlocução com a

máscara, que Florbela realiza o seu noviciado místico,

cuja aprendizagem jamais a abandonará:

o amor dum homem? - Terra tão pisada,

Gota de chuva ao vento baloiçada...

Um homem? - Quando eu sonho o amor de um Deus!...

Mas a grande e inestimável conquista da passagem

por esse ritual é, sem dúvida alguma, a da pura explosão

do erotismo que, assim testado pelo lado adverso, não só

toma lugar, mas se adensa e eclode, irrompendo

transbordante em Charneca em Flor! Por meio da

contenção exigida pelo corpo atado ao hábito de monja,

essa força latente e pulsante de toda a sua poética

anterior se precipita, se liberta, recuperando no

panteísmo das trovas populares – as suas origens, as

suas raízes literárias! – a necessária imagem da natureza

animizada enquanto corpo e sensualidade próprios. E já

o titulo do último livro o escancara, apontando para o

renascimento que a experiência iniciática da morte por

dentro do burel a conduziu:

E, nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Page 42: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLIV

Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:

Sou a charneca rude a abrir em flor!

Depois do inverno, do claustro, do negro, da prisão

estereótipo feminino do fiat Maria, Florbela se abre em

espaço sem limites, em pura alegria, em compartilhação

absoluta com a natureza, em "Primavera":

É Primavera agora, meu Amor!

O campo despe a veste de estamenha;

Não há árvore nenhuma que não tenha

O coração aberto, todo em flor!

(...)

Também despi meu triste burel pardo,

E agora cheiro a rosmaninho e a nardo

E ando agora tonta, à tua espera...

Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...

Parecem um rosal! Vem desprendê-las!

Meu Amor, meu Amor, é Primavera! ...

A mediação da natureza para a inovação do corpo e

do desejo, se, de um lado, não deixa de ser sintoma do

pudor traduzido da convivência com a Sóror, por outro se

impõe como o mais eficaz meio de sedução, mercê do

enviesamento e da insinuação próprios. Mas, enfim, são

esses os ganhos por ter atravessado, poeticamente, os

graus de uma senda feminina; a recompensa por Florbela

ter-se enveredado criticamente nos modelos femininos

oficiais. Ela alcançou, assim, a liberdade e o direito de

abrir ou fechar, segundo o seu próprio alvitre, a sua cela

– atingiu, finalmente, a tão ansiada maioridade poética!

Page 43: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLV

Pequena biografia de Florbela Espanca

1894 No princípio da madrugada de 8 de dezembro, nasce,

em Vila Viçosa (Alentejo), Florbela d'Alma da

Conceição Espanca, na casa da sua mãe Antónia da

Conceição Lobo, à Rua do Angerino. O pai, o

republicano João Maria Espanca, casado com

Mariana do Carmo Ingleza, providenciará para que a

esposa se torne madrinha de batismo da filha, em

20 de junho de 1895, oferecendo-lhe como padrinho

o amigo Daniel da Silva Barroso.

Embora nos registros da Igreja Nossa Senhora da

Conceição de Vila Viçosa conste Florbela ser "filha

ilegítima de pai incógnito", será a menina criada

pelo pai e pela madrasta desde o nascimento. Igual

procedimento se verá da parte de João Maria para

com Apeles, o único irmão da poetisa, filho da

mesma mãe e do mesmo pai, que vai nascer em 10

de março de 1897. Também como Florbela, Apeles

será registrado "filho ilegítimo de pai incógnito".

1899 Florbela freqüenta a escola primária em Vila Viçosa.

O pai viaja muito, trabalhando, nessa altura, como

antiquário, e já em 1900 torna-se um dos

introdutores do cinematógrafo em Portugal,

projetando, por todo o país, filmes em salas

particulares, graças ao recém-adquirido "Vitascópio

de Edson". A paixão pela fotografia o levará,

Page 44: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLVI

também, a abrir um estúdio em Évora, o "Photo

Calypolense de J. M. Espanca", despertando na filha

o gosto pelo retrato e elegendo-a o seu modelo

predileto, visto que a iconografia de Florbela

Espanca, sobretudo a da sua lavra, é bastante farta.

João Maria Espanca e o pai de Milburges Ferreira

(a amiga e vizinha Buja, também afilhada de

Mariana Ingleza) serão, como republicanos

ferrenhos, num tempo em que tal era suspeito,

perseguidos ao longo de diversas ocasiões, como

inimigos do regime monárquico.

1903 Data de 11 de novembro o poema ''A vida e a morte",

provavelmente a primeira peça escrita por Florbela, e

a poesia parece ter-se constituído, na infância da

jovem, num meio particular de aproximação com os

outros, espécie de doação generosa de si mesma, de

original presente que ela oferece, sobretudo ao pai e

ao irmão, ambos foco do seu carinho e de toda a sua

atenção.

1908 O rei D. Carlos e o príncipe herdeiro D. Luís Felipe

são, em 1º de fevereiro (dia do aniversário de João

Maria Espanca), assassinados em Lisboa, quando

voltavam do Palácio Ducal de Vila Viçosa (residência

de férias da Coroa), e este é um dos acontecimentos

que vão precipitar a instauração revolucionária da

República em 5 de outubro de 1910.

Florbela ingressa no Liceu de Évora, onde

permanecerá até 1912, de modo que a família

muda-se nesse ano para Évora, a fim de facilitar-

lhe a permanência nos estudos. Ainda em 1908,

falece, em Vila Viçosa, terra natal a que regressara,

Antónia da Conceição Lobo, então com vinte e nove

anos de idade.

Page 45: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLVII

1913 Florbela batiza, em 8 de maio, o primo Túlio Espanca,

a quem se dedicará sempre com desvelos de assídua

madrinha. Este, recentemente falecido, tornar-se-á

editor de A Cidade de Évora e importante autoridade

nos meios intelectuais portugueses, graças à sua

competência de profundo conhecedor de história da

arte, vogal das Academias Portuguesas de História e

Nacional de Belas Artes, tendo sido encarregado de

elaborar, dentre outras obras, o Inventário Artístico de

Portugal – Distrito de Évora. No dia do seu

aniversário, Florbela casa-se, na Conservadoria do

Registro Civil de Vila Viçosa, com Alberto de Jesus

Silva Moutinho, um ano mais velho que ela, rapaz

que, desde o primário, era seu colega de estudos.

1914 Logo em janeiro, Florbela e o marido vão morar em

Redondo; ali atravessarão um período econômico

difícil, já que se sustentam dos parcos rendimentos

das aulas particulares a alunos de colégio. Por isso,

em setembro de 1915, o jovem casal regressará a

Évora, para viver em casa de João Maria Espanca e

para dar aulas no Colégio de Nossa Senhora da

Conceição. Por essa época, Mariana Ingleza já se

acha doente (ela morrerá em dezembro de 1925), e o

pai de Florbela, sob os olhares complacentes da

mulher, vive livremente na mesma casa com a

empregada Henriqueta de Almeida. João Maria vai

divorciar-se de Mariana em 9 de novembro de 1921 e

casar-se com Henriqueta em 4 de julho de 1922. Em

3 de julho de 1954, João Maria Espanca virá a

falecer, depois de, na Conservadoria do Registro Civil

de Vila Viçosa, ter perfilhado Florbela em 13 de junho

de 1949.

1916 Em meados de abril de 1916, vivendo novamente em

Redondo, Florbela seleciona, dentre a sua produção

Page 46: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLVIII

poética, cerca de trinta peças produzidas a partir de

10 de maio de 1915, com as quais inaugura o

projeto e o manuscrito Trocando Olhares. Esse

caderno (32,2 x 11cm), contendo capa dura e apre-

sentando quarenta e sete folhas, encontra-se hoje

depositado no seu espólio da Biblioteca Nacional de

Lisboa. Compreende oitenta e oito poemas e três

contos e parece se impor, da maneira como subsiste,

como uma expressiva "oficina literária", acolhendo

projetos poéticos de distintas naturezas, anotações,

refundições de poemas em páginas que, por vezes,

se assemelham a palimpsestos. Prestou-se ele

também como matriz a duas antologias dali

retiradas na altura, como importante foco irradiador

de peças que emigrarão, refundidas, para o Livro de

Mágoas e para o Livro de "Sóror Saudade': e,

enquanto campo temático, como precioso propulsor

para a restante obra de Florbela.

Datam também de 1916 os primeiros esforços da

jovem poetisa para ser publicada, e a sua correspon-

dência com Madame Carvalho, diretora do Suple-

mento "Modas e Bordados" de O Século de Lisboa,

tem início em 8 de janeiro desse ano. Ao longo de

1916, Florbela inicia colaboração no mencionado

Suplemento, em Notícias de Évora e em A Voz

Pública de Évora. Muitos desses poemas, enviados a

Júlia Alves (com quem enceta correspondência a

partir de 16 de junho de 1916 e que se alonga até 5

de abril de 1917), serão recuperados e publicados no

póstumo ]uvenília.

Portugal inicia a sua intervenção na Primeira

Grande Guerra Mundial em 9 de março de 1916, e

Florbela, entusiasmada com essa causa republicana,

começa, a partir de princípio de junho, a se ocupar

Page 47: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas XLIX

de um novo projeto poético, o Alma de Portugal em

"homenagem humilíssima à pátria que estremeço",

como o registra a sua correspondência e segundo o

atestam os poemas do referido manuscrito. Logo

após 18 de julho, ela está enviando a Raul Proença,

por meio do pai, que é amigo de Luís Sangreman

Proença (irmão do intelectual republicano), a sua

antologia Primeiros Passos. A apreciação do

importante Conservador da Biblioteca Nacional de

Lisboa, de que Florbela toma conhecimento nos dias

imediatamente anteriores a 12 de agosto, será

fundamental para o auto-reconhecimento do que

produzia então, bem como valiosa para a definição

da sua personalidade poética. O exame do parecer

de Proença demonstra ter sido ele o único crítico

efetivamente competente com quem Florbela deveras

dialogou, acontecimento verdadeiramente isolado

nos minguados horizontes literários da sua

existência. A crer nas únicas duas peças da

correspondência de Florbela com o republicano

(depositadas no espólio de Proença na Biblioteca

Nacional de Lisboa), a interlocução crítica que com

ele manteve deve ter-se alongado pelo menos até

1927 (quando Proença foi exilado em virtude da sua

publicação Primeiro panfleto contra a ditadura

militar), e foi decisiva para o engendramento e

seleção dos sonetos que perfariam o Livro de Mágoas

e, quem sabe, também o Livro de "Sóror Saudade";

visto que nessa obra se acham traços da continuada

epistolografia (o "Prince Charmant..." é a ele

dedicado, tendo sido antes publicado, em 1º de

agosto de 1922, no n. 16 da Seara Nova, revista

literária que se tornou o símbolo da resistência ao

salazarismo e da qual Proença era um dos

fundadores e integrantes do corpo diretivo).

Page 48: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas L

Por volta de 28 de julho, Florbela reavalia o seu

manuscrito e elege peças que, ao lado de outras

que comporá, perfarão mais um dos seus projetos

poéticos: O Livro d'Ele.

Em outubro do mesmo ano, a poetisa está de volta

a Évora como explicadora no mesmo Colégio. Por

essa altura, engendra um novo projeto poético,

indicado no manuscrito, apenas pelo título das

duas partes de que se compõe: Minha Terra, Meu

Amor, condensando nele a essência dos

abandonados Alma de Portugal e O Livro d'Ele.

Apenas em novembro retoma o liceu interrompido,

de maneira que concluirá o Curso Complementar de

Letras em 24 de julho de 1917.

1917 Florbela encerra o manuscrito Trocando Olhares em

30 de abril desse ano (quando se dá a mencionada

interlocução com a poética de Américo Durão),

regressando posteriormente a ele para anotações

acerca de uma nova antologia, a Primeiros Versos

(provavelmente destinada à leitura de Raul Proença),

e para rascunhar refundições de poemas presentes

ou não no caderno.

Apeles, que tem dotes artísticos e que pratica

sensivelmente a pintura, está seguindo carreira

oposta em Lisboa: em 19 de agosto, termina o Curso

da Escola Naval, graduando-se aspirante.

Em 9 de outubro, Florbela, vivendo desde setembro

na capital do país, subsidiada pelo pai, matricula-se

na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,

que abandonará em meados de 1920: dentre os

trezentos e quarenta e sete alunos inscritos, é

apenas de quatorze o número de mulheres.

Conhecerá aí José Schmidt Rau, Américo Durão,

João Botto de Carvalho, por intermédio de Apeles,

Page 49: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LI

que também se aplica em mostrar para a irmã a vida

artística de Lisboa, acompanhando-a na visita a

exposições. Embora Florbela tenha sido colega de

Alfredo Pedro Guisado na Universidade, ligado,

portanto, ao grupo do Orpheu, não há nenhum

indício de que ela tenha tomado conhecimento da

existência do Modernismo em Portugal nem dos seus

mentores, embora a temática da "despersonalização"

atravesse, mas como condição feminina, a sua obra,

que, nesse aspecto da "fragmentação", aparenta-se

sobretudo com a de Mário de Sá-Carneiro.

1918 Em abril, Florbela, que se encontra adoentada, vai

com o marido a Quelfes (Algarve) para repouso,

permanecendo o casal hospedado em Olhão, na

casa de Dorothea Moutinho. A carta que envia dali

a Proença, em 7 de maio, atesta a efabulação do

volume que se tornaria o Livro de Mágoas.

1919 Em junho vem à luz, pela Tipografia Maurício de

Lisboa, o Livro de Mágoas, dedicado ''A meu Pai. Ao

meu melhor amigo" e "À querida Alma irmã da

minha. Ao meu Irmão" e, já em seguida, Florbela

começa a trabalhar num novo projeto que, entre

essa data e pelo menos o final de 1922, terá seu

título oscilando entre Livro do Nosso Amor e

Claustro de Quimeras, conforme o atestam dois

diferentes manuscritos depositados na Biblioteca

Nacional de Lisboa.

Durante toda a fase em Lisboa que, intermiten-

temente, se prolonga até novembro de 1923,

Florbela está sempre em contato com Buja, que ali

reside então, e trabalha como explicadora particular

de português. Data de tal experiência profissional a

amizade com Aurélia Borges que, após sua morte e

por ocasião do moroso affaire, se transformará em

Page 50: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LII

empenhada defensora da causa florbeliana,

publicando, entre outras obras, o Florbela Espanca

e sua obra (1946).

1921 Apeles é graduado guarda-marinha pela Escola

Naval. Em 30 de abril é decretado, em Évora, o

divórcio de Florbela com Moutinho. Em 29 de junho,

Florbela se casa, na Conservadoria do Registro Civil

do Porto, com o alferes de artilharia da Guarda

Republicana, António José Marques Guimarães,

então com vinte e seis anos, e o novo casal vai

residir naquela freguesia, transferindo-se, em março

de 1922, para uma quinta na Amadora e, já em

junho do mesmo ano, para Lisboa.

1922 Apeles, que está em vias de tornar-se segundo-

tenente, presta serviços no cruzador "Carvalho

Araújo", que transporta, de Portugal para o Brasil,

um dos aviões utilizados para a célebre travessia

aérea de Gago Coutinho e Sacadura Cabral.

Corresponde-se assiduamente com a irmã, que

acompanha pelos jornais os acontecimentos e que

conserva fotos da façanha, em algumas das quais

Apeles se acha presente. Também das incursões do

cruzador pela África o irmão lhe dá notícias em

cartas bem humoradas, em que se compromete, por

exemplo, a trazer, das caçadas pelo interior de

Luanda, umas "penas para um chapéu para Bela".

1923 Em janeiro vem a lume pela Tipografia A Americana

de Lisboa o Livro de "Sóror Saudade': refundição dos

dois referidos manuscritos anteriores: as provas

tipográficas do volume se acham depositadas na

Biblioteca Nacional de Lisboa. Também lá se encon-

tram, entre recortes ou apreciações manuscritas de

outrem a respeito da publicação do Livro de Mágoas,

sete peças; a propósito do Livro de "Sóror Saudade"

Page 51: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LIII

outras sete, além de duas outras que atestam

comentários de passagem sobre a sua poesia – que

Florbela conservou. Tal montante certifica, pois, que

ela acompanhou com atenção, recortando e guar-

dando para si, a pífia repercussão das suas obras.

Em novembro, a poetisa se encontra novamente

adoentada e segue para Gonça (Guimarães) a fim de

tratar-se.

1922 A 4 de abril, em Lisboa, António Guimarães entra

com pedido de divórcio contra Florbela, na 6ª Vara

Cível, que será deferido em 23 de junho de 1925. Em

17 de setembro de 1925, António Guimarães se casa

com Rosa de Oliveira Roma Leão e, muito mais

tarde, ele fundará, em Lisboa, uma importante

agência, a de "Recortes", que se aplica em, através

de assinaturas, enviar para os respectivos autores

qualquer matéria publicada que lhes diga respeito.

Não deixa de ser curioso que o espólio pessoal de

António Guimarães se componha do mais

abundante material que sobre Florbela se publicou

desde 1945 até 1981, ano em que faleceu em Lisboa:

são cerca de cento e trinta e três recortes.

1925 Em 15 de outubro, ela se casa, na Repartição do

Registro Civil de Matosinhos (e a 29 do mesmo mês,

na Igreja do Bom Jesus de Matosinhos), com Mário

Pereira Lage, médico que contava então trinta e dois

anos, passando o casal a residir em Esmoriz e

transferindo-se, em junho de 1926, para a casa dos

pais de Lage, em Matosinhos (Porto). Data dessa

época uma foto sua, ao lado de outras senhoras,

numa campanha para angariar fundos para a Cruz

Vermelha.

1926 É publicado o decreto ditatorial, com força de lei, que

dissolve o Congresso da República.

Apeles gradua-se primeiro-tenente da Marinha.

Page 52: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LIV

1927 Durante esse ano, Florbela começa a colaborar no D.

Nuno de Vila Viçosa (cujo diretor é José Emídio

Amaro), e os poemas ali estampados são por ela

indicados como pertença de Charneca em Flor. Inicia

também o seu trabalho de tradutora de romances

franceses para a Civilização do Porto, função que

desempenhará até a morte, e em 15 de maio, numa

carta a José Emídio Amaro, dá notícias do Charneca

em Flor, que diz ter pronto, e de um livro dê contos

que está preparando, provavelmente O Dominó Preto.

Em vôo de treino com o hidroavião Hanriot 33, em 6

de junho, Apeles mergulha no Tejo, diante de Porto

Brandão, cumprindo, presumivelmente, a decisão

que expusera à irmã em carta imediata à morte da

noiva (Maria Augusta Teixeira de Vasconcelos),

ocorrida em dezembro de 1925.

Florbela reage heroicamente pondo-se a produzir

com afinco um livro de contos, à memória dele

dedicado – "A meu Irmão, ao meu querido Morto" –,

o As Máscaras do Destino. Mas, desde então, embora

continue a colaborar no D. Nuno, a escrever poemas

que, provavelmente, já constituem o póstumo

Reliquiae; embora se esforce por fazer publicar o

último livro de contos, e embora permaneça com a

tarefa das traduções – ela se declara quase

permanentemente deprimida, doente dos nervos,

fumando em demasia e emagrecendo sensivelmente.

1930 Inicia a colaboração no recém-fundado Portugal

Feminino com poemas e contos, na revista

Civilização e no Primeiro de Janeiro, ambos do Porto;

desloca-se de quando em vez para Évora ou para

Lisboa, onde participa das reuniões da revista

feminina (e há mesmo uma foto, publicada na altura

Page 53: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LV

pelo Portugal Feminino, que registra esse aconteci-

mento, na qual Florbela se acha presente ao lado de

outras tantas intelectuais e feministas, como Elina

Guimarães, Maria Amélia Teixeira, diretora da

revista, Branca da Gonta Colaço, Ana de Castro

Osório, Alice Ogando, Maria Lamas, Thereza Leitão

de Barros, Laura Chaves e Fernanda de Castro).

O seu Diário do último ano, encetado em 11 de

janeiro, dá conta do estado de solidão em que

Florbela está mergulhada: "O olhar dum bicho

comove-me mais profundamente que um olhar

humano. Há lá dentro uma alma que quer falar e não

pode, princesa encantada por qualquer fada má.

Num grande esforço de compreensão, debruço-me,

mergulho os meus olhos nos olhos do meu cão: tu

que queres? E os olhos respondem-me e eu não

entendo... Ah, ter quatro patas e compreender a

súplica humilde, a angustiosa ansiedade daquele

olhar! Afinal... de que tendes vós orgulho, ó gentes?"

E certamente não é em vão que Florbela se faz

acompanhar, durante esse último percurso, por essa

imagem: não é o cão mitológico o guardião da morte?

Em 18 de junho, dá inicio à correspondência com

Guido Battelli que, entre 18 de novembro até a

última peça, de 5 de dezembro, apenas registra a

sua preocupação pelo aspecto estético e comercial

do Charneca em Flor, que se encontra no prelo, e

pelas provas tipográficas da obra, das quais ela

chega a revisar mais de uma dúzia de folhas.

Seu Diário se encerra em 2 de dezembro com uma

única frase: "e não haver gestos novos nem palavras

novas!" Na passagem de 7 para 8 de dezembro,

Florbela d'Alma da Conceição Espanca suicida-se

em Matosinhos e é enterrada, no mesmo dia 8, no

Page 54: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LVI

Cemitério de Sedim. Seus restos mortais serão, em

17 de maio de 1964, transportados para o Cemitério

de Vila Viçosa, "a terra alentejana a que

entranhadamente quero", como à terra natal tivera

oportunidade de se referir na mencionada carta a

José Emídio Amara, em 15 de maio de 1927.

Page 55: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LVII

Bibliografia de Florbela Espanca26

Livro de Mágoas. Lisboa, Tipografia Maurício, 1919.

Livro de Sóror Saudade. Lisboa, Tipografia A Americana,

1923.

Charneca em Flor. Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931.

Charneca em Flor (com 28 sonetos inéditos). Coimbra,

Livraria Gonçalves, 1931.

Cartas de Florbela Espanca (a Dona Júlia Alves e a Guido

Battelli). Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931.

As Máscaras do Destino. Porto, Editora Maranus, 1931.

Sonetos Completos (Livro de Mágoas, Livro de Sóror

Saudade, Charneca em Flor, Reliquiae). Coimbra,

Livraria Gonçalves, 1934.

Cartas de Florbela Espanca. Lisboa, Edição dos Autores,

s/d, prefácio de Azinhal Abelho e José Emídio Amaro

(1949).

Diário do Último Ano. Lisboa, Berrrand, 1981, prefácio de

Natália Correia.

O Dominó Preto. Lisboa, Berrrand, 1982, prefácio de Y. K.

Centeno.

26 Arrolo as primeiras edições e em ordem cronológica.

Page 56: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LVIII

Obras completas de Florbela Espanca. Lisboa, Publicações

Dom Quixote, 1985-1986, 8 vols., edição de Rui

Guedes.

Trocando Olhares. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da

Moeda, 1994; estudo introdutório, estabelecimento de

texto e notas de Maria Lúcia Dal Farra.

Page 57: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Critérios desta edição

Apresento as obras em verso de Florbela Espanca

em ordem cronológica: Trocando Olhares (1915-1917),

Livro de Mágoas (1919), Livro de "Sóror Saudade" (1923),

Charneca em Flor (1931, póstuma) e Reliquiae (1931,

póstuma). Em seguida, conta o leitor com uma "Esparsa

Seleta", ou seja, com uma pequena antologia que elaborei

a partir das peças dispersas da poetisa, também

dispostas cronologicamente, retiradas (a) de Primeiros

Versos, seleção composta por Florbela em 1917, (b) da

publicação de Armando Nobre Gusmão ("Algumas poesias

juvenis de Florbela Espanca" em A Cidade de Évora n.

19/20, janeiro-dezembro de 1962, pp. 235-243),

produção anterior a 1919, (c) de dois manuscritos

autógrafos, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa

(o Claustro das Quimeras e o que tem início com o soneto

"Livro do Nosso Amor"), que redundaram no Livro de

Mágoas, composição anterior a 1923. Também reproduzo

(d) manuscritos autógrafos de propriedade do Grupo

Amigos de Vila Viçosa e dos herdeiros de Ângelo Cesar,

datados de 1930. Do (e) Juvenília, publicado

postumamente por Guido Banelli, apenas um poema foi

eleito, visto que a maioria deles é pertença de Trocando

Olhares, e, nesse caso, trata-se de um soneto incompleto,

provavelmente escrito em 1930.

Page 58: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LX

Os oitenta e oito poemas de Trocando Olhares se

acham aqui transcritos na ordem original que ostentam

no manuscrito autógrafo de igual título, depositado na

Biblioteca Nacional de Lisboa. As datas, quando as há,

acompanham as peças e estas comparecem em textos-

base27. Para a reprodução das restantes obras, valho-me

das respectivas primeiras edições do Livro de Mágoas

(Lisboa, Tipografia Maurício, 1919), do Livro de "Sóror

Saudade" (Lisboa, Tipografia A Americana, 1923), de

Charneca em Flor (Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931).

Para Reliquiae, foi tomada a edição de Charneca em Flor

(com vinte e oito sonetos inéditos, Coimbra, Livraria

Gonçalves, 1931) e ainda, para o caso dos cinco sonetos

acrescidos a essa recolha póstuma ("Pobrezinha', "Roseira

Brava', "Navios-Fantasmas", "O Meu Soneto" e "Nihil

Novum", cuja ordem altero), a edição de 1934 de

Charneca em Flor (Coimbra, Livraria Gonçalves, 1934).

Quanto às obras acionadas para a "Esparsa Seleta',

são elas o livro de António da Costa Leão, Poetas do Sul -

Bernardo de Passos e Florbela Espanca (Lisboa,

Portugália, s/d), no que concerne à antologia Primeiros

Versos; o citado artigo de Armando Nobre Gusmão (A

Cidade de Évora n. 45/46, Évora, janeiro-dezembro de

1962/1963, pp. 235-243) e a primeira edição do Juvenília

(Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931). Para os restantes

poemas do último ano de vida da poetisa, já referi os

espólios de que me valho.

Por outro lado, busco registrar os títulos dos

poemas segundo comparecem nos originais – e, quando

27 Remeto o leitor interessado ao meu já citado Florbela Espanca, Trocando

Olhares, onde estampo as variações posteriormente perpetradas sobre os

poemas e as refundições que sofreram a partir desse original, cogito sobre a

viabilidade de existência dos projetos poéticos ali delineados e também discuto

as antologias que, a partir desse manuscrito, Florbela elaborou.

Page 59: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas LXI

inexistentes, nos índices das respectivas primeiras

edições onde ficam distinguidos por maiúsculas e

minúsculas, pois que tal discriminação é importante na

obra de Florbela, já que ela se vale, na maioria das vezes,

da maiusculização simbolista.

Page 60: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

TROCANDO OLHARES

(1915-1917) (*)

(*) Toda a numeração ente parênteses que acompanha as peças não é da

lavra de Florbela. Atribuí-as aos respectivos poemas para discernir os

títulos repetidos ou para ordenar um ciclo de poemas, como é o caso dos

finais. De resto, a disposição do poema na página obedece apenas às

necessidades internas desta edição.

Page 61: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Dedicatória

E só teu o meu livro: guarda-o bem;

Nele floresce o nosso casto amor

Nascido nesse dia em que o destino

Uniu o teu olhar à minha dor!

Page 62: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 4

As Quadras Dele (I)

Saudades e amarguras

Tenho eu todos os dias,

Não podem pois adejar

Em meus versos, alegrias.

Saudades e amarguras

Tenho eu todas as horas,

Quem noites só conheceu,

Não pode cantar auroras.

*

Se é um pecado sonhar

Tenho um pecado na vida,

Peço a Deus por tal pecado

A penitência merecida.

Quando o meu sonho morrer

(Que penitência tão dura!)

Vai encontrar em teu peito

Carinhosa sepultura.

*

Page 63: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 5

Onde estás ó meu amor,

Que te não vejo apar'cer?

Para que quero eu os olhos

Se não servem pra te ver?

Que m'importa a luz suave

Dos olhos que o mundo tem?

Não posso ver os teus olhos

Não quero ver os de ninguém.

*

Tens um coração de pedra

Dentro dum peito de lama

Pois nem sabes distinguir

Quem te odeia ou quem te ama.

Por uma vez que te despreza,

Teu coração endoicece;

E a pobre que te quer bem

Só teus desprezos merece!

*

Desde que o meu bem partiu

Parecem outras as cousas;

Até as pedras da rua

Têm aspectos de lousas!

Quando por acaso as piso,

Perturba-me um tal mistério!...

Como se pisasse à noite

As pedras dum cemitério...

*

Page 64: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 6

Teus olhos têm uma cor

Duma expressão tão divina,

Tão misteriosa, tão triste,

Como foi a minha sina.

É uma expressão de saudade

Vogando num mar incerto.

Parecem negros de longe,

Parecem azuis de perto.

Mas nem negros nem azuis

São teus olhos, meu amor,

Seriam da cor da mágoa

Se a mágoa tivesse cor!

*

Nem o perfume dos cravos,

Nem a cor das violetas,

Nem o brilho das estrelas,

Nem o sonhar dos poetas,

Pode igualar a beleza

Da primorosa flor,

Que abre na tua boca

O teu riso encantador.

*

Levanta os olhos do chão,

Olha de frente pra mim

Fingindo tanto desprezo,

Que podes ganhar assim?

Page 65: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 7

Não andes tão distraído,

Contando as pedras da rua,

Não sei pra que finges tanto...

Tu és meu e eu sou tua...

Levanta os olhos do chão,

Que podes ganhar assim?

Se Deus nos fez um pro outro,

Para que foges de mim?

*

Coveiros, sombrios, desgrenhados,

Fazei-me depressa a cova,

Quero enterrar minha dor

Quero enterrar-me assim nova.

Coveiros, só o corpo é novo,

Que há poucos anos nasceu;

Fazei-me depressa a cova

Que a minha alma morreu.

*

Amar a quem nos despreza

É sina que a gente tem;

Eu desprezo quem m'odeia,

E adoro quem me quer bem.

*

Ai, tirem-me o coração

Que o tenho todo desfeito!

Cada pedaço um punhal

Que trago dentro do peito.

*

Page 66: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 8

Eu quero viver contigo

Muito juntinhos os dois

O tempo que dura um beijo,

Embora eu morra depois.

*

Meu coração é ruína

Caindo todo a pedaços,

Oh, dá-lhe a hera piedosa

Bendita desses teus braços!

*

Quando fito o teu olhar

Tão frio e tão indiferente,

Fico a chorar um amor

Que o teu coração não sente.

*

O fado não é da terra,

O fado criou-o Deus,

O fado é andar doidinha

Perdida p'los olhos teus.

*

Esmaguei meu coração

Para o triste te esquecer,

Mas ao sentir os teus passos,

Põe-se a bater... a bater...

*

Andam pombas assustadas

No teu olhar, adejando,

Mal sentem os meus olhos,

Batem as asas, voando.

*

Page 67: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 9

Há sonhos que ao enterrar-se,

Levam dentro do caixão,

Bocados da nossa alma,

Pedaços de coração!

*

Andam sonhos cor do mar

Nas minhas quadras, imersos,

Se queres comigo sonhar,

Canta baixinho os meus versos.

12/2/1916

Page 68: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 10

Cantigas Leva-as o Vento...

A lembrança dos teus beijos

Inda na minh'alma existe,

Como um perfume perdido,

Nas folhas dum livro triste.

Perfume tão esquisito

E de tal suavidade,

Que mesmo desapar'cido

Revive numa saudade!

1/1/1916

Page 69: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 11

Num Postal

Luar! lírio branco que se esfolha...

Neve, que do céu anda perdida,

Asas leves d'anjo, que pairando,

Reza pela terra adormecida...

Page 70: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 12

Sonhos...

Sonhei que era a tua amante querida,

A tua amante feliz e invejada;

Sonhei que tinha uma casita branca

À beira dum regato edificada...

Tu vinhas ver-me misteriosamente,

A horas mortas quando a terra é monge

Que reza. Eu sentia, doidamente,

Bater o coração quando de longe

Te ouvia os passos. E anelante,

Estava nos teus braços num instante,

Fitando com amor os olhos teus!

E, vê tu, meu encanto, a doce mágoa:

Acordei com os olhos rasos d'água,

Ouvindo a tua voz um longo adeus.

6/2/1916

Page 71: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 13

No Minho

Casitas brancas do Minho

Onde guardam os tesouros,

As fadas d'olhos azuis

E lindos cabelos loiros.

Filtros de beijos em flor,

Corações de namoradas,

Nas casas brancas do Minho

Guardam ciosas as fadas.

I0/5/1915

Page 72: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 14

A Doida

A Noite passa, noivando.

Caem ondas de luar.

Lá passa a doida cantando

Num suspiro doce e brando

Que mais parece chorar!

Dizem que foi pela morte

D'alguém, que muito lhe quis,

Que endoideceu. Triste sorte!

Que dor tão triste e tão forte!

Como um doido é infeliz!

Desde que ela endoideceu,

(Que triste vida, que mágoa!)

Pobrezinha, olhando o céu,

Chama o noivo que morreu,

Com os olhos rasos d'água!

Page 73: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 15

E a noite passa, noivando.

Passa noivando o luar:

"Num suspiro doce e brando,

Podre doida vai cantando

Que esse teu canto, é chorar!"

12/12/1915

Page 74: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 16

Poetas

Ai as almas dos poetas

Não as entende ninguém;

São almas de violetas

Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,

Como as estrelas no ar;

Sentem o vento gemer

Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito

Dores amargas e secretas

É que em noite de luar

Pode entender os poetas

E eu que arrasto amarguras

Que nunca arrastou ninguém

Tenho alma pra sentir

A dos poetas também!

8/1/1916

Page 75: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 17

Desafio

Ela

Ó luar que lindo és,

Luar branco de Janeiro!

Não há luar como tu,

Nem amor como o primeiro.

Ele

Deixa-me rir, ó Maria!

Qual é pra ti o primeiro?!

Chamas o mesmo ao segundo,

Chamas o mesmo ao terceiro!

Ela

O que Deus disse uma vez

Na minh'alma já é velho;

Vai pedir ao Senhor Cura

Que o leia no Evangelho!

......................................

Page 76: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 18

Uma voz ouve-se ao longe

Que sobe alto, desgarrada:

"Por muito amar, Madalena,

No céu serás perdoada!"

12/12/1915

Page 77: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 19

O Teu Olhar

Quando fito o teu olhar,

Duma tristeza fatal,

Dum tão íntimo sonhar,

Penso logo no luar

Bendito de Portugal!

O mesmo tom de tristeza,

O mesmo vago sonhar,

Que me traz a alma presa

Às festas da Natureza

E à doce luz desse olhar!

Se algum dia, por meu mal,

A doce luz me faltar

Desse teu olhar ideal,

Não se esqueça Portugal

De dizer ao seu luar

Page 78: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 20

Que à noite, me vá depor

Na campa em que eu dormitar,

Essa tristeza, essa dor,

Essa amargura, esse amor,

Que eu lia no teu olhar!

8/1/1916

Page 79: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 21

Crisântemos

Sombrios mensageiros das violetas,

De longas e revoltas cabeleiras;

Brancos, sois o casto olhar das virgens

Pálidas que ao luar, sonham nas eiras.

Vermelhos, gargalhadas triunfantes,

Lábios quentes de sonhos e desejos,

Carícias sensuais d'amor e gozo;

Crisântemos de sangue, vós sois beijos!

Os amarelos riem amarguras,

Os roxos dizem prantos e torturas,

Há-os também cor de fogo, sensuais...

Eu amo os crisântemos misteriosos

Por serem lindos, tristes e mimosos,

Por ser a flor de que tu gostas mais!

21/11/I915

Page 80: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 22

Que diferença!...

Quando passas a meu lado,

E que olhas para mim,

Tornas-te da cor da rosa,

E eu da cor do jasmim.

Vê tu que expressões dif'erentes

Da nossa mesma ansiedade:

A cor da rosa é despeito,

A palidez é saudade!

21/1/1916

Page 81: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 23

Os Teus Olhos

O céu azul, não era

Dessa cor, antigamente;

Era branco como um lírio,

Ou como estrela cadente.

Um dia, fez Deus uns olhos

Tão azuis como esses teus,

Que olharam admirados

A taça branca dos céus.

Quando sentiu esse olhar:

"Que doçura, que primor!"

Disse o céu, e ciumento,

Tornou-se da mesma cor!

21/1/1916

Page 82: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 24

Doce Milagre

O dia chora. Agonizo

Com ele meu doce amor.

Nem a sombra dum sorriso,

Na Natureza diviso,

A dar-lhe vida e frescor!

A triste bruma, pesada,

Parece, detrás da serra

Fina renda, esfarrapada,

De Malines, desdobrada

Em mil voltas pela terra!

As avezitas, coitadas,

'Squeceram hoje o cantar.

As flores pendem, fanadas

Nas finas hastes, cansadas

De tanto e tanto chorar...

Page 83: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 25

O dia parece um réu.

Bate a chuva nas vidraças.

É tudo um imenso véu.

Nem a terra nem o céu

Se distingue. Mas tu passas...

...E o sol doirado aparece.

O dia é uma gargalhada.

A Natureza endoidece

A cantar. Tudo enternece

A minh'alma angustiada!

Rasgam-se todos os véus

As flores abrem, sorrindo.

Pois se eu vejo os olhos teus

A fitarem-se nos meus,

Não há de tudo ser lindo?!

Se eles são prodigiosos

Esses teus olhos suaves!

Basta fitá-los, mimosos,

Em dias assim chuvosos,

Para ouvir cantar as aves!

A Natureza, zangada,

Não quer os dias risonhos?...

Tu passas... e uma alvorada

Pra mim abre perfumada,

Enche-me o peito de sonhos!

6/2/1916

Page 84: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 26

Folhas de Rosa

Todas as prendas que me deste, um dia,

Guardei-as, meu encanto, quase a medo,

E quando a noite espreita o pôr-do-sol,

Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,

Choro e rio com elas, mansamente...

Pouco a pouco o perfume do outrora

Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal e prata

Bebo uma saudade estranha e vaga,

Uma saudade imensa e infinita

Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,

A doce oferta que eu amava tanto,

Que refletia outrora tantos risos,

E agora reflete apenas pranto,

Page 85: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 27

E o colar de pedras preciosas,

De lágrimas e estrelas constelado,

Resumem em seus brilhos o que tenho

De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,

Aquela que mais fala à fantasia,

São as folhas daquela rosa branca

Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

18/1/1916

Page 86: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 28

Dantes...

Quando ia passear contigo ao campo,

Tu ias sempre a rir e a cantar;

E lembra-me até uma cotovia

Que um dia se calou pra te escutar,

Enquanto eu apanhava os malmequeres

Que nos cumprimentavam da estrada,

Que, depois esfolhavas, impiedoso,

Na eterna pergunta: muito ou nada?

Tu beijavas as f'ridas carminadas

Que, em meus dedos, faziam os espinhos

Das rosas que coravam, vergonhosas,

Zangadas, de nos ver assim sozinhos.

Fitávamos as nuvens do espaço.

Que imensas! que bonitas e que estranhas!

E ficávamos horas a pensar

Se seriam castelos ou montanhas...

Page 87: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 29

Que adoráveis canções de mimo e graça

Os teus lábios proferiam a cantar!

Tão mimosas, que as relvas da campina

Ficavam pensativas a sonhar...

As fontes murmuravam docemente,

Os teus beijos cantavam namorados;

Cintilavam as pedras do caminho,

Sorriam as flores pelos valados...

A hora sonhadora do poente

Tinham maiores palpitações os ninhos.

Lembras-te? Íamos lavar as mãos,

Vermelhas das amoras dos caminhos.

Eu brincava a correr atrás de ti;

Uma sombra perseguindo um clarão...

E no seio da noite, os nossos passos

Pareciam encher de sol a 'scuridão!

Olhando tanta estrela, tu dizias:

Olha a chuva de prata que nos cobre!

Depois, numa expressão amarga e branda

Recitavas, chorando, António Nobre!...

Eu tinha medo, um medo atroz infindo

De passear pelos campos a tal hora,

Mas, olhando os teus olhos cintilantes,

A noite semelhava uma aurora!

Page 88: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 30

E já passaram esses áureos tempos,

E já fugiu a nossa mocidade!...

Mas quando penso nesses dias lindos,

Que tortura, minh'alma e que saudade!

18/1/1916

Page 89: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 31

As Quadras Dele (II)

Digo pra mim quando oiço

O teu lindo riso franco,

"São seus lábios espalhando,

As folhas dum lírio branco..."

*

Perguntei às violetas

Se não tinham coração,

Se o tinham, porque 'scondidas

Na folhagem sempre estão?!

Responderam-me a chorar,

Com voz de quem muito amou:

Sabeis que dor os desfez,

Ou que traição os gelou?

*

Meu coração, inundado

Pela luz do teu olhar,

Dorme quieto como um lírio,

Banhado pelo luar.

*

Page 90: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 32

Quando o ouvido vier

Teu amor amortalhar,

Quero a minha triste vida,

Na mesma cova, enterrar.

*

Eu sei que me tens amor,

Bem o leio no teu olhar,

O amor quando é sentido

Não se pode disfarçar.

Os olhos são indiscretos;

Revelam tudo que sentem,

Podem mentir os teus lábios,

Os olhos, esses, não mentem.

*

Bendita seja a desgraça,

Bendita a fatalidade,

Bendito sejam teus olhos

Onde anda a minha saudade.

Não há amor neste mundo

Como o que eu sinto por ti,

Que me ofertou a desgraça

No momento em que te vi.

*

O teu grande amor por mim,

Durou, no teu coração,

O espaço duma manhã,

Como a rosa da canção.

*

Page 91: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 33

Quando falas, dizem todos:

Tem uma voz que é um encanto

Só falando, faz perder

Todo juízo a um santo.

*

Enquanto eu longe de ti

Ando, perdida de zelos,

Afogam-se outros olhares

Nas ondas dos teus cabelos.

*

Dizem-me que te não queira

Que tens, nos olhos, traição.

Ai, ensinem-me a maneira

De dar leis ao coração!

*

Tanto ódio e tanto amor

Na minha alma contenho;

Mas o ódio inda é maior

Que o doido amor que te tenho.

Odeio teu doce sorriso,

Odeio teu lindo olhar,

E ainda mais a minh'alma

Por tanto e tanto te amar!

*

Quando o teu olhar infindo

Poisa no meu, quase a medo,

Temo que alguém adivinhe

O nosso casto segredo.

Page 92: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 34

Logo minh'alma descansa;

Por saber que nunca alguém

Pode imaginar o fogo

Que o teu frio olhar contém.

*

Quem na vida tem amores

Não pode viver contente,

É sempre triste o olhar

Daquele que muito sente.

*

Adivinhar o mistério

Da tua alma quem me dera!

Tens nos olhos o outono,

Nos lábios a primavera...

Enquanto teus lábios cantam

Canções feitas de luar,

Soluça cheio de mágoa

O teu misterioso olhar...

Com tanta contradição,

O que é que a tua alma sente?

És alegre como a aurora,

E triste como um poente...

Desabafa no meu peito

Essa amargura tão louca,

Que é tortura nos teus olhos

E riso na tua boca!

*

Page 93: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 35

Os teus dentes pequeninos

Na tua boca mimosa,

São pedacitos de neve

Dentro de um cálix de rosa.

*

O lindo azul do céu

E a amargura infinita

Casaram. Deles nasceu

A tua boca bendita!

16/2/1916

Page 94: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 36

Junquilhos...

Nessa tarde mimosa de saudade

Em que eu te vi partir, ó meu amor,

Levaste-me a minh'alma apaixonada

Nas folhas perfumadas duma flor.

E como a alma, dessa florzita,

Que é a minha, por ti palpita amante!

Oh alma doce, pequenina e branca,

Conserva o teu perfume estonteante!

Quando fores velha, emurchecida e triste,

Recorda ao meu amor, com teu perfume

A paixão que deixou e qu'inda existe...

Ai, dize-lhe que se lembre dessa tarde,

Que venha aquecer-se ao brando lume

Dos meus olhos que morrem de saudade!

17/2/1916

Page 95: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 37

O Fado

Corre a noite, de manso num murmúrio,

Abre a rosa bendita do luar...

Soluçam ais estranhos de guitarra...

Oiço, ao longe, não sei que voz chorar...

Há um repoiso imenso em toda a terra,

Parece a própria noite a escutar...

E o canto continua mais profundo

Que uma página sentida de Mozart!

É o fado. A canção das violetas:

Almas de tristes, almas de poetas,

Pra quem a vida foi uma agonia!

Minha doce canção dos deserdados,

Meu fado que alivias desgraçados,

Bendito sejas tu! Ave Maria!...

28/2/1916

Page 96: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 38

Verdades Cruéis

Acreditar em mulheres

É coisa que ninguém faz;

Tudo quanto amor constrói

A inconstância desfaz.

Hoje amam, amanhã 'squecem,

Ora dores, ora alegrias;

E o seu eternamente

Dura sempre uns oito dias!...

28/2/1916

Page 97: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 39

[Li Um Dia, Não Sei Onde](*)

Li um dia, não sei onde,

Que em todos os namorados

Uns amam muito, e os outros

Contentam-se em ser amados.

Fico a cismar pensativa

Neste mistério encantado...

Digo pra mim: de nós dois

Que ama e quem é amado?...

28/2/1916

(*) Poema sem título no original

Page 98: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 40

As Quadras Dele (III)

Há em tudo quanto fitas

Pureza igual à dos céus,

Até são belos meus olhos

Porque lá poisam os teus!

*

Que filtro embriagante

Me deste tu a beber?

Até me esqueço de mim

E não te posso esquecer!...

*

Está tudo quanto olho

Na 'scuridão mais intensa,

Faltou de teus olhos lindos

A luz profunda e imensa...

*

Viver sozinha no mundo

É a minha triste sorte.

Ai quem me dera trocá-la

Embora fosse p'la morte!

*

Page 99: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 41

Teus lábios cor das papoilas,

Vermelhos como o carmim,

Não são lábios nem papoilas

São pedaços de cetim.

*

Quando um peito amargurado

Adora seja quem for,

Por muito infame que seja

Bendito seja esse amor!

*

Tenho por ti uma paixão

Tão forte e acrisolada,

Que até adoro a saudade

Quando por ti é causada.

*

A vezes quando anoitece

Cai em meu peito tal mágoa!...

Quero cantar. E num instante

Sinto os olhos rasos d'água!

*

Quando me não quiseres mais

Mata-me por piedade!

Deixares-me a vida, sem ti

É bem maior crueldade!

*

Queria ser a erva humilde

Que pisasses algum dia,

Pra debaixo de teus pés

Morrer em doce agonia.

*

Page 100: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 42

Há beijos na tua boca

Pode colhê-los quem quer.

Só eu não posso. Vê tu

Que desgraçada mulher!

*

Quem me dera um coração

Que por mim bata somente...

Dai-me essa esmola, Senhor,

Para que eu morra contente!

*

Há no fado das vielas

Notas tão sentimentais,

Tão delicadas, tão belas,

Que não s'esquecem jamais!

*

Andam teus olhos de luto;

Sempre eles de negro andaram,

Pelas feridas que fizeram,

Pelas mortes que causaram.

*

Olhos negros, noite infinda

Sede meu norte, meu guia,

Ó noite escura e bendita

Sê o meu sol, o meu dia!

*

Gosto imenso dumas flores

Muito escuras, quase pretas,

Modestas, lindas graciosas

Que se chamam violetas.

Page 101: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 43

Por isso quando eu morrer,

Em prova do teu amor

Inunda de violetas

O caixão aonde eu for.

*

Não sei que têm meus versos;

Alegres quero fazê-los

Mas ficam-me sempre tristes

Como a cor dos teus cabelos.

Page 102: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 44

Carta Para Longe

O tempo vai um encanto,

A primavera está linda,

Voltaram as andorinhas...

E tu não voltaste ainda!...

Por que me fazes sofrer?

Por que te demoras tanto?

A primavera 'stá linda...

O tempo vai um encanto...

Tu não sabes, meu amor,

Que, quem 'spera, desespera?

O tempo está um encanto...

E vai linda a primavera...

Há imensas andorinhas;

Cobrem a terra e o céu!

Elas voltaram aos ninhos.

Volta também para o teu!...

Page 103: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 45

Adeus. Saudades do sol,

Da madressilva, e da hera;

Respeitosos cumprimentos

Do tempo e da primavera.

Mil beijos da tua qu'rida;

Que é tua por toda a vida.

1/3/1916

Page 104: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 46

Triste Passeio

Vou pela estrada, sozinha.

Não me acompanha ninguém.

Num atalho, em voz mansinha:

"Como está ele? Está bem?"

É a toutinegra curiosa;

Há em mim um doce enleio...

Nisto pergunta uma rosa:

"Então ele? Inda não veio?"

Sinto-me triste, doente...

E nem me deixam esquecê-lo!...

Nisto o sol impertinente:

"Sou um fio do seu cabelo..."

Ainda bem. É noitinha.

Enfim já posso pensar!

Ai, já me deixam sozinha!

De repente, oiço o luar:

Page 105: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 47

"Que imensa mágoa me invade,

Que dor o meu peito sente!

Tenho uma enorme saudade

De ver o teu doce ausente!"

Volto a casa. Que tristeza!

Inda é maior minha dor...

Vem depressa. A natureza

Só fala de ti, amor!

1/3/1916

Page 106: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 48

Mentiras

''Ai quem me dera uma feliz mentira, Que

fosse uma verdade para mim!"

J. Dantas

Tu julgas que eu não sei que tu me mentes

Quando o teu doce olhar poisa no meu?

Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?

Qual a imagem que alberga o peito teu?

Ai, se o sei, meu amor! Eu bem distingo

O bom sonho da feroz realidade...

Não palpita d'amor, um coração

Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;

Perpassa nos teus olhos desleais,

O gelo do teu peito de granito...

Mas finjo-me enganada, meu encanto,

Que um engano feliz vale bem mais

Que um desengano que nos custa tanto!

10/3/1916

Page 107: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 49

Cemitérios

Cemitério da minha terra,

Paredes a branquejar;

Que bom será lá dormir

Um bom sonho sem sonhar!...

De manhã, muito cedinho

Dormir de leve, embalada

P'las canções das raparigas

Que gentis passam na 'strada...

Cantem mais devagarinho,

Mais baixinho, camponesas,

Que os vossos cantos pareçam

Tristes preces, doces rezas...

À noitinha, ao sol posto

Ouvindo as Ave-Marias!

Meu Deus, que suavidade!

Que paz de todos os dias!

Page 108: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 50

Os murmúrios dos ciprestes

São doces canções aladas,

Serenatas de paixão

Às almas enamoradas!

O luar imaculado

Em noites puras, serenas,

É um rio, que vai fazendo

Florir as açucenas...

Canta triste o rouxinol

Beijam-se lindos uns goivos,

E no fundo duma campa

Dormem felizes uns noivos...

Dum túmulo a outro se fala:

"Por que morreste tão nova?

Por que tão cedo vieste

Dormir numa fria cova?"

"Eu era infeliz na terra,

Ninguém me compreendia,

Quando a minh'alma chorava

Todos pensavam que eu ria..."

"E tu tão triste e tão linda,

Com olhos de quem chorou?"

"Eu tive um amor na vida

Que por outra me deixou!"

Page 109: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 51

"E tu?" "Sozinha no mundo

Nunca tive o que outros têm:

Pai, mãe ou um namorado...

Morri por não ter ninguém!..."

Uma diz: "Chorava um filho

Que é uma dor sem piedade",

Outra diz num vago enleio:

"Eu cá, morri de saudade!"

De todas as campas sai

Um choro que é um mistério

É então que os vivos sentem

As vozes do cemitério...

... Vão-se calando os soluços...

E as pobres mortas de dor

Vão dormindo, acalentando

Uns sonhos brancos d'amor...

Invejo estes doces sonhos

Neste terreno funéreo.

Ai quem me dera dormir

No meu lindo cemitério!

10/3/1916

Page 110: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 52

A Mulher

I

Um ente de paixão e sacrifício,

De sofrimentos cheio, eis a mulher!

Esmaga o coração dentro do peito,

E nem te doas coração, sequer!

Sê forte, corajoso, não fraquejes

Na luta; sê em Vênus sempre Marte;

Sempre o mundo é vil e infame e os homens

Se te sentem gemer hão de pisar-te!

Se às vezes tu fraquejas, pobrezinho,

Essa brancura ideal de puro arminho

Eles deixam pra sempre maculada;

E gritam então os vis: "olhem, vejam

É aquela a infame!" e apedrejam

A pobrezita, a triste, a desgraçada!

Page 111: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 53

A Mulher

II

Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!

Como sabes ser doce e desgraçada!

Como sabes fingir quando em teu peito

A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosas duma imagem

Adorada que amaram doidamente!

Quantas e quantas almas endoidecem

Enquanto a boca ri alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm

Sem nunca o confessarem a ninguém

Doces almas de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade

Dum rei; amor de sonho e de saudade,

Que se esvai e que foge num lamento!

13/3/1916

Page 112: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 54

No Hospital

A Theá

Na vasta enfermaria ela repoisa

Tão branca como a orla do lençol.

Gorjeia a sua voz ternos queixumes,

Como no bosque à noite o rouxinol.

É delicada e triste. O seu corpito

Tem o perfume casto da verbena.

Não são mais brancas as magnólias brancas

Que a sua boca tão branca e tão pequena!

Oiço dizer: Seu rosto faz sonhar!

Serão pétalas de rosa ou de luar?

Talvez a neve que chorou o inverno...

Mas vendo-a assim tão branca, penso eu:

É um astro cansado, que do céu

Veio repoisar nas trevas dum inferno!

1/3/1916

Page 113: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 55

Os Meus Versos

Leste os meus versos? Leste? E adivinhaste

O encanto supremo que os ditou?

Acaso, quando os leste, imaginaste

Que era o teu esse olhar que os inspirou?

Adivinhaste? Eu não posso acreditar

Que adivinhasses, vês? E até, sorrindo,

Tu disseste pra ti: "Por um olhar

Somente, embora fosse assim tão lindo,

Ficar amando um homem!... Que loucura!"

− Pois foi o teu olhar, a noite escura,

(eu só a ti o digo, e muito a medo...)

Que inspirou esses versos! Teu olhar

Que eu trago dentro d'alma a soluçar!

........................................................

Ai não descubras nunca o meu segredo!

8/4/1916

Page 114: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 56

As Quadras Dele (IV)

Sou mais infeliz que os pobres

Que têm fome na rua.

Também eu ando faminta

De beijos da boca tua.

*

A saudade é tão cruel,

É uma tão profunda dor,

Que em troca eu quisera o fel

Que bebeu Nosso Senhor!

*

A tristeza mais amarga,

A mais negra, a mais tristonha,

Dantes, morava em teus olhos

De luz bendita e risonha.

Dava-se mal a tristeza

Com essa luz d'alegria,

Mudou-se então pros meus olhos

Que choram de noite e dia.

*

Page 115: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 57

Há uma palavra na terra

Que tem encanto do céu;

Não é amor, nem esperança,

Nem sequer o nome teu.

Essa palavra tão doce,

De tanta suavidade,

Que me faz chorar de dor

Quando a murmuro: é saudade!

*

Amor, é comunhão d'almas

No mesmo sagrado altar;

Contigo, amor da minh'alma,

Quem me dera comungar!

*

Não julgues tu que m'importo

Quando passas sem me olhar;

Lembra-me logo o ditado:

"Quem desdenha, quer comprar!"

*

Parte a minh'alma em pedaços

E atira-os pelo mundo fora;

Pequenas almas que sentem,

Como a grande sente agora!

Chega para encher o mundo

O céu, a terra, os espaços,

Estas almas pequeninas,

Estes pequenos pedaços!

Page 116: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 58

Mesmo assim sendo tão grande

Esta alma, ó sonhos meus!

É pequena pra conter

O fulgor dos olhos teus!

*

Abaixo sempre os meus olhos

Quando encontro o teu olhar;

De ver o sol de frente

Ninguém se pode gabar!

*

Meu fado, meu doce amigo

Meu grande consolador

Eu quero ouvir-te rezar,

Orações à minha dor!

Só no silêncio da noite

Vibrando perturbador,

Quantas almas não consolas

Nessa toada d'amor!

Cantado p'r uma voz pura

Eu quero ouvir-te também

P'r uma voz que me recorde

A doce voz do meu bem!

Pela calada da noite

Quando o luar é dolente

Eu quero ouvir essa voz

Docemente... docemente...

16/4/1916

Page 117: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 59

Aos Olhos Dele

Não acredito em nada. As minhas crenças

Voaram como voa a pomba mansa;

Pelo azul do ar. E assim fugiram

As minhas doces crenças de criança.

Fiquei então sem fé; e a toda a gente

Eu digo sempre, embora magoada:

Não acredito em Deus e a Virgem Santa

É uma ilusão apenas e mais nada!

Mas avisto os teus olhos, meu amor,

Duma luz suavíssima de dor...

E grito então ao ver esses dois céus:

Eu creio, sim, eu creio na Virgem Santa

Que criou esse brilho que m'encanta!

Eu creio, sim, creio, eu creio em Deus!

17/4/1916

Page 118: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 60

Súplica (I)

Digo pra mim

Quando ele passa:

Ave Maria

Cheia de graça!

E quando ainda

Mal posso vê-lo:

Bendito Deus

Como ele é belo! (1)

(1) Entre este e o próximo poema, folhar foram arrancadas ao

manuscrito autógrafo. É de supor, portanto, que este "Súplica"

esteja incompleto.

Page 119: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 61

Embalada num sonho aurifulgente

Sei apenas que sonho vagamente,

Ao avistar, amor, teus olhos belos,

Em castelãs altivas, medievais,

Que choram às janelas ogivais,

Perdidas em românticos castelos! (2)

25/4/1916

(2) Trata-se presumivelmente de um soneto cujos dois quartetos

pertenciam à folha anterior do manuscrito, que nele não se

encontra, pelo menos da maneira como este se acha depositado na

Biblioteca Nacional de Lisboa.

Page 120: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 62

Mistério D'Amor

Um mistério que eu trago dentro em mim

Ajuda-me, minha'alma a descobrir...

É um mistério de sonho e de luar

Que ora me faz chorar, ora sorrir!

Vivemos tanto tempo tão amigos!

E sem que o teu olhar puro toldasse

A pureza do meu. E sem que um beijo

As nossas bocas rubras desfolhasse!

Mas um dia, uma tarde... houve um fulgor

Um olhar que brilhou... e mansamente...

Ai dize ó meu encanto, meu amor:

Por que foi que somente nessa tarde

Nos olhamos assim tão docemente

Num grande olhar d'amor e de saudade?!

25/4/1916

Page 121: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 63

Escreve-me...

Escreve-me! ainda que seja só

Uma palavra, uma palavra apenas,

Suave como o teu nome e casta

Como um perfume casto d'açucenas!

Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo

que te não vejo, amor! Meu coração

Morreu, já e no mundo aos pobres mortos

Ninguém nega uma frase d'oração

"Amo-te! cinco letras pequeninas,

Folhas leves e tenras de boninas,

Um poema d'amor e felicidade"

Não queres mandar-me esta palavra apenas?

Olha, manda então... brandas... serenas...

Cinco pétalas roxas de saudade...

27/4/1916

Page 122: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 64

O Meu Alentejo (3)

Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,

Doirando tudo... Ondeiam nos trigais

D'oiro fulvo, de leve... docemente...

As papoilas sangrentas, sensuais...

Andam asas no ar; e raparigas,

Flores desabrochadas em canteiros,

Mostram, por entre o oiro das espigas,

Os perfis delicados e trigueiros...

Tudo é tranqüilo, e casto, e sonhador...

Olhando esta paisagem que é uma tela

De Deus, eu penso então: Onde há pintor,

Onde há artista de saber profundo,

que possa imaginar coisa mais bela,

Mais delicada e linda neste mundo?!

11/5/1916

(3) Observe-se a refundição definitiva deste soneto em "Alentejano"

do Livro de "Sóror Saudade".

Page 123: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 65

A Voz de Deus

Ó rosas que baixais as castas frontes

Quando, à tarde, vos beija o sol poente,

Dizei-me que murmúrios vos segreda

O sol que vos beija docemente?...

Ó Luar cristalino e abençoado

Por que entristeces tu em noites belas

Quando chora baixinho o rouxinol

Um choro só ouvido p'las estrelas!...

Mistério das coisas! Em tudo existe

Um coração que sente e que palpita

Desde o sol rubro até à urze triste!

Ó mistério das coisas! Voz de Deus

Em tudo eternamente sê bendita

Na terra imensa assim como nos céus!

11/5/1916

Page 124: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 66

Paisagem

Uns bezerritos bebem lentamente

Na tranqüila levada do moinho.

Perpassa nos seus olhos, vagamente,

A sombra duma alma cor do linho!

Junto deles um par. Naturalmente

Namorados ou noivos. De mansinho

Soltam frases d'amor... e docemente

Uma criança canta no caminho!

Um trecho de paisagem campesina,

Uma tela suave, pequenina,

Um pedaço de terra sem igual!

Oh, abre-me em teu seio a sepultura,

Minha terra d'amor e de ventura,

Ó meu amado e lindo Portugal!

17/5/1916

Page 125: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 67

Filhos

À Exma Srª D. Glória Lomba

Filhos são as nossas almas,

Desabrochadas em flores;

Filhos, estrelas caídas

No fundo das nossas dores!

Filhos, aves que chilreiam

No ninho do nosso amor,

Mensageiros da felicidade

Mandados pelo senhor!

Filhos, sonhos adorados,

Beijos que nascem de risos;

Sol que aquenta e dá luz

E se desfaz em sorrisos!

Em todo o peito bendito

Criado pelo bom Deus,

Há uma alma de mãe

Que sofre p'los filhos seus!

Page 126: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 68

Filhos! Na su'alma casta,

A nossa alma revive…

Eu sofro pelas saudades

Dos filhos que nunca tive!…

17/5/1916

Page 127: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 69

As Mães de Portugal

Ó mães doloridas, celestiais,

misericordiosas,

Ó mães d'olhos benditos, liriais,

Ó mães piedosas

Calai as vossas mágoas, vossas dores!

Longe na crua guerra

Vossos filhos defendem, vencedores,

A nossa linda terra!

E se eles defendem a bandeira

Da terra que adorais,

Onde viram um dia a luz primeira

Ó mães, por que chorais?!

Uma lágrima triste, agora é

Cobardia, fraqueza!

Nos campos de batalha cai de pé

A alma portuguesa!

Page 128: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 70

Pela terra de estrela e tomilhos,

De sol, e de luar,

Deixai ir combater os vossos filhos

Ao longe, heróis do mar!

Dum português bendito, sem igual

Eu sigo o mesmo trilho:

Por cada pedra deste Portugal

Eu arriscava um filho!

Por isso ó mãe doloridas, pelo leito

De morte, onde ajoelhais,

Esmagai vossa dor dentro do peito

Ó mães não choreis mais!

A pátria rouba os filhos, mas é mãe

A mãe de todos nós

Direito de a trair não tem ninguém

Ó mães nem sequer vós!

19/5/1916

Page 129: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 71

Doce Certeza

Por essa vida fora hás de adorar

Lindas mulheres, talvez; em ânsia louca,

Em infinito anseio hás de beijar

Estrelas d'oiro fulgindo em muita boca!

Hás de guardar em cofre perfumado

Cabelos d'oiro e risos de mulher,

Muito beijo d'amor apaixonado;

E não te lembrarás de mim sequer!...

Hás de tecer uns sonhos delicados...

Hão de por muitos olhos magoados,

Os teus olhos de luz andar imersos!...

Mas nunca encontrarás p'la vida fora,

Amor assim como este amor que chora

Neste beijo d'amor que são meus versos!...

6/6/1916

Page 130: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 72

O Teu Segredo

O mundo diz-te alegre porque o riso

Desabrocha em tua boca, docemente

Como uma flor de luz! Meigo sorriso

Que na tua boca poisa alegremente!

Chama-te o mundo alegre. Ai, meu amor,

Só eu inda li bem nessa alegria!…

Também parece alegre a triste cor

Do sol, à tarde, ao despedir-se o dia!…

És triste; eu sei. Toda suavidade

Tão roxa, como é roxa uma saudade

É a tua alma, amor, cheia de mágoa.

Eu sei que és triste, sei. O meu olhar

Descobriu o segredo, que a cantar

Repoisa nos teus olhos rasos d’água!…

6/6/1916

Page 131: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 73

Sonho Morto

Nosso sonho morreu. Devagarinho,

Rezemos uma prece doce e triste

Por alma desse sonho! Vá… baixinho…

Por esse sonho, amor, que não existe!

Vamos encher-lhe o seu caixão dolente

De roxas violetas; triste cor!

Triste como ele, nascido ao sol poente,

O nosso sonho… ai!… reza baixo… amor…

Foste tu que o mataste! E foi sorrindo,

Foi sorrindo e cantando alegremente,

Que tu mataste o nosso sonho lindo!

Nosso sonho morreu… Reza mansinho…

Ai, talvez que rezando, docemente,

O nosso sonho acorde… mais baixinho…

8/6/1916

Page 132: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 74

Súplica (II)

Olha pra mim, amor, olha pra mim;

Meus olhos andam doidos por te olhar!

Cega-me com o brilho de teus olhos

Que cega ando eu há muito por te amar.

O meu colo é arminho imaculado

Duma brancura casta que entontece;

Tua linda cabeça loira e bela

Deita em meu colo, deita e adormece!

Tenho um manto real de negras trevas

Feito de fios brilhantes d'astros belos

Pisa o manto real de negras trevas

Faz alcatifa, oh faz, de meus cabelos!

Os meus braços são brancos como o linho

Quando os cerro de leve, docemente…

Oh! Deixa-me prender-te e enlear-te

Nessa cadeia assim eternamente! …

Page 133: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 75

Vem para mim, amor… Ai não desprezes

A minha adoração de escrava louca!

Só te peço que deixes exalar

Meu último suspiro na tua boca!…

Page 134: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 76

Sonhando...

É noite pura e linda. Abro a minha janela

E olho suspirando o infinito céu,

Fico a sonhar de leve em muita coisa bela

Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D’olhos fechados sonho. A noite é uma elegia

Cantando brandamente um sonho todo d’alma

E enquanto a lua branca o linho bom desfia

Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora… Numa carreira louca

Tão perto que passou, tão perto à minha boca

Nessa carreira doida, estranha e caprichosa,

Que a minh’alma cativa estremece, esvoaça

Para seguir a tua, como a folha de rosa

Segue a brisa que a beija… E a tua alma passa!…

Page 135: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 77

Noites da Minha Terra

Anda o luar espalhando fios de prata

Pelos campos fora… Lírios a flux

Lança o azul do céu… e a terra grata

Transforma em mil perfumes toda a luz!

As estrelas cadentes vão ’spalhando

Lírios brancos também… agora a terra

Parece noiva linda, que sonhando

Caminha pró altar, além na serra…

É meia-noite agora. Tudo quieto

Na noite branda, dorme… Entreaberto

Vai esfolhando o lírio do luar

As alvas folhas, que cobrindo o céu,

E todo o mar e toda a terra, um véu

Branco, de noiva, lembra a palpitar!…

17/6/1916

Page 136: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 78

Vozes do Mar

Quando o sol vai caindo sobre as águas

Num nervoso delíquio d’oiro intenso,

Donde vem essa voz cheia de mágoas

Com que falas à terra, ó mar imenso?…

Tu falas de festins, e cavalgadas

De cavaleiros errantes ao luar?

Falas de caravelas encantadas

Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d’epopéias? Tens anseios

D’amarguras? Tu tens também receios,

Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?…

… Talvez a voz do Portugal antigo,

Chamando por Camões numa saudade!

17/6/1916

Page 137: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 79

Cravos Vermelhos

Bocas rubras de chama a palpitar,

Onde fostes buscar a cor, o tom,

Esse perfume doido a esvoaçar,

Esse perfume capitoso e bom?!

Sois volúpias em flor! Ó gargalhadas

Doidas de luz, ó almas feitas risos!

Donde vem essa cor, ó desvairadas,

Lindas flores d'esculturais sorrisos?!

... Bem sei vosso segredo... Um rouxinol

Que vos viu nascer, ó flores do mal

Disse-me agora: "Uma manhã, o sol,

O sol vermelho e quente como estriga

De fogo, o sol do céu de Portugal

Beijou a boca a uma rapariga..."

17/6/1916

Page 138: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 80

Saudade

És a filha dileta da noss'alma

Da noss'alma de sonho e de tristeza,

Andas de roxo sempre, sempre calma

Doce filha da gente portuguesa!

Em toda a terra do meu Portugal

Te sinto e vejo, toda suavidade

Como nas folhas tristes dum missal

Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!…

Andas nos olhos negros, magoados

Das frescas raparigas, Namorados

Conhecem-te também, meu doce ralo!

Também te trago n'alma dentro em mim,

E trazendo-te sempre, sempre assim,

É bem a pátria qu'rida que eu embalo!

17/6/1916

Page 139: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 81

Visões da Febre

Doente. Sinto-me com febre e com delírio

Enche-se o quarto de fantasmas. 'Ma visão

Desenha-se ante mim tão branca como um lírio

Debruça-se de leve… Estranha aparição!

É uma mulher de sonho e suavidade

Como a doce magnólia florindo ao sol poente

E disse-me baixinho: "Eu chamo-me Saudade

E venho para levar-te o coração doente!

Não sofrerás mais; serás fria como o gelo;

Neste mundo de infâmia o que é que importa sê-lo

Nunca tu chorarás por tudo mais que vejas!"

E abriu-me o meu seio; tirou-me o coração,

Despedaçado já sem 'ma palpitação,

Beijou-me e disse "adeus!" E eu: "bendita sejas!"

Page 140: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 82

Oração

Ó Deus, senhor da terra, omnipotente,

Senhor do vasto mar! Senhor do céu!

Atentei esta prece humilde e crente,

Ouvi-me por piedade, Senhor meu!

Olhai por todos que amam sua terra,

Guiai aqueles que amam Portugal

Protegei os que andam pela guerra

A defender o seu torrão natal!

Lançai o vosso olhar de piedade

Por todos os que arrastam 'ma saudade

Pela pátria distante, muito além!…

Consolai, ó meu Deus, os orfãozinhos,

As mães, as noivas e os que têm ninhos

Despedaçados pela guerra. Amém.

19/6/1916

Page 141: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 83

A Guerra

Fala o canhão. Estala o riso da metralha

Os clarins muito ao longe tocam a reunir.

O Deus da guerra ri nos campos de batalha

E tu, ó Pátria, ergues-te a sorrir!

Vestes alva cota bordada e rosicleres,

Desfraldas a bandeira rubra dos combates,

Levas no heróico seio a alma das mulheres,

E ergue-se contigo a alma de teus vates!

Levanta-se do túmulo a voz dos teus heróis,

Cintila em tua fronte o brilho desses sóis,

Até o próprio mar t’incita a combater!

Nun’Alvares arranca a espada de glória,

E diz-te em voz serena: "Em busca da vitória

Meu belo Portugal, combate até morrer!"

20/6/1916

Page 142: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 84

Meu Portugal

Meu Portugal querido, minha terra

De risos e quimeras e canções

Tens dentro em ti,esse teu peito encerra,

Tudo que faz bater os corações!

Tens o fado. A Canção triste e bendita

Que todos cantam pela vida fora;

O fado que dá vida e que palpita

Na calma da guitarra onde mora!

Tu tens também a embriagues suave

Dos campos, da paisagem ao sol poente,

E esse sol é como um canto d'ave

Que expira à beira-mar, suavemente…

Tu tens, ó pátria minha, as raparigas

Mais frescas, mais gentis do orbe imenso,

Tens os beijos, os risos, as cantigas

De seus lábios de sangue!… Às vezes, penso

Page 143: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 85

Que tu és, pátria minha, branca fada

Boa e linda que Deus sonhou um dia,

Para lançar no mundo, ó pátria amada

A beleza eterna, a arte, a poesia!…

19/6/1916

Page 144: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 86

Desejo

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.

Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,

Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver

Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco

Se ungir da palidez sinistra do não ser,

E quero ainda, amor, no meu supremo arranco

Sentir junto ao meu seio teu coração bater!

Que seja a tua mão tão branda como a neve

Que feche o meu olhar numa carícia leve

Num perpassar de pétala de lis…

Que seja a tua boca rubra como o sangue

Que feche a minha boca, a minha boca exangue!…

……………………………………...........................….

Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!…

20/6/1916

Page 145: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 87

Anseios

À minha Júlia

Meu doido coração aonde vais,

No teu imenso anseio de liberdade?

Toma cautela com a realidade;

Meu pobre coração olha que cais!

Deixa-te estar quietinho! Não amais

A doce quietação da soledade?

Tuas lindas quimeras irreais,

Não valem o prazer duma saudade!

Tu chamas ao meu seio, negra prisão!…

Ai, vê lá bem, ó doido coração,

Não te deslumbre o brilho do luar!

Não 'stendas tuas asas para o longe…

Deixa-te estar quietinho, triste monge,

Na paz da tua cela, a soluçar!…

26/6/1916

Page 146: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 88

O Espectro

Anda um triste fantasma atrás de mim

Segue-me os passos sempre! Aonde eu for,

Lá vai comigo… E é sempre, sempre assim

Como um fiel cão seguindo o seu Senhor!

Tem o verde dos sonhos transcendentes,

A ternura bem roxa das verbenas,

A ironia purpúrea dos poentes,

E tem também a cor das minhas penas!

Ri sempre quando eu choro, e se me deito,

Lá vai ele deitar-se ao pé do leito,

Embora eu lhe suplique: "Faz-me a graça

De me deixares nessa hora ser feliz!

Deixa-me em paz!…" Mas ele, sempre diz:

"Não te posso deixar, sou a Desgraça!"

28/6/1916

Page 147: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 89

Confissão

Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa

De frio e de gelado, de pérfido e cruel,

Como um orvalho frio no tampo duma lousa,

Como em doirada taça algum amargo fel.

Odeio-te também. O teu olhar ideal

O teu perfil suave, a tua boca linda,

São belas expressões de todo o humano mal

Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.

Desprezo-te também. Quando te ris e falas,

Eu fico-me a pensar no mal que tu calas

Dizendo que me queres em íntimo fervor!

Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh'alma

Confessa-to a rir, muito serena e calma!

……………………………………………………..

Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!

3/7/1916

Page 148: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 90

Poder da Graça

Altiva e perfumada em cetinoso trem

Passeio uma mundana à luz da tarde quente,

O seu olhar gelado onde se lê desdém

Passeia pela rua, altivo e insolente.

Para ninguém abaixa o orgulhoso olhar;

Passa o luxo da alta em luminoso traço;

Parece não ouvir da rua o murmurar,

Que seu olhar altivo é sempre triste e baço.

Nem o rir da criança ou o sorrir da luz

Dão vida àquela sombra altiva que seduz

A multidão absorta em roda, a murmurar…

Uma mendiga passa. É 'ma beleza ideal!

Nasceu do seu olhar o céu de Portugal!

…………………………....................……..

Abaixa então a rica o luminoso olhar!

8/7/1916

Page 149: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 91

Aonde?...

Ando a chamar por ti, demente, alucinada,

Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…

O eco ao pé de mim segreda… desgraçada…

E só a voz do eco, irônica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!

O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;

Parece a tua voz, a tua voz tão linda

Cantando como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!

Esta saudade enorme, esta saudade imensa!

E só a voz do eco à minha voz responde…

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu

E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:

Aonde estás, amor? Aonde… aonde… aonde?…

8/7/1916

Page 150: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 92

Quem Sabe?!...

Eu sigo-te e tu foges. É este o meu destino:

Beber o fel amargo em luminosa taça,

Chorar amargamente um beijo teu, divino,

E rir olhando o vulto altivo da desgraça!

Tu foges-me, e eu sigo o teu olhar bendito;

Por mais que fujas sempre, um sonho há de alcançar-te

Se um sonho pode andar por todo o infinito,

De que serve fugir se um sonho há de encontrar-te?!

Demais, nem eu talvez, perceba se o amor

É este perseguir de raiva, de furor,

Com que eu te sigo assim como os rafeiros leais.

Ou se é então a fuga eterna, misteriosa,

Com que me foges sempre, ó noite tenebrosa!

…………………….......................………………..

Por me fugires, sim, talvez me queiras mais!

8/7/1916

Page 151: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 93

Nunca Mais!

Ó castos sonhos meus! Ó mágicas visões!

Quimeras cor de sol de fúlgidos lampejos!

Dolentes devaneios! Cetíneas ilusões!

Bocas que foram minhas florescendo beijos!

Vinde beijar-me a fronte ao menos um instante,

Que eu sinta esse calor, esse perfume terno;

Vivo a chorar a porta aonde outrora o Dante

Deixou toda a esp'rança ao penetrar o inferno!

Vinde sorrir-me ainda! Hei de morrer contente

Cantando uma canção alegre, doidamente,

A luz desse sorriso, ó fugitivos ais!

Vinde beijar-me a boca ungir-me de saudade

Ó sonhos cor de sol da minha mocidade!

Cala-te lá destino!… "Ó Nunca, nunca mais!…"

8/7/1916

Page 152: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 94

Triste Destino!

Quando às vezes o mar soluça tristemente

A praia abre-lhe os braços e deixa-o a gemer;

Embala-o com amor, de leve, docemente,

E canta-lhe cantigas pra o adormecer!

Quando o outono leva a folha rendilhada,

O vestido real da branda primavera,

O rio abre-lhe os braços e leva amortalhada

A pequenina folha, essa ideal quimera!

O sol, agonizante e quase moribundo,

Estende os braços nus, alegre, para o mundo

Que o faz amortalhar em púrpura de lenda!

O sol, a folha, o mar tudo é feliz! Mas eu

Busco a mortalha minha até no alto céu!

E nem a cruz pra mim tem braços que m'estenda!

8/7/1916

Page 153: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 95

Humildade

Toda a terra que pisas, eu qu’ria, ajoelhada,

Beijar terna e humilde em lânguido fervor;

Qu’ria poisar fervente a boca apaixonada

Em cada passo teu, ó meu bendito amor!

De cada beijo meu, havia de nascer

Uma sangrenta flor! Ébria de luz, ardente!

No colo purpurino havia de trazer

Desfeito no perfume o mist'rioso Oriente!

Qu’ria depois colher essas flores reais,

Essas flores de sonho, estranhas, sensuais,

E lançar-tas aos pés em perfumados molhos.

Bem paga ficaria, ó meu cruel amante!

Se, sobre elas, eu visse apenas um instante

Cair como um orvalho os teus divinos olhos!

I2/7/1916

Page 154: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 96

Oração de Joelhos (4)

Bendita seja a mãe que te gerou!

Bendito o leite que te fez crescer!

Bendito o berço aonde te embalou

A tua ama pra te adormecer!

Bendito seja o brilho do luar

Da noite em que nasceste tão suave,

Que deu essa candura ao teu olhar

E à tua voz esse gorjeio d'ave!

Benditos sejam todos que te amarem!

Os que em volta de ti ajoelharem

Numa grande paixão, fervente, louca!

E se mais, que eu, um dia te quiser

Alguém, bendita seja essa mulher!

Bendito seja o beijo dessa boca!

12/7/1916

(4) Remeto o leitor para a versão definitiva deste soneto, intitulada

"De Joelhos", em Livro de Mágoas.

Page 155: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 97

Aos Olhos D'Ele

É noite de luar casto e divino...

Tudo é brancura, tudo é castidade…

Parece que Jesus, doce bambino,

Anda pisando as ruas da cidade…

E eu que penso na suavidade

Do tempo que não volta, que não passa,

Olho o luar, chorando de saudade

De teus olhos claros cheios de graça!…

Oceanos de luz que procurando

O seu leito d’amor, andam sonhando

Por esta noite linda de luar…

Talvez o perfumado, o brando leito

Que procurais, ó olhos, no meu peito

Esteja à vossa espera a soluçar…

18/7/1916

Page 156: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 98

Desdém

Andas dum lado pro outro

Pela rua passeando;

Finges que não queres ver

Mas sempre me vais olhando.

É um olhar fugidio,

Olhar que dura um instante,

Mas deixa um rasto d'estrelas

O doce olhar saltitante…

É esse rasto bendito

Que atraiçoa o teu olhar,

Pois é tão leve e fugaz

Que eu nem o sinto passar!

Quem tem uns olhos assim

E quer fingir o desdém,

Não pode nem um instante

Olhar os olhos d'alguém…

Page 157: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 99

Por isso vai caminhando…

E se queres a muita gente

Demonstrar que me desprezas

Olha os meus olhos de frente!…

18/7/1916

Page 158: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 100

Rústica

Eu qu’ria ser camponesa;

Ir esperar-te à tardinha

Quando é doce a Natureza

No silêncio da devesa,

E só voltar à noitinha…

Levar o cântaro à fonte

Deixá-lo devagarinho,

E correndo pela ponte

Que fica detrás do monte

Ir encontrar-te sozinho…

E depois quando o luar

Andasse pelas estradas,

D'olhos cheios do teu olhar

Eu voltaria a sonhar,

P'los caminhos de mãos dadas.

Page 159: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 101

E depois se toda a gente

Perguntasse: "Que encarnada,

Rapariga! Estás doente?"

Eu diria: "É do poente,

Que assim me fez encarnada!"

E fitando ao longe a ponte,

Com meu olhar cheio do teu,

Diria a sorrir pro monte:

"O cant’ro ficou na fonte

Mas os beijos trouxe-os eu…"

18/7/1916

Page 160: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 102

?!...

Se as tuas mãos divinas folhearem

As páginas de luto uma por uma

Deste meu livro humilde; se poisarem

Esses teus claros olhos como espuma

Nos meus versos d'amor, se docemente

Tua boca os beijar, lendo-os, um dia;

Se o teu sorrir pairar suavemente

Nessas palavras minhas d'agonia,

Repara e vê! Sob essas mãos benditas,

Sob esses olhos teus, sob essa boca,

Hão de pairar carícias infinitas!

Eu atirei minh'alma como um rito

Às trevas desse livro, assim, ó louca!

A noite atira sóis ao infinito!...

21/7/1916

Page 161: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 103

Súplica (III)

A prece que eu murmuro, a soluçar

Ao Deus todo bondade e todo amor,

É rezada de rastos no altar

Onde a tristeza reza com a dor!

A minha boca reza-a comovida,

Chora-a meus olhos, beija-a o meu peito,

Sonha-a minh’alma sempre enternecida

Ao ver-te rir, ó meu Amor Perfeito...

Que o Deus do céu atenda a minha prece,

Embora eu saiba nesta desventura

Que Deus só ouve aquele que o merece!

Mas vou pedindo ao Deus de piedade,

Que te conceda anos de ventura,

Como dias a mim de inf’licidade!…

21/7/1916

Page 162: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 104

A Anto!

Poeta da saudade, ó meu poeta qu'rido

Que a morte arrebatou em seu sorrir fatal,

Ao escrever o "Só" pensaste enternecido

Que era o mais triste livro deste Portugal,

Pensaste nos que liam esse teu Missal,

Tua Bíblia de dor, teu chorar sentido

Temeste que esse altar pudesse fazer mal

Aos que comungam nele a soluçar contigo!

Ó Anto! Eu adoro os teus estranhos versos,

Soluços que eu uni e que senti dispersos

Por todo o livro triste! Achei teu coração…

Amo-te como não te quis nunca ninguém,

Como se eu fosse, ó Anto, a tua própria mãe

Beijando-te já frio no fundo do caixão!

21/7/1916

Page 163: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 105

Escuta...

A Beatriz Carvalho

Escuta, amor, escuta a voz que ao teu ouvido

Te canta uma canção na rua em que morei,

Essa soturna voz há de contar-te, amigo

Por essa rua minha os sonhos que sonhei!

Fala d’amor a voz em tom enternecido,

Escuta-a com bondade. O muito que te amei

Anda pairando aí em sonho comovido

A envolver-te em oiro!… Assim s’envolve um rei!

Num ninho de saudade e doce como a asa

Recorta-se no céu a minha humilde casa

Onde ficou minh’alma assim como penada

A arrastar grilhões como um fantasma triste.

É dela a voz que fala, é dela a voz que existe

Na rua em que morei… Anda crucificada!

2I/7/I9I6

Page 164: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 106

Talvez...

A esta hora branda d’amargura,

A esta hora triste em que o luar

Anda chorando, Ó minha desventura

Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?

A noite é calma e triste… a murmurar

Anda o vento, de leve, na doçura

Ideal do aveludado ar

Onde estrelas palpitam… Noite escura

Dize-me onde ele está o meu amor,

Onde o vosso luar o vai beijar,

Onde as vossas estrelas co'o fulgor

Do seu brilho de fogo o vão cobrir!

Dize-me onde ele está!… Talvez a olhar

A mesma noite linda a refulgir…

29/7/1916

Page 165: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 107

Sol Posto

Sol posto. O sino ao longe dá Trindades.

Nas ravinas do monte andam cantando

As cigarras dolentes… E saudades

Nos atalhos parecem dormitando…

É esta a hora em que a suave imagem

Do bem que já foi nosso nos tortura

O coração no peito, em que a paisagem

Nos faz chorar de dor e d’amargura…

É a hora também em que cantando

As andorinhas vão p’lo meio das ruas

Para os ninhos, contentes, chilreando…

Quem me dera também, amor, que fosse

Esta a hora de todas a mais doce

Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!…

29/7/1916

Page 166: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 108

Estrela Cadente

Traço de luz… lá vai! lá vai! morreu.

Do nosso amor me lembra a suavidade…

Da estrela não ficou nada no céu

Do nosso sonho em ti nem a saudade!

Pra onde iria a ’strela? Flor fugida

Ao ramalhete atado no infinito…

Que ilusão seguiria entontecida

A linda estrela de fulgir bendito?…

Aonde iria, aonde iria a flor?

(Talvez, quem sabe?… ai quem soubesse, amor!)

Se tu o vires minha bendita estrela

Alguma noite… Deves conhecê-lo!

Falo-te tanto nele!… Pois ao vê-lo

Dize-lhe assim: "Por que não pensas nela?"

29/7/1916

Page 167: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 109

Versos

Versos! Versos! Sei lá o que são versos…

Pedaços de sorriso, branca espuma,

Gargalhadas de luz, cantos dispersos,

Ou pétalas que caem uma a uma.

Versos!… Sei lá! Um verso é teu olhar,

Um verso é teu sorriso e os de Dante

Eram o seu amor a soluçar

Aos pés da sua estremecida amante!

Meus versos!… Sei eu lá também que são…

Sei lá! Sei lá!… Meu pobre coração

Partido em mil pedaços são talvez…

Versos! Versos! Sei lá o que são versos...

Meus soluços de dor que andam dispersos

Por este grande amor em que não crês!…

29/7/1916

Page 168: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 110

Duas Quadras

Não sei se tens reparado

Quando passeia, o luar

Pára sempre à tua porta

E encosta-se a chorar:

E eu que passo também

Na minha mágoa a cismar

Para junto dele, e ficamos

Abraçados a chorar!

8/8/1916

Page 169: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 111

Baladas

Amei-te muito, e eu creio que me quiseste

Também por um instante nesse dia

Em que tão docemente me disseste

Que amavas ‘ma mulher que o não sabia.

Amei-te muito, muito!Tão risonho

Aquele dia foi, aquela tarde!…

E morreu como morre todo o sonho

Deixando atrás de si só a saudade! …

E na taça do amor, a ambrosia

Da quimera bebi aquele dia

A tragos bons, profundos, a cantar…

Pra que morreste, ó sonho?! Desgraçada!...

……………………………........................…

E como o rei de Thule da balada

Deitei também a minha taça ao mar…

9/8/1916

Page 170: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 112

"Noite Trágica"

O pavor e a angústia andam dançando…

Um sino grita endechas de poentes…

Na meia-noite d´hoje, soluçando,

Que presságios sinistros e dolentes!…

Tenho medo da noite!… Padre nosso

Que estais no céu… O que minh'alma teme!

Tenho medo da noite!… Que alvoroço

Anda nesta alma enquanto o sino geme!

Jesus! Jesus, que noite imensa e triste

A quanta dor a nossa dor resiste

Em noite assim que a própria Dor parece…

Ó noite imensa, ó noite do Calvário,

Leva contigo envolto no sudário

Da tua dor a dor que me não 'squece!

10/8/1916

Page 171: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 113

Sonhos

Ter um sonho, um sonho lindo,

Noite branda de luar,

Que se sonhasse a sorrir…

Que se sonhasse a chorar…

Ter um sonho, que nos fosse

A vida, a luz, o alento,

Que ao sonhar beijasse doce

A nossa boca… um lamento…

Ser pra nós o guia, o norte,

Na vida o único trilho;

E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!…

… É pior que ter um filho

Que nos morresse nos braços!

12/10/1916

Page 172: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 114

Vulcões

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal

Não tem a lividez sinistra da montanha

Quando a noite a inunda dum manto sem igual

De neve branca e fria onde o luar se banha.

No entanto que fogo, que lavas, a montanha

Oculta no seu seio de lividez fatal!

Tudo é quente lá dentro… e que paixão tamanha

A fria neve envolve em seu vestido ideal!

No gelo da indiferença ocultam-se as paixões

Como no gelo frio do cume da montanha

Se oculta a lava quente do seio dos vulcões…

Assim quando eu te falo alegre, friamente,

Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha

Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

4/5/1916

Page 173: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 115

Errante

Meu coração da cor dos rubros vinhos

Rasga a mortalha do meu peito brando

E vai fugindo, e tonto vai andando

A perder-se nas brumas dos caminhos.

Meu coração é místico profeta,

O paladino audaz da desventura,

Que sonha ser um santo e um poeta,

Vai procurar o Paço da Ventura…

Meu coração não chega lá decerto…

Não conhece o caminho nem o trilho,

Nem há memória desse sítio incerto…

Eu tecerei uns sonhos irreais…

Como essa mãe que viu partir o filho,

Como esse filho que não voltou mais!

23/4/1917

Page 174: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 116

Eu tenho pena da Lua!

Tanta pena, coitadinha,

Quando tão branca, na rua

A vejo chorar sozinha!…

As rosas nas alamedas,

E os lilases cor da neve

Confidenciam de leve

E lembram arfar de sedas...

Só a triste, coitadinha…

Tão triste na minha rua

Lá anda a chorar sozinha…

Eu chego então à janela:

E fico a olhar pra lua…

E fico a chorar com ela! …

23/4/1917

Page 175: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 117

Sonetos (*)

Ao grande e estranho poeta A. Durão

(*) Busquei atestar em Florbela Espanca, Trocando Olhares a

suposição de que os três poemas iniciais deste ciclo de "soneto",

aliados aos "Tortura" e "Vaidade", de Livro de Mágoas, e ao "Meu

Amor", de Primeiros Versos (aqui publicado na "Esparsa Seleta"),

comprovam explicitamente a interlocução de Florbela com o livro

Vitral da Minha Dor, de Américo Durão. Segundo cogitei, os apontados

seis sonetos integrariam também a antologia que Florbela preparou

em 1917, a Primeiros Versos, da qual nos dá notícia Costa Leão.

Page 176: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 118

(I) Desalento (*)

Às vezes oiço rir, é 'ma agonia

Queima-me a alma como estranha brasa,

Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia

Que me põe n'alma o fogo que m'abrasa!

Tenho sede d'amar a humanidade…

Eu ando embriagada… entontecida…

O roxo de maus lábios é saudade

Duns beijos que me deram n'outra vida!

Eu não gosto do Sol, eu tenho medo

Que me vejam nos olhos o segredo

De só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, imensa, triste, preta,

Como esta estranha e doida borboleta

Que eu sinto sempre a voltejar em mim!

(*) Uma vez refundido, este "Desalento" ganha o título de "A Minha

Tragédia" em Livro de Mágoas, para o qual remeto o leitor.

Page 177: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 119

(II) A Um Livro (*)

No silêncio de cinzas do meu Ser

Agita-se uma sombra de cipreste,

É uma sombra triste que ando a ler,

No livro cheio de mágoa que me deste!

Estranho livro aquele igual a mim!

Cheira a mortos a rir e a cantar…

É dum branco sinistro de jasmim.

Que só me dá vontade de chorar!

Parece que folheio toda a minh'alma!

O livro que me deste, em mim salma

As orações que choro e rio e canto!

Poeta igual a mim, ai quem me dera

Dizer o que tu dizes! Quem soubera

Velar a minha Dor desse teu manto!

(*) Com o mesmo título, este soneto alcança sua versão definitiva no

Livro de Mágoas.

Page 178: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 120

(III) Maior Tortura (*)

Na vida para mim não há deleite.

Ando a chorar convulsa noite,

E não tenho nem sombra em que me acoite,

E não tenho uma pedra em que me deite!

Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!

Perco-me em mim na dor de ter vivido!

E não tenho a doçura duns abraços

Que me façam sorrir de ter nascido!

Sou como tu um cardo desprezado

A urze que se pisa sob os pés,

Sou como tu um riso desgraçado!

Mas a minha Tortura inda é maior:

Não ser poeta assim como tu és

Para concretizar a minha Dor!

(*) Com o título de "A Maior Tortura", dedicado "A um grande poeta

de Portugal" este soneto comparece refundido em Livro de Mágoas.

Page 179: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 121

(IV) Cegueira Bendita

Ando perdida nestes Sonhos verdes

De ter nascido e não saber quem sou,

Ando ceguinha a tactear paredes

E nem ao menos sei quem me cegou!

Não vejo nada, tudo é morto e vago…

E a minha alma cega, ao abandono

Faz-me lembrar o nenúfar dum lago

'Stendendo as asas brancas cor do sono…

Ter dentro d'alma a luz de todo o mundo

E não ver nada nesse mar sem fundo,

Poetas meus irmãos, que triste sorte!…

E chamam-nos a nós Iluminados!

Pobres cegos sem culpas, sem pecados,

A sofrer pelos outros 'té à morte!

24/4/1917

Page 180: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 122

(V) Noivado Estranho

O Luar branco, um riso de Jesus,

Inunda a minha rua toda inteira,

E a Noite é uma flor de laranjeira

A sacudir as pétalas de luz…

O Luar é uma lenda de balada

Das que avozinhas contam à lareira,

E a Noite é uma flor de laranjeira

Que jaz na minha rua desfolhada…

O Luar vem cansado, vem de longe,

Vem casar-se co' a Terra, a feiticeira

Que enlouqueceu d'amor o pobre monge…

O Luar empalidece de cansado…

E a noite é uma flor de laranjeira

A perfumar o místico noivado!…

30/4/1917

Page 181: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Livro de Mágoas

(1919)

Page 182: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

A meu Pai

Ao meu melhor amigo

Page 183: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

A querida Alma irmão da minha,

Ao meu Irmão

Page 184: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 129

Procuremos somente a beleza, que a vida

É um punhado infantil de areia ressequida,

Um som d'água ou de bronze e uma sombra que passa...

EUGÉNIO DE CASTRO

Isoléns dans l’amour ainsi qu’em um bois noir,

Nos deux coeurs, exalant leur tendresse paisable,

Seront deux rossignols qui chantent dans le soir.

VERLAINE

Page 185: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 131

Este Livro...

Este livro é de mágoas. Desgraçados

Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!

Somente a vossa dor de Torturados

Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados

Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!

Bíblia de tristes... Ó Desventurados,

Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!

Livro de Sombras... Névoas... e Saudades!

Vai pelo mundo... (Trouxe-o no meu seio...)

Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,

Chorai comigo a minha imensa mágoa,

Lendo o meu livro só de mágoas cheio!...

Page 186: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 132

Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a Terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho...

E não sou nada!...

Page 187: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 133

Eu...

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do Sonho, e desta sorte

Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver,

E que nunca na vida me encontrou!

Page 188: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 134

Castelã da Tristeza

Altiva e couraçada de desdém,

Vivo sozinha em meu castelo: a Dor!

Passa por ele a luz de todo o amor...

E nunca em meu castelo entrou alguém!

Castelã da Tristeza, vês?... A quem?...

– E o meu olhar é interrogador –

Perscruto, ao longe, as sombras do sol-pôr...

Chora o silêncio... nada... ninguém vem...

Castelã da Tristeza, por que choras

Lendo, toda de branco, um livro de horas,

À sombra rendilhada dos vitrais?...

À noite, debruçada, p'las ameias,

Por que rezas baixinho?... Por que anseias?...

Que sonho afagam tuas mãos reais?...

Page 189: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 135

Tortura

Tirar dentro do peito a Emoção,

A lúcida Verdade, o Sentimento!

– E ser, depois de vir do coração,

Um punhado de cinza esparso ao vento!...

Sonhar um verso d'alto pensamento,

E puro como um ritmo d'oração!

– E ser, depois de vir do coração,

O pó, o nada, o sonho dum momento!...

São assim ocos, rudes, os meus versos:

Rimas perdidas, vendavais dispersos,

Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,

O verso altivo e forte, estranho e duro,

Que dissesse, a chorar, isto que sinto!

Page 190: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 136

Lágrimas Ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras

Em que ri e cantei, em que era qu’rida,

Parece-me que foi noutras esferas,

Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,

Que dantes tinha o rir das primaveras,

Esbate as linhas graves e severas

E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...

Toma a brandura plácida dum lago

O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,

Ninguém as vê brotar dentro da alma!

Ninguém as vê cair dentro de mim!

Page 191: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 137

Torre de Névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia,

Feita de fumo, névoas e luar,

E pus-me, comovida, a conversar

Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria

Dos versos que são meus, do meu sonhar,

E todos os poetas, a chorar,

Responderam-me então: "Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também

Tivemos ilusões, como ninguém,

E tudo nos fugiu, tudo morreu!..."

Calaram-se os poetas, tristemente...

E é desde então que eu choro amargamente

Na minha Torre esguia junto ao Céu!...

Page 192: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 138

A Minha Dor

A você

A minha Dor é um convento ideal

Cheio de claustros, sombras, arcarias,

Aonde a pedra em convulsões sombrias

Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias

Ao gemer, comovidos, o seu mal...

E todos têm sons de funeral

Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios

Dum roxo macerado de martírios,

Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,

Noites e dias rezo e grito e choro,

E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

Page 193: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 139

Dizeres Íntimos

É tão triste morrer na minha idade!

E vou ver os meus olhos, penitentes

Vestidinhos de roxo, como crentes

Do soturno convento da Saudade!

E logo vou olhar (com que ansiedade!...)

As minhas mãos esguias, languescentes,

De brancos dedos, uns bebês doentes

Que hão de morrer em plena mocidade!

E ser-se novo é ter-se o Paraíso,

É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,

Aonde tudo é luz e graça e riso!

E os meus vinte e três anos... (Sou tão nova!)

Dizem baixinho a rir: "Que linda a vida!..."

Responde a minha Dor: "Que linda a cova!"

Page 194: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 140

As Minhas Ilusões

Hora sagrada dum entardecer

D'Outono, à beira-mar, cor de safira.

Soa no ar uma invisível lira...

O sol é um doente a enlanguescer...

A vaga estende os braços a suster,

Numa dor de revolta cheia de ira,

A doirada cabeça que delira

Num último suspiro, a estremecer!

O sol morreu... e veste luto o mar...

E eu vejo a urna d’oiro, a baloiçar,

À flor das ondas, num lençol d’espuma!

As minhas Ilusões, doce tesoiro,

Também as vi levar em urna d’oiro,

No mar da Vida, assim... uma por uma...

Page 195: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 141

Neurastenia

Sinto hoje a alma cheia de tristeza!

Um sino dobra em mim Ave-Maria!

Lá fora, a chuva, brancas mãos esguias,

Faz na vidraça rendas de Veneza...

O vento desgrenhado chora e reza

Por alma dos que estão nas agonias!

E flocos de neve, aves brancas, frias,

Batem as asas pela Natureza...

Chuva... tenho tristeza! Mas por quê?!

Vento... tenho saudades! Mas de quê?!

Ó neve que destino triste o nosso!

Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!

Gritem ao mundo inteiro esta amargura,

Digam isto que sinto que eu não posso!...

Page 196: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 142

Pequenina

À Maria Helena Falcão Risques

És pequenina e ris... A boca breve

É um pequeno idílio cor-de-rosa...

Haste de lírio frágil e mimosa!

Cofre de beijos feito sonho e neve!

Doce quimera que a nossa alma deve

Ao Céu que assim te faz tão graciosa!

Que nesta vida amarga e tormentosa

Te fez nascer como um perfume leve!

O ver o teu olhar faz bem à gente...

E cheira e sabe, a nossa boca, a flores

Quando o teu nome diz, suavemente...

Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,

Que ela afaste de ti aquelas dores

Que fizeram de mim isto que sou!

Page 197: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 143

A Maior Tortura

A um grande poeta de Portugal

Na vida, para mim, não há deleite.

Ando a chorar convulsa noite e dia...

E não tenho uma sombra fugidia

Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás tenho que enfeite

A minha atroz, imensa nostalgia!...

A minha pobre Mãe tão branca e fria

Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo desprezado,

A urze que se pisa sob os pés.

Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior:

Não ser poeta assim como tu és,

Para gritar num verso a minha Dor!...

Page 198: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 144

A Flor do Sonho

A Flor do Sonho, alvíssima, divina,

Miraculosamente abriu em mim,

Como se uma magnólia de cetim

Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.

E não posso entender como é que, enfim,

Essa tão rara flor abriu assim!...

Milagre... fantasia... ou, talvez, sina...

Ó Flor que em mim nasceste sem abrolhos,

Que tem que sejam tristes os meus olhos

Se eles são tristes pelo amor de ti?!...

Desde que em mim nasceste em noite calma,

Voou ao longe a asa da minh’alma

E nunca, nunca mais eu me entendi...

Page 199: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 145

Noite de Saudade

A Noite vem poisando devagar

Sobre a terra, que inunda de amargura...

E nem sequer a bênção do luar

A quis tornar divinamente pura...

Ninguém vem atrás dela a acompanhar

A sua dor que é cheia de tortura...

E eu oiço a Noite imensa soluçar!

E eu oiço soluçar a Noite escura!

Por que és assim tão ’scura, assim tão triste?!

É que, talvez, ó Noite, em ti existe

Uma Saudade igual à que eu contenho!

Saudade que eu sei donde me vem...

Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!...

Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

Page 200: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 146

Angústia

Tortura do pensar! Triste lamento!

Quem nos dera calar a tua voz!

Quem nos dera cá dentro, muito a sós,

Estrangular a hidra num momento!

E não se quer pensar!... E o pensamento

Sempre a morder-nos bem, dentro de nós...

Qu'rer apagar no céu – Ó sonho atroz! –

O brilho duma estrela, com o vento!...

E não se apaga, não... nada se apaga!

Vem sempre rastejando como a vaga...

Vem sempre perguntando: "O que te resta?..."

Ah! não ser mais que o vago, o infinito!

Ser pedaço de gelo, ser granito,

Ser rugido de tigre na floresta!

Page 201: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 147

Amiga

Deixa-me ser a tua amiga, Amor;

A tua amiga só, já que não queres

Que pelo teu amor seja a melhor

A mais triste de todas as mulheres.

Que só, de ti, me venha mágoa e dor

O que me importa a mim?! O que quiseres

É sempre um sonho bom! Seja o que for

Bendito sejas tu por m'o dizeres!

Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...

Como se os dois nascêssemos irmãos,

Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...

Beija-mas bem!... Que fantasia louca

Guardar assim, fechados, nestas mãos

Os beijos que sonhei pra minha boca!...

Page 202: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 148

Desejos Vãos

Eu qu’ria ser o Mar d’altivo porte

Que ri e canta, a vastidão imensa!

Eu qu’ria ser a pedra que não pensa,

A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o sol, a luz intensa,

O bem do que é humilde e não tem sorte!

Eu qu’ria ser a árvore tosca e densa

Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...

As árvores também, como quem reza,

Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim dum dia,

Tem lágrimas de sangue na agonia!

E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...

Page 203: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 149

Pior Velhice

Sou velha e triste. Nunca o alvorecer

Dum riso são andou na minha boca!

Gritando que me acudam, em voz rouca,

Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!

A Vida, que ao nascer, enfeita e touca

D'alvas rosas a fronte da mulher,

Na minha fronte mística de louca

Martírios só poisou a emurchecer!

E dizem que sou nova... A mocidade

Estará só, então, na nossa idade,

Ou está em nós e em nosso peito mora?!...

Tenho a pior velhice, a que é mais triste,

Aquela onde nem sequer existe

Lembrança de ter sido nova... outrora...

Page 204: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 150

A Um Livro

No silêncio de cinzas do meu Ser

Agita-se uma sombra de cipreste,

Sombra roubada ao livro que ando a ler,

A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,

Artista da saudade e do sofrer!

Estranho livro aquele em que puseste

Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!

O livro que me deste é meu, e salma

As orações que choro e rio e canto!...

Poeta igual a mim, ai quem me dera

Dizer o que tu dizes!... Quem soubera

Velar a minha Dor desse teu manto!...

Page 205: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 151

Alma Perdida

Toda esta noite o rouxinol chorou,

Gemeu, rezou, gritou perdidamente!

Alma de rouxinol, alma da gente,

Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,

Que se fundiu na Dor, suavemente...

Talvez sejas a alma, a alma doente

D’alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste... e eu chorei

Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei

Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,

Que eu pensei que tu eras a minh’alma

Que chorasse perdida em tua voz!...

Page 206: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 152

De Joelhos

"Bendita seja a Mãe que te gerou."

Bendito o leite que te fez crescer.

Bendito o berço aonde te embalou

A tua ama, pra te adormecer!

Bendita essa canção que acalentou

Da tua vida o doce alvorecer...

Bendita seja a Lua, que inundou

De luz, a Terra, só para te ver...

Benditos sejam todos que te amarem,

As que em volta de ti ajoelharem

Numa grande paixão fervente e louca!

E se mais que eu, um dia, te quiser

Alguém, bendita seja essa Mulher,

Bendito seja o beijo dessa boca!

Page 207: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 153

Languidez

Tardes da minha terra, doce encanto,

Tardes duma pureza d'açucenas,

Tardes de sonho, as tardes de novenas,

Tardes de Portugal, as tardes d’Anto,

Como eu vos quero e amo! Tanto! Tanto!...

Horas benditas, leves como penas,

Horas de fumo e cinza, horas serenas,

Minhas horas de dor em que eu sou santo!

Fecho as pálpebras roxas, quase pretas,

Que poisam sobre duas violetas,

Asas leves cansadas de voar...

E a minha boca tem uns beijos mudos...

E as minhas mãos, uns pálidos veludos,

Traçam gestos de sonho pelo ar...

Page 208: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 154

Para Quê?!

Tudo é vaidade neste mundo vão...

Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!

E mal desponta em nós a madrugada,

Vem logo a noite encher o coração!

Até o amor nos mente, essa canção

Que o nosso peito ri à gargalhada,

Flor que é nascida e logo desfolhada,

Pétalas que se pisam pelo chão!...

Beijos de amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!

Sonhos que logo são realidades,

Que nos deixam a alma como morta!

Só neles acredita quem é louca!

Beijos d'amor que vão de boca em boca,

Como pobres que vão de porta em porta!...

Page 209: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 155

Ao Vento

O vento passa a rir, torna a passar,

Em gargalhadas asp'ras de demente;

E esta minh’alma trágica e doente

Não sabe se há de rir, se há de chorar!

Vento de voz tristonha, voz plangente,

Vento que ris de mim sempre a troçar,

Vento que ris do mundo e do amor,

A tua voz tortura toda a gente!...

Vale-te mais chorar, meu pobre amigo!

Desabafa essa dor a sós comigo,

E não rias assim!... O vento, chora!

Que eu bem conheço, amigo, esse fadário

Do nosso peito ser como um Calvário,

e a gente andar a rir p’la vida fora!...

Page 210: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 156

Tédio

Passo pálida e triste. Oiço dizer:

"Que branca que ela é! Parece morta!"

e eu que vou sonhando, vaga, absorta,

não tenho um gesto, ou um olhar sequer...

Que diga o mundo e a gente o que quiser!

– O que é que isso me faz? O que me importa?...

O frio que trago dentro gela e corta

Tudo que é sonho e graça na mulher!

O que é que me importa?! Essa tristeza

É menos dor intensa que frieza,

É um tédio profundo de viver!

E é tudo sempre o mesmo, eternamente...

O mesmo lago plácido, dormente...

E os dias, sempre os mesmos, a correr...

Page 211: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 157

A Minha Tragédia

Tenho ódio à luz e raiva à claridade

Do sol, alegre, quente, na subida.

Parece que a minh’alma é perseguida

Por um carrasco cheio de maldade!

Ó minha vã, inútil mocidade,

Trazes-me embriagada, entontecida!...

Duns beijos que me deste noutra vida,

Trago em meus lábios roxos, a saudade!...

Eu não gosto do sol, eu tenho medo

Que me leiam nos olhos o segredo

De não amar ninguém, de ser assim!

Gosto da Noite imensa, triste, preta,

Como esta estranha e doida borboleta

Que eu sinto sempre a voltejar em mim!...

Page 212: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 158

Sem Remédio

Aqueles que me têm muito amor

Não sabem o que sinto e o que sou...

Não sabem que passou, um dia, a Dor

À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,

Este frio que anda em mim, e que gelou

O que de bom me deu Nosso Senhor!

Se eu nem sei por onde ando e onde vou!

Sinto os passos da Dor, essa cadência

Que é já tortura infinda, que é demência!

Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,

A mesma angústia funda, sem remédio,

Andando atrás de mim, sem me largar!...

Page 213: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 159

Mais Triste

É triste, diz a gente, a vastidão

Do Mar imenso! E aquela voz fatal

Com que ele fala, agita o nosso mal!

E a Noite é triste como a Extrema-Unção.

É triste e dilacera o coração

Um poente do nosso Portugal!

E não vêem que eu sou... eu... afinal,

A coisa mais magoada das que são?!...

Poentes de agonia trago-os eu

Dentro de mim e tudo quanto é meu

É um triste poente d’amargura!

E a vastidão do Mar, toda essa água

Trago-a dentro de mim num mar de Mágoa!

E a noite sou eu própria! A Noite escura!

Page 214: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 160

Velhinha

Se os que me viram já cheia de graça

Olharem bem de frente em mim,

Talvez, cheios de dor, digam assim:

"Já ela é velha! Como o tempo passa!..."

Não sei rir e cantar por mais que faça!

Ó minhas mãos talhadas em marfim,

Deixem esse fio d'oiro que esvoaça!

Deixem correr a vida até o fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!

Tenho cabelos brancos e sou crente...

Já murmuro orações... falo sozinha...

E o bando cor-de-rosa dos carinhos

Que tu me fazes, olho-os indulgente,

Como se fosse um bando de netinhos...

Page 215: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 161

Em Busca do Amor

O meu Destino disse-me a chorar:

"Pela estrada da Vida vai andando;

E, aos que vires passar, interrogando

Acerca do Amor, que hás de encontrar."

Fui pela estrada a rir e a cantar,

As contas do meu sonho desfiando...

E noite e dia, à chuva e ao luar,

Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei: "Velhinho,

Viste o Amor acaso em teu caminho?"

E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,

Voltam todos pra trás, desanimados...

E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."

Page 216: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 162

Impossível

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:

"Parece Sexta-Feira de Paixão.

Sempre a cismar, cismar d’olhos no chão,

Sempre a pensar na dor que não existe...

O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!

Faça por ’star contente! Pois então?!..."

Quando se sofre, o que se diz é vão...

Meu coração, tudo, calado, ouviste...

Os meus males ninguém mos adivinha...

A minha Dor não fala, anda sozinha...

Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera!...

Os males d’Anto toda a gente os sabe!

Os meus... ninguém... A minha Dor não cabe

Nos cem milhões de versos que eu fizera!...

Page 217: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Livro de "Sóror Saudade"

(1923)

Page 218: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 165

Irmã; Sóror Saudade, ah! se eu pudesse

Tocar de aspiração a nossa vida,

Fazer do mundo a Terra Prometida

Que ainda em sonho às vezes me aparece!

AMÉRICO DURÃO

II n'a pas à se plaindre celui qui attend un sentiment

plus ardent et plus généreux.II n'a pas à se plaindre

celui qui attend Le désir d'un peu plus de bonbeur,

d'un Peu plus de beauté, d'un peu plus de justice.

MAETERLINCK - La Sagesse et a Destinée

Page 219: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 167

"Sóror Saudade"28

A Américo Durão

Irmã, Sóror Saudade me chamaste...

E na minh'alma o nome iluminou-se

Como um vitral ao sol, como se fosse

A luz do próprio sonho que sonhaste.

Numa tarde de Outono o murmuraste,

Toda a mágoa do Outono ele me trouxe,

Jamais me hão de chamar outro mais doce.

Com ele bem mais triste me tornaste...

E baixinho, na alma da minh'alma,

Como bênção de sol que afaga e acalma,

Nas horas más de febre e de ansiedade,

28 Tanto o título do livro quanto o do poema comparecem entre aspas na primeira edição, razão por que o conservamos aqui, visto que reproduzimos a referida edição. Todavia, o uso continuo do título do livro e do soneto sem aspas acabou por consagrá-los assim.

Page 220: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 168

Como se fossem pétalas caindo

Digo as palavras desse nome lindo

Que tu me deste: "Irmã, Sóror Saudade"...

Page 221: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 169

O Nosso Livro

A A.G.

Livro do meu amor, do teu amor,

Livro do nosso amor, do nosso peito...

Abre-lhe as folhas devagar, com jeito,

Como se fossem pétalas de flor.

Olha que eu outro já não sei compor

Mais santamente triste, mais perfeito

Não esfolhes os lírios com que é feito

Que outros não tenho em meu jardim de dor!

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!

Num sorriso tu dizes e digo eu:

Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente

Dirá, fechando o livro docemente:

"Versos só nossos, só de nós os dois!..."

Page 222: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 170

O Que Tu És...

És Aquela que tudo te entristece,

Irrita e amargura, tudo humilha;

Aquela a quem a Mágoa chamou filha;

A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece,

A que nem sabe a estrada que ora trilha,

Que nem um lindo amor de maravilha

Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,

A rastejar no chão como as mendigas,

Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve primavera...

Ah! Não seres como as outras raparigas

Ó Princesa Encantada da Quimera!...

Page 223: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 171

Fanatismo

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.

Meus olhos andam cegos de te ver.

Não és sequer razão do meu viver

Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...

Passo no mundo, meu Amor, a ler

No mist'rioso livro do teu ser

A mesma história tantas vezes lida!...

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...

Quando me dizem isto, toda a graça

Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:

"Ah! podem voar mundos, morrer astros,

Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."

Page 224: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 172

Alentejano

À Buja

Deu agora meio-dia; o sol é quente

Beijando a urze triste dos outeiros.

Nas ravinas do monte andam ceifeiros,

Na faina, alegres, desde o sol nascente.

Cantam as raparigas brandamente,

Brilham os olhos negros, feiticeiros.

E há perfis delicados e trigueiros

Entre as altas espigas d'oiro ardente.

A terra prende aos dedos sensuais

A cabeleira loira dos trigais

Sob a bênção dulcíssima dos céus.

Há gritos arrastados de cantigas...

E eu sou uma daquelas raparigas...

E tu passas e dizes: "Salve-os Deus!"

Page 225: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 173

Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,

Longe de ti não há luar nem rosas;

Longe de ti há noites silenciosas,

Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos

Perdidos pelas noites invernosas...

Abertos, sonham mãos cariciosas,

Tuas mãos doces plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...

Há crisântemos roxos que descoram...

Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!

E ele é, ó meu Amor pelos espaços,

Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Page 226: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 174

Que Importa?...

Eu era a desdenhosa, a indiferente.

Nunca sentira em mim o coração

Bater em violências de paixão

Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente,

Sem sombra de Desejo ou de emoção,

Enquanto as asas loiras da ilusão

Abrem dentro de mim ao sol nascente.

Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;

Como nascida em carinhoso monte

Toda ela é riso e é frescura e graça!

Nela refresca a boca um só instante...

Que importa?... Se o cansado viandante

Bebe em todas as fontes... quando passa?...

Page 227: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 175

O Meu Orgulho

Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera

Não me lembrar! Em tardes dolorosas

Eu lembro-me que fui a primavera

Que em muros velhos faz nascer as rosas!

As minhas mãos outrora carinhosas

Pairavam como pombas... Quem soubera

Porque tudo passou e foi quimera,

E porque os muros velhos não dão rosas!

São sempre os que eu recordo que me esquecem...

Mas digo para mim: "não me merecem..."

E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:

Que também é orgulho ser sozinha,

E também é nobreza não ter nada!

Page 228: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 176

Os Versos Que Te Fiz

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que a minha boca tem pra te dizer!

São talhados em mármore de Páros

Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolências de veludos caros,

São como sedas pálidas a arder...

Deixa dizer-te os lindos versos raros

Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não t'os digo ainda...

Que a boca da mulher é sempre linda

Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...

E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei

Guardo os versos mais lindos que te fiz!

Page 229: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 177

Frieza

Os teus olhos são frios como as espadas,

E claros como os trágicos punhais,

Têm brilhos cortantes de metais

E fulgores de lâminas geladas.

Vejo neles imagens retratadas

De abandonos cruéis e desleais,

Fantásticos desejos irreais,

E todo o oiro e o sol das madrugadas!

Mas não te invejo, Amor, essa indiferença,

Que viver neste mundo sem amar

É pior que ser cego de nascença!

Tu invejas a dor que vive em mim!

E quanta vez dirás a soluçar:

"Ah, quem me dera, Irmã, amar assim!..."

Page 230: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 178

O Meu Mal

A meu irmão

Eu tenho lido em mim, sei-me de cor,

Eu sei o nome ao meu estranho mal:

Eu sei que fui a renda dum vitral,

Que fui cipreste, caravela e dor!

Fui tudo que no mundo há de maior;

Fui cisne e lírio e águia e catedral!

E fui, talvez, um verso de Nerval,

Ou um cínico riso de Chamfort...

Fui a heráldica flor de agrestes cardos,

Deram as minhas mãos aroma aos nardos...

Deu cor ao eloendro a minha boca...

Ah! De Boabdil fui lágrima na Espanha!

E foi de lá que eu trouxe esta ânsia estranha,

Mágoa não sei de quê! Saudade louca!

Page 231: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 179

A Noite Desce...

Como pálpebras roxas que tombassem

Sobre uns olhos cansados, carinhosas,

A noite desce... Ah! doces mãos piedosas

Que os meus olhos tristíssimos fechassem!

Assim mãos de bondade me embalassem!

Assim me adormecessem, caridosas

E em braçadas de lírios e mimosas,

No crepúsculo que desce me enterrassem!

A noite em sombra e fumo se desfaz...

Perfume de baunilha ou de lilás,

A noite põe-me embriagada, louca!

E a noite vai descendo, muda e calma...

Meu doce Amor tu beijas a minh'alma

Beijando nesta hora a minha boca!

Page 232: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 180

Caravelas

Cheguei a meio da vida já cansada

De tanto caminhar! Já me perdi!

Dum estranho país que nunca vi

Sou neste mundo imenso a exilada.

Tanto tenho aprendido e não sei nada.

E as torres de marfim que construí

Em trágica loucura as destruí

Por minhas próprias mãos de malfadada!

Se eu sempre fui assim este Mar Morto,

Mar sem marés, sem vagas e sem porto

Onde velas de sonhos se rasgaram!

Caravelas doiradas a bailar...

Ai, quem me dera as que eu deitei ao Mar!

As que eu lancei à vida, e não voltaram!...

Page 233: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 181

Inconstância

Procurei o amor que me mentiu.

Pedi à Vida mais do que ela dava.

Eterna sonhadora edificava

Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,

E tanto beijo a boca me queimava!

E era o sol que os longes deslumbrava

Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...

Atrás do sol dum dia outro a aquecer

As brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo

É igual a outro amor que vai surgindo,

Que há de partir também... nem eu sei quando...

Page 234: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 182

O Nosso Mundo

Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos

Como um divino vinho de Falerno!

Poisando em ti o meu amor eterno

Como poisam as folhas sobre os lagos...

Os meus sonhos agora são mais vagos...

O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...

E a Vida já não é o rubro inferno

Todo fantasmas tristes e pressagos!

A vida, meu Amor, quer vivê-la!

Na mesma taça erguida em tuas mãos,

Bocas unidas hemos de bebê-la!

Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...

Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...

O mundo, Amor?... As nossas bocas juntas!...

Page 235: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 183

Prince Charmant

A Raul Proença

No lânguido esmaecer das amorosas

Tardes que morrem voluptuosamente

Procurei-O no meio de toda a gente.

Procurei-O em horas silenciosas

Ó noites da minh'alma tenebrosas!

Boca sangrando beijos, flor que sente...

Olhos postos num sonho, humildemente...

Mãos cheias de violetas e de rosas...

E nunca O encontrei!... Prince Charmant

Como audaz cavaleiro em velhas lendas

Virá, talvez, nas névoas da manhã!

Ah! Toda a nossa vida anda a quimera

Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas...

– Nunca se encontra Aquele que se espera!...

Page 236: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 184

Anoitecer

A luz desmaia num fulgor d'aurora,

Diz-nos adeus religiosamente...

E eu, que não creio em nada, sou mais crente

Do que em menina, um dia, o fui... outr'ra...

Não sei o que em mim ri, o que em mim chora

Tenho bênçãos d'amor pra toda a gente!

E a minha alma sombria e penitente

Solução no infinito desta hora...

Horas tristes que são o meu rosário...

Ó minha cruz de tão pesado lenho!

Meu áspero e intérmino Calvário!

E a esta hora tudo em mim revive:

Saudades de saudades que não tenho...

Sonhos que são os sonhos dos que eu tive...

Page 237: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 185

Esfinge

Sou filha da charneca erma e selvagem:

Os giestais, por entre os rosmaninhos,

Abrindo os olhos d'oiro, p'los caminhos,

Desta minh'alma ardente são a imagem.

E ansiosa desejo – ó vã miragem –

Que tu e eu, em beijos e carinhos,

Eu a Charneca, e tu o Sol, sozinhos,

Fôssemos um pedaço da paisagem!

E à noite, à hora doce da ansiedade,

Ouviria da boca do luar

O De Profundis triste da saudade...

E à tua espera, enquanto o mundo dorme,

Ficaria, olhos quietos, a cismar...

Esfinge olhando a planície enorme...

Page 238: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 186

Tarde Demais...

Quando chegaste enfim, para te ver

Abriu-se a noite em mágico luar;

E pra o som de teus passos conhecer

Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste enfim! Milagre de endoidar!

Viu-se nessa hora o que não pode ser:

Em plena noite, a noite iluminar

E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia d'oiro dos desertos

Procura-te em vão! Braços abertos,

Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu fui nova e linda!...

E a minha boca morta grita ainda:

Por que chegaste tarde, ó meu Amor?!...

Page 239: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 187

Cinzento

Poeiras de crepúsculos cinzentos,

Lindas rendas velhinhas, em pedaços,

Prendem-se aos meus cabelos, aos meus braços,

Como brancos fantasmas, sonolentos...

Monges soturnos deslizando lentos,

Devagarinho, em misteriosos passos...

Perde-se a luz em lânguidos cansaços...

Ergue-se a minha cruz dos desalentos!

Poeiras de crepúsculos tristonhos,

Lembram-me o fumo leve dos meus sonhos,

A névoa das saudades que deixaste!

Hora em que o teu olhar me deslumbrou...

Hora em que a tua boca me beijou...

Hora em que fumo e névoa te tornaste...

Page 240: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 188

Noturno

Amor! Anda o luar todo bondade,

Beijando a terra, a desfazer-se em luz...

Amor! São os pés brancos de Jesus

Que andam pisando as ruas da cidade!

E eu ponho-me a pensar... Quanta saudade

Das ilusões e risos que em ti pus!

Traçaste em mim os braços duma cruz,

Neles pregaste a minha mocidade!

Minh'alma, que eu te dei, cheia de mágoas,

E nesta noite o nenufar dum lago

Estendendo as asas brancas sobre as águas!

Poisa as mãos nos meus olhos com carinho,

Fecha-os num beijo dolorido e vago...

E deixa-me chorar devagarinho...

Page 241: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 189

Maria das Quimeras

Maria das Quimeras me chamou

Alguém... Pelos castelos que eu ergui,

P'las flores d'oiro e azul que a sol teci

Numa tela de sonho que estalou.

Maria das Quimeras me ficou;

Com elas na minh'alma adormeci.

Mas, quando despertei, nem uma vi

Que da minh'alma, Alguém, tudo levou!

Maria das Quimeras, que fim deste

Às flores d'oiro e azul que a sol bordaste,

Aos sonhos tresloucados que fizeste?

Pelo mundo, na vida, o que é que esperas?...

Aonde estão os beijos que sonhaste,

Maria das Quimeras, sem quimeras?

Page 242: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 190

Saudades

Saudades! Sim... talvez... e por que não?...

Se o sonho foi tão alto e forte

Que pensara vê-lo até à morte

Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah, como é vão!

Que tudo isso, Amor, nos não importe.

Se ele deixou beleza que conforte

Deve-nos ser sagrado como o pão.

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,

Para mais doidamente me lembrar

Mais decididamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:

Quanto menos quisesse recordar

Mais saudade andasse presa a mim!

Page 243: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 191

Ruínas

Se é sempre outono o rir das primaveras,

Castelos, um a um, deixa-os cair...

Que a vida é um constante derruir

De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,

Deixa-as beijar as pedras e florir!

Que a vida é um contínuo destruir

De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!

Tenho ainda mais sonhos para erguê-los

Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!

São como os beijos duma linda boca!

Sonhos!... Deixa-os tombar... deixa-os tombar...

Page 244: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 192

Crepúsculo

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes

Borboletas de sol, de asas magoadas,

Poisam nos meus, suaves e cansadas,

Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham... Meu Amor, não sentes?

Minha boca tem rosas desmaiadas,

E as minhas pobres mãos são maceradas

Como vagas saudades de doentes...

O Silencio abre as mãos... entorna rosas...

Andam no ar carícias vaporosas

Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha

É na suavidade da tardinha

Um coração ardente palpitando...

Page 245: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 193

Ódio?

A Aurora Aboim

Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,

Se tanto bem lhe quis no meu passado,

Se o encontrei depois de o ter sonhado,

Se à vida assim roubei todo o encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto

Turva o meu triste olhar, marmorizado,

Olhar de monja, trágico, gelado

Com um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! nunca mais amá-lo é já bastante!

Quero senti-lo d'outra, bem distante,

Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,

Mágoa de o ter perdido, amor ainda!

Ódio por Ele? Não... não vale a pena...

Page 246: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 194

Renúncia

A minha mocidade há muito pus

No tranqüilo convento da Tristeza;

Lá passa dias, noites, sempre presa,

Olhos fechados, magras mãos em cruz...

Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!

Desdobra-se em requintes de Beleza...

É como um beijo ardente a Natureza...

A minha cela é como um rio de luz...

Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!

Empalidece mais! E, resignada,

Prende os teus braços a uma cruz maior!

Gela ainda a mortalha que te encerra!

Enche a boca de cinzas e de terra

Ó minha mocidade toda em flor!

Page 247: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 195

A Vida

É vão o amor, o ódio, ou o desdém;

Inútil o desejo e o sentimento...

Lançar um grande amor aos pés d'alguém

O mesmo é que lançar flores ao vento!

Todos somos no mundo "Pedro Sem",

Uma alegria é feita dum tormento,

Um riso é sempre o eco dum lamento,

Sabe-se lá um beijo d'onde vem!

A mais nobre ilusão morre... desfaz-se...

Uma saudade morta em nós renasce

Que no mesmo momento é já perdida...

Amar-te a vida inteira eu não podia...

A gente esquece sempre o bem dum dia.

Que queres, meu Amor, se é isto a Vida!...

Page 248: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 196

Horas Rubras

Horas profundas, lentas e caladas

Feitas de beijos rubros e ardentes,

De noites de volúpia, noites quentes

Onde há risos de virgens desmaiadas...

Oiço as olaias rindo desgrenhadas...

Tombam astros em fogo, astros dementes,

E do luar os beijos languescentes

São pedaços de prata p'las estradas...

Os meus lábios são brancos como lagos...

Os meus braços são leves como afagos,

Vestiu-os o luar de sedas puras...

Sou chama e neve e branca e misteriosa...

E sou, talvez, na noite voluptuosa,

Ó meu Poeta, o beijo que procuras!

Page 249: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 197

Suavidade

Poisa a tua cabeça dolorida

Tão cheia de quimeras, de ideal

Sobre o regaço brando e maternal

Da tua doce Irmã compadecida.

Hás de contar-me nessa voz tão qu'rida

A tua dor que julgas sem igual,

E eu, pra te consolar, direi o mal

Que à minha alma profunda fez a Vida.

E hás de adormecer nos meus joelhos...

E os meus dedos enrugados, velhos,

Hão de fazer-se leves e suaves...

Hão de poisar-se num fervor de crente,

Rosas brancas tombando docemente

Sobre o teu rosto, como penas d'aves...

Page 250: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 198

Princesa Desalento

Minh'alma é a Princesa Desalento,

Como um Poeta lhe chamou, um dia.

É magoada e pálida e sombria,

Como soluços trágicos do vento!

É frágil como o sonho dum momento,

Soturna como preces de agonia,

Vive do riso duma boca fria!

Minh'alma é a Princesa Desalento...

Altas horas da noite ela vagueia...

E ao luar suavíssimo, que anseia,

Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh'alma, ajoelhado,

E vai traçar, fantástico e gelado,

A sombra duma cruz à tua porta...

Page 251: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 199

Sombra

De olheiras roxas, roxas, quase pretas,

De olhos límpidos, doces, languescentes,

Lagos em calma, pálidos, dormentes

Onde se debruçassem violetas...

De mãos esguias, finas hastes quietas,

Que o vento não baloiça em noites quentes...

Noturno de Chopin... risos dolentes...

Versos tristes em sonhos de Poetas...

Beijo doce de aromas perturbantes...

Rosal bendito que dá rosas... Dantes

Esta era Eu e Eu era a Idolatrada!...

Oh, tanta cinza morta... o vento a leve!

Vou sendo agora em ti a sombra leve

D’alguém que dobra a curva duma estrada...

Page 252: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 200

Hora Que Passa

Vejo-me triste, abandonada e só

Bem como um cão sem dono e que o procura

Mais pobre e desprezada do que Job

A caminhar na via da amargura!

Judeu Errante que a ninguém faz dó!

Minh'alma triste, dolorida, escura,

Minh'alma sem amor é cinza e pó,

Vaga roubada ao Mar da Desventura!

Que tragédia tão funda no meu peito!...

Quanta ilusão morrendo que esvoaça!

Quanto sonho a nascer e já desfeito!

Deus! Como é triste a hora quando morre...

O instante que foge, voa, e passa...

Fiozinho d'água triste... a vida corre...

Page 253: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 201

Da Minha Janela

Mar alto! Ondas quebradas e vencidas

Num soluçar aflito e murmurado...

Vôo de gaivotas, leve, imaculado,

Como neves nos píncaros nascidas!

Sol! Ave a tombar, asas já feridas,

Batendo ainda num arfar pausado...

Ó meu doce poente torturado

Rezo-te em mim, chorando, mãos erguidas!

Meu verso de Samain cheio de graça,

'Inda não és clarão já és luar

Como um branco lilás que se desfaça!

Amor! Teu coração traga-o no peito...

Pulsa dentro de mim como este mar

Num beijo eterno, assim, nunca desfeito!...

Page 254: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 202

Sol Poente

Tardinha... "Ave-Maria, Mãe de Deus..."

E reza a voz dos sinos e das noras...

O sol que morre tem clarões d'auroras,

Águia que bate as asas pelos céus!

Horas que têm a cor dos olhos teus...

Horas evocadoras d'outras horas...

Lembranças de fantásticos outroras,

De sonhos que não tenho e que eram meus!

Horas em que as saudades, p'las estradas,

Inclinam as cabeças mart'rizadas

E ficam pensativas... meditando...

Morrem verbenas silenciosamente...

E o rubro sol da tua boca ardente

Vai-me a pálida boca desfolhando...

Page 255: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 203

Exaltação

Viver!... Beber o vento e o sol!... Erguer

Ao céu os corações a palpitar!

Deus fez os nossos braços pra prender,

E a boca fez-se sangue pra beijar!

A chama, sempre rubra, ao alto, a arder!

Asas sempre perdidas a pairar!

Mais alto para as estrelas desprender!...

A glória!... A fama!... O orgulho de criar!...

Da vida tenho o mel e tenho os travos

No lago dos meus olhos de violetas,

Nos meus beijos estáticos, pagãos!

Trago na boca o coração dos cravos!

Boêmios, vagabundos, e poetas,

− Com eu sou vossa Irmã, ó meus Irmãos!...

Page 256: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Charneca em Flor

(1931, póstuma)

Page 257: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 207

Amar, amar; amar; amar siempre y con todo

El ser y con la tierra y con el cielo,

Con lo claro del sol y lo obscuro del lodo.

Amar por toda ciencia y amar por todo anhelo.

Y cuando la montaña de la vida

Nos sea dura y larga, y alta, y llena de abismos,

Amar la inmensidad, que es de amor encendida,

Y arder en la fusión de nuestros pechos mismos...

RUBÉN DARÍO

Page 258: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 209

Charneca em Flor

Enche o meu peito, num encanto mago,

O frêmito das coisas dolorosas...

Sob as urzes queimadas nascem rosas...

Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago

Em mim? Eu oiço bocas silenciosas

Murmurar-me as palavras misteriosas

Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade,

Dispo a minha mortalha, o meu burel,

E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,

Boca a saber a sol, a fruto, a mel:

Sou a charneca rude a abrir em flor!

Page 259: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 210

Versos de Orgulho

O mundo quer-me mal porque ninguém

Tem asas como eu tenho! Porque Deus

Me fez nascer Princesa entre plebeus

Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além...

Porque trago no olhar os vastos céus

E os oiros e os clarões são todos meus!

Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

O mundo! O que é o mundo, ó meu amor?!

– O jardim dos meus versos todo em flor...

A seara dos teus beijos, pão bendito,

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços...

– São os teus braços dentro dos meus braços,

Via Láctea fechando o Infinito.

Page 260: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 211

Rústica

Ser a moça mais linda do povoado,

Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,

Ver descer sobre o ninho aconchegado

A bênção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,

Cheirando a alfazema e a tomilho...

– Com o luar matar a sede ao gado,

Dar às pombas o sol num grão de milho...

Ser pura como a água da cisterna,

Ter confiança numa vida eterna

Quando descer à "terra da verdade"...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!

Dou por elas meu trono de Princesa,

E todos os meus Reinos de Ansiedade.

Page 261: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 212

Realidade

Em ti o meu olhar fez-se alvorada

E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...

E a minha rubra boca apaixonada

Teve a frescura pálida do linho...

Embriagou-me o teu beijo como um vinho

Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...

E a minha cabeleira desatada

Pôs a teus pés a sombra dum caminho...

Minhas pálpebras são cor de verbena,

Eu tenho os olhos garços, sou morena,

E para te encontrar foi que eu nasci...

Tens sido vida fora o meu desejo,

E agora, que te falo, que te vejo,

Não sei se te encontrei... se te perdi...

Page 262: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 213

Conto de Fadas

Eu trago-te nas mãos o esquecimento

Das horas más que tens vivido, Amor!

E para as tuas chagas o ungüento

Com que sarei a minha própria dor.

Os meus gestos são ondas de Sorrento...

Trago no nome as letras de uma flor...

Foi dos meus olhos garços que um pintor

Tirou a luz para pintar o vento...

Dou-te o que tenho: o astro que dormita,

O manto dos crepúsculos da tarde,

O sol que é d'oiro, a onda que palpita.

Dou-te comigo o mundo que Deus fez!

– Eu sou Aquela de quem tens saudade,

A Princesa do conto: "Era uma vez..."

Page 263: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 214

A Um Moribundo

Não tenhas medo, não! Tranqüilamente,

Como adormece a noite pelo Outono,

Fecha os teus olhos, simples, docemente,

Como, à tarde, uma pomba que tem sono...

A cabeça reclina levemente

E os braços deixa-os ir ao abandono,

Como tombam, arfando, ao sol poente,

As asas de uma pomba que tem sono...

O que há depois? Depois?... O azul dos céus?

Um outro mundo? O eterno nada? Deus?

Um abismo? Um castigo? Uma guarida?

Que importa? Que te importa, ó moribundo?

– Seja o que for, será melhor que o mundo!

Tudo será melhor do que esta vida!...

Page 264: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 215

Eu

Até agora eu não me conhecia,

Julgava que era Eu e eu não era

Aquela que em meus versos descrevera

Tão clara como a fonte e como o dia.

Mas que eu não era Eu não o sabia

E, mesmo que o soubesse, o não dissera...

Olhos fitos em rútila quimera

Andava atrás de mim... E não me via!

Andava a procurar-me – pobre louca! –

E achei o meu olhar no teu olhar,

E a minha boca sobre a tua boca!

E esta ânsia de viver, que nada acalma,

E a chama da tua alma a esbrasear

As apagadas cinzas da minha alma!

Page 265: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 216

Passeio Ao Campo

Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!

Colhe a hora que passa, hora divina,

Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!

Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina...

Pele doirada de alabastro antigo...

Frágeis mãos de madona florentina...

– Vamos correr e rir por entre o trigo! –

Há rendas de gramíneas pelos montes...

Papoilas rubras nos trigais maduros...

Água azulada a cintilar nas fontes...

E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras

Dos caminhos selvagens e escuros,

Num astro só as nossas duas sombras!...

Page 266: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 217

Tarde No Mar

A tarde é de oiro rútilo: esbraseia,

O horizonte: um cacto purpurino.

E a vaga esbelta que palpita e ondeia,

Com uma frágil graça de menino,

Poisa o manto de arminho na areia

E lá vai, e lá segue ao seu destino!

E o sol, nas casas brancas que incendeia,

Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!

Vai deitando do céu molhos de rosas

Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,

As tuas mãos morenas, milagrosas,

São as asas do sol, agonizantes...

Page 267: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 218

Se Tu Viesses Ver-Me...

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,

A essa hora dos mágicos cansaços,

Quando a noite de manso se avizinha,

E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha

A tua boca... o eco dos teus passos...

O teu riso de fonte... os teus abraços...

Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,

Traça as linhas dulcíssimas dum beijo

E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...

Quando os olhos se me cerram de desejo...

E os meus braços se estendem para ti...

Page 268: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 219

Mistério

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,

Dizendo coisas que ninguém entende!

Da tua cantilena se desprende

Um sonho de magia e de pecados.

Dos teus pálidos dedos delicados

Uma alada canção palpita e ascende,

Frases que a nossa boca não aprende,

Murmúrios por caminhos desolados.

Pelo meu rosto branco, sempre frio,

Fazes passar o lúgubre arrepio

Das sensações estranhas, dolorosas...

Talvez um dia entenda o teu mistério...

Quando, inerte, na paz do cemitério,

O meu corpo matar a fome às rosas!

Page 269: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 220

O Meu Condão

Quis Deus dar-me o condão de ser sensível

Como o diamante à luz que o alumia,

Dar-me uma alma fantástica, impossível:

– Um bailado de cor e fantasia!

Quis Deus fazer de ti a ambrosia

Desta paixão estranha, ardente, incrível!

Erguer em mim o facho inextinguível,

Como um cinzel vincando uma agonia!

Quis Deus fazer-me tua... para nada!

– Vãos, os meus braços de crucificada,

Inúteis, esses beijos que te dei!

Anda! Caminha! Aonde?... Mas por onde?...

Se um gesto dos teus a sombra esconde

O caminho de estrelas que tracei...

Page 270: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 221

As Minhas Mãos

As minhas mãos magritas, afiladas,

Tão brancas como a água da nascente,

Lembram pálidas rosas entornadas

Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vidente,

Pobrezinhas em sedas enroladas,

Virgens mortas em luz amortalhadas

Pelas próprias mãos de oiro do sol poente.

Magras e brancas... Foram assim feitas...

Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...

Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!

Ó minhas mãos, aonde está o céu?

... Aonde estão as linhas do teu rosto?

Page 271: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 222

Noitinha

A noite sobre nós se debruçou...

Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!

O luar, pelas colinas, nesta hora,

É água dum gomil que se entornou...

Não sei quem tanta pérola espalhou!

Murmura alguém pelas quebradas fora...

Flores do campo, humildes, mesmo agora.

A noite, os olhos brandos, lhes fechou...

Fumo beijando o colmo dos casais...

Serenidade idílica de fontes,

E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...

Tranqüilidade... calma... anoitecer...

Num êxtase, eu escuto pelos montes

O coração das pedras a bater...

Page 272: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 223

Lembrança

Fui Essa que nas ruas esmolou

E foi a que habitou Paços Reais;

No mármore de curvas ogivais

Fui Essa que as mãos pálidas poisou...

Tanto poeta em versos me cantou!

Fiei o linho à porta dos casais...

Fui descobrir a Índia e nunca mais

Voltei! fui essa nau que não voltou...

Tenho o perfil moreno, lusitano,

E os olhos verdes, cor do verde Oceano,

Sereia que nasceu de navegantes...

Tudo em cinzentas brumas se dilui...

Ah, quem me dera ser Essas que eu fui,

As que me lembro de ter sido... dantes!...

Page 273: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 224

A Nossa Casa

A nossa casa, Amor, a nossa casa!

Onde está ela, Amor, que não a vejo?

Na minha doida fantasia em brasa

Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,

O bem que neste mundo mais invejo?

O brando ninho aonde o nosso beijo

Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho... que eu e tu, dois pobrezinhos,

Andamos de mãos dadas, nos caminhos

Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi...

E que eu moro – tão bom! – dentro de ti

E tu, ó meu Amor, dentro de mim...

Page 274: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 225

Mendiga

Na vida nada tenho e nada sou;

Eu ando a mendigar pelas estradas...

No silêncio das noites estreladas

Caminho, sem saber para onde vou!

Tinha o manto do sol... quem m'o roubou?!

Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!

Quem foi que sobre as ondas revoltadas

A minha taça de oiro espedaçou?!

Agora vou andando e mendigando,

Sem que um olhar dos mundos infinitos

Veja passar o verme, rastejando...

Ah, quem me dera ser como os chacais

Uivando os brados, rouquejando os gritos

Na solidão dos ermos matagais!...

Page 275: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 226

Supremo Enleio

Quanta mulher no teu passado, quanta!

Tanta sombra em redor! Mas que me importa?

Se delas veio o sonho que conforta,

A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,

Folhas murchas de rojo à tua porta...

Quando eu for uma pobre coisa morta,

Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!

Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,

Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,

Nesse corpo vibrante de mulher

Será o meu que hás de encontrar ainda...

Page 276: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 227

Toledo

Diluído numa taça de oiro a arder

Toledo é um rubi. E hoje é só nosso!

O sol a rir... Viv'alma... Não esboço

Um gesto que me não sinta esvaecer...

As tuas mãos tateiam-me a tremer...

Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço

É como um jasmineiro em alvoroço

Ébrio de sol, de aroma, de prazer!

Cerro um pouco o olhar onde subsiste

Um romântico apelo vago e mudo,

– Um grande amor é sempre grave e triste.

Flameja ao longe o esmalte azul do Tejo...

Uma torre ergue ao céu um grito agudo...

Tua boca desfolha-me num beijo...

Page 277: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 228

Outonal

Caem as folhas mortas sobre o lago;

Na penumbra outonal, não sei quem tece

As rendas do silêncio... Olha, anoitece!

– Brumas longínquas do País do Vago...

Veludos a ondear... Mistério mago...

Encantamento... A hora que não esquece,

A luz que a pouco e pouco desfalece,

Que lança em mim a bênção dum afago...

Outono dos crepúsculos doirados,

De púrpuras, damascos e brocados!

– Vestes a terra inteira de esplendor!

Outono das tardinhas silenciosas,

Das magníficas noites voluptuosas

Em que eu soluço a delirar de amor...

Page 278: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 229

Ser Poeta

Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma e sangue e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda gente!

Page 279: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 230

Alvorecer

A noite empalidece. Alvorecer...

Ouve-se mais o gargalhar da fonte...

Sobre a cidade muda, o horizonte

É uma orquídea estranha a florescer.

Há andorinhas prontas a dizer

A missa d'alva, mal o sol desponte.

Gritos de galos soam monte em monte

Numa intensa alegria de viver.

Passos ao longe... um vulto que se esvai...

Em cada sombra Colombina trai...

Anda o silêncio em volta a querer falar...

E o luar que desmaia, macerado,

Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,

Um Pierrot, todo branco, a soluçar...

Page 280: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 231

Mocidade

A mocidade esplêndida, vibrante,

Ardente, extraordinária, audaciosa,

Que vê num cardo a folha duma rosa,

Na gota de água o brilho dum diamante;

Essa que fez de mim Judeu Errante

Do espírito, a torrente caudalosa,

Dos vendavais irmã tempestuosa,

– Trago-a em mim vermelha, triunfante!

No meu sangue rubis correm dispersos:

– Chamas subindo ao alto nos meus versos,

Papoilas nos meus lábios a florir!

Ama-me doida, estonteadoramente,

O meu Amor! que o coração da gente

É tão pequeno... e a vida, água a fugir...

Page 281: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 232

Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...

Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder... pra me encontrar...

Page 282: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 233

Nostalgia

Nesse País de lenda, que me encanta,

Ficaram meus brocados, que despi,

E as jóias que p'las aias reparti

Como outras rosas de Rainha Santa!

Tanta opala que eu tinha! Tanta, tanta!

Foi por lá que as semeei e que as perdi...

Mostrem-me esse País onde eu nasci!

Mostrem-me o Reino de que eu sou Infanta!

O meu País de sonho e de ansiedade,

Não sei se esta quimera que me assombra,

É feita de mentira ou de verdade!

Quero voltar! Não sei por onde vim...

Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra

Por entre tanta sombra igual a mim!

Page 283: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 234

Ambiciosa

Para aqueles fantasmas que passaram,

Vagabundos a quem jurei amar,

Nunca os meus braços lânguidos traçaram

O vôo dum gesto para os alcançar...

Se as minhas mãos em garra se cravaram

Sobre um amor em sangue a palpitar...

– Quantas panteras bárbaras mataram

Só pelo raro gosto de matar!

Minha alma é como a pedra funerária

Erguida na montanha solitária

Interrogando a vibração dos céus!

O amor dum homem? – Terra tão pisada!

Gota de chuva ao vento baloiçada...

Um homem? – Quando eu sonho o amor dum deus!...

Page 284: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 235

Crucificada

Amiga... noiva... irmã... o que quiseres!

Por ti, todos os céus terão estrelas,

Por teu amor, mendiga, hei de merecê-las,

Ao beijar a esmola que me deres.

Podes amar até outras mulheres!

– Hei de compor, sonhar palavras belas,

Lindos versos de dor só para elas,

Para em lânguidas noites lhes dizeres!

Crucificada em mim, sobre os meus braços,

Hei de poisar a boca nos teus passos

Pra não serem pisados por ninguém.

E depois... Ah! depois de dores tamanhas,

Nascerás outra vez de outras entranhas,

Nascerás outra vez de uma outra Mãe!

Page 285: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 236

Espera...

Não me digas adeus, ó sombra amiga,

Abranda mais o ritmo dos teus passos;

Sente o perfume da paixão antiga,

Dos nossos bons e cândidos abraços!

Sou a dona dos místicos cansaços,

A fantástica e estranha rapariga

Que um dia ficou presa nos teus braços...

Não vás ainda embora, ó sombra amiga!

Teu amor fez de mim um lago triste:

Quantas ondas a rir que não lhe ouviste,

Quanta canção de ondinas lá no fundo!

Espera... espera... ó minha sombra amada...

Vê que pra além de mim já não há nada

E nunca mais me encontras neste mundo!...

Page 286: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 237

Interrogação

Neste tormento inútil, neste empenho

De tornar em silêncio o que em mim canta,

Sobem-me roucos brados à garganta

Num clamor de loucura que contenho.

Ó alma de charneca sacrossanta,

Irmã da alma rútila que eu tenho,

Dize pra onde vou, donde é que venho

Nesta dor que me exalta e me alevanta!

Visões de mundos novos, de infinitos,

Cadências de soluços e de gritos,

Fogueira a esbrasear que me consome!

Dize que mão é esta que me arrasta?

Nódoa de sangue que palpita e alastra...

Dize de que é que eu tenho sede e fome?!

Page 287: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 238

Volúpia

No divino impudor da mocidade,

Nesse êxtase pagão que vence a sorte,

Num frêmito vibrante de ansiedade,

Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...

A nuvem que arrastou o vento norte...

– Meu corpo! Trago nele um vinho forte:

Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...

São os dedos do sol quando te abraço,

Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos

Vão-te envolvendo em círculos dantescos

Felinamente, em voluptuosas danças...

Page 288: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 239

Filtro

Meu Amor, não é nada: – Sons marinhos

Numa concha vazia, choro errante...

Ah, olhos que não choram! Pobrezinhos...

Não há luz neste mundo que os levante!

Eu andarei por ti os maus caminhos

E as minhas mãos, abertas a diamante,

Hão de crucificar-se nos espinhos

Quando o meu peito for o teu mirante!

Para que corpos vis te não desejem,

Hei de dar-te o meu corpo, e a boca minha

Pra que bocas impuras te não beijem!

Como quem roça um lago que sonhou,

Minhas cansadas asas de andorinha

Hão de prender-te todo num só vôo...

Page 289: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 240

Mais Alto

Mais alto, sim! mais alto, mais além

Do sonho, onde morar a dor da vida,

Até sair de mim! Ser a Perdida,

A que se não encontra! Aquela a quem

O mundo não conhece por Alguém!

Ser orgulho, ser águia na subida,

Até chegar a ser, entontecida,

Aquela que sonhou o meu desdém!

Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!

Turris Ebúrnea erguida nos espaços,

A rutilante luz dum impossível!

Mais alto, sim! Mais alto! Onde couber

O mal da vida dentro dos meus braços,

Dos meus divinos braços de Mulher!

Page 290: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 241

Nervos D'oiro

Meus nervos, guizos de oiro a tilintar

Cantam-me n'alma a estranha sinfonia

Da volúpia, da mágoa e da alegria,

Que me faz rir e que me faz chorar!

Em meu corpo fremente, sem cessar,

Agito os guizos de oiro da folia!

A Quimera, a Loucura, a Fantasia,

Num rubro turbilhão sinto-As passar!

O coração, numa imperial oferta.

Ergo-o ao alto! E, sobre a minha mão,

É uma rosa de púrpura, entreaberta!

E em mim, dentro de mim, vibram dispersos,

Meus nervos de oiro, esplêndidos, que são

Toda a Arte suprema dos meus versos!

Page 291: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 242

A Voz da Tília

Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,

Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,

Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,

Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,

Uma serpente de oiro que me enlaça...

Trago nas mãos as mãos da Primavera...

E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,

E à minha alma vibrante, posta a nu,

Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:

"Já fui um dia poeta como tu...

Ainda hás de ser tília como eu sou..."

Page 292: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 243

Não Ser

Quem me dera voltar à inocência

Das coisas brutas, sãs, inanimadas,

Despir o vão orgulho, a incoerência:

– Mantos rotos de estátuas mutiladas!

Ah! arrancar às carnes laceradas

Seu mísero segredo de consciência!

Ah! poder ser apenas florescência

De astros em puras noites deslumbradas!

Ser nostálgico choupo ao entardecer,

De ramos graves, plácidos, absortos

Na mágica tarefa de viver!

Ser haste, seiva, ramaria inquieta,

Erguer ao sol o coração dos mortos

Na urna de oiro duma flor aberta!...

Page 293: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 244

?

Quem fez ao sapo o leito carmesim

De rosas desfolhadas à noitinha?

E quem vestiu de monja a andorinha,

E perfumou as sombras do jardim?

Quem cinzelou estrelas no jasmim?

Quem deu esses cabelos de rainha

Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha

Alma a sangrar? Quem me criou a mim?

Quem fez os homens e deu vida aos lobos?

Santa Teresa em místicos arroubos!

Os monstros? E os profetas? E o luar?

Quem nos deu asas para andar de rastros?

Quem nos deu olhos para ver os astros

– Sem nos dar braços para os alcançar?

Page 294: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 245

In Memoriam

Ao meu morto querido

Na cidade de Assis, "Il Poverello"

Santo, três vezes santo, andou pregando

Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,

Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,

Tudo era nosso irmão! – E assim sonhando,

Pelas estradas da Umbria foi forjando

Da cadeia do amor o maior elo!

"Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água..."

Ah, Poverello! Em mim, essa lição

Perdeu-se como vela em mar de mágoa

Batida por furiosos vendavais!

– Eu fui na vida a irmã dum só Irmão,

E já não sou a irmã de ninguém mais!

Page 295: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 246

Árvores do Alentejo

Ao Prof. Guido Battelli

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

– Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

Page 296: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 247

Quem Sabe?...

Ao Ângelo

Queria tanto saber por que sou Eu!

Quem me enjeitou neste caminho escuro?

Queria tanto saber por que seguro

Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu

Também é para o mau, para o perjuro?

Para onde vai a alma que morreu?

Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!

A estrada de Damasco, o meu caminho,

O meu bordão de estrelas de ceguinho,

Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de Eternidade,

A tropeçar na sombra, é a Verdade,

É já a mão de Deus que me acalenta?

Page 297: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 248

A Minha Piedade

A Bourbon e Menêses

Tenho pena de tudo quanto lida

Neste mundo, de tudo quanto sente,

Daquele a quem mentiram, de quem mente,

Dos que andam pés descalços pela vida,

Da rocha altiva, sobre o monte erguida,

Olhando os céus ignotos frente a frente,

Dos que não são iguais à outra gente,

E dos que se ensangüentam na subida!

Tenho pena de mim... pena de ti...

De não beijar o riso duma estrela...

Pena dessa má hora em que nasci...

De não ter asas para ir ver o céu...

De não ser Esta... a Outra... e mais Aquela...

De ter vivido e não ter sido Eu...

Page 298: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 249

Sou Eu!

À Laura Chaves

Pelos campos em fora, pelos combros,

Pelos montes que embalam a manhã,

Largo os meus rubros sonhos de pagã,

Enquanto as aves poisam nos meus ombros...

Em vão me sepultaram entre escombros

De catedrais duma escultura vã!

Olha-me o loiro sol tonto de assombros,

E as nuvens, a chorar, chamam-me irmã!

Ecos longínquos de ondas... de universos...

Ecos dum Mundo... dum distante Além,

Donde eu trouxe a magia dos meus versos!

Sou eu! Sou eu! A que nas mãos ansiosas

Prendeu da vida, assim como ninguém,

Os maus espinhos sem tocar nas rosas!

Page 299: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 250

Panteísmo

Ao Botto de Carvalho

Tarde de brasa a arder, sol de verão

Cingindo, voluptuoso, o horizonte...

Sinto-me luz e cor, ritmo e clarão

Dum verso triunfal de Anacreonte!

Vejo-me asa no ar, erva no chão,

Oiço-me gota de água a rir, na fonte,

E a curva altiva e dura do Marão

É o meu corpo transformado em monte!

E de bruços na terra penso e cismo

Que, neste meu ardente panteísmo

Nos meus sentidos postos e absortos

Nas coisas luminosas deste mundo,

A minha alma é o túmulo profundo

Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!

Page 300: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 251

Pobre de Cristo

A José Emídio Amaro

Ó minha terra na planície rasa,

Branca de sol e cal e de luar,

Minha terra que nunca viste o mar

Onde tenho o meu pão e a minha casa...

Minha terra de tardes sem uma asa,

Sem um bater de folha... a dormitar...

Meu anel de rubis a flamejar,

Minha terra mourisca a arder em brasa!

Minha terra onde meu irmão nasceu...

Aonde a mãe que eu tive e que morreu,

Foi moça e loira, amou e foi amada...

Truz... truz... truz... Eu não tenho onde me acoite,

Sou um pobre de longe, é quase noite...

Terra, quero dormir... dá-me pousada!...

Page 301: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 252

A Uma Rapariga

À Nice

Abre os olhos e encara a vida! A sina

Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!

Por sobre lamaçais alteia pontes

Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada da vida que fascina

Caminha sempre em frente, além dos montes!

Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!

Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,

Escava com as mãos a própria cova

E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,

Da graça do teu corpo, esguia e nova,

Surgir à luz a haste duma flor!...

Page 302: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 253

Minha Culpa

A Artur Ledesma

Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem

Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...

Sou um reflexo... um canto de paisagem

Ou apenas cenário! Um vaivém...

Como a sorte: hoje aqui, depois além!

Sei lá quem Sou?! Sei lá! Sou a roupagem

Dum doido que partiu numa romagem

E nunca mais voltou! Eu sei lá quem!...

Sou um verme que um dia quis ser astro...

Uma estátua truncada de alabastro...

Uma chaga sangrenta do Senhor...

Sei lá quem sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,

Num mundo de vaidades e pecados,

Sou mais um mau, sou mais um pecador...

Page 303: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 254

Teus Olhos

Olhos do meu Amor! Infantes loiros

Que trazem os meus presos, endoidados!

Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:

Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,

Meus carros de combate, destroçados,

Os meus diamantes, todos os meus oiros

Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..

Enigmáticas campas medievais...

Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Berço vindo do céu à minha porta...

Ó meu leite de núpcias irreais!...

Meu suntuoso túmulo de morta!...

Page 304: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 255

He hum não querer mais que bem querer.

CAMÕES

Page 305: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 256

I

Gosto de ti apaixonadamente,

De ti que és a vitória, a salvação,

De ti que me trouxeste pela mão

Até ao brilho desta chama quente.

A tua linda voz de Água corrente

Ensinou-me a cantar... e essa canção

Foi ritmo nos meus versos de paixão,

Foi graça no meu peito de descrente.

Bordão a amparar minha cegueira,

Da noite negra o mágico farol,

Cravos rubros a arder numa fogueira!

E eu, que era neste mundo uma vencida,

Ergo a cabeça ao alto, encaro o sol!

– Águia real, apontas-me a subida!

Page 306: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 257

II

Meu Amor, meu Amado, vê... repara:

Poisa os teus lindos olhos de oiro em mim,

– Dos meus beijos de amor Deus fez-me avara

Para nunca os contares até ao fim.

Meus olhos têm tons de pedra rara,

– E só para teu bem que os tenho assim –

E as minhas mãos são fontes de Água clara

A cantar sobre a sede dum jardim.

Sou triste como a folha ao abandono

Num parque solitário, pelo Outono,

Sobre um lago onde vogam nenúfares...

Deus fez-me atravessar o teu caminho...

– Que contas dás a Deus indo sozinho,

Passando junto a mim, sem me encontrares? –

Page 307: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 258

III

Frêmito do meu corpo a procurar-te,

Febre das minhas mãos na tua pele

Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,

Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,

Olhos buscando os teus por toda a parte,

Sede de beijos, amargor de fel,

Estonteante fome, áspera e cruel,

Que nada existe que a mitigue e a farte!

E vejo-te tão longe! Sinto a tua alma

Junto da minha, uma lagoa calma,

A dizer-me, a cantar que me não amas...

E o meu coração que tu não sentes,

Vai boiando ao acaso das correntes,

Esquife negro sobre um mar de chamas...

Page 308: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 259

IV

És tu! És tu! Sempre vieste, enfim!

Oiço de novo o riso dos teus passos!

És tu que eu vejo a estender-me os braços

Que Deus criou pra me abraçar a mim!

Tudo é divino e santo visto assim...

Foram-se os desalentos, os cansaços...

O mundo não é mundo: é um jardim!

Um céu aberto: longes, os espaços!

Prende-me toda, Amor, prende-me bem!

Que vês tu em redor? Não há ninguém!

A terra? – Um astro morto que flutua...

Tudo o que é chama a arder, tudo o que sente,

Tudo o que é vida e vibra eternamente

É tu seres meu, Amor, e eu ser tua!

Page 309: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 260

V

Dize-me, Amor, como te sou querida,

Conta-me a glória do teu sonho eleito,

Aninha-me a sorrir junto ao teu peito,

Arranca-me dos pântanos da vida.

Embriagada numa estranha lida,

Trago nas mãos o coração desfeito,

Mostra-me a luz, ensina-me o preceito

Que me salve e levante redimida!

Nesta negra cisterna em que me afundo,

Sem quimeras, sem crenças, sem ternura,

Agonia sem fé dum moribundo,

Grito o teu nome numa sede estranha,

Como se fosse, Amor, toda a frescura

Das cristalinas águas da montanha!

Page 310: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 261

VI

Falo de ti às pedras das estradas,

E ao sol que é loiro como o teu olhar,

Falo ao rio, que desdobra a faiscar,

Vestidos de Princesas e de Fadas;

Falo às gaivotas de asas desdobradas,

Lembrando lenços brancos a acenar,

E aos mastros que apunhalam o luar

Na solidão das noites consteladas;

Digo os anseios, os sonhos, os desejos

Donde a tua alma, tonta de vitória

Levanta ao céu a torre dos meus beijos!

E os meus gritos de amor, cruzando o espaço,

Sobre os brocados fúlgidos da glória,

São astros que me tombam do regaço!

Page 311: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 262

VII

São mortos os que nunca acreditaram

Que esta vida é somente uma passagem,

Um atalho sombrio, uma paisagem

Onde os nossos sentidos se poisaram.

São mortos os que nunca alevantaram

Dentre escombros a Torre de Menagem

Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,

E os que não riram e os que não choraram.

Que Deus faça de mim, quando eu morrer,

Quando eu partir para o País da Luz,

A sombra calma dum entardecer,

Tombando, em doces pregas de mortalha,

Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,

Na solidão dum campo de batalha!

Page 312: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 263

VIII

Abrir os olhos, procurar a luz,

De coração erguido ao alto, em chama,

Que tudo neste mundo se reduz

A ver os astros cintilar na lama!

Amar o sol da glória e a voz da fama

Que em clamorosos gritos se traduz!

Com misericórdia, amar quem nos não ama,

E deixar que nos preguem numa cruz!

Sobre um sonho desfeito erguer a torre

Doutro sonho mais alto e, se esse morre,

Mais outro e outro ainda, toda a vida!

Que importa que nos vençam desenganos,

Se pudermos contar os nossos anos

Assim como degraus duma subida?

Page 313: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 264

IX

Perdi os meus fantásticos castelos

Como névoa distante que se esfuma...

Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:

Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos

Que se afundaram sobre um mar de bruma...

– Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –

Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,

A minha cota de aço, o meu corcel,

Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...

Sobre o meu coração pesam montanhas...

Olho assombrada as minhas mãos vazias...

Page 314: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 265

X

Eu queria mais altas as estrelas,

Mais largo o espaço, o sol mais criador,

Mais refulgente a lua, o mar maior,

Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas

Das almas, mais rosais a abrir em flor,

Mais montanhas, mais asas de condor,

Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida,

– Quanto mais funda e lúgubre a descida

Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,

Um dia adormecer, serenamente,

Como dorme no berço uma criança!

Outubro, I930.

Page 315: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 267

Reliquiae

(1931, póstuma)

Page 316: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 269

Évora

Ao amigo vindo da luminosa Itália,

a minha cidade, como eu soturna

e triste...

Évora! Ruas ermas sob os céus

Cor de violetas roxas... Ruas frades

Pedindo em triste penitência a Deus

Que nos perdoe as míseras vaidades!

Tenho corrido em vão tantas cidades!

E só aqui recordo os beijos teus,

E só aqui eu sinto que são meus

Os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora!... O teu olhar... o teu perfil...

Tua boca sinuosa, um mês de Abril

Que o coração no peito me alvoroça!

... Em cada viela o vulto dum fantasma...

E a minha alma soturna escuta e pasma...

E sente-se passar menina-e-moça...

Julho, I930.

Page 317: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 270

À Janela de Garcia de Rezende

Janela antiga sobre a rua plana...

Ilumina-a o luar com o seu clarão...

Dantes, a descansar de luta insana,

Fui, talvez, flor no poético balcão...

Dantes! Da minha glória altiva e ufana,

Talvez... Quem sabe?... Tonto de ilusão,

Meu rude coração de alentejana

Me palpitasse ao luar nesse balcão...

Mística dona, em outras Primaveras,

Em refulgentes horas de outras eras,

Vi passar o cortejo ao sol doirado...

Bandeiras! Pajens! O pendão real!

E na tua mão, vermelha, triunfal,

Minha divisa: um coração chagado!...

Page 318: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 271

O Meu Impossível

Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,

É um brasido enorme a crepitar!

Ânsia de procurar sem encontrar

A chama onde queimar uma incerteza!

Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa

É nada ser perfeito! É deslumbrar

A noite tormentosa até cegar

E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...

Aos meus irmãos na dor já disse tudo

E não me compreenderam!... Vão e mudo

Foi tudo o que entendi e o que pressinto...

Mas se eu pudesse, a mágoa que em mim chora.

Contar, não a chorava como agora,

Irmãos, não a sentia como a sinto!...

Page 319: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 272

Em Vão

Passo triste na vida e triste sou

Um pobre a quem jamais quiseram bem!

Um caminhante exausto que passou,

Que não diz onde vai nem donde vem.

Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém

A flor da minha boca desdenhou!

Solitário convento onde ninguém

A silenciosa cela procurou!

E eu quero bem a tudo, a toda a gente!...

Ando a amar assim, perdidamente,

A acalentar o mundo nos meus braços!

E tem passado, em vão, a mocidade

Sem que no meu caminho uma saudade

Abra em flores a sombra dos meus passos!

Page 320: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 273

Voz Que Se Cala

Amo as pedras, os astros e o luar

Que beija as ervas do atalho escuro,

Amo as águas de anil e o doce olhar

Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro,

E dos sapos, o brando tilintar

De cristais que se afagam devagar,

E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam

De corações que sentem e não falam,

Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!

Soluço imenso, eterno, que é a voz

Do nosso grande e mísero Destino!...

Page 321: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 274

Para Quê?

Ao velho amigo João

Para que ser o musgo do rochedo

Ou urze atormentada da montanha?

Se a arranca a ansiedade e o medo

E este enleio e esta angústia estranha

E todo este feitiço e este enredo

Do nosso próprio peito? E é tamanha

E tão profunda a gente que o segredo

Da vida como um grande mar nos banha?

Pra que ser asa quando a gente voa

De que serve ser cântico se entoa

Toda a canção de amor do Universo?

Para que ser altura e ansiedade,

Se se pode gritar uma Verdade

Ao mundo vão nas sílabas dum verso?

Page 322: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 275

Sonho Vago

Um sonho alado que nasceu num instante,

Erguido ao alto em horas de demência...

Gotas de água que tombam em cadência

Na minh’alma tristíssima, distante...

Onde está ele o Desejado? O Infante?

O que há de vir e amar-me em doida ardência?

O das horas de mágoa e penitência?

O Príncipe Encantado? O Eleito? O Amante?

E neste sonho eu já nem sei quem sou...

O brando marulhar dum longo beijo

Que não chegou a dar-se e que passou...

Um fogo-fátuo rútilo, talvez...

E eu ando a procurar-te e já te vejo!...

E tu já me encontraste e não me vês!...

Page 323: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 276

Primavera

É Primavera agora, meu Amor!

O campo despe a veste de estamenha;

Não há árvore nenhuma que não tenha

O coração aberto, todo em flor!

Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor

Da vida... não há bem que nos não venha

Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!

Não há bem que não possa ser melhor!

Também despi meu triste burel pardo,

E agora cheiro a rosmaninho e a nardo

E ando agora tonta, à tua espera...

Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...

Parecem um rosal! Vem desprendê-los!

Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...

Page 324: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 277

Blasfêmia

Silêncio, meu Amor, não digas nada!

Cai a noite nos longes donde vim...

Toda eu sou alma e amor, sou um jardim,

Um pátio alucinante de Granada!

Dos meus cílios, a sombra enluarada,

Quando os teus olhos descem sobre mim,

Traça trêmulas hastes de jasmim

Na palidez da face extasiada!

Sou no teu rosto a luz que o alumia,

Sou a expressão das tuas mãos de raça...

E os beijos que me dás já foram meus!

Em ti sou Glória, Altura e Poesia!

E vejo-me – milagre cheio de graça! –

Dentro de ti, em ti, igual a Deus!...

Page 325: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 278

O Teu Olhar

Passam no teu olhar nobres cortejos,

Frotas, pendões ao vento sobranceiros.

Lindos versos de antigos romanceiros,

Céus do Oriente, em brasa, como beijos,

Mares onde não cabem teus desejos;

Passam no teu olhar mundos inteiros,

Todo um povo de heróis e marinheiros,

Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!

Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,

Em centelhas de crença e de certeza!

E ao sentir-te tão grande, ao ver-te assim,

Amor, julgo trazer dentro de mim

Um pedaço da terra portuguesa!

Outubro, I930.

Page 326: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 279

Noite de Chuva

Chuva... Que gotas grossas!... Vem ouvir:

Uma... duas... mais outra que desceu...

É Viviana, é Melusina a rir,

São rosas brancas dum rosal do céu...

Os lilases deixaram-se dormir...

Nem um frêmito... a terra emudeceu...

Amor! Vem ver estrelas a cair:

Uma... duas... mais outra que desceu...

Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,

Que essa fala de amor seja um gemido,

Um murmúrio, um soluço, um ai desfeito...

Ah, deixa à noite o seu encanto triste!

E a mim... o teu amor que mal existe,

Chuva a cair na noite do meu peito!

Page 327: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 280

Tarde de Música

Só Schumann, meu Amor! Serenidade...

Não assustes os sonhos... Ah!, não varras

As quimeras... Amor, senão esbarras

Na minha vaga imaterialidade...

Liszt, agora, o brilhante; o piano arde...

Beijos alados... ecos de fanfarras...

Pétalas dos teus dedos feito garras...

Como cai em pó de oiro o ar da tarde!

Eu olhava para ti... "É lindo! Ideal!"

Gemeram nossas vozes confundidas.

– Havia rosas cor-de-rosa aos molhos –

Falavas de Liszt e eu... da musical

Harmonia das pálpebras descidas,

Do ritmo dos teus cílios sobre os olhos...

Page 328: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 281

Chopin

Não se acende hoje a luz... Todo o luar

Fique lá fora. Bem Aparecidas

As estrelas miudinhas, dando no ar

As voltas dum cordão de margaridas!

Entram falenas meio entontecidas...

Lusco-fusco... Um morcego, a palpitar,

Passa... torna a passar... torna a passar...

As coisas têm o ar de adormecidas...

Mansinho... Roça os dedos p’lo teclado,

No vago arfar que tudo alteia e doira,

Alma, Sacrário de Almas, meu Amado!

E, enquanto o piano a doce queixa exala,

Divina e triste, a grande sombra loira,

Vem para mim da escuridão da sala...

Page 329: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 282

O Meu Desejo

Vejo-te só a ti no azul dos céus,

Olhando a nuvem de oiro que flutua...

Ó minha perfeição que criou Deus

E que num dia lindo me fez sua!

Nos vultos que diviso pela rua,

Que cruzam os seus passos com os meus...

Minha boca tem fome só da tua!

Meus olhos têm sede só dos teus!

Sombra da tua sombra, doce e calma,

Sou a grande quimera da tua alma

E, sem viver, ando a viver contigo...

Deixa-me andar assim no teu caminho

Por toda a vida, Amor, devagarinho,

Até a morte me levar consigo...

Page 330: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 283

Escrava

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,

Eu te saúdo, olhar do meu olhar,

Fala da minha boca a palpitar,

Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,

Que a teus pés se incline a terra e o mar,

P’los séculos dos séculos sem par,

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,

E, de mãos postas, em sentida prece,

Canto teus olhos de oiro e de veludo.

Ah, esse verso imenso de ansiedade,

Esse verso de amor que te fizesse

Ser eterno por toda a Eternidade!...

Page 331: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 284

Divino Instante

Ser uma pobre morta inerte e fria,

Hierática, deitada sob a terra,

Sem saber se no mundo há paz ou guerra,

Sem ver nascer, sem ver morrer o dia,

Luz apagada ao alto e que alumia,

Boca fechada à fala que não erra,

Urna de bronze que a Verdade encerra,

Ah! ser Eu essa morta inerte e fria!

Ah, fixar o efêmero! Esse instante

Em que o teu beijo sôfrego de amante

Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro;

Ah, fixar o momento em que, dolente,

Tuas pálpebras descem, lentamente,

Sobre a vertigem dos teus olhos de oiro!

Page 332: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 285

Silêncio!...

No fadário que é meu, neste penar,

Noite alta, noite escura, noite morta,

Sou o vento que geme e quer entrar,

Sou o vento que vai bater-te à porta...

Vivo longe de ti, mas que me importa?

Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear

Em roda à tua casa, a procurar

Beber-te a voz, apaixonada, absorta!

Estou junto de ti e não me vês...

Quantas vezes no livro que tu lês

Meu olhar se poisou e se perdeu!

Trago-te como um filho nos meus braços!

E na tua casa... Escuta!... Uns leves passos...

Silêncio, meu Amor!... Abre! Sou eu!...

Page 333: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 286

O Maior Bem

Este querer-te bem sem me quereres,

Este sofrer por ti constantemente

Andar atrás de ti sem tu me veres

Faria piedade a toda a gente.

Mesmo a beijar-me a tua boca mente...

Quantos sangrentos beijos de mulheres

Poisa na minha a tua boca ardente,

E quanto engano nos seus vãos dizeres!...

Mas que me importa a mim que me não queiras.

Se esta pena, esta dor, estas canseiras,

Este mísero pungir, árduo e profundo

Do teu frio desamor, dos teus desdéns,

É, na vida, o mais alto dos meus bens?

É tudo quanto eu tenho neste mundo?

Page 334: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 287

Os Meus Versos

Rasga esses versos que eu te fiz, Amor!

Deita-os ao nada, ao pó ao esquecimento,

Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,

Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,

Que volte ao nada o nada dum momento.

Julguei-me grande pelo sentimento,

E pelo orgulho ainda sou maior!...

Tanto verso já disse o que eu sonhei!

Tantos penaram já o que eu penei!

Asas que passam, todo o mundo as sente...

Rasga os meus versos... Pobre endoidecida!

Como se um grande amor cá nesta vida

Não fosse o mesmo amor de toda a gente!...

Page 335: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 288

Amor Que Morre

O nosso amor morreu... Quem o diria!

Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,

Ceguinha de te ver, sem ver a conta

Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...

E outro clarão, ao longe, já desponta!

Um engano que morre... e logo aponta

A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver

São precisos amores, pra morrer

E são precisos sonhos pra partir.

Eu bem sei, meu Amor, que era preciso

Fazer do amor que parte o claro riso

Doutro amor impossível que há de vir!

Page 336: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 289

Sobre a Neve

Sobre mim, teu desdém, pesado jaz

Como um manto de neve... Quem dissera

Porque tombou em plena primavera

Toda essa neve que o Inverno traz!

Coroavas-me inda há pouco de lilás

E de rosas silvestres... quando eu era

Aquela que o Destino prometera

Aos teus rútilos sonhos de rapaz!

Dos beijos que me deste não te importas,

Asas paradas de andorinhas mortas...

Folhas de Outono em correria louca...

Mas inda um dia, em mim, ébrio de cor,

Há de nascer um roseiral em flor

Ao sol de Primavera doutra boca!

Page 337: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 290

Eu Não Sou de Ninguém...

.............................................................

.............................................................

.............................................................

.............................................................

Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser

Há de ser luz do sol em tardes quentes,

Nos olhos de água clara há de trazer

As fúlgidas pupilas das videntes!

Há de ser seiva no botão repleto

Voz no murmúrio do pequeno inseto,

Vento que enfuna as velas sobre os mastros!...

Há de ser Outro e Outro num momento!

Força viva, brutal, em movimento,

Astro arrastando catadupas de astros!

Page 338: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 291

Vão Orgulho

Neste mundo vaidoso o amor é nada,

É um orgulho a mais, outra vaidade,

A coroa de loiros desfolhada

Com que se espera a Imortalidade.

Ser Beatriz! Natércia! Irrealidade...

Mentira... Engano de alma desvairada...

Onde está desses braços a verdade,

Essa fogueira em cinzas apagadas?...

Mentira! Não te quis... não me quiseste...

Eflúvios sutis dum bem celeste?

Gestos... palavras sem nenhum condão...

Mentira! Não fui tua... não! Somente...

Quis ser mais do que sou, mais do que gente,

No alto orgulho de o ter sido em vão!...

Page 339: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 292

Último Sonho de "Sóror Saudade"

Àquele que se perdera no caminho...

Sóror Saudade abriu a sua cela...

E, num encanto que ninguém traduz,

Despiu o manto negro que era dela,

Seu vestido de noiva de Jesus.

E a noite escura, extasiada ao vê-la,

As brancas mãos no peito quase em cruz,

Teve um brilhar feérico de estrela

Que se esfolhasse em pétalas de luz!

Sóror Saudade olhou... Que olhar profundo

Que sonha e espera?... Ah! como é feio o mundo.

E os homens vãos! – Então, devagarinho,

Sóror Saudade entrou no seu convento...

E, até morrer, rezou, sem um lamento,

Por Um que se perdera no caminho!...

Page 340: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 293

Esquecimento

Esse de quem eu era e que era meu,

Que foi um sonho e foi realidade,

Que me vestiu a alma de saudade,

Para sempre de mim desapar’ceu.

Tudo em redor então escureceu,

E foi longínqua toda a claridade!

Ceguei... tateio sombras... Que ansiedade!

Apalpo cinzas porque tudo ardeu!

Descem em mim poentes de Novembro...

A sombra dos meus olhos, a escurecer...

Veste de roxo e negro os crisântemos...

E desse que era meu já me não lembro...

Ah, a doce agonia de esquecer

A lembrar doidamente o que esquecemos!...

Page 341: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 294

Roseira Brava

Há nos teus olhos de oiro um tal fulgor

E no teu riso tanta claridade,

Que o lembrar-me de ti é ter saudade

Duma roseira brava toda em flor.

Tuas mãos foram feitas para a dor,

Para os gestos de doçura e piedade;

E os teus beijos de sonho e de ansiedade

São como a alma a arder do próprio Amor!

Nasci envolta em trajes de mendiga;

E, ao dares-me o teu amor de maravilha,

Deste-me o manto de oiro de rainha!

Tua irmã... teu amor... e tua amiga...

E também – toda em flor – a tua filha,

Minha roseira brava que é só minha!...

Page 342: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 295

Pobrezinha

Nas nossas duas sinas tão contrárias

Um pelo outro somos ignorados:

Sou filha de regiões imaginárias,

Tu pisas mundos firmes já pisados.

Trago no olhar visões extraordinárias

De coisas que abracei de olhos fechados...

Em mim não trago nada, como os párias...

Só tenho os astros, como os deserdados...

E das tuas riquezas e de ti

Nada me deste e eu nada recebi,

Nem o beijo que passa e que consola.

E o meu corpo, minh'alma e coração

Tudo em risos poisei na tua mão!...

... Ah! como é bom um pobre dar esmola!...

Page 343: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 296

O Meu Soneto

Em atitudes e em ritmos fleugmáticos,

Erguendo as mãos em gestos recolhidos,

Todos os brocados fúlgidos, hieráticos,

Em ti andam bailando os meus sentidos...

E os meus olhos serenos, enigmáticos,

Meninos que na estrada andam perdidos,

Dolorosos, tristíssimos, extáticos,

São letras de poemas nunca lidos...

As magnólias abertas dos meus dedos

São mistérios, são filtros, são enredos

Que pecados d’amor trazem de rastos...

E a minha boca, a rútila manhã,

Na Via Láctea, lírica, pagã,

A rir desfolha as pétalas dos astros!...

Page 344: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 297

Navios-Fantasmas

O arabesco fantástico do fumo

Do meu cigarro traça o que disseste,

A azul, no ar; e o que me escreveste,

E tudo o que sonhaste e eu presumo.

Para a minha alma estática e sem rumo,

A lembrança de tudo o que me deste

Passa como o navio que perdeste,

No arabesco fantástico do fumo...

Lá vão! Lá vão! Sem velas e sem mastros,

Têm o brilho rutilante de astros,

Navios-fantasmas, perdem-se à distância!

Vão-me buscar, sem mastros e sem velas,

Noiva-menina, as doidas caravelas,

Ao ignoto País da minha infância...

Page 345: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 298

Nihil Novum

Na penumbra do pórtico encantado

De Bruges, noutras eras, já vivi;

Vi os templos do Egito com Loti;

Lancei flores, na Índia, ao rio sagrado.

No horizonte de bruma opalizado,

Frente ao Bósforo errei, pensando em ti!

O silêncio dos claustros conheci

Pelos poentes de nácar e brocado...

Mordi as rosas brancas de Ispaã

E o gosto a cinza em todas era igual!

Sempre a charneca bárbara e deserta,

Triste, a florir numa ansiedade vã!

Sempre da vida – o mesmo estranho mal,

E o coração – a mesma chaga aberta!

Page 346: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 299

Loucura

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada

Pavorosa! Não sei onde era dantes.

Meu solar, meus palácios meus mirantes!

Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...

Passa em tropel febril a cavalgada

Das paixões e loucuras triunfantes!

Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!

Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...

Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!

Loucura a esboçar-se, a enegrecer

Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!

Ó pavoroso e atroz mal de trazer

Tantas almas a rir dentro da minha!

Page 347: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 300

Deixai Entrar a Morte

Deixai entrar a Morte, a Iluminada,

A que vem para mim, pra me levar.

Abri todas as portas par em par

Com asas a bater em revoada.

Que sou eu neste mundo? A deserdada,

A que prendeu nas mãos todo o luar,

A vida inteira, o sonho, a terra, o mar

E que, ao abri-las, não encontrou nada!

Ó Mãe! Ó minha Mãe, pra que nasceste?

Entre agonias e em dores tamanhas

Pra que foi, dize lá, que me trouxeste

Dentro de ti?... Pra que eu tivesse sido

Somente o fruto amargo das entranhas

Dum lírio que em má hora foi nascido!...

Page 348: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 301

À Morte

Morte, minha Senhora Dona Morte,

Tão bom que deve ser o teu abraço!

Lânguido e doce como um doce laço

E como uma raiz, sereno e forte.

Não há mal que não sare ou não conforte

Tua mão que nos guia passo a passo,

Em ti, dentro de ti, no teu regaço

Não há triste destino nem má sorte.

Dona Morte dos dedos de veludo,

Fecha-me os olhos que já viram tudo!

Prende-me as asas que voaram tanto!

Vim da Moirama, sou filha de rei,

Má fada me encantou e aqui fiquei

À tua espera,... quebra-me o encanto!

Page 349: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 303

Esparsa Seleta

(1917-1930)

Page 350: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 305

Idílio29

Um idílio passou à minha rua

Ontem a horas mortas e caladas,

Ele e Ela passaram de mãos dadas,

Mais brancos do que a própria luz da lua.

Passaram ao clarão do amor primeiro,

Olhos nos olhos cheios de luar.

E no seio da noite aquele olhar

Par'cia encher de sol o mundo inteiro!

29 Os quatro sonetos que se seguem – "Idílio", "Idílio Rústico", "A Minha Morte" e "Meu Amor" – surgem, pela primeira vez, na edição já citada de Costa Leão, Poetas do Sul – Bernardo de Passos e Florbela Espanca. Inéditos até 1948, ano

dessa publicação, eles integravam uma antologia de dezessete peças, preparada por Florbela em 1917, com o título de Primeiros Versos, com o fito de, segundo Costa Leão, obter editor. Os restantes poemas dessa antologia, como já discuti

em Florbela Espanca, Trocando Olhares, pertenceriam a Livro de Mágoas e a Trocando Olhares. Deles, segundo cogito, o "Meu Amor" guarda traços da interlocução de Florbela com a poética de Américo Durão, sobretudo pela menção explícita de buscar "o ideal na dor" (que o último verso do segundo quarteto registra)

Page 351: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 306

E Deus mandou que a terra se calasse,

Que ouvisse os passos deles, que escutasse

Como o Amor caminha devagar...

Era a terra calada como um monge...

E os passos deles ao perder-se ao longe,

O coração da noite a palpitar!...

Page 352: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 307

Idílio Rústico

O Sol ia dormir pra além do monte

E antes de dormir 'stava a rezar...

Dois namorados riam junto à fonte,

Rezando as orações do seu sonhar!

Ela era a mais formosa rapariga

Ali e nas dez léguas ao redor;

Se me não acreditam, que ele o diga

Se não era a mais linda e a melhor.

Mas o Sol já dormia além do monte...

E a namorada linda junto à fonte

Corava dum pedido, envergonhada...

Mas eram horas, tinha de ir pra casa...

... E o beijo leve como um bater de asa

Soou na noite... Mas não digam nada!

Page 353: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 308

A Minha Morte

Eu quero, quando morrer, ser enterrada

Ao pé do Oceano ingênuo e manso,

Que reze à meia-noite em voz magoada

As orações finais em meu descanso...

Há de embalar-me o berço derradeiro

O mar amigo e bom para eu dormir!

Velei na vida o meu viver inteiro,

E nunca mais tive um sonho a que sorrir!

E tu hás de lá ir... bem sei que vais...

E eu do brando sono hei de acordar

Para os teus olhos ver uma vez mais!

E a Lua há de dizer-me em voz mansinha:

– Ai, não te assustes... dorme... foi o Mar

Que gemeu... mas não foi nada... 'stá quietinha...

Page 354: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 309

Meu Amor

De ti somente um nome sei, Amor,

É pouco, é muito pouco e é bastante

Para que esta paixão doida e constante

Dia após dia cresça com vigor!

Como de um sonho vago e sem fervor

Nasce assim uma paixão tão inquietante!

Meu doido coração triste e amante

Como tu buscas o ideal na dor!

Isto era só quimera, fantasia,

Mágoa de sonho que se esvai num dia,

Perfume leve dum rosal do céu...

Paixão ardente, louca isto é agora,

Vulcão que vai crescendo hora por hora...

O meu amor, que imenso amor o meu!

Page 355: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 310

A Uma Saudade30

Roxa saudade, roxa! Triste... Triste!...

Um doce olhar aveludado e puro

Fazes surgir do meu passado escuro,

Na mesma dor imensa em que surgiste!

És cinza dum amor que não existe!

Evocas na minh'alma o que murmuro

Sem saber o quê, o que procuro

Na minha vida amargamente triste!

30 Os quatro sonetos seguintes - "A Uma Saudade", "Crepúsculo",

"Desdenhando" e "O Meu Amor" – foram publicados por Armando Nobre

Gusmão, no citado artigo, pp. 241-243. Ele indica que tais peças, acrescidas de

outras tantas (na sua maioria, pertenças de Trocando Olhares), jaziam

ignoradas, "na sua maior parte, em números vários do jornal Noticias de Évora,

do ano de 1916". Todavia, embora registre nas outras peças as respectivas

referências bibliográficas, já no que concerne a estas não há qualquer anotação

de data ou de origem. Mas, como o título do seu texto refere-se a poesia

"juvenis" de Florbela, é de convir que, segundo ele, as em pauta sejam

anteriores a Livro de Mágoas (1919).

Page 356: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 311

Roxa saudade, és um soluço imenso!

O símbolo de tudo quanto penso!

Única luz de tudo quanto eu vejo!

Roxa saudade! Ó meu perfume leve

És um amor que se esqueceu tão breve,

Que nem durou o frêmito dum beijo...

Page 357: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 312

Crepúsculo

Horas crepusculares tão magoadas,

Correm de leve, preguiçosamente...

Cai a tardinha sonhadoramente...

Vamos os dois sozinhos, de mãos dadas!...

Sonham as flores das hastes debruçadas...

Fecho os olhos, cansada, languescente...

É todo oiro e púrpura o poente!

Que lindas são as sombras das estradas!...

São sorrisos teus olhos... Teu olhar

Anda abraçado ao meu, sem o beijar

Numa carícia imensa, ardente, louca!

Anda já o luar pelos caminhos...

Há brandas serenatas pelos ninhos...

– Tu fitas num anseio a minha boca!

Page 358: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 313

Desdenhando

Irrita-me esse olhar tão de desdém,

Esse teu ar de superioridade,

Altivo para mim, como de quem

Olha de longe o mundo e a vaidade.

Sei que me tens amor e, na verdade,

De que serve fingir, se quem o tem

Nunca pode escondê-lo de ninguém;

E toda a gente o tem na nossa idade!

"Amor" – linda palavra, tão suave!

É riso de criança, trilo d'ave,

Renda tecida à noite p'lo luar!

Eu digo-a tantas vezes com fervor,

Que nem sei como ela, meu Amor,

Te custe uma só vez a murmurar!...

Page 359: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 314

O Meu Amor

Trago dentro de mim, amortalhado,

Um amor de tragédia, extraordinário,

Amor que é uma cruz sobre um Calvário

Onde o meu peito jaz crucificado!

Amor que é um rosal, já desfolhado,

De pétalas dum branco funerário,

Amor que tem os gelos dum sudário,

E as chamas dum inferno não sonhado!

Amor que compreende mil amores,

Amor que tem em si todas as dores,

Amor que nem eu sei o que ele encerra...

Amor de sacrifício e de saudade,

Amor que é um poema de bondade,

Amor que é o maior amor da terra!

Page 360: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 315

O Que Alguém Disse31

"Refugia-te na Arte" diz-me Alguém

"Eleva-te num vôo espiritual,

Esquece o teu amor, ri do teu mal,

Olhando-te a ti própria com desdém.

Só é grande e perfeito o que nos vem

Do que em nós é Divino e imortal!

Cega de luz e tonta de ideal

Busca em ti a Verdade e em mais ninguém!"

No poente do irado como a chama

Estas palavras morrem... E n'Aquele

Que é triste, como eu, fico a pensar...

31 Este poema pertence ao manuscrito autógrafo depositado na Biblioteca

Nacional, intitulado Claustro das Quimeras, que contém trinta e cinco sonetos. Trata-se de um dos originais do Livro de "Sóror Saudade", e apenas este soneto, dentre todos, não veio à luz no livro em questão. Data o poema de antes de 1923, situando-se presumivelmente entre a estréia literária de Florbela e a segunda obra.

Page 361: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 316

O poente tem alma: sente e ama!

E, porque o sol é cor dos olhos d'Ele,

Eu fico olhando o sol, a soluçar...

Page 362: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 317

Mentira 32

Andava a procurar-te, ó doce Irmão!

E foi esta talvez a minha sina:

Ter pra te dar minh'alma, alma divina,

E encontrar-te... e tudo ser em vão...

Dementa-me, alucina-me a expressão,

A linha altiva, desdenhosa e fina,

Romântica, perversa e feminina

Dessa boca que é sonho e perfeição.

Mas nem um beijo quero, ó meu Amor!

Tu sabes lá amar seja quem for!...

Tu podes lá sentir amor, sequer!...

32 Os seis poemas que se seguem – "Mentira", "O Teu Livro", "Outono",

"Mãezinha", "Quem?..." e "Sem Palavras" – pertencem ao manuscrito autógrafo sem título, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa, que começa com o soneto "Livro do Nosso Amor", composto de trinta peças. Os restantes ingressaram no Livro de "Sóror Saudade": presumivelmente são anteriores a 1923 e posteriores a 1919.

Page 363: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 318

A minha boca em tua boca expira,

– Mas tudo é sonho, Amor! Tudo é mentira!

É mentira o que eu digo... Eu sou mulher!... –

Page 364: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 319

O Teu Livro

Li o teu livro, Amor, sofregamente;

Li-o, e nele em vão me procurei!

No teu livro d'amor não me encontrei,

Tendo lá encontrado toda a gente.

Um livro é a nossa alma, nunca mente!

Um livro somos nós, eu bem o sei...

E se em teus lindos versos não me achei

É que a tua alma nem sequer me sente!

As rosas do teu livro! As tuas rosas!

Rubros beijos de bocas mentirosas,

Desfolhaste-as por todas as mulheres!

Mas deixa, meu Amor, mesmo pisadas,

As tuas lindas rosas desfolhadas,

Eu apanho-as do chão, se tu quiseres...

Page 365: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 320

Outono

Outono vem em fulvas claridades...

Vamos os dois esp'rá-lo de mãos dadas:

Tu, desfolhando as rosas das estradas,

E eu, escutando o choro das saudades...

Outono vem em doces suavidades...

E a acender fogueiras apagadas

Andam almas no céu, ajoelhadas...

E a terra reza a prece das Trindades.

Choram no bosque os musgos e os fetos.

Vogam nos lagos pálidos e quietos,

Como gôndolas d'oiro, as borboletas.

Meu Amor! Meu Amor! Outono vem...

Beija os meus olhos roxos, beija-os bem!

Desfolha essas primeiras violetas!...

Page 366: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 321

Mãezinha

Andam em mim fantasmas, sombras, ais...

Coisas que eu sinto em mim, que eu sinto agora;

Névoas de dantes, dum longínquo outrora;

Castelos d'oiro em mundos irreais...

Gotas d'água tombando... Roseirais

A desfolhar-se em mim como quem chora...

– E um ano vale um dia ou uma hora,

Se tu me vais fugindo mais e mais!...

Ó meu Amor, meu seio é como um berço!

Ondula brandamente... brandamente...

Num ritmo escultural d'onda ou de verso!

No mundo quem te vê?! Ele é enorme!...

Amor, sou tua mãe! Vá... docemente

Poisa a cabeça... fecha os olhos... dorme...

Page 367: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 322

Quem?...

Não sei quem és. Já te não vejo bem...

E oiço-me dizer (ai, tanta vez!...)

Sonho que um outro sonho me desfez?

Fantasma de que amor? Sombra de quem?

Nevoa? Quimera. Fumo? Donde vem?...

– Não sei se tu, Amor, assim me vês!...

Nossos olhos não são nossos, talvez...

Assim, tu não és tu! Não és ninguém!...

És tudo e não és nada... És a desgraça...

És quem nem sequer vejo; és um que passa...

És sorriso de Deus que não mereço...

És Aquele que vive e que morreu...

És Aquele que é quase um outro Eu...

És Aquele que nem sequer conheço...

Page 368: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 323

Sem Palavras

Brancas, suaves, doces mãos de irmã

Que são mais doces do que as das rainhas,

Hão de poisar em tuas mãos, as minhas

Numa carícia transcendente e vã.

E a tua boca a divinal manhã

Que diz as frases com que me acarinhas,

Há de poisar nas dolorosas linhas

Da minha boca purpurina e sã...

Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;

Só eles te dirão que tu existes

Dentro de mim num riso d'alvorada!

E nunca se amará ninguém melhor:

Tu calando de mim o teu amor,

Sem que eu nunca do meu te diga nada!...

Page 369: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 324

[Trazes-Me Em Tuas Mãos de Vitorioso]

Trazes-me em tuas mãos de vitorioso33

Todos os bens que a vida me negou,

E todo um roseiral, a abrir, glorioso,

Que a solitária estrada perfumou.

Neste meio-dia límpido, radioso,

Sinto o teu coração que Deus talhou

Num pedaço de bronze luminoso,

Como um berço onde a vida me poisou.

O silêncio, em redor, é uma asa quieta...

E a tua boca que sorri e anseia,

Lembra um cálix de túlipa entreaberta...

Cheira a ervas amargas, cheira a sândalo...

E o meu corpo ondulante de sereia

Dorme em teus braços másculos de vândalo...

33 Dito de 1930, o autógrafo deste soneto sem título pertence aos herdeiros de Ângelo Cesar.

Page 370: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 325

Liberta!34

Eu ponho-me a sonhar transmigrações

Impossíveis, longínquas, milagrosas,

Vôos amplos, céus distantes, migrações

Longe... noutras esferas luminosas!

E pelo meu olhar passam visões:

Ilhas de bruma e nácar, d'oiro e rosas...

E eu penso que, liberta de grilhões,

Hei de aportar às Ilhas misteriosas!

....................................................

....................................................

....................................................

34 Os autógrafos dos três sonetos seguintes ("Liberta!", "À Tua Porta Há Um Pinheiro Manso" e "Há Nos Teus Olhos de Dominador" – os dois últimos sem

título) pertencem ao Grupo Amigos de Vila Viçosa e foram-lhe doados por Mário Lage, derradeiro marido de Florbela. Os dois últimos ostentam a data de "Outubro de 1930", mas este inicial tem a metade da folha suprimida, razão por que se desconhecem sua data e seus tercetos. Guido Battelli o publicou em Juvenilia.

Page 371: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 326

[A Tua Porta Há Um Pinheiro Manso]

A tua porta há um pinheiro manso

De cabeça pendida, a meditar,

Amor! Sou eu, talvez, a contemplar

Os doces sete palmos do descanso.

Sou eu que para ti agito e lanço,

Como um grito, meus ramos pelo ar,

Sou eu que estendo os braços a chamar

Meu sonho que se esvai e não alcanço.

Eu que do sol filtro os ruivos brilhos

Sobre as loiras cabeças dos teus filhos

Quando o meio-dia tomba sobre a serra...

E, à noite, a sua voz dolente e vaga

É o soluço da minha alma em chaga:

Raiz morta de sede sob a terra!

Page 372: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 327

[Há Nos Teus Olhos de Dominador]

Há nos teus olhos de dominador,

No teu perfil altivo de romano,

No teu riso de graça e de esplendor

Um misterioso ideal divino e humano.

Cruz de Cristo sangrando sobre o pano

Das velas altas, lá vai, sobre o fragor

Dum mar sereno, cristalino e plano,

A tua barca de conquistador!

Eu quero ir contigo a esses distantes

Reinos! Deixa-me erguer as brancas velas,

Ser um dos teus audazes navegantes!

Meus olhos cegos são dois poços fundos...

– Conta-me o céu! Ensina-me as estrelas!

Mostra-me a estrada dos teus Novos Mundos!

Page 373: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 329

Índice

Florbela: um caso feminino e poético, V

I. O Affaire Florbela Espanca, IX

II. A Obra de Florbela Espanca, XXVII

Pequena Biografia de Florbela Espanca, XLV

Bibliografia de Florbela Espanca, LVII

Critérios Desta Edição, LIX

Trocando Olhares (1915-1917), I

Dedicatória, 3

As Quadras Dele (I), 4

Cantigas Leva-as o Vento... , I0

Num Postal, 11

Sonhos..., 12

No Minho, 13

A Doida, 14

Poetas, 16

Desafio, 17

O Teu Olhar, 19

Page 374: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 330

Crisântemos, 21

Que Diferença!..., 22

Os Teus Olhos, 23

Doce Milagre, 24

Folhas de Rosa, 26

Dantes..., 28

As Quadras dele (II), 31

Junquilhos..., 36

O Fado, 37

Verdades Cruéis, 38

[Li Um Dia, Não Sei Onde], 39

As Quadras Dele (III), 40

Carta Para Longe, 44

Triste Passeio, 46

Mentiras, 48

Cemitérios, 49

A Mulher - I, 52

A Mulher - II, 53

No Hospital, 54

Os Meus Versos, 55

As Quadras Dele (IV), 56

Aos Olhos Dele, 59

Súplica (I), 60

[Embalada Num Sonho Aurifulgente], 61

Mistério D'amor, 62

Escreve-me..., 63

O Meu Alentejo, 64

A Voz de Deus, 65

Paisagem, 66

Filhos, 67

Às Mães de Portugal, 69

Doce Certeza, 71

O Teu Segredo, 72

Sonho Morto, 73

Page 375: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 331

Súplica (II), 74

Sonhando..., 76

Noites da Minha Terra, 77

Vozes do Mar, 78

Cravos Vermelhos, 79

Saudade, 80

Visões da Febre, 81

Oração, 82

À Guerra!, 83

Meu Portugal, 84

Desejo, 86

Anseios, 87

O Espectro, 88

Confissão, 89

Poder da Graça, 90

Aonde?..., 91

Quem Sabe?!..., 92

Nunca Mais!, 93

Triste Destino!, 94

Humildade, 95

Oração de Joelhos, 96

Aos Olhos d'Ele, 97

Desdém, 98

Rústica, 100

?!..., 102

Súplica (III), 103

A Anto!, 104

Escuta, I05

Talvez, I06

Sol Posto, I07

Estrela Cadente, I08

Versos, I09

Duas Quadras, 110

Balada, 111

Page 376: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 332

"Noite Trágica", 112

Sonhos, 113

Vulcões, 114

Errante, 115

Só, 116

Sonetos, 117

(I) Desalento, 118

(II) A Um Livro, 119

(III) Maior Tortura, 120

(IV) Cegueira Bendita, 121

(V) Noivado Estranho, 122

Livro de Mágoas (1919), 123

Este Livro..., 131

Vaidade, 132

Eu..., 133

Castelã da Tristeza, 134

Tortura, 135

Lágrimas Ocultas, 136

Torre de Névoa, 137

A Minha Dor, 138

Dizeres Íntimos, 139

As Minhas Ilusões, 140

Neurastenia, 141

Pequenina, 142

A Maior Tortura, 143

A Flor do Sonho, 144

Noite de Saudade, 145

Angústia, 146

Amiga, 147

Desejos Vãos, 148

Pior Velhice, 149

Page 377: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 333

A Um Livro, 150

Alma Perdida, 151

De Joelhos, 152

Languidez, 153

Para quê?!, 154

Ao Vento, 155

Tédio, 156

A Minha Tragédia, 157

Sem Remédio, 158

Mais Triste, 159

Velhinha, 160

Em Busca do Amor, 161

Impossível, 162

Livro de "Sóror Saudade" (1923), 163

"Sóror Saudade", 167

O Nosso Livro, 169

O Que Tu És..., 170

Fanatismo, 171

Alentejano, 172

Fumo, 173

ue Importa?...., 174

O Meu Orgulho, 175

Os Versos Que Te Fiz, 176

Frieza, 177

O Meu Mal, 178

A Noite Desce..., 179

Caravelas..., 180

Inconstância, 181

O Nosso Mundo, 182

Prince Charmant..., 183

Anoitecer, 184

Q

Page 378: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 334

Esfinge, 185

Tarde Demais..., 186

Cinzento, 187

Noturno, 188

Maria das Quimeras, 189

Saudades, 190

Ruínas, 191

Crepúsculo, 192

Ódio?, 193

Renúncia, 194

A Vida, 195

Horas Rubras, 196

Suavidade..., 197

Princesa Desalento, 198

Sombra, 199

Hora Que Passa, 200

Da Minha Janela, 201

Sol Poente, 202

Exaltação, 203

Charneca em Flor (1931, póstuma), 205

Charneca Em Flor, 209

Versos de Orgulho, 210

Rústica, 211

Realidade, 212

Conto de Fadas, 213

A Um Moribundo, 214

Eu, 215

Passeio ao Campo, 216

Tarde no Mar, 217

Se Tu Viesses Ver-me..., 218

Mistério, 219

Page 379: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 335

O Meu Condão, 220

As Minhas Mãos, 221

Noitinha, 222

Lembrança, 223

A Nossa Casa, 224

Mendiga, 225

Supremo Enleio, 226

Toledo, 227

Outonal, 228

Ser Poeta, 229

Alvorecer, 230

Mocidade, 231

Amar!, 232

Nostalgia, 233

Ambiciosa, 234

Crucificada, 235

Espera..., 236

Interrogação, 237

Volúpia, 238

Filtro, 239

Mais Alto, 240

Nervos D'oiro, 241

A Voz da Tília, 242

Não Ser, 243

?, 244

In Memoriam, 245

Árvores do Alentejo, 246

Quem Sabe?..., 247

A Minha Piedade, 248

Sou Eu!, 249

Panteismo, 250

Pobre de Cristo, 251

A Uma Rapariga, 252

Minha Culpa, 253

Page 380: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 336

Teus olhos, 254

He Hum Não Querer Mais Que Bem Querer, 255

I, 256

II, 257

III, 258

IV, 259

V, 260

VI, 261

VII, 262

VIII, 263

IX, 264

X, 265

Reliquiae (1931, póstuma), 267

Évora, 269

A Janela de Garcia de Rezende, 270

O Meu Impossível, 271

Em Vão, 272

Voz Que Se Cala, 273

Para Quê?, 274

Sonho Vago, 275

Primavera, 276

Blasfêmia, 277

O Teu Olhar, 278

Noite de Chuva, 279

Tarde de Música, 280

Chopin, 281

O Meu Desejo, 282

Escrava, 283

Divino Instante, 284

Silêncio!..., 285

O Maior Bem, 286

Page 381: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 337

Os Meus Versos, 287

Amor Que Morre, 288

Sobre a Neve, 289

Eu Não Sou de Ninguém..., 290

Vão orgulho, 291

Último sonho de "Sóror Saudade", 292

Esquecimento, 293

Roseira Brava, 294

Pobrezinha, 295

O Meu Soneto, 296

Navios-Fantasmas, 297

Nihil Novum, 298

Loucura, 299

Deixai Entrar a Morte, 300

A Morte, 301

Esparsa Seleta (1917-1930), 303

Idílio, 305

Idílio Rústico, 307

A minha Morte, 308

Meu Amor, 309

A Uma Saudade, 310

Crepúsculo, 312

Desdenhando, 313

O Meu Amor, 314

O Que Alguém Disse, 315

Mentira, 317

O Teu Livro, 319

Outono, 320

Mãezinha, 321

Quem?..., 322

Sem Palavras, 323

Page 382: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 338

[Trazes-me Em Tuas Mãos de Vitorioso], 324

Liberta!, 325

[À Tua Porta Há Um Pinheiro Manso], 326

[Há Nos Teus Olhos de Dominador], 327

Impressão:

Gráfica Palas Alhena

Page 383: FLORBELA ESPANCA - LIVRO DE SÓROR SAUDADE · Charneca em Flor. Agora, em dezembro de 1930, morta a poetisa e encontrando-se o livro no prelo, Battelli, certamente perplexo e condoído

Florbela Espanca Poemas 339