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F F F F Prosa Editora Literária Prosa, .º 5 Força do Exemplo Força do Exemplo Força do Exemplo Força do Exemplo (PARTE II) Maria Galito 2001

Fo Força do Exemplo mplo · dia é o coração de um país que faz parte da União Europeia e enxerga longe, pois muito ... Todos correm qual os perseguisse uma manada de elefantes

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Prosa

Editora Literária

Prosa, �.º 5

Força do ExemploForça do ExemploForça do ExemploForça do Exemplo (PARTE II)

Maria Galito

2001

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Maria Galito 39 Força do Exemplo, 2001

III

Fecha-se a porta do autocarro que arranca a caminho de Atenas. Estou um tanto ansiosa. Mas que posso esperar? A capital grega aninha-se numa pequena península triangular, chamada Ática. Hoje em

dia é o coração de um país que faz parte da União Europeia e enxerga longe, pois muito embora algumas dificuldades, procura ultrapassá-las com renovada energia. Para além do que a sua Atenas será sempre Atenas, o berço da civilização europeia; o seu carácter simbólico persiste, porque somos instruídos desde tenra idade em muitos dos seus princípios milenares; e nem sempre nos apercebemos.

Um pouco de História, portanto, é indispensável. Para recordar. Vejamos. Atenas atingiu o seu expoente máximo no período clássico – que talvez

possamos compreender entre os séculos V e IV a. C – no qual era a mais importante das Cidades-Estado gregas.

Uma Cidade-Estado considerava-se fruto de um percurso histórico humano-civilizacional – como quem evolui da ignorância para a sabedoria, depois de ponderadas as vantagens de uma vida em comunidade. De facto, uma polis não era um país mas também não se limitava ao conceito estrito de cidade.

Uma Cidade-Estado envolvia uma zona mais ou menos ampla que incluía as vilas e aldeias em redor; onde vivia uma população que, em caso de guerra, podia abrigar-se dentro da polis; um sistema de defesa considerável, que dispunha de uma fortaleza e de um renque de muralhas, para além de guerreiros experientes na arte da guerra.

Atenas também tinha um sistema de defesa mas a sua grandiosidade e poder militar, no Egeu, só parecia rivalizar com Esparta. E os seus sucessos são quase lendários. Quem não ouviu falar de Péricles, o mais famoso dos chefes de Estado de Atenas, reeleito estratega catorze anos seguidos, do ano de 443-429 a. C? Ou das batalhas de Maratona (em 490 a. C) ou Salamina, dez anos depois? Célebre é a vitória de Samotrácia, uma estátua alada já sem cabeça, que o Museu do Louvre costuma pôr em evidência.

Mas Atenas era muito mais do que um poder militar; florescia através de uma intensa actividade comercial, e sabia investir no âmbito da Política, das Ciências Naturais, da História, da Filosofia, da Literatura e das Artes.

Atenas também viveu uma evolução política. Depois de acabar com as suas monarquias, abraçou oligarquias, com políticos como Drácon e Sólon; tiranias, como a de Pisístrato; ou projectos democráticos, com homens de Estado como Clístenes e depois Péricles. Aliás, aos atenienses devemos a descoberta da Democracia.

Durante o período democrático, Atenas atribuía todos os poderes aos seus cidadãos. Mas a definição excluía os estrangeiros (os metecos) e os escravos; e também as mulheres, o que não me deixa nada contente!

A Assembleia Popular e o Senado constituíam o corpo legislativo do Estado e, se nos primeiros tempos, havia principalmente um Areópago, um tribunal composto por todos os antigos arcontes, as suas funções judiciárias passaram depois para os chamados tribunais do Povo. Tanto os arcontes (em número de nove, que podiam rever leis ou assumir obrigações religiosas, consoante a sua função), como os estrategos (que eram dez e eram comandantes supremos das forças que combatiam em terra ou no mar), eram eleitos anualmente.

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Ou seja, Atenas respirava uma organização e uma hierarquia definidas, capazes de assombrar as sociedades suas contemporâneas.

A política cultural de Péricles estendeu-se a todas as manifestações do pensamento e do engenho humanos. Mesmo nas artes, os nomes perduram. Fídias e Praxíteles (na escultura), Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (na Tragédia) ou Aristófanes (na Comédia).

Ou Sócrates, Platão e Aristóteles, na Política e na Filosofia. Eles acreditavam que, para alcançar a Sabedoria, teria de existir uma participação activa dos cidadãos na Cidade, em prol da virtude e da educação da alma – quer esta fosse imortal como apregoava Platão, ou mortal como pensava Aristóteles. Servindo a cidade conquistava-se a felicidade. O objectivo era manter a cidade e o indivíduo intimamente ligados, contribuindo para o bem comum e, portanto, para a vida boa de todos os cidadãos. Para o que também contribuía conhecerem-se a si próprios, distanciando-se da Opinião, visando a Verdade Absoluta – universal, harmoniosa e justa.

- Pelo que o dinheiro corrompia o espírito? – Comenta o meu pai, antes de gozar – Pois, pois. A cidade era dirigida pelos ricos proprietários que, como tinham escravos para executar as suas tarefas, se podiam dedicar ao ócio de não fazer nenhum. E de criticar a riqueza (que não lhes faltava).

- Oh, pai! – Contesto – Dedicavam-se à filosofia. – Retribui-me uma esclarecedora expressão facial. Insisto, contando com os dedos – E à história, à matemática, à arquitectura, à escultura.

Resolve prosseguir o seu raciocínio: - Diga-se o que se disser, e há que chamar as coisas pelos nomes!, a cidade era bélica,

esclavagista e misógina. Elogiava-se a virtude humana mas vivia-se a inveja, a discriminação e a intolerância, que nada têm a ver com as apregoadas Felicidade, Temperança e Justiça. E quanto à Coragem, podia talvez resumir-se a rivalidades crónicas, pelo que as guerras eram mais que muitas.

Cruzo os braços, engolindo em seco. E volto-me para a janela. Atenas surge a pouco e pouco dum cerrado nevoeiro de escapes de carros e motas. Vê-

se rasgada por publicidade agressiva, colada ou mal arrancada das paredes. A manhã parece ter perdido o sol e as suas ruas fazem-me recordar o Pireu.

A guia mandou-nos sair do autocarro, quase no meio de uma rua a fervilhar de carros. Levo as minhas pernas para local mais seguro, antes de seguir a pastora do nosso rebanho.

Nas bilheteiras, os meus pais são obrigados a pagar para poder entrar com máquina de filmar e de fotografar, como se a Acrópole não fosse ao ar livre. Porque na Grécia paga-se por tudo e por nada.

E lá vai a guia! Subo por um caminho de pedra, atropelada por centenas de turistas que sobem e descem pelo mesmo caminho. Mal dá para ver que, à direita, se aninha o Ódeão de Herodes Atticus onde cantou Maria Callas. Não há tempo, pelos vistos. Não se espera pelos turistas que realmente têm curiosidade pela paisagem. Todos correm qual os perseguisse uma manada de elefantes esbaforidos! Tanto que chego à Acrópole cansada, revoltada e absolutamente irritada! Nesse estado de espírito, sento-me.

Portanto, subi a Acrópole mas não encontrei a felicidade. Aliás, estou mais infeliz do que nunca.

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Enterrada nas pedras seculares da Acrópole, num dos degraus do canto oeste, onde se ergue a monumental entrada do recinto sagrado, coloco a cabeça sobre as mãos de um braço que se aninha no joelho. E respiro fundo.

A nossa guia masca descaradamente a mesma pastilha elástica com que começou a viagem. A que lhe rebola na boca ou se aloja lateralmente, entre os dentes.

Atrás de mim, um conjunto de colunas às quais se chegam a partir de uma subida em ziguezague, e um rio de japoneses que escutam uma guia turística aparentemente mais conscienciosa.

Rodo o olhar para uma entrada em pedra, enorme, colossal, gigantesca. Não percebo. Nas aulas de História ouvia-se que, ao contrário da tradição egípcia, os gregos construíam templos em função das pessoas e não dos deuses. Mas se assim é, porque me parece esta estrutura tão grande?

A colina da frente até tem uns arbustos que lhe negam a total aridez, mas no morro da Acrópole quase não se avista verde. Não sei que dizer. Sinto-me como uma gota de água numa pedreira. Acho que estou em estado de choque.

O nosso pai foi o primeiro a sentar-se e parece – não!, está – entediado de morte. Desde

que chegou que não pára de bocejar. Joana também se senta, cansada das pernas: - Está tanto calor... – suspira, passando a mão suavemente pela testa – Devíamos ter

vindo na Primavera. Já a nossa mãe está absolutamente fascinada com as linhas da Acrópole: - Já repararam bem para a graciosidade das paredes, para a delicadeza das colunas,

para cada pormenor? – Pergunta a arquitecta, de olhinhos brilhantes. – Estudar no papel ou no computador é muito diferente de estar aqui, a observar a realidade. Verdadeiramente impressionante...

Joana apressa-se a concordar: - De facto, nunca pensei, mas isto é muito bonito. Leonor foi a única que ouviu a guia até ao fim: - Sabiam que ouviremos um espectáculo de luzes e som, a partir daquela colina? –

Informa, espetando o braço, qual imperador romano, na direcção pretendida. - És sempre tão discreta... – ironizo. Nem comenta, insistindo em explicar de olhos esbugalhados: - Há lá um anfiteatro. O jogo de luzes será feito a partir daqui, da acrópole. �ão é

extraordinário? Passo a mão pela cara, alongando a pele em todos os sentidos. - Posso saber porque estás tão contente? - E o teu desânimo deve-se a quê, posso saber? É a minha vez de não lhe fazer caso. Levanto-me para reunir a comitiva: - A guia já subiu. Vamos ver o Pártenon. Desta vez acompanho o nosso pai, que se levantou e sobe as escadas até ao Propilon.

Passamos a fazer parte de uma serpente policolor e multicultural, que vai desde sabe-se lá onde até sabe-se lá... meu Deus!, vai até lá a baixo. Será que todos os turistas se concentraram à mesma hora no mesmo sítio?

O pai aconselha-me a parar. Saímos da fila, para estacionar à sombra – e assim escapar ao tórrido sol de Agosto. A vista é privilegiada, sobre um dos templos mais carismáticos de sempre.

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- Com que então aquele é que é o Pártenon de Atenas... – murmura o nosso pai. Deve ser a primeira vez que demonstra algum tipo de entusiasmo em toda a viagem.

São corredores e corredores de colunas que parecem correr para frente, ultrapassando as barreiras da velocidade para, de repente, estancarem como um leão que, com a juba eriçada, perscruta de pé, assente nas patas.

Entre os segundos que desfilam, uma sucessão de imagens desfilam à minha frente, de cores muito fortes e vivas, qual adornadas por tochas acesas na escuridão da noite. Tão reais que um homem parece cair ao chão depois de uma corrida extenuante; para dizer uma palavra, uma só palavra pela qual justificou perder a vida. E ali, uma multidão de fiéis que se reúnem em torno de um velho filósofo que caminha descalço; e além, entre as colunas esguias, a colossal estátua de Atena, a patrona da cidade.

Abro e fecho os olhos. Agora, o mesmo Pártenon, mas nele vibra a energia dos pedreiros e artesãos cujas mãos o erguem do pó, encavalitados nas pedras para talhar a mármore, ou com pincéis regados de tinta vermelha e azul. A azáfama é imensa, mal havendo tempo para descansos, e as formas na pedra renascem a luta de Peleu contra os Centauros, a Guerra de Tróia, as batalhas de Atenienses contra as Amazonas, e dos Deuses Olímpicos contra os Gigantes.

Não me lembro, mas hoje, ao acordar, devo ter batido com a cabeça nalgum sítio.

A mãe preocupa-se em ler o panfleto que lhe rebola nas mãos. Trouxe-o das bilheteiras, eu e a Leonor temos um igual.

Segundo consta da prosa, o Parténon terá sido primeiro construído no século VI a.C., mas só se tornou no sol de Atenas a partir de 448 a.C., aquando da sua inauguração no Festival Panatinaico, que se deu próximo da 85ª Olimpíada da era antiga. Conta a tradição que os seus arquitectos foram Iktinos e Kallikrates, embora a supervisão tenha ficado a cargo de Fídias – também ele responsável pela estátua da deusa Atena, trabalhada a ouro e pedras preciosas, que figurava no interior do edifício.

- Ao todo, terá setenta metros de comprimento por trinta e um metros de largura, ao longo do qual se mantêm séries e séries de colunas dóricas, mas o conjunto resulta numa agradável afirmação de simplicidade e harmonia. – Respira, deslumbrada com o que vê. – E pensar que o fizeram há tantos séculos, quando não havia praticamente nada para os auxiliar no trabalho.

Leonor parece concordar, decidindo contribuir, com a sua larga experiência na matéria: - Sabia que vinha ver ruínas. Mas o Pártenon, mesmo destruído, tem algo de imaterial

que nos prende; que nos obriga a encará-lo, a observá-lo com redobrada atenção. Ao que aponta um outro templo, fervilhante de entusiasmo. Reviro os olhos, perdendo a paciência: - Tem colunas irónicas? – Atiro-lhe, ao desafio. - Iónicas. Foi o que eu disse. – Insiste, colocando-me o panfleto à frente do nariz.

Como se eu não soubesse. Viro-me para ela, decidida a pôr uns pontos nos is: - És demasiado materialista para te pores com invenções, Leonor. – Resumo. Mas ela

reclama contra o que considera uma afronta ignominiosa. Abano a cabeça, retirando da bolsa a garrafa da água – Tu tens é sede.

Acompanhamos o grupo pelo circuito previamente estipulado pela guia. Leonor ainda não desistiu:

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- Em Creta tínhamos a Mãe Terra, a senhora da fertilidade, dos segredos femininos, a deusa suprema da religião antiga. Agora temos Atena, a deusa da inteligência, da determinação, da força e da virtude. Ouviste o que a guia disse? – Alguém ouviu? – Em Creta elaboravam-se pequeninas estátuas em terracota mas em Atenas a deusa era imensa, com doze metros de altura repletos de ouro e marfim. – E sorrindo – Tal era o respeito!

A senhora de Coimbra, que segue ao lado da filha e da nossa mãe, caminho junto a nós. A que nos surpreende ao comentar:

- As mulheres eram muito discriminadas na Grécia Clássica. Nenhuma de nós teria sido feliz acaso tivesse nascido na época de Péricles ou de Aristóteles.

Fazemos uma cara incrédula. A filha, cujo nome não recordo, vem em sua defesa: - A minha mãe é professora de História e de Geografia. E acreditem-me, já ouvi o

suficiente sobre os gregos para concordar com ela. A professora desprende as duas mãos que conservava juntas, tencionando prosseguir

com o seu raciocínio: - Os atenienses dos séculos V, IV, III a. C. confinavam as mulheres em Gineceus,

locais reservados dentro das próprias casas. Eles argumentavam que as suas mães, mulheres e filhas, eram seres inferiores; que, ou não sabiam pensar e decidir, ou deveriam limitar-se a ter filhos. A mulher não seguia para a guerra e não participava na vida activa da cidade, logo, não tinha direito ao estatuto de cidadã. A mãe de família tinha quase tão poucos direitos como uma escrava. Toda a mulher devia casar e quanto mais cedo melhor, embora o casamento, mais que um compromisso político, pudesse chegar a ser uma farsa. Isto acontecia na maior parte dos casos, não em todos obviamente.

- Mas isso é horrível! – Exclamamos quase em uníssono, à primeira oportunidade, numa pausa menos curta do seu discurso. A filha da professora dá mostras de irritação, soprando os cabelos. A mãe humedece

os lábios, talvez tentado encontrar algo de diferente para o seu discurso. Prossegue dizendo: - Sócrates e Platão, embora mais favoráveis ao papel das mulheres em sociedade,

teorizaram a propósito de uma cidade ideal, em que homens e mulheres da classe superior deveriam eliminar o casamento, como qualquer outro tipo de vínculo ou propriedade, para que os filhos passassem a ser de todos e não de um par específico. Quando a criança fosse excedentária ou portasse algum tipo de deficiência, seria morta; quando saudável, entregue ao Estado, o responsável máximo pela sua educação. As mulheres, tendo perdido o papel de mãe e esposa, já teriam tempo para instruir-se e desempenhar iguais funções à dos homens na cidade.

Ao que a filha decide acrescentar, cruzando os braços: - A teoria de Platão terá sido inspirada na real cidade de Esparta. A mãe lá se obriga a concordar: - Pois, quer dizer... mas... – até que, depois de tantas hesitações, explica – É preciso

ver que as mulheres espartanas eram conhecidas pela sua valentia. Desde pequenas que tinham uma preparação física semelhante à dos homens, para poderem dar à pátria filhos fortes e saudáveis. Mas quem ia para a guerra eram os homens. Sendo a guerra constante, eram elas quem, a maior parte do tempo, dirigiam os terrenos e a cidade. O casamento existia mas era um conceito diferente do nosso. Homens e

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mulheres mal se viam, partilhando o leito em sítios mal iluminados e durante pouco tempo. Chegava a haver partilha. Às vezes acontecia que um grupo de irmãos, ao invés de ter cada qual uma mulher, tinham todos a mesma. As mulheres espartanas eram igualmente famosas pela sua ferocidade. Tirteu, um ateniense ao serviço de Esparta, escreveu a dada altura: «Ao ver o filho, que fugia do combate a toda a pressa e entrava em casa sem escudo, uma espartana correu ao seu encontro, enterrou-lhe a lança no coração e pronunciou, ante o seu cadáver, estas palavras viris: «raça estranha a Esparta, vai para o Inferno, já que renegaste a tua pátria e a tua mãe», pois na própria véspera do combate lhe declarara «Volta com o teu escudo ou sobre o teu escudo».

- Para a sociedade espartana, a cobardia, de quem quer que fosse, era a maior das humilhações. – Remata a filha, que agora já me lembro chamar-se Cláudia.

- Nem sei o que é pior, se Esparta se Atenas! – Exclamo, atordoada. A professora de História prossegue: - Os lacedemónios ou espartanos eram, de facto, muito difíceis; duros, austeros,

fechados sobre si próprios; julgavam-se a elite das elites e obedeciam cegamente a um conjunto de leis ou regras atribuídas a Licurgo, o homem que havia reformado Esparta por alturas do IX a.C. – e puxando pelo nariz, como se assim recordasse melhor as palavras – Por exemplo, lembro-me de uma vez ter lido qualquer coisa como: «(...) são necessárias poucas leis àqueles que falam pouco». E, ao que parece, não gostavam de estar sempre a criar leis se as de Licurgo eram consideradas suficientes. E falavam dramaticamente pouco.

Entramos na fila para o museu. O nosso pai, conversa numa das poucas sombras do recinto com pessoas que fizeram connosco o cruzeiro, mas não vieram no nosso autocarro. Não parece interessar-se por ver mais estátuas.

Viro-me para a professora, tentando indagar a sua opinião sobre: - A Guerra de Tróia de que falava Homero. Era uma sociedade mais minóica, mais

ateniense ou mais espartana? – Mas temo a resposta axiomática. A nossa mãe resolve atalhar, em minha defesa: - Tenha paciência. A minha filha encantou-se com as lendas de Tróia. Depois do que

a Eduarda acabou de explicar, a pergunta para ela faz todo o sentido. A professora – que agora sei chamar-se Maria Eduarda – sorri, evitando ser tão

peremptória quanto antes. Não que eu lho tenha pedido. Eu só quero saber a verdade. - Entre o apogeu minóico e o governo de Péricles em Atenas, houve dois grandes

períodos: o micénico e o arcaico. A Guerra de Tróia pertence ao primeiro, Homero ao segundo. Vários séculos os separam. – Ao que, qual estivesse perante um júri capaz de sentenciar a sua resposta, evita pronunciar-se com certezas – Posso apenas especular. Enfim, os micénicos foram grandes imitadores dos minóicos, pelo menos do ponto de vista cultural. Mas daí a concluir a propósito da sociedade da época, é menos linear. Até porque ninguém sabe ao certo quando se deu a referida guerra ou se o poeta, no seu produto final, não misturou lendas de várias guerras ou catástrofes naturais das várias Tróias. Muito do que se conta é ambivalente e contém elementos de diferentes épocas, por isso... – a hesitação soa a falso, ao acrescentar sem contemplações – Eu não aprecio especialmente a Ilíada ou a Odisseia. Homero passa o tempo a glorificar os heróis que combatem junto às muralhas de Príamo e um conjunto de peripécias pelas quais Odisseu passou antes de regressar a casa (na

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ilha de Ítaca). – Mas deve ter visto a minha cara, pelo que se devotou a um sorriso mais diplomata – Também é possível que não seja isenta nesta matéria. – E virando-se para mim, pisca o olho – Gostarias de ter vivido nos tempos de Tróia?

Respondo-lhe com sinceridade: - Agradeço todos os dias ter vindo ao mundo quando e onde nasci. Meia hora depois de aguentar em pé na fila para entrar no museu entramos finalmente.

A nossa mãe fixa-se na estátua de Procne, embora a Leonor se mostre incapaz de entender porquê, pois os séculos mutilaram-lhe metade da cabeça, além das sérias deformações nos braços e pernas.

- Que olhar desolado... – diz a nossa mãe, observando a peça cuidadosamente. A maioria concorda. Até o casal de advogados parece petrificado, por mais que a fila de

pessoas nos empurre para a frente. - O autor é Alcamedes, discípulo do próprio Fídias. – Leio, ocultando a história da

personagem retractada no mármore. Caminho no sentido da outra sala do museu. Leonor segue-me, pegando no panfleto

para melhor acompanhar as obras que vai observando. O museu recolhe um conjunto exemplar de obras de grandes artistas gregos da

antiguidade. Nele respira a História, numa das mais elegantes demonstrações do realismo humano. A Grécia adorava o corpo, insistindo em aperfeiçoar a forma de o moldar na pedra. E um dos mais brilhantes exemplos é o relevo na mármore que representa Nike, a deusa da vitória, a calçar uma sandália. Uma verdadeira preciosidade.

- Quem foi o autor desta maravilha? – Interroga a nossa mãe, fascinada. - Aqui não diz. – Queixa-se a Leonor, revirando o panfleto. - Era certamente um grande escultor. – Reforça a advogada, sorrindo. - É a peça mais bonita. – Opina Joana. Solenemente. Também gosto. Mas talvez me desperte mais a curiosidade este simpático trabalho de

570 a.C., chamado Moschophoros, representando um homem a carregar um bezerro em cima dos ombros. O destino do doce animal é o sacrifício mas o duo tem uma cara tão harmoniosa, e os olhos do jovem parecem tão puros, que mais parecem ir os dois dar um inocente passeio pelos campos.

Ou este meio corpo da Kore de Chios, do final do século VI a.C. Tal como a estátua de Moschophoros espelha leveza; é uma cara alegre, descomplexada. E o penteado é um rendilhado extraordinário, que lhe cai em múltiplas tranças.

Num dos bustos masculinos de 500 a.C., as várias tonalidades de castanho da barba transmitem grande realismo através de uma imagem serena.

E reconheço valor à pensativa Atena, com a sua cabeça apoiada no cabo da lança, uma mão na anca e um pé completamente no chão. Que problemas a preocuparão?

Ao descer à cidade, a guia leva-nos numa visita aos locais mais significativos da Atenas moderna. Ali está o Estádio Panatinaicos na Avenida do imperador Constantino, onde em 1896 se realizaram os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna. Depois, sempre dentro do autocarro, passamos pela mansão do actual Primeiro-ministro; onde não é o governante nem a casa que despertam a atenção, mas os guardas; ou melhor, aqueles dois homens que empunham uma arma enquanto vestem colete preto bordado à mão, uma saia muito curta, branca e de folhos, acompanhada de sapatos pretos com pompons.

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- Vão dançar ballet hoje à noite? – É a pergunta maldosa da Leonor. Bato-lhe com a mão no braço: - Não digas isso. É o fato tradicional deles. Seguem-se as praças Syntagmatou (Praça da Constituição, centro político da cidade) e a

Omónia (Praça da Concórdia) onde foram edificados três belos edifícios do século XIX à luz do estilo clássico ateniense da era de Péricles. Sei que um deles é a Universidade e o outro a Biblioteca Nacional.

Mas é no coração da Praça da Constituição que brilha um verdadeiro tratado! A estátua do corredor. Uma junção de peças horizontais, que parecem esvoaçantes; como se uma pessoa, ao correr desalmadamente depressa, se desintegrasse de peito aberto, ultrapassando as barreiras do corpo, da força de vontade, da luz, do pensamento. Encanta pelo arrojo; por ser totalmente diferente. Encantada, peço aos meus pais para lá passarmos esta tarde, depois de almoço. O pedido é aceite.

Ao que tem início a ronda pelos hotéis da cidade. A guia consulta a lista e chama os nossos nomes, à medida que vamos chegando ao destino; relembrando que logo, à hora de jantar, voltaremos a sair todos juntos

Somos deixados no hotel e o almoço é tomado num pequeno restaurante ali perto. A visita particular à cidade tem início por volta das duas da tarde. Ao contrário do que

seria de esperar o calor é perfeitamente suportável. As ruas transversais estão desertas mas não é Domingo. Há muito lixo pelos cantos. As

paredes decompõem os cartazes publicitários e a maior parte das lojas estão fechadas. Não sei porquê.

Leonor recebe uma mensagem escrita no telemóvel, vindo logo ter comigo: - É o Rámon. Está com as irmãs e o pai numa esplanada na Praça Syntagmatou. Não

era onde tu querias ir? Vamos lá ter. Vamos? – Insiste, agarrando-se a mim. Resultado, sem contar aos nossos pais que quer voltar a ver Rámon, convence-os a

seguir em frente, rumo à dita praça da Constituição, por eu ter manifestado interesse em observar melhor a estátua que me entusiasmara esta manhã. Enfim, nada que me surpreenda.

Encontramos Rámon pouco depois, muito bem sentado com a família na esplanada de uma pequena mas bonita pastelaria. Saudamo-los. Eles fazem uma grande festa por nos ver.

Enquanto os meus pais e as minhas irmãs arranjam cadeiras, afasto-me um pouco para apreciar a estátua que ilumina toda a praça. Enorme! Altíssima. Apesar de mais uma estátua do que uma pessoa, agora que estou perto – ao contrário da ilusão que dava, enquanto caminhávamos pela avenida – permaneço fascinada. Pelo movimento que incute. Qual lufada de ar fresco.

O empregado de mesa já serve as bebidas entretanto foram pedidas. Sento-me, perguntando pela carta de gelados. As duas catalãs estão de dieta, tal como a Leonor, mas a Joana mandou vir um gelado que propõe dividir comigo. Aceito. Hoje em dia, não pode comer nada para não engordar. Meio mundo anda com a mania das dietas! E meio mundo a comer em excesso.

Mas é quando Rámon diz à Leonor que não precisa preocupar-se com dietas, por já ser a mais bela entre as mulheres, que resolvo gracejar:

- Vives para cá dos Pirenéus, mas tens parla pie de francês. – E virando-me para a mana – Não te deixes levar, Leonor, que ele diz isso a todas. – E antes que Rámon tenha tempo de falar, acrescento, minando-lhe a resposta. – Claro que a beleza

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depende dos olhos que a vêem. E ele parece estar a ser muito sincero. – Pisco o olho à Leonor.

Rámon deixa-se rir. Vozes conhecidas irrompem à retaguarda. Volto a cabeça. É aquele senhor inglês com

quem o nosso pai se deu tão bem durante a viagem a Rodes. Se a memória não me falha, estava com a mulher na Acrópole esta manhã. Chamava-se... como é que era mesmo? Bom, Dr. Finley e é médico – acaba de se apresentar aos nossos amigos catalães. Senta-se a meu lado, com a mulher. São os dois muito ruivos.

Vou a levar um pedaço de gelado à boca, quando o nosso pai se lembra de me aconselhar a praticar o meu inglês. Empalideço. O problema até nem é falar inglês, mas o que deverei dizer ao senhor, santo Deus?

E ele parece ter tanta vontade de falar comigo, como nada. Engulo em seco. E deixo-me estar, sossegada, expectante. Perante a minha hesitação, Dr. Finley acaba por ser ele próprio a fazer as perguntas da

praxe: como me chamo, o que quero ser quando for grande, se tenho gostado da viagem à Grécia. Pondero antes de responder.

- I’m Sancha1. – Começo por dizer. Mas o olhar foge-me para a mesa; para os copos, para as taças de gelado, para os

guardanapos. Enrolo as mãos. Até que me decido. Erguendo a cabeça pergunto, moderada mas incisivamente, a sua opinião sobre o que de mais importante me lembrava ter lido no jornal, antes de visitarmos Santorini.

Ao fazê-lo, embasbaco o Dr. Finley. O meu pai pisca-me o olho. - Sancha, my darling, you surprise me2. – Confessa, pronunciando Saxa, que é mais

russo. – I didn’t know these subjects interested young girls like you3. Finjo-me desentendida, mantendo o sorriso nos lábios: - Young girls? What do you mean?4 – e pedindo a boa pronúncia do meu nome – And

please, I’m not Saxa but Sancha. Means holly in Latin and it’s the name of both a Portuguese saint and a Portuguese heroine5.

Desperto um sorriso maroto ao meu pai – pois eu soube dizer tudo com elegância mas firmeza de carácter. O próprio Dr. Finley não se aborrece:

- Has character, your daughter6. – Comenta, ainda mais surpreendido. - Yes, I’m very pride of her7. – Sorri o pai, em resposta. As palavras que me disse em Santorini, fazem agora todo o sentido. Dr. Finley não se dispõe a cortar a harmonia familiar. Pelo contrário, resolve colaborar: - Well, than… let’s talk some more8. - Thank you. I must practice my English9. – Agradeço, também com um sorriso –

Maybe I can teach Dr. Finley some words in Portuguese, in return?10

1 «Chamo-me Sancha.» 2 «Sancha, minha querida, surpreendes-me.» 3 «Não sabia que estes assuntos interessavam a jovenzinhas como tu». 4 «A jovenzinhas? Como assim? 5 «E por favor, não sou Saxa mas Sancha. Significa sagrada em Latim e é o nome de uma santa portuguesa e de uma heroína portuguesa.» 6 «Tem carácter, a sua filha.» 7 «Sim, tenho muito orgulho nela.» 8 «Bom, então… vamos falar um pouco mais.» 9 «Obrigada, preciso praticar o meu inglês.»

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Maria Galito 48 Força do Exemplo, 2001

Solta uma gargalhada – o que não é de todo comum ver ingleses fazer. E colocando a mão no braço do meu pai:

- You know, old chap, you have a little devil here11. Regressamos os cinco ao hotel. Num largo, com uma estátua no meio, um mar de pombos debica bagos do chão. A

nossa mãe adora pássaros. Aproxima-se para que pousem nos seus ombros. Um pombo menos atrapalhado aproveita inclusivamente para aterrar na sua cabeça. Aproveito para fotografar o momento.

Joana quase os espanta todos, quando vai ter com a mãe. Desolada, começa a andar atrás deles com um rebuçado, a única coisa doce que encontrou no bolso.

- Eles não comem isso. – Diz-lhe a Leonor, sem que a outra faça caso. Num momento de relaxamento, a nossa mãe resolve fazer-se à fotografia, andando um

pouco mais depressa entre os pombos que levantam voo, esboçando o seu belo sorriso, quando o nosso pai a recebe nos braços com um beijo na testa.

Não teve nada de piegas, foi simplesmente bonito. E poderei recordá-lo, de hoje em diante, sempre que quiser.

Depois de umas tantas ruas, um ruído preenche-nos os ouvidos. Atrás de nós formam-se magotes de gente; pessoal irado e revoltado, com punhos cerrados no ar, ostentando cartazes vermelhos e brancos com gordas letras gregas, numa manifestação de discórdia contra o governo. Desfilam, curiosamente, pela Omónia acima.

A nossa mãe preocupa-se: - Vamos embora, meninas, não queremos problemas. Os trabalhadores ocupam rapidamente a praça, levantando bem alto palavras de ordem.

Gritam as suas razões, demonstram textualmente o seu desagravo contra o governo. Muitos são os braços esticados no ar e magotes de gente parecem não parar de chegar, de marchar, abraçados uns aos outros.

O corpo policial surge de um canto e carros da polícia começam a aparecer de tudo quanto é lado, enquanto os nossos pais nos levam rapidamente para o hotel. Subimos pelo elevador, combinando encontrar-nos daqui a hora e meia, pois o autocarro virá buscar-nos. E ainda temos de tomar banho.

Enquanto elas combinam com a mãe, atravesso o nosso quarto, abro a porta e avanço para a varanda, espreitando os movimentos na rua lá em baixo.

Leonor veio atrás de mim: - Achas que vai haver violência? – Pergunta, de olhos em riste. Lá em baixo, cada qual clama para seu lado. O coro de vozes é poderoso, a revolta

angustiada. Do outro lado, os polícias constroem um muro para travar o avanço dos enfurecidos. Chegam reforços de ambos os lados. Lá vêm carros apinhados de defesas. Os que atacam surgem a pé.

- Eles não estão organizados. – Declaro, apercebendo-me da debilidade do ataque que conquista em barulho mas peca em estratégia. – Não sei quem tem razão, mas os trabalhadores não demorarão a voltar para casa. E não haverá feridos. Vais ver.

Bem dito bem feito. Em dez minutos a praça fica deserta.

10 «Talvez eu possa, em troca, ensinar-lhe umas palavras em português.» 11 «Sabe, velho amigo, tem aqui um pequeno diabo.»

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Maria Galito 49 Força do Exemplo, 2001

O serão reserva-nos dois espectáculos; um deles inclui jantar num restaurante típico.

Primeiro que tudo, somos levados a uma das colinas de Atenas, justo em frente da Acrópole, onde o grupo de portugueses é encaminhado para uns quantos lugares no imenso anfiteatro. Sim, que ali cabem centenas de pessoas!

Não encontro folhetos em português. Sou obrigada a escolher uma das quatro línguas disponíveis. Só não escolho o grego, por querer mesmo perceber o espectáculo. Mas queixo-me imediatamente à guia.

Sento-me e aguardo. Em meia hora, o recinto enche. E o som bombardeia-nos com uma orquestra revoltada.

Os gregos têm mesmo a mania das tragédias! A Acrópole ilumina-se de bege, enquanto o som se transforma numa suave melodia. O

diálogo – monolinguístico (em inglês) – tem início logo depois. Reporta-se aos tempos mais antigos de Atenas; apresenta, sucessivamente, lendas de heróis, deuses ou meros mortais a quem coube um lugar na História; destaca a deusa Atena, a anfitriã do espectáculo, cujas palavras confortam e alertam, à medida que descreve os eventos.

As cores na Acrópole vão mudando, chamando a atenção para o período em que foi construída pela primeira vez. Surgem os Persas e, no clímax da peça, a destruição dos templos pelo inimigo, amaldiçoando-os às chamas. Emancipam-se intensas luzes escarlates e douradas, dando-nos a ilusão de um grande incêndio a propagar-se ao ritmo de uma música avassaladora. Os Persas apoderam-se de Atenas. Ecoam os gritos da batalha de Maratona e os passos do corajoso herói que corre mais que as pernas. Sobe as escadas da colina. Leva certamente os braços no ar e um riso de esgotamento e felicidade, caindo morto ao chão, não sem antes exclamar: vitória! E nasce a Era de Péricles, com a reconstrução da Acrópole, aclamando os deuses com os mais belos templos da Antiguidade.

A deusa Atena conclui:

Para os tempos vindouros eu serei Atena que supero as Erinyes, as sempre vivas forças da obscuridade. Devo velar pela ordem, a lei e a claridade. Para os séculos futuros serei pensamento, amor e razão que protegerá contra o orgulho e o fanatismo. Elevando os seus olhos a mim, os filósofos descobrirão o fundo do pensamento, os arquitectos sonharão com a magnificência dos palácios...

Venham a mim os ávidos da Verdade, à consagrada rocha de onde o grande coração e a virtude e a infinita beleza se uniram para dar nascimento à consciência do homem.

Mas tinha sido tudo em inglês. Pelo que houve quem não tenha percebido patavina. E quem não percebe, tem de ocupar o tempo. Os espanhóis passaram-no a reclamar. Eu vi portugueses ferrados a dormir.

O autocarro deixa-nos depois numa zona muito típica, a que chamam Plaka; uma espécie de Bairro Alto em Lisboa. Aqui abundam lojas tradicionais, bares e esplanadas; e algumas discotecas, pelo que ouvi dizer. E é, decididamente, um ambiente bem mais ao gosto do nosso pai que adora música e uma boa conversa:

- Atenas, afinal, tem mais que ruínas. – Anima-se, esticando os pelos do bigode. Até as ruas estão limpas – ou parecem, escondendo o menos dignificante nos becos

escondidos aos olhos dos turistas.

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Maria Galito 50 Força do Exemplo, 2001

Aproveitando os minutos, as manas e a nossa mãe entram nas lojas, na ânsia de encontrar recordações turísticas para elas e para os nossos familiares.

O que poderei levar aos primos. O que deverá ser? Leonor anda de roda do porta-chaves. - Não será uma prenda um pouco sem graça? – Pergunto, olhando em volta à procura

de algo supostamente mais interessante. Mas não tardo a vir cá para fora, com um princípio de dor de cabeça. As compras

cansam-me! Ou talvez precise dormir mais horas. A ideia era descansar, mas as férias tem sido uma correria louca, a deitar tarde, a cedo erguer... hoje caio na cama, e durmo ferrada!

Ainda não há sinais da nossa mãe mas elas aproximam-se com sacos de compras. A Joana sorri, apressando-se a mostrar o que a irmã lhe ofereceu: um porta-chaves com um mapa da Grécia, azul e dourado, num dos lados, e, do outro, a deusa Hera?

- Porque é que ofereceste isto à Joana? – Pergunto desconfiada. - Não és tu que estás sempre a falar na lenda de Tróia? E a lenda não começou com o

julgamento de Páris? Pois então, as deusas eram três, como nós: Hera, Afrodite e Atena? – E sorrindo – Pois então, dei a Hera à Joana. Comprei para mim a Afrodite, porque sou naturalmente a mais bela! E dou-te a Atena a ti. – Diz, entregando-me um pacotinho fechado, vermelho e com um laçarote branco.

Recebo a oferta em mãos, como não poderia deixar de ser. Retiro a fita-cola. Deixo descer o pequeno objecto para a palma da minha mão. Respiro fundo.

- Obrigada. Penso eu. – Digo-lhe, passando a mão pelos cabelos – A deusa da guerra… – declaro, enfim. Mas é tempo de confrontar a Leonor, para tentar perceber o que ela me quis transmitir através desta prenda. – Achas-me assim tão mandona e impossível de aturar, mana?

Ela reage. Mas não como eu estava à espera. Poderei pensá-la genuinamente surpreendida? - Não. �ão. Eu disse aquilo no outro dia porque... estava aborrecida. – E apontando o

porta-chaves – Atena é a deusa da sabedoria. – Quer deixar bem claro. Ao que espreita-me – E tu és muito inteligente. Mais do que eu... – suspira, mexendo o braço – O pai ficou todo contente quando disseste aquelas coisas hoje à tarde. Coisas que eu não sei.

Agarro-a pelos ombros, com os olhos bem fixos no seu rosto. Já estou mil vezes arrependida de ter falado no que quer que fosse. - Espera, há aqui um equívoco. Eu sabia porque li o jornal. – E veemente – Leonor, és

tão capaz quanto eu. – Insisto, pegando-lhe na mão – Somos irmãs, não devemos competir uma com a outra. – Ela esconde a emoção, mordendo o lábio.

Mas há algo mais: - Desculpa. – Pede, sem me olhar. - Pelo quê? Não fizeste nada de mal. Arrepende-se de ter passado a viagem a brigar comigo. Envolvo-lhe os ombros com o braço, para lhe transmitir a necessária sensação de

segurança, de amparo, de confiança: - És minha irmã. – Como quem resume, numa só palavra, tudo quanto poderia

responder. Mas enfim, ainda acrescento mais qualquer coisa. – Desculpo-te como desculpas as minhas casmurrices. – E fazendo uma careta divertida – Espero... – Ela ri-se. Envolvo a Joana no mesmo abraço, com um sorriso de gozo. – Como irmãs,

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Maria Galito 51 Força do Exemplo, 2001

estamos fadadas a aturar-nos. Não há safa possível! – Elas brincam com o rosto, cada qual com o seu sorriso especial. Sou uma irmã orgulhosa, sei que sim. São a minha companhia desde pequena, sem elas sentir-me-ia sozinha. – O melhor será nós continuarmos a dar-nos bem. – Proponho. Joana faz ar desconfiando para os lados da Leonor, mas a outra finge-se desentendida. Corrijo-me. – Se começarmos a dar-nos bem? – Elas riem a bom rir. O ar aliviou-se, portanto. Respiro fundo. Desprendo-me, simulando cara séria. – Vá, já chega de pieguices! Vamos andando para o restaurante. – E porque mais uma piada não é excessiva – E não julgues que me enganas, Leonor. Eu sei que essa história toda foi porque querias ser tu a Afrodite. – Elas riem-se, puxando-me em direcção ao restaurante.

E vamos entrando. O ambiente é fumoso, um misto de taberna e teatro antigo, pois tem

uma estrutura envolvente, muito típica. As mesas arrumam-se à direita, em anfiteatro. Avançamos por aquele espaço a abarrotar de gente. Fala-se alto, bastante alto. Ninguém

se entende sob o tilintar dos talheres nos pratos, as gargalhadas e um palco cheio de vozes. Entretém-nos um quarteto com dois senhores e duas senhoras. Sendo que, um deles, o

barítono, se move qual pêndulo de relógio. O tenor, com cara de líder do grupo, possui certo charme; pena que cantarole pior que a encomenda – e cantar talvez fosse o objectivo! A seu lado, a senhora de cabelos escuros e lisos, possui uma espessa franja de cabelo na testa que lhe tapa os olhos. Sim, é a soprano quem salva a honra do convento.

Sentamo-nos. A senhora de Coimbra e a filha fazem-nos companhia. Servem-nos sem demora. Dão-nos azeitonas, pão de mistura e três patês, cada qual de

sua cor. Olho à minha volta, perscrutando o ambiente. Quando vou a ver já me foi servida a sopa, uma espécie de caldo-verde português; só que é mais líquido, além de servido frio. Depois vêm as espetadas de carne de porco, algo picantes.

O quarteto, entretanto, termina o seu repertório; ao que se despede, perante uma certa indiferença do auditório. Em seu lugar, entram três raparigas e quatro rapazes. Elas trajam fatos multicolores com lenço na cabeça, tamancos, meias rendadas e saia folhada a meia canela. Eles de calças, com os braços enrolados ao colega do lado, mexendo e remexendo as pernas. Passamos então a perceber porque subiram ao palco mais rapazes que raparigas. A elas pouco mais compete que agitar o lenço. São eles quem saltam e pulam que nem corças, atirando com as pernas para todo o tipo de cambalhotas no ar.

Um deles é particularmente atlético e sorridente. Mas a Joana insiste em dizer o louro – o segundo a contar de lá – mais giro. Divertidas, deixamo-nos ficar na galhofa.

Mas vem o intervalo, após o qual eles, e só eles, regressam com as tais saias brancas e os sapatos com pompons que havíamos visto nos guardas nacionais. E como saltam!

- Estão a chamar o pessoal para dançar com eles. – Ri-se Leonor, enquanto a Joana se afunda na mesa para passar despercebida.

No entanto, como se sentou logo à frente, um deles, o mais alto, vem buscá-la. Leonor aproveita a deixa para seguir a irmã, sem se importar com o facto de não ter sido – enfim, tecnicamente – convidada. Dá o braço ao rapaz e pronto, avança para o palco, que agora está cheio de raparigas da assistência. Joana fica ao lado de quem a foi buscar, que lhe ensina a alçar a perna; mas a Leonor contorna o grupo, não aceitando o lugar que lhe conferem, decidida a ficar onde quer; isto é, junto do rapaz atlético e sorridente. E desata a dançar, sem jeito nenhum para aquilo, claro, mas com um sorriso imenso estampado na cara. Joana ainda me faz um sinal. Deixo-me rir.

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Maria Galito 52 Força do Exemplo, 2001

IV

Vamos a caminho de Micenas. Deixámos o hotel pelas nove horas de uma manhã amena. Percebeu-se logo que o autocarro não viria cheio. Os casais mais novos devem ter preferido ocupar os dois dias que faltam a fazer compras na capital ou a dar um saltinho às pequenas ilhas, junto ao Pireu, cujas praias costumam atrair turistas. Mas as caras mais conhecidas mantêm-se, sempre ensonadas antes do raiar do sol. Um sol de Agosto que não demora a espreitar, entre abetos, oliveiras e vinhas.

Melhor ainda, a fria mascadora de pastilha elástica foi substituída; neste caso, por uma rapariga mais jovem e morena, de cabelo negro e curtinho, magra e não muito alta, que, desde o princípio da viagem, saudou o grupo de portugueses com um sorriso aberto:

- Chamo-me Andrómaca. Como a mulher de Heitor, o príncipe troiano que morreu às garras de Aquiles. – Gesticulando em conformidade

Houve quem risse por ela o merecer. Quem sorrisse por perceber ao que se referia. Mas a maioria achou piada porque achou que era para ter.

Descemos agora pela estrada marginal à água muito azul do Egeu, trocando a Ática pela

Argólida, no Peloponeso; onde visitaremos ou, pelo menos, avistaremos as suas cidades de Corinto, Epidauro, Argos e Tirinte, bastiões de uma região imbuída em lendas. Ou não fosse Tirinte, a pátria do pai de Héracles e onde este recebeu de Euristeu – rei de Tirinte, Mídea e Micenas – a lista dos famosos doze trabalhos para redenção dos seus crimes. Mas é Micenas que dá o nome a toda uma época de auge, glória e orgulho ferido; onde Euristeu deu lugar a Atreu, pai do homem cujo jogo de influências, garra e carisma lideraria os aqueus à conquista de Tróia: o robusto Agamémnon.

Complicado? A mitologia grega é uma imensa árvore genealógica que deve ser entendida como tal – corresponda ou não a algum tipo de verdade histórica – a bem de uma lógica com sentido. E de uma fiel compreensão dos seus valores dominantes.

Mas como é extensa e intricada, dificilmente uma pessoa abarca todas as suas ramificações. A não ser que seja uma enciclopédia ambulante.

- O mar é mesmo azul. – Comenta a mãe, no banco da frente. A vista embriaga. A Grécia é maravilhosa junto ao mar. Brinda-nos com enseadas,

encostas esculpidas, areais e pequenos rochedos no mar prateado. Mas não nos tranquiliza. Há algo no ar que sibila; algo incorpóreo, arrastado por um vento calmo mas intolerante.

Sinto-me observada, sem melhor o saber explicar. Como se a suavidade do dia e a bonança na estrada, fosse uma máscara de ouro – fria, impenetrável, superficial – enquanto o sol ascende no horizonte. E os ciprestes, que ameaçam rasgar o céu com a sua sombra, são gotas de água numa manhã de chuva.

- Parece que entrámos num cemitério! – Murmura-me a Joana ao ouvido, como se me tivesse lido o pensamento.

A Leonor, encavalitada nas cadeiras da frente, de joelhos enfiados no assento e braços enrolados à almofada superior – razão porque arranjou maneira de ouvir o comentário da irmã – faz uma observação semelhante:

- Ver tanto cipreste, deprime-me. Se calhar é isso. Não estou habituada a vê-los em tão grandes quantidades, espalhados

por tudo quanto é sítio; no meio das vilas ou no ninho dos vales, altos e melancólicos,

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agitados pela fina bruma numa valsa que se despede da aurora; almas penadas dos guerreiros cuja morte ainda não foi vingada ou respeitada.

Quem morre pela honra, não dorme na vergonha; espera que lhe seja feita justiça. Abram alas. Vem aí a Era dos Guerreiros.

Enquanto o mar nos acompanha, a estrada oferece-nos uma conversa entre a Prof.

Maria Eduarda e o casal Montenegro – ambos médicos de profissão e, ao que parece, grandes entendidos em Mitologia Clássica.

O Dr. Fernando e a Dra. Luísa Montenegro, curiosamente, são sui géneris: - Preferimos, de longe, as lendas gregas. São mais sumarentas. – Comenta a senhora. - As romanas são muito… – o Dr. Montenegro coloca o indicador para baixo, ao jeito

de imperador no Coliseu. - Héracles ou Hércules? Odisseu ou Ulisses? Por favor, mas ele há lá dúvida. Porque

há diferenças significativas na abordagem intrínseca ao tema. – Acrescenta Luísa Montenegro, de olhos esbugalhados e mãos abertas.

Arqueio as sobrancelhas, confusa. Mas do que é que ela está para ali a falar? - Concordo, minha querida. – Reafirma o marido, coçando a sua careca. Ou melhor, a sua parca cabeleira, porque ainda lhe conto dois cabelos e meio na testa

que muito ele gosta de alisar; e uma coroa em meia-lua, que lhe cobre levemente as orelhas, enquanto lhe dá a volta à cabeça. Quantos anos terá? Parecerá mais velho do que é, ou será mais novo do que parece?

Luísa Montenegro, médica pediátrica e uma entusiasta de Religiões das Antigas Civilizações Europeias, ainda não parou de falar:

- Isto a propósito do que estávamos a conversar há pouco. – Recorda à Prof. Maria Eduarda.

- Mas eles estão a falar do quê? – Sussurra-me a Leonor ao ouvido. Encolho os ombros. - Aqui a Sancha também gosta muito de Mitologia, não é? – Observa a Prof. Maria

Eduarda. Esboço um sorriso amarelo. Pelos vistos divertido, que a Cláudia está a olhar para mim

com cara de riso. - Ah sim? – Interessa-se o Dr. Montenegro – Que lendas conheces? Não sei bem responder, pelo que começo a contar pelos dedos: - A Lenda de Tróia. A lenda de Minos e do Minotauro. A lenda da Atlântida. Faço uma pequena pausa antes de recomeçar, mas suficientemente longa para pensarem

que terminei a minha lista. - Muito bem. Estou impressionada. – Comenta a médica. Muito certamente como se

dirige aos seus pacientes de cinco/seis anos de idade. Mordo o lábio. Mas a Joana atrapalha-me: - Ela só lê livros sobre a Atlântida. - Ela só lê livros sobre Tróia. – Corrige-a a Leonor, num ar de desafio. O que impressiona a médica, que esbugalha os olhos na minha direcção: - Verdade? Então um dia deves ler a Ilíada e a Odisseia de Homero. Embora não intencionalmente, apercebo-me descontente com aquela observação: - Mas eu já li as epopeias de Homero. – Declaro solenemente.

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Afinal, quantos anos julgará que eu tenho? E porque achará tão surpreendente que me tenha interessado pelos clássicos?

Luísa Montenegro, de facto, quase tem um ataque cardíaco: - Em poesia? Coro violentamente. Não estava mesmo nada à espera que mo atirasse à cara. Sou obrigada a reconhecer: - Não, em prosa. O Dr. Montenegro abre a boca numa gargalhada: - Ah, bom. Mas também seria pedir de mais. Ainda és muito jovem, minha querida. Agora começam a irritar-me! Facto do qual definitivamente ninguém se apercebe, pois continuam qual nada fosse: - Nem precisa. – Intervém a Prof. Maria Eduarda – Ter lido o livro já é, em si, de

louvar. Nunca me lembro de ter tido um aluno que tivesse lido Homero. Ou Virgílio.

Mordo o lábio, para conter a asneira que quase saía de foguetão. - A minha mulher é uma entusiasta de Héracles, de Jasão e de Teseu. Enfim, os

principais. Mas eu prefiro às lendas relacionadas com os filhos de Posídon. Não sei se sabem... – e virando-se subitamente para mim e para a Joana – Os filhos são todos monstros. – E rindo-se – Sabem porquê?

A Joana quase é tomada de susto mas eu aguento bem a pressão daqueles olhos incandescentes:

- Porquê? – Recupero do mais fundo da minha garganta. Pigarreio. Ele vibra com a sua própria argúcia: - Porque de certeza que essas lendas se inspiraram nos ossos de animais pré-

históricos. – Ao que, depois de lançar a bomba – Enfim, tive uma formação científica e adoro interligar estas coisas.

Pestanejo. - Devia ter sido arqueólogo, meu caro Montenegro. – Sorri a Prof. Maria Eduarda. Enquanto a filha se desfaz em caretas. Toda a sua expressão insiste em achar – desde o

primeiro momento, por sinal – que a mãe mais não faz que dar graxa ao casal de médicos. - Ou Paleontólogo. – Prefere o Dr. Montenegro, de dedo espetado. Embora,

encolhendo os ombros subitamente desanimado – Mas na altura não me lembrei disso. – Diz num só sopro. Rebolo os olhos. Ele prossegue, como que novamente ligado à corrente – Por exemplo, eu adoro Polifemo, o ciclope. O que tinha apenas um olho? Pois então, e se as pessoas da altura tivessem encontrado um caveira de um animal pré-histórico, daquelas que possuem um enorme abertura à frente, e a tivessem tomado por um monstro só com um olho? Dá que pensar?

Por acaso até dá. Nunca tinha pensado nisso. Mas o efeito desfaz-se, quando a Prof. Maria Eduarda resolve comentar: - Meu caro, a lenda atribui a Polifemo um corpo de homem e não de animal. O que ele imediatamente refuta: - Que disparate! A lenda limita-se a atribuir-lhe um olho. – Insiste, com um sorriso

rasgado. Ao que, encurtando etapas, avançando à velocidade em que já vai o seu raciocínio – Mas e se fosse a caveira de um mastodonte?

- Um mastodonte? – Queixa-se a Joana, sem saber do que se trata.

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Maria Galito 55 Força do Exemplo, 2001

Pensando bem, também não sei ao certo. Acho que é da família dos mamutes e dos elefantes.

Mas a conversa nem segue esse rumo, que o Dr. Montenegro parece um avião a jacto: - E os dragões? A Mitologia Grega fala de dragões. Não é só coisa dos chineses! Ao que a mulher complementa, fazendo alusão às suas lendas preferidas: - Na lenda dos Argonautas há um dragão a guardar o “Velo de Ouro”. E na Lenda de

Héracles outro dragão a proteger as maçãs de ouro. - Fantástico! – Exclama o marido. Ou seja, eles fazem a festa sozinhos, completando as frases um do outro. - O que é que vocês acham? – Pergunta-nos a médica pediátrica. Mas nem aguarda

pela nossa resposta. Desde logo propõe. – Conhecem a Lenda de Héracles? – Ao que, virando-se para mim com imensa vontade que a minha resposta seja negativa – Conheces a lenda, Sancha?

Talvez não devesse, mas sinto-me na necessidade de evitar um não redondo; precisamente o que Luísa Montenegro preferia. O problema é que a minha mãe acha-me uma especialista na matéria e, para as minhas irmãs, não me ocupo com outra coisa.

Prefiro, pois, avançar com um mínimo de detalhes. Aqueles que me ocorrerem, pelo menos; embora reconheça que, de Héracles, apenas sei o que é do conhecimento comum:

- Vejamos. Héracles era filho de Zeus e de uma mortal, chamada Alcmena. Famoso por ser muito alto e forte, capaz de ultrapassar qualquer adversidade. Alguém excepcional para a época, ainda que mais um guerreiro solitário, do que um homem de pátria e família. Vestia uma pele de leão e, sobre a cabeça, uma enorme juba. Vencia monstros e seres extraordinários que assolavam as regiões gregas. E participou em múltiplas aventuras, entre as quais, as mais conhecidas são os chamados doze trabalhos de Héracles.

- Desses até eu ouvi falar. – Intervém a Leonor, pelo gosto de se fazer notar. - Então quais foram esses doze trabalhos? – Pergunta-me Luísa Montenegro; espero

eu que, não para a melindrar, mas para dar seguimento à conversa. Sinto a cara rubra. Não tarda nada, estão a declarar-me guerra! O melhor é sair de campo, antes que me atirem uma bola de fogo para cima. - Ora, nem eu os sei de cor. – Remato. Mas a Joana, julgando-me em perigo, decide ajudar-me a dar a volta por cima: - Pelo menos um é fácil. Se usava uma pele de leão... terá matado um leão? Faço-lhe um sinal afirmativo. Ela remexe os ombros, inchando-se de contente. Enfim, sempre tenho de prosseguir. Viro-me, então, para a Prof. Maria Eduarda, mais

serena. Ao canto, sentada contra a cadeira, a Cláudia abana a cabeça. Desdenha. Do quê? Vai-se lá saber!

Respiro fundo, passando a mão pela nuca: - Sim... acho que Héracles combateu o Leão de Némea e a Hidra de Lerna. E mais

uns quantos monstros, no total de doze. Depois, Héracles foi viver para o Monte Olimpo. – Prefiro resumir, com intenções de acabar o comentário por aqui – E é provavelmente o herói grego mais conhecido de todos os tempos! – Mas recordo outro episódio; um da sua infância prodigiosa – Ah, é verdade. Zeus tinha enviado o filho a Hera, para que o bebé mamasse directamente de uma deusa, na tentativa de obter para ele a imortalidade. O que conseguiu, pois Héracles chegou a beber algum desse leite divino. Mas Hera acordou, repeliu o bebé e o leite jorrou, até formar a

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Via Láctea que vemos à noite no céu. – E numa clara ironia – As coisas que uma pessoa aprende... – encolho os ombros, com um sorriso mal disfarçado.

Leonor começa a bater-me no braço: - Tens água? – Pergunta. Aquiesço, um tanto atrapalhada pelo golo fora de contexto. Levanto-me, para procurar a sacola que se aninha sobre as nossas cabeças. Sacola?

Poderia muito bem chamar-lhe Cornucópia, de tanto que tenta socorrer a todas as necessidades, a qualquer momento do dia.

Isto enquanto a Leonor me apressa: - Água! Água! Água!– Pede Leonor, batendo freneticamente com as mãos no assento. - Oh, deixa-te de fitas! – exclamo, desolada, por ter uma irmã que não gosta nada de

ouvir falar em lendas e mitologia grega.

A guia avisa que o autocarro vai parar. Fico tão aliviada que me agarro à câmara de filmar. - Chegámos a Corinto, mãe. – aviso. E virando-me para o pai – Chegámos a Corinto. Bom, chegámos ao Canal de Corinto. Não é exactamente a mesma coisa. Ao invés de seguir a guia, os pais vão beber um café. A Joana e a Leonor aquiescem

perante uma meia de leite. O que já de si é um problema para conseguir – pois o empregado de mesa que nos atende, não percebe porque querem elas tanto leite no café; quando elas, pelo contrário, queriam café no leite. Uma grande diferença!

A Joana mostra-se aborrecida com tanto desatino logo de manhã e é a mãe quem me resolve o problema. Ao que se vira para mim, afagando-me os cabelos:

- Então, vieste a ouvir o casal Montenegro, filha? – troça, com o seu sorriso divertido. - Deve ter sido cá um sermão... – troça o pai, cruzando as pernas. Encolho os ombros, enchendo a boca de ar. - Esse tal de Héracles era patológico das ideias, é o que eu digo! – Brinca a Leonor,

olhando os quadros na parede. - Será que eles contaram a lenda correctamente? – Ainda pondero. - Eles contaram-vos uma lenda? – Pergunta a mãe. - Sim e nenhuma de nós gostou do que ouviu. – Responde-lhe a Leonor Prefiro mudar de assunto, virando-me para o nosso pai: - Não vamos a Olímpia? - É verdade, tenho pena. – Diz a mãe. - Eu também... – mas o pai está a ser profundamente irónico. Ele não quer saber de

mais ruínas Leonor, fingindo-se a leste, coloca as sobrancelhas em arco antes de propor: - Porque não perguntamos ao Dr. Montenegro sobre os Jogos Olímpicos? – Pestaneja,

desafiante. Save by the bell12. Lá vem o café grego. A mãe, ao primeiro gole, decide de imediato uma sentença: - O café português é melhor. O pai vai mais longe, ao acrescentar: - Nem tem comparação possível. O nosso é café. Isto são borras. - É melhor comprar umas águas. – Aviso, antes que alguém se esqueça.

12 Salva pelo toque do sino.

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Maria Galito 57 Força do Exemplo, 2001

Mas o pai apressa-nos: - Bebam e despachem-se. Quero falar-vos sobre o Canal de Corinto. Saímos do café, em direcção ao paredão, onde outros do nosso grupo já espreitam a

passagem de um enorme barco branco. O nosso pai, uma autêntica enciclopédia ambulante, mostra-se à altura. A sua cultura

geral é impressionante. Tenho a certeza que não o leu em lado nenhum nesta viagem. Sabe-o porque sabe e pronto.

- Foi construído em 1893. – Como é que ele sabe estas datas? – Para a época, um projecto grandioso, pois a sua profundidade em relação às margens podia chegar aos 60 metros. E significou um passo importante no desenvolvimento das comunicações entre a Europa Central e o Mar Negro.

A Leonor esconde-se atrás da Joana. Deve pisgar-se, não tarda. Procuro mostrar interesse pelo assunto: - Porque dantes os barcos eram forçados a contornar o Peloponeso? – Arrisco,

confiando na lógica. - Exactamente. Com o canal incentivou-se o volume de negócios, impulsionados por

uma maior rapidez e eficiência no cumprimento dos prazos. E lá vai a Leonor, a fugir aos ensinamentos do pai.

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Maria Galito 58 Força do Exemplo, 2001

V

A guia chama-nos. Vamos a caminho de Epidauro. Sento-me junto à janela. Pegando no meu caderno, que sempre me acompanha, começo

a desenhar o canal de Corinto; depois de escrever, para não me esquecer, o que o pai explicou a seu propósito. Nunca se sabe, a informação poderá ser-me útil algum dia.

A segunda paragem é enfim Epidauro, a cidade de Asclépio – o deus da Medicina. - Lembram-se do símbolo das farmácias: uma serpente enrolada a um bastão? Pois

agora já sabem de onde surgiu a ideia. – Explico, apontando uma imagem do deus. Os meus pais já saíram do autocarro. Perco-os de vista quando um coro de cigarras me

irrompe pelos ouvidos a dentro. Atordoada, pestanejo. Passo a mão pelo cabelo, fascinada pelos altos pinheiros. Ponho os óculos, para evitar a

intensidade da luz e olho em volta. Justo em frente, os primeiros contornos do anfiteatro. À esquerda, o museu, onde com certeza entraremos mais tarde.

A Joana e a Leonor insistem em que me apresse. De facto, no palco do anfiteatro, um italiano de meia-idade mas barba ainda escura, aventura-se num sole-mio, que a excelente acústica projecta a quantos se sentam nos degraus e vagueiam pelo recinto, recebendo a boa disposição e os aplausos dos amigos.

Enfim, sempre foi preciso coragem para cantar, sabendo toda esta gente a assistir. De repente, vejo a minha irmã aproximar-se do palco; ainda meio desconfiada,

hesitante, mas curiosa; para não dizer a bater o pezinho para entrar. - Espera lá... onde é que a Leonor pensa que vai? – Pergunto à Joana. A Leonor faz-nos sinal. Deve estar a brincar... nego-me com um sinal de cabeça. Ela

insiste. E eu resisto, com um não redondo. Ela encolhe os ombros e avança para o centro do anfiteatro. Não ficam todos propriamente a olhar para ela, porque a confusão é muita, mas um palco é um palco; desequilibra-nos a parte emocional.

Pigarreia, para declarar alto e a bom som: - Agora venho eu. – Remexendo na gola do camiseiro. O público que circulava dentro do palco, afasta-se. Os meus pais sentam-se nas

bancadas, sorrindo. A minha mãe incentiva-a, inclusivamente, batendo palmas. Mas a maior parte dos turistas nem repara na Leonor; a não ser, talvez, os do grupo português, que se vão sentando por ali, satisfeitos por ver alguém a representá-los. E aguardam que ela se decida – porque até agora, mantém-se calada. Pedem-lhe que cante um fado, já que o italiano tinha escolhido um característico sole mio. Mas ela enrola as mãos. Mostra-se nervosa. Olha para os lados. Assim não vai conseguir!

Joana decide fazer alguma coisa: - Vou buscá-la. – propõe. Mas nesse preciso instante, Leonor lembra-se de bater as palmas, para anunciar: - Venho eu apresentar-vos a minha irmã. Que vai cantar um belo fado. Força Sancha! Sancha???

E puxa-me pelo braço, arrastando-me para o centro, onde está desenhado um pequeno quadrado no chão. Tento fazer força no sentido contrário, mas Leonor trouxe-me, para me abandonar sozinha, desprotegida, naquele descampado de gente, afastando-se a bater palmas, escondendo o terror.

Aqueles senhores levantam-se, já fartos do nada. Porque me importa? Nem os conheço.

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Maria Galito 59 Força do Exemplo, 2001

- Lamento, isto são coisas da minha irmã. Ela é que queria cantar, não era eu. – Desculpo-me, decidindo-me pela sinceridade.

Joana tenta ajudar-me: - Canta um fado de que saibas a letra. – Murmura, por entre as mãos em concha. O meu desassossego não convence aquelas cinco ou seis pessoas que insistem em que

cante para todos os que me conhecem ou nunca me viram na vida, e que acham provavelmente que nem devia abrir a boca!

Ouço-me respirar, o que não é de todo normal. Fecho as mãos. Quanto tempo terá passado? Passo a mão pela anca, para afastar o nervosismo que se apossou da minha perna esquerda. E agora? Se já soube alguma coisa, decidiu tudo emigrar do meu pensamento! Ouço o coração a pulsar no peito. Entro em pânico.

Não posso recusar cantar fado. Quando se pede, tem de ser cantado! Mas o fado exige silêncio. Não há condições. Para mais, é impossível ganhar um público de turistas com uma canção triste. A mais

das vezes, o fado é trágico. Pode não ser, mas fala de destino, de saudade. Oh, a Leonor está feita! Calma! Preciso convencer-me que sou capaz. E o Barco negro? Praticamente não exige música; antes pede uma voz segura,

projectada para a frente. Mas eu não sei cantar suficientemente bem. Este é dos mais difíceis. Não saberei outro? Não há tempo. Agora é aguentar. Coragem! Mas como é mesmo a letra de David Mourão Ferreira? Será que me lembro? Falta-me o

primeiro verso. Vai ser como pode ser; a partir do meio. Eles também não têm paciência para ouvir tudo!

Despacha-te! Olha a figura que estás a fazer. Levo a mão ao peito e começo a projectar o ritmo da música. Quaternário. Mas apercebendo-me que a batida, demasiado perto do coração, pode condicionar a voz, transfiro o som para a perna direita, mantendo apenas o gesto simbólico junto ao peito.

E começo a cantar, elevando a voz, desesperada como a sinto, de olhos fechados, para sentir a guitarra portuguesa que ninguém está a tocar – pelo que me resta imaginá-la – e recusar olhar a assistência, de certeza sem paciência para me ouvir:

(...)E o teu barco negro dançava na luz Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas Dizem as velhas da praia, que não voltas: São loucas! São loucas! Eu sei, meu amor, Que nem chegaste a partir, Pois tudo, em meu redor, Me diz qu'estás sempre comigo. (...)

E a voz solta-se, sem palavras, solitária, levada pela alma. Quem canta isto bem, sabe

continuar, para o que resta.

Dizem as velhas da praia, que não voltas...

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Maria Galito 60 Força do Exemplo, 2001

São loooooooucas! São loooooooucas! O poder da letra depende da alma deste verso repetido. Pelo que apostei tudo, que

alternativa me restava? O instinto de sobrevivência, realmente, consegue defender qualquer projecto, mesmo quando derrotado à partida.

E a voz deixa-se perder, enquanto o ritmo se defende apenas e enfim, junto ao peito. Ouve-se o vazio. Espreito por entre as pestanas. Não podemos agradar a todos, não é? E

o fado é a mais difícil das canções! Mas batem-me palmas. Por consideração. Bom, podiam nem dar-se a esse trabalho. Agradeço, com um sorriso tímido:

- Fiz o melhor que podia. – Encolho os ombros; ao que, falando directamente para a Prof. Eduarda, que se aproxima de mim, finjo vontade de rir – Não dizem que qualquer português sabe cantar fado?

- Não é bem. – Eesponde-me – Mas fizeste boa figura. Mesmo que não tivesse feito, também não mo dizia. É então que o italiano, o mesmo do sole mio, me vem dar um aperto de mão: - Belíssimo, senhorina! – com um sorriso monumental. E pisca-me o olho. Confesso que me sinto mais aliviada. Sempre é uma opinião independente. Mas onde está a Leonor, que eu quero dizer-lhe das boas? No palco. De facto, uma vez desbravado o terreno, decidiu-se finalmente a levar avante

a sua vontade, mas levando consigo a Cláudia – a filha da Prof. Eduarda – e a Joana, para cantarem... bom, a última música que tínhamos ouvido na rádio, antes de sairmos do autocarro. Suspiro.

Digamos que, para o fim, já as bancadas dançavam ao sabor daquela maluqueira. E pouco importava se cantavam bem ou mal. O pessoal mais jovem que por ali circulava e reconhecera a música, descera ao palco para lhes fazer companhia.

Com tanto barulho, ainda os mandam embora. Valha-me a paciência... - Não sou o máximo! – Exclama Leonor, correndo na nossa direcção, trazendo

consigo a irmã e a Cláudia, deixando os outros ainda no palco. E abraçando-se à mãe. – Nunca devemos ser a última a sair da festa, não foi o me ensinaste? – Recebendo, em troca, um beijo na testa. – Adoro esta cidade! – Ao que me dá um toque no ombro, com a felicidade estampada na cara – Eu não cantei espectacularmente?

Ou seja, avançou para o palco sem me consultar, lançou-me às feras e deixou-me sozinha a defender uma música, lindíssima mas com o peso do mundo; para, depois da papinha feita, escolher a vida fácil com uma letra e música que todos conhecem – por ser cantada nas rádios daqui à China!

- Não me dirijas a palavra. – Peço-lhe, com firmeza. Depois do grupo ter visitado o museu, o autocarro prossegue viagem. Entramos na Grécia rural, com os caminhos estreitos e as veredas para lá dos muros

baixos de xisto que nos separam da estrada, por terrenos pobres e secos, parcamente férteis e montanhosos. Em intervalos regulares aparece um carro de cereais puxado a bois e mais cartazes colados nas paredes. Da estrada, é-nos mostrada a estrada para Tirinte, a cidade de Anfitrião e Euristeu. Pouco depois, avistamos o castelo de Argos.

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Maria Galito 61 Força do Exemplo, 2001

A estrada entretanto comprime-se, ao mesmo tempo que os muros de pedra crescem em altura. Entramos num pequeno aglomerado. E, sem que eu dê muito por isso, vejo-me dentro daquilo a que a guia chama de Micenas.

Olho para os lados. Uns quantos velhotes sentam-se à sombra de umas oliveiras, com bastões de pastor nas mãos. Nada de Acrópole, de palácio ou de qualquer coisa que se assemelhe a uma colina. Apenas um letreiro em puro grego e umas casas.

Mas isto é que é Micenas? Bom, é pelo menos a cidade moderna. Só depois de almoço seguiremos para o recinto

arqueológico. Entramos no restaurante. Uma mesa longa e estreita aguarda-nos; repleta de pratinhos –

finalmente! – cheios de iguarias agradáveis à vista. Sentamo-nos, entre sorrisos divertidos. Acabo por ficar entre a Joana e a Cláudia.

O grupo dá todo o ar de estar animado. Junto aos meus pais sentou-se um casal de cinquentões, particularmente altos; o senhor

até lembra um cavaleiro medieval, com a sua barba branca e as suas sobrancelhas expressivas. Mal abrem a boca percebemos logo que são galegos. Como entendem bem a língua portuguesa e estão habituados a visitar o norte do nosso país, manifestam forte simpatia pelos portugueses; acabando por se introduzir com facilidade na dinâmica do grupo.

Ora os Santiago são uns castiços do pior. O senhor, então, fala pelos cotovelos e é bastante divertido. Estamos nisto, quando uma imensa gargalhada percorre a longa mesa, à qual tomamos os primeiros aperitivos. A Prof. Maria Eduarda contou uma anedota... daquelas!

- Isto não é para os teus ouvidos, Joana! – exclama a Leonor, gozando com a irmã. Ainda estamos na ressaca da piada, quando a Cláudia insiste porque insiste em não

comer perdizes; argumenta a favor da protecção do ambiente contra a destruição massiva que os caçadores, predadores, impõem ao seu equilíbrio. O que diz faz sentido, mas começa a exagerar no tom e na forma como defende a sua opinião; pois nenhum argumento dos adultos – por mais moderado que seja – a comove.

Até que a conversa termina, abruptamente. Para compensar, a Prof. Maria Eduarda vê-se na obrigação de dizer qualquer coisa que

nos anime. O que, em menos de um minuto, consegue sem falsas modéstias. De facto, a anedota é tão engraçada, que a gargalhada colectiva até faz rir os empregados de mesa que, obviamente, por serem gregos, não perceberam nada do que ela disse.

Minutos depois, Cláudia atira-se, para minha grande surpresa, a um belo pedaço de bife da vazia, com batatas fritas e nenhuma salada.

Confesso-me embasbacada a olhar para ela. Afinal, depois daquele espavento todo, tinha-a pensado, pelo menos, vegetariana. Mas não.

Não deve gostar de vacas. Passou uma hora e meia. Recolhemo-nos ao autocarro, que nos levará – já não era sem

tempo – à cidade antiga, arrancada da aridez destes campos, pelo mesmo Enrique Schliemann que descobriu Tróia.

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Maria Galito 62 Força do Exemplo, 2001

Micenas é a pátria de Agamémnon. O chefe da expedição aqueia contra Tróia. E ali está, amuralhada e encavalitada no mais alto dos planaltos escarpados – tão despido de árvores, desolado no meio do nada. Mordo o lábio.

Olho para baixo, pelo vidro. Á esquerda, um pequeno comerciante vende sumo de laranjas provavelmente da sua horta.

Desço os degraus do autocarro, pousando os pés no chão com redobrada firmeza. Onde diabos está o mar? Sempre imaginei Micenas perto do mar.

- Querem um sumo? – pergunta a nossa mãe, de cabelos desalinhados por tanto os ter remexido com calor.

O nosso pai tenta convencer-nos a evitá-lo: - Estamos em plena digestão. E as laranjas estiveram ao calor, podem fazer-vos mal. Seja como for, a nossa mãe está com tanta sede que sempre pede o tal sumo com pedras

de gelo e partilha-o comigo. Passaram cinco minutos e ainda estou viva, por isso, com sorte, pode ser que não me faça mal.

Sigo a guia pela vereda poeirenta, que nos obriga a subir a colina. O sol bate-nos forte no corpo e o calor consome-nos. À primeira oportunidade, compro um manual sobre Micenas – que acaba por trazer informações sobre toda a Argólida.

Ainda não estou em mim. Isto à minha frente é Micenas!? O nosso pai, curiosamente, mostra interesse genuíno pelos achados arqueológicos, ao

reconhecer a porta das leoas: - Faz-me lembrar os meus tempos de escola. – declara. E, para meu espanto, alguns

turistas concordam com ele. Até o casal de advogados. As duas felinas, hoje sem cabeça e encrostadas na parede, sentam-se de perfil, olhando

uma para a outra, separadas por um capitel. No livro consta a reconstituição da porta de Micenas. E um dos desenhos parece representar a saída do exército aqueu rumo a Tróia; as cores são alusivas e convencem.

Mas o meu pensamento cria a sua própria emoção. E é tão forte, que posso apostar em como o terreno vibra com a passagem das grandes rodas dos carros de guerra, dos cavalos, das pesadas armaduras levadas pelos peitos dos soldados; enquanto, lá em cima nas muralhas, a população agita lenços brancos e atira pétalas de flores em jeito de despedida. As caras são meras sombras, as cores e os fatos singelos contornos, porém, os sons são vivos e pulsam. Fazem tremer as paredes e remexer o chão.

A guia iniciou o discurso antes de eu chegar, mas ainda se refere às densas florestas de

cedros, carvalhos e pinheiros, que aqui existiam; à vida dos agricultores da aldeia que cultivavam as suas hortas no sopé da colina, e cuidavam das oliveiras e das videiras.

Então sempre houve vida neste sítio! A mim parece-me difícil de acreditar. Estamos na zona das sepulturas, um cemitério redondo bem dentro das muralhas. Neste

destaca-se um buraco escuro, a que Schlieman chamou Campa de Agamémnon – embora, mais tarde, se tenha chegado à conclusão que não poderia ter pertencido ao herói da Guerra de Tróia; no máximo, a um seu antecessor.

Os turistas, obedientes, olham a fossa vazia. Leonor faz mais uma das suas imensas caretas, passando a mão pelo cabelo, antes de se

defender do sol com os seus óculos escuros. A Joana boceja longamente.

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Proponho-me a uma caminhada particular. Farta de cemitérios, contorno as ruínas para subir a rampa que me conduzirá ao palácio. Isto é, ao que resta do paço real.

Acompanho as legendas do livro e as reconstituições a computador, chegando à conclusão que Micenas é pequena para albergar tão grande número de casas e que, mesmo que cá coubessem todas, a cidade continuaria a ser uma desilusão em tamanho.

Se esta era a maior e mais imponente cidade do Egeu, como seriam as outras? Esforço-me por erguer paredes e janelas, observar cores e ambientes onde nada existe.

Segundo o manual estou precisamente no meio de um jardim. Respiro fundo. Junto aos meus pés, crescem duas ervas; e há muita pedra e muito pó, entre meia dúzia de formigas.

Escalo o muro – ou as antigas paredes – caminho um pouco e endireito o porte, na direcção em que me dizem estar o mar.

A paisagem, ainda assim, é impressionante. Constato a posição estratégica de Micenas. Tudo à minha volta é despido de arvoredo,

mas, como tudo tem vantagens e desvantagens, permite uma percepção mais ampla do terreno, do que no tempo de Agamémnon.

Um vento tímido e seco dança-me os cabelos. Mantenho-me séria e contemplativa. Deixo-me estar.

Meia hora contada aos segundos, é o tempo que nos permitem dentro das muralhas, pois

falta visitar o Túmulo de Atreu, uma estrutura escavada na rocha, com um buraco no lugar da porta; ou melhor, dois buracos: um rectangular e um triangular sobre o primeiro.

O interior é oco, escuro, e o tecto altíssimo, formando uma abóbada arredondada. O lugar não serviu certamente para repouso final de um homem, mas de um ciclope gigantesco. Encho a boca de ar. A guia explica, mas não consigo ouvir nada do que ela diz.

Se fui a última a sair das muralhas de Micenas, sou a primeira a sair deste túmulo. Á noite, Leonor recebe um convite telefónico de Rámon; convite que os nossos pais

pedem à filha que recuse amavelmente. Mas Leonor queria muito ir; tanto que, ao saber-se contrariada faz uma birra de todo o tamanho; que não comove a mãe:

- Minha querida, viemos passear para passarmos tempo juntos. Em Portugal, nunca nos vemos; também porque a menina gosta muito de sair à noite e de preferir estar com os amigos do que com os seus pais. Pois desta vez não pode ser.

- Oh mãe... o pai deixava. - A menina não me contrarie. – o que, de todo, remata a questão. Quer dizer, a Leonor ainda insiste e resiste durante algum tempo; mas, depois de

perceber que apenas gasta o seu latim, resolve dar o assunto por terminado; em especial, quando se apercebe que o empregado de mesa do restaurante:

- É giro de morrer, não acham? Quando acabámos de jantar, e sendo ainda cedo para ouvir o “greek Blues” – de que

tanto ouvimos falar – resolvemos continuar a passear pelo bairro mais antigo da capital. Plaka, a zona onde todos os turistas caem que nem patinhos! Mas também vamos onde? Ao menos aqui, todo o ambiente visa agradar-nos. E a

Leonor, que está outra vez bem-disposta, corre com a irmã mais nova pelas mesmas lojas em que entrou ontem.

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Mas enfim, como os nossos pais resolveram suspender a mesada, e elas já gastaram todo o orçamento de que dispunham, estão com as asas cortadas. Pelo menos teoricamente. Nunca é bom subestimar a Leonor.

- Oh, mãeeeeeee! Como eu estava a dizer... 10. 30h. O quê, ainda estão na mesma loja? O pai senta-se na esplanada a ler um jornal

italiano, que comprou na tabacaria. Eu decido-me a ir buscá-las. Aproximo-me da Joana; que logo se vira com um sorriso de orelha a orelha, indicando

um pequeno lenço azul e branco que se enrola ao seu pescoço: - Não é bonito? Pede um igual para ti. A mãe está junto ao balcão, cortejando um pote suficientemente grande para que, a sua

compra, seja desaconselhável. Onde é que depois o levamos? Na mala de viagem? Mas é a Leonor – quem mais haveria de ser! – que decide dar-me cabo do juízo: - Ontem foram as deusas, hoje são os deuses. – diz enigmaticamente, enfiando a mão

num molho de porta-chaves. – Eu já escolhi. – como ela me surpreende! – Para fazer companhia à minha Afrodite, vou levar o deus Apolo. O que é que achas? Apolo, o deus da música e da poesia; e o mais belo entre os deuses! – ao que, olhando para o tecto com ar sonhador – Pode ser que um dia eu tenha um namorado tão divino como Apolo! – e ri-se; antes de agarrar a Joana pela T-shirt, puxando-a de encontro a si com toda a força – E tu, qual queres?

A rapariga ainda teve de perceber sobre o que é que a Leonor estava a falar. Mas lá aceitou o desafio:

- Já tenho a Hera, pelo que vou levar Zeus. - O Rei e a Rainha de Olimpo. – surpreende-se a Leonor, com cara de gelo derretido. - É para saberes. – responde-lhe a Joana, com ares de superior. Rebolo os olhos. Valha-me a paciência! Já avanço em direcção à mãe, quando elas insistem que eu fique ao pé delas. - Vocês só sabem gastar o dinheiro inutilmente. Porque raio preciso de mais coisas

destas, posso saber? – indicando os porta-chaves que coloram o cesto. - E porque é que és uma chata? – atira-me a Leonor – Isto é só um jogo! – e com ar

de poucos amigos – Eu não tenho nada que fazer mas tenho que te aturar. Podias ao menos colaborar!

É tão bom saber o quanto as nossas irmãs nos adoram... Resolvo-me a fazer-lhe a vontade. Só para não ter que a ouvir! No cesto, a escolha pode fazer-se entre Apolo, Zeus, Hermes, Posídon e Dionísio. - Pois que seja Posídon, o deus dos mares. Sou portuguesa, não sou? - Então quem ficou melhor foi a Joana. – lembra a Leonor, um tanto inconsolada,

apesar de não se arrepender da sua própria escolha. – É a mais nova, mas pensa grande!

Sorrio, cruzando os braços: - Mas não tem poder no mar. E no ar e na terra, Atena pode não ser rainha mas é

bispo. – respondo, usando a linguagem do Xadrez. Querendo com isto dizer que, embora menos poderosa (Zeus e Hera) ou fashion (Apolo e Afrodite), reunia uma equipa que se complementava; pelo que poderia, em teoria, ser mais bem sucedida.

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Maria Galito 65 Força do Exemplo, 2001

Mas elas não perceberam muito bem o que eu estava a dizer e eu não vi motivo para aprofundar o assunto. Até porque a Leonor já tinha decidido rematar:

- Sei que Apolo é o deus do santuário de Delfos, que vamos visitar amanhã. Quem ri por último, é quem ri melhor!

E entram noutra loja. A noite já vai longa. Entrámos neste bar, conforme as indicações do empregado de

mesa da esplanada. Cá dentro está um tanto escuro e a música é bastante peculiar; para além de roucamente cantada por uns homens de negro. Mas, pelo que ouvi dizer, uma verdadeira impressão digital grega. Chamam-lhe Rembetika. Enfim, algo genuíno.

Não é, pois, uma imitação, como o cancã dançado pelas bailarinas no cruzeiro. Nem música tradicional grega, em versão para turista ver, como ontem ao serão. Rembetika, é a doer! – como certamente diria o Dr. Montenegro. Bom, a mãe e a Leonor já disseram que não gostam nada e a Joana está cheia de medo,

queixando-se dos cantores terem um ar muito esquisito. Mas eu e o pai, estamos intrigados. De facto, a Rembetika não parece cativar-nos à primeira; mas depois de algum tempo,

fica-nos na memória – precisamente o contrário da música que se ouve todos os dias na rádio; a qual, salvo raras excepções, esquecemos rapidamente. Pelo que eu percebi, é uma forma de expressão musical que tem ascendido a um estatuto de culto. Mas a sua história é irregular. Tem traços de música bizantina mas costuma ser associada a grupos marginais do séc. XIX e do princípio do séc. XX – principalmente da década de 20/30, em que os mangas, uma espécie de gangsters à moda grega, enchiam as tabernas locais e cantavam as suas agruras.

Na esplanada, o rapaz tinha dito que: - Who used to sing Rembetika, were men… something like Robin Hoods; a mixture of

gentlemen and outlaws13. Razão porque animara as minhas irmãs; para as desiludir subsequentemente. Os instrumentos musicais que usam são vários, mas só identifiquei dois deles: a

inevitável guitarra grega e um acordeão. Ainda ouvi falar em bouzouki e baglama, mas não sei se têm alguma coisa a ver com o assunto. Seja como for, produzem uma musicalidade única, que nos recorda outros tempos e um pouco de História.

Cruzamos a estrada, à procura de uma alternativa para regressar a casa. Não podemos ir

de taxi, somos cinco. Estamos nisto, quando a Joana começa a queixar-se; porque está cheia de fome e a barriga lhe dá horas. Como ninguém verdadeiramente se opõe:

- Está bem, Joaninha. – diz-lhe o pai – Vamos ali, que a porta está aberta. Mas quando chegamos ao destino, parecemos hesitar no que pedir. - Talvez umas tostas mistas? – proponho; por ser o mais fácil. O pai não vai nisso! Gosta de experimentar coisas novas e até escolhe primeiro, por

puro palpite. Mas quando a senhora lhe entrega a iguaria, desperta a curiosidade a toda a família. Acho que é queijo com mel e nozes. Pelos deuses, ainda tenho água na boca!

13 «Quem costumava cantar a Rembetika eram homens… mais ou menos como Robins dos Bosques; uma mistura de Senhores e Bandidos.»

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Maria Galito 66 Força do Exemplo, 2001

VI

O nosso destino de hoje é o santuário de Delfos. Não vamos em direcção ao sul, como ontem, mas a paisagem mantém-se mais ou

menos a mesma: recheada de planícies férteis, onde dominam as vinhas, as oliveiras e os cedros. O que adormece os turistas.

- Realmente, vai tudo a dormir... – sussurra-me a Joana ao ouvido. Leonor discorda: - Eles não vão a dormir – troça, espreitando pelo corredor. Aponta para o casal Montenegro e a Prof. Maria Eduarda, que conversam

animadamente. A Cláudia apercebeu-se que olhamos na sua direcção e levanta-se. Vem ter connosco,

coroada por um sorriso dúbio: - Já contaram a História da Grécia toda durante a viagem…. Enrola o cabelo num rabo-de-cavalo - Ah sim? E que tal? – pergunto, mais para fazer conversa do que para que me

responda o evidente. Basta olhar para o seu rosto alterado, para saber que está nitidamente “pelos cabelos”!

- Eles contam as lendas ao mínimo detalhe. Parecem um livro animado... A Leonor acha piada à expressão da amiga: - Ela está a gozar! - Eles passam o tempo a terminar as frases um do outro. – troça a Cláudia, de olhar

afiado – É insuportável… Olhamos umas para as outras… e deixamo-nos rir. A guia informa-nos que dentro em pouco estaremos no Museu de Delfos – paragem

antes do santuário propriamente dito. Levanto-me da cadeira, pedindo licença para regressar para junto dos meus. Agarro-me à mochila e deixo-me estar em silêncio, entregue aos meus pensamentos.

As nuvens acompanham-nos ao som da guitarra grega. Olho em volta, rodeada de montanhas por todos os lados. São as encostas do Monte

Parnaso. Que guardam o umbigo do mundo. É que, segundo a lenda, Zeus soltou duas águias, com o objectivo de lhe descobrirem o centro da terra. Ao que elas acabaram por se encontrar em Delfos.

Dizem que, antes de Delfos se render a Apolo, venerava a serpente Píton – de cujo nome derivam os Jogos Píticos, uma espécie de jogos olímpicos.

E era Pítia ou Pitonisa, o nome atribuído à maior das sacerdotisas do santuário; a quem competia ouvir a pergunta do consultante, sentada sobre a trípode sagrada para, com um ramo de loureiro nas mãos, entrar em transe e debitar a mensagem codificada do deus, quase sempre enigmática e ambígua; pelo que tinha de ser interpretada por colegas sacerdotes, entre versos hexâmetros; isto a partir de uma sala escavada na rocha, nos subterrâneos do templo, onde só a luz dos archotes iluminava.

Chegou-nos a lenda que Píton, filha da Mãe Terra (deusa Gaia), era um monstro, uma serpente extraordinária que matava pessoas e animais, que destruía colheitas e vivia numa gruta. Mas é possível que Píton fosse apenas a deusa feminina a quem a população aqui prestava culto, antes de a substituir por um deus masculino de Olimpo.

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Maria Galito 67 Força do Exemplo, 2001

O oráculo de Delfos vivia uma credibilidade que o tornou conhecido em todo o mundo antigo, sendo-lhe prestado culto muito mais tarde pelos próprios romanos. E no santuário do grande Apolo, sua divindade principal, inscreviam-se frases atribuídas aos sete sábios; entre as quais o «Conhece-te a ti mesmo!» de Sócrates; «A segurança precede o declínio»; ou «Guarda-te do exagero».

O museu protege os testemunhos de séculos de História em Delfos. Não parecem haver

certezas quanto ao ano em que o santuário foi construído, mas consta que foi devorado pelas chamas em 548 a.C., e elevado das cinzas pela motivação de uma família de exilados atenienses, os Alcmeónidas, que conseguiram recolher nos cofres de Delfos uma soma de 300 talentos de ouro – uma verdadeira fortuna na altura.

A meio do pavilhão surgem-nos dois colossos de mármore, mais ao estilo egípcio que grego; representando, supostamente, dois irmãos que tinham trabalhado sem descanso na edificação do santuário de Apolo.

Conta a lenda, que a mãe dos jovens consultara o oráculo de Delfos, para ver se conseguia para eles uma recompensa divina. Uma vez no templo, a pitonisa entrara em transe e os sacerdotes interpretaram a voz de Apolo. Ao que a mãe, seguindo as instruções que lhe haviam dado, levara os filhos a pernoitar num dos templos do santuário.

Mas na manhã subsequente, quando os foi buscar, encontrou-os mortos. Perplexa e angustiada, a desgraçada foi pedir explicações para tão horrível desfecho. Ao que recebera como resposta que Apolo recompensara os rapazes com aquele que considerava ser o maior dos presentes: uma morte rápida e indolor na flor da juventude, antes do padecimento lento durante uma vida inteira de velhice.

- Uau! – é a ironia da Leonor, espreitando pelas pestanas. – Será isto pedagógico? - Não se aprende nada na Grécia. – irrita-se a Joana, voltando a pôr os auscultadores

nos ouvidos. - Continuamos para a outra sala. – peço, segurando os óculos escuros que insistem

em escorregar pelos cabelos até à testa. A guia apresenta-nos agora o auriga, uma das estátuas mais famosas do museu e de toda

a Grécia. A sua beleza e simplicidade trabalhada em pedra negra, valem por si, mostrando um herói de fita na cabeça e cabelo curto, cuidadosamente vestido com uma túnica direita e de mangas curtas, mantendo o porte direito e o olhar fixo na meta, puxando as rédeas sem perder a compostura.

- E quem é este jeitoso? – pergunta a Leonor, olhando-o de cima a baixo. - Não sei. – encolhendo os ombros, folheando a brochura – Diz aqui que foi uma

oferenda de um príncipe siciliano a Delfos, por ter vencido a corrida de cavalos dos Jogos Píticos de 478 a.C. Pode ser que seja o próprio.

Outra hipótese é ser uma representação do deus Apolo a puxar as quadrigas que o fizeram voar apara a vitória.

Cláudia, sempre irónica e descontente, sai-se com esta: - Na maior parte das vezes, os donos das quadrigas ficavam na bancada a ver os

outros correrem risco de vida na pista de corrida. – e espreitando por entre as pestanas – Julgavas que iam para lá eles?

- Deve ter ganho a corrida. Por isso ofereceu a estátua. – prefiro acreditar, ainda que talvez não muito convencida

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Mas ela não está para isso. Estanca em plena sala para, justo em frente da estátua, dizer a viva voz:

- Sancha, sempre que faziam as curvas, os carros atropelavam-se uns aos outros. Não era raro ver homens caírem ao chão e rebolarem sob as patas dos cavalos. E junto à meta, valia tudo. Os aurigas chicoteavam-se, empurravam os carros adversários para a valeta... – e num sorriso sibilante – Oh, era talvez a prova mais espectacular dos Jogos Píticos, mas eles pagavam um preço elevado por participar. Por isso, o melhor era pagar a alguém para fazer o serviço sujo e ficar a assistir de longe.

- Pronto, está bem. Se tu o dizes. – aquiesço, contrariada. Última paragem. Desta vez trata-se de um nu esculpido em mármore rosado. Representa

um rapaz no auge da sua juventude. Leonor presta-lhe particular atenção. Pela tonalidade da pedra é um trabalho menos antigo. Talvez romano. E o pessoal

deixa-se fascinar com a obra do artista e o ritmo dos movimentos, ainda que um tanto lânguidos, do tal personagem.

- Quem é, Apolo outra vez? – troça a filha da Prof. Maria Eduarda. A estátua pertence, de facto, ao período romano. Mas mais precisamente ao tempo do

Imperador Adriano, o que significa que foi feita algures entre 117 e 138 da nossa era. Ainda é mais recente do que eu pensava.

E não se trata de um deus nem de um atleta. O rapaz da estátua tem nome, chama-se Antínoo e era amante do imperador; aliás, terá sido tão adorado que, após uma morte trágica, Adriano fez questão de obrigar todo o império a prestar-lhe culto, mandando construir para o efeito múltiplas cópias, que depois distribuiu pelas principais cidades de então.

E a visita ao Museu dá-se por concluída. Ainda aguardamos uns minutos pelo autocarro e por quem aproveitou para fazer umas compras, e seguimos para o santuário propriamente dito. Lá em cima.

Imperam os ciprestes. Mais atléticos e bojudos que nunca. Espreito pelas amplas janelas, acompanhando os altos e baixos do relevo. Até que a

curta viagem termina. Apeamos na parte baixa de umas imensas ruínas, invadidas pelo canto das cigarras. A

banda sonora teima em pedir-nos que imaginemos as ruínas como um todo edificado e colorido, à semelhança do que aqui existia na Antiguidade.

- Há algo místico neste santuário. – divaga a Leonor, rindo-se da própria piada, agitando em ondas os dedos numa mão espetada na direcção do que lhe disseram ser o templo de Apolo. – A pitonisa observa-nos com os seus olhos de águia. – e esbugalha os olhos, imitando um fantasma.

Rebolo os olhos, para depois encolher os ombros. A guia espera que o grupo se reúna em seu redor, antes de enunciar o seu discurso

decorado e mil vezes repetido. Bocejo longamente. Tenho sono. Procuro uma sombra mas logo a guia nos incita a subir os muitos degraus que se

avizinham. Até que tropeço em alguém e quase caio. Ao que parece, a guia decidiu parar para falar de dois templos rivais, um espartano

outro ateniense, que até em recinto sagrado se digladiam com garras de ferro. Mas pouco mais vejo e ouço. As pessoas à minha frente são consideravelmente mais

altas do que eu. Pior!, estão de pé num degrau acima. E com a confusão dos outros grupos a

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descerem e a subirem o mesmo espaço exíguo, acabo surda em relação à demais explanação.

Resta-me a consolação de, talvez mais tarde, poder observar as pedras sobre as quais a guia se debruçava.

- Continuo a achar que eles não tinham juízo. – Diz a Leonor, de nariz espetado. – Podiam ter sido uma grande Nação. Ao invés, dividiram-se em várias Cidades-Estado, duas delas eternas rivais, viveram uma guerra pegada e acabaram dominados pelos romanos. O que é que vocês acham?

Quem lhe respondeu foi a filha da Prof. Maria Eduarda, que entretanto passava por nós a passo tão rápido quanto a fila lhe permitia – ou seja, a ritmo de caracol:

- É o que acontece quando se dá nozes a quem não tem dentes. – Declaração que, por justa causa, nos intriga. Encolho os ombros para a Leonor. Cláudia prefere dar ao pezinho. – Não estamos a visitar o santuário de Apolo? Pois bem, a pitonisa exprimia-se através de enigmas. Estou a fazer-me à casa. – Mantendo a sua cara de caso.

Leonor acha melhor sussurrar-me ao ouvido: - Ela não as bate todas, pois não? Avistamos várias insígnias lacradas na pedra e um outro templo, com metade do

telhado. Ao que ascendemos pelas escadas ao divino templo de Apolo, o maior e mais imponente dos edifícios sagrados; reconstruído em 373 a.C., em que as colunatas exteriores ganharam estilo dórico e as interiores passaram a formar um peristilo jónico; e cujas medidas se aproximam dos 60 metros de comprimento por 22 de largura.

Conta-se que aqui perto se conservava uma chama junto de uma estrela de mármore redonda no topo – em honra da serpente Píton – e, junto a si, uma estátua de Apolo e duas águias de Zeus, as três em ouro.

Ao lado, o teatro de Delfos senta-se na rocha; mais modesto do que o de Epidauro, consegue ainda capacidade para 5000 pessoas.

- Não subo nem mais um degrau. – Afirma peremptoriamente a Prof. Maria Eduarda. - Sinto-me muito cansada.

Os nossos pais aquiescem prontamente, virando-se para nós: - As pessoas começam a regressar ao autocarro. Mas se quiserem ir lá acima ao

estádio, não demorem. – Pede o pai, sentando-se numa das rochas soltas do recinto. A Joana prefere ficar com a mãe, mas a Leonor não se vai embora sem ver tudo. A Cláudia faz questão de vir connosco: - Vamos ver o estádio onde se realizavam os Jogos Píticos. – a passo largo mas

impetuoso. Lembra. – Comecei a ler sobre a Grécia Antiga, influenciada pela fama dos Jogos Olímpicos. Não demorei a ler sobre os Píticos. – mas num tom desanimado, quase desiludido.

Continuamos a subir pela vereda. Ainda não há notícias do estádio, quando entramos num pequeno bosque ou alameda de

árvores centenárias, cujas copas quase escondem o sol já de si escondido pelas nuvens. Por momentos, a nossa conversa é profundamente interrompida pelo coro frenético das cigarras. Leonor até se assusta, fazendo por apressar o passo, a ver se escapa ao que lhe irrompe pelos ouvidos. Também não é fácil olhar directamente para o sol.

- As cigarras têm cá uma alma, nesta terra! – exclama, sorrindo de felicidade ao perder as árvores de vista e, com elas, o canto das cigarras.

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- As cigarras são o canto da terra. Mas já ninguém me liga. Á nossa frente, avista-se o estádio; o que está em obras de

recuperação lá ao fundo. Ou, pelo menos, avistam-se andaimes; porque não há trabalhadores por perto. E à excepção de um casal de estrangeiros que vai passando por nós na direcção dos templos lá em baixo, o estádio está vazio.

Aqui não há cigarras. Não há música. Há pedras. - Bom, está na altura de irmos andando. – proponho, fazendo inversão de marcha. Mas a Cláudia começa a dissertar: - Os Jogos Píticos eram celebrados de quatro em quatro anos, sabiam? Nos intervalos

dos Jogos Olímpicos. – diz, cruzando os braços, girando o corpo em semicírculo. Ainda não parou de falar. – ... por isso, costuma dar-se como data primeira... – hesita. Para recuperar o fôlego e a falar mais depressa, atropelando as palavras. – Agora não me lembro, mas sei que os Jogos foram realizados entre o século VI a.C. e o século IV d. C., até ao dia em que o imperador Teodósio, um romano cristão, decidiu acabar com eles.

Leonor impacienta-se: - Não deves estar a pensar contar-nos a história toda, espero? Cláudia inquieta-se, batendo com uma perna na outra. Na tentativa de apaziguar-lhe o ânimo, resolvo fazer-lhe um sinal para que continue.

Ela desde logo aceita: - Os Jogos davam-se em Setembro. – Elucida, andando de um lado para o outro à

nossa frente – Nos primeiros tempos, pensa-se que as provas eram apenas artísticas, ou não fosse Apolo o deus das artes. Refiro-me a concursos de flauta e de cítara, de teatro e de poesia. Um herói pítico por excelência era talvez o que melhor tocasse o hino a Apolo em cítara.

Leonor faz cara de caso: - Os Jogos Píticos eram concertos de música clássica? Deixo-me rir. A outra não acha graça nenhuma. - Não digas disparates! – Para prosseguir a linha de raciocínio anterior – Depois

devem ter pensado aquilo uma grande chatice. E então resolveram acrescentar provas mais mexidas, como as corridas de quadrigas, as corridas a pé e o pancrácio.

Leonor precisa dar sinal de si. Faz parte da sua natureza: - Mas Pancrácio não é nome de gente? – e como se não bastasse a pergunta,

acrescenta com entoação de varina – Oh Pancrácio! Deixo-me rir mais ainda. Cláudia mantém-se descontente: - Pancrácio era uma modalidade desportiva. – corrige, remexendo os dedos. Fecha os

punhos – Em que valia tudo, menos morder e tirar olhos. - Fixe! – responde-lhe a Leonor, de dentes arregalados. Abano a cabeça. A Cláudia decide-se por um riso sarcástico, de fazer impressão a um

poste de electricidade: - Eles a princípio só se esmurravam mas à medida que a prova ia sendo melhorada, as

mãos passaram a ser protegidas por tiras de couro muito duras que faziam mossas irrecuperáveis na cara do adversário. Com um só golpe podiam rasgar a pele toda da cara. Tanto que o vencedor da modalidade era geralmente o homem mais feio e mais bruto dos Jogos Píticos.

Levanto-me de rompão, decidida a acabar com aquilo:

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- Ok, a conversa está muito interessante... – numa clara ironia – mas devíamos ir ter com os nossos pais. A guia deu-nos trinta minutos para ver o santuário e está quase na hora. E ainda temos de descer...

A Leonor também parece cansada da conversa: - Realmente, que graça é que esses jogos tinham? Cláudia, talvez para justificar o detalhe com que os descreveu – ou para explicar o seu

entusiasmo pela matéria – contorna o obstáculo: - Os homens exercitavam-se nus. – declara com argúcia. Obtém resultados imediatos: - Ah, mas isso é outra conversa! – exclama logo a Leonor, interrompendo a marcha. Curiosamente, Cláudia muda de humor. Ao contrário do esperado, põe-se mais séria: - As mulheres não podiam assistir às provas. Isto eram jogos de homens para homens. - Como assim? Eles matavam-se, era? – troça a Leonor. Mas a Cláudia atira as mãos ao ar: - Qual é a tua? – irrita-se – Se fosses uma grega clássica não podias estar aqui. Se não

acusavam-te de violar o solo sagrado e mandavam-te matar. Percebeste, ou queres que te faça um desenho?

Ainda estou um tanto sem acção, à espera que Leonor reaja. Até perceber que me compete intervir:

- Já deu para perceber a ideia. – procuro gracejar, levando as mãos aos cabelos. A Cláudia está em estado de guerra, é preciso fazer alguma coisa para a controlar. – Vamos a ter calma. Não quero ser juiz de nenhum Bonifácio.

- Pancrácio! – corrige a Cláudia, com maus modos. Leonor esconde o riso entre as mãos. - Ou isso...– pigarreio – Então, vamos embora? Ou ainda falta contar alguma coisa? A pergunta é retórica. Assim não o entende a Cláudia: - Vocês precisam perceber uma coisa muito importante. Tanto os Jogos Píticos

quanto os Jogos Olímpicos eram, na sua génese, jogos de guerra disputados num ambiente de paz forçada. Tanto que incluíam exercícios úteis na preparação dos homens para o combate. – e explicando – No caso específico da prova do pancrácio, o vencedor era adorado como um semideus, faziam-lhe provavelmente uma estátua em sua memória e era o único campeão olímpico que recebia prémio monetário. – ao que a Cláudia, desejosa de tudo explicar, talvez para mostrar conhecimentos já se entusiasma por outro caminho – A propósito, vocês sabiam que a maratona nunca constou da lista de competições dos Jogos Olímpicos da era antiga?

A Leonor dá-lhe conversa: - A sério? Não sabia. - Verdade. Nem na época helenística, nem no período da ocupação romana. A corrida

da maratona masculina foi introduzida em 1896, por alturas das primeiras olimpíadas da era moderna, realizadas em Atenas. O objectivo era, como se depreende, homenagear o herói Feidípide que correu até Atenas para avisar que o exército ateniense havia vencido os Persas, antes de cair morto de cansaço. Mas a distância exacta do percurso foi variável até aos Jogos de Paris, de 1924, que estipularam a distância final nos 42,195 km; ou seja, igual ao percurso adoptado nas olimpíadas nos Jogos de Londres, em 1908, que iam desde o Castelo de Windsor até ao Estádio.

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A mana surpreende-se com os conhecimentos da Cláudia: - Como é que sabes isso tudo? - Já te disse, tu é que não me deste atenção. Eu interessei-me pela Grécia Clássica por

causa dos Jogos Olímpicos. Esta é a minha especialidade. – ao que, perante a nossa curiosidade, insiste – A própria tradição do facho olímpico não foi copiada do modelo antigo. Foi invenção dos Jogos de 1936, em Berlim.

- Então como eram os Jogos Olímpicos da Antiguidade, afinal? – resiste a Leonor. - Antes de mais, só participavam cidadãos gregos. Ou seja, homens nascidos livres e

gregos. Nada de mulheres, estrangeiros e escravos. Conto-vos, como curiosidade, que os patrões quando queriam castigar os seus escravos, ao invés de lhes prometerem chibatadas, assustavam-os com uma viagem a Olímpia. Acho que a viagem até lá, as acomodações, as horas ao sol de Agosto, a multidão... era tudo muito desgastante. Mas adiante. – e continuando a andar de um lado para o outro – A abertura dos Jogos Olímpicos implicava a distribuição de arautos que divulgavam a trégua sagrada que suspendia qualquer guerra num período mais alargado que as cerimónias em si. O objectivo não era tanto pacifista mas prático. Pretendia-se uma viagem segura de ida e volta para quantos se deslocassem à cidade de Olímpia.

Começo a descer a encosta, a ver se as incentivo a seguir-me. O objectivo é parcialmente conseguido. Cláudia arrasta os pés com moleza e a Leonor parece aceitar aquele despropósito. Não olharão para o relógio?

- Quanto tempo duravam os jogos? – indaga a Leonor, mantendo o curso da conversa. - Sete dias. – responde a Cláudia sem demora. – No estádio realizavam-se as provas

gímnicas: o pancrácio, o pugilato e o pentlato; e as corridas, simples, dupla, de fundo e com armas. As provas hípicas, como o hipismo e as corridas de carros, realizavam-se no hipódromo. Mas havia também outras provas menores, como concursos de arautos ou de tocadores de corneta.

- Quem ganhava era premiado com uma coroa de louros, certo? - Nos Jogos Píticos recebia-se como recompensa uma pala e uma coroa de louro. – ao

que regressando às provas consagradas a Zeus – Nos jogos olímpicos era uma coroa de folhas de oliveira. Mas o importante era a fama imorredoira a que, supostamente, tinham direito. A possibilidade do seu nome constar do Catálogo oficial dos vencedores, que existiria no ginásio. Nas estátuas ou na recepção calorosa da sua família, amigos e conterrâneos. Na aura cantada pelos poetas. – e sorrindo maliciosamente – Todos queriam ser heróis. Todavia, herói era apenas o vencedor.

- Então e “o mais importante não é vencer é participar”? – lembra a Leonor. A Cláudia tem uma contracção do rosto, tão instantânea quanto subtil. Depois remexe

as mãos de forma mais exagerada, acabando por encolher os ombros: - O barão de Cubertin instituiu o ideal dos Jogos Olímpicos da era moderna. Na

Grécia só havia um vencedor. Os demais eram reles vencidos, que assumiam derrotas pessoais pesadas, vermelhos de vergonha por terem perdido (mesmo que tivessem ficado em segundo lugar). Ao passarem pela rua, eram apontados com o dedo pelos transeuntes. – e puxando pela memória – Como era aquela frase de Píndaro? «Desapareciam pelas galerias traseiras, sozinhos, furtivos, dolorosamente agastados pela sua derrota». – e explicando, tão brevemente quanto lhe é possível – Sentiam-se feridos na sua honra. – e comparando – Hoje em dia é o contrário. Apesar do furor mediático pelas medalhas, o atleta e o espectador esforçam-se por

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dar provas de civilidade. Procuram divertir-se, confraternizar com os colegas; evitar atitudes violentas ou ataques de mau humor, num contexto pacífico e igual para todos, livre de corrupção e doping, propício às mostras de talento pessoal. – e respirando com força, um tanto desalentada – Dantes o ideal dos jogos era espelhado na sua prova mais importante e popular: o Pancrácio.

E está tudo dito. As cigarras parecem-me agora mais adormecidas. Ou então começo a habituar-me ao

seu canto. Olho para cima, virando a cabeça para as copas das árvores. Mas logo apresso o passo, para não ficar para trás.

Olhamos em volta. Não se avista ninguém do nosso grupo nas redondezas do templo de Apolo. Demorámo-nos quase quinze minutos mais do que a conta!

- Já devem estar no autocarro à nossa espera. – alerto-as, apanhando o cabelo com um elástico. Sim, porque estou cheia de calor. O sol está mais forte. – Que horas são? – ao que, espreitando o relógio – Na Grécia já é quase uma da tarde.

- Estou cheia de fome. – queixa-se a Leonor. O que a decide a tomar uma atitude; primeira que é a lançar-se às escadas de pedra, que

rolam colina abaixo. Tanto que desatamos a correr, e cada vez mais depressa, chegando a barrar com alguns dos turistas que só agora iniciam o percurso no santuário.

- Onde é que vocês se meteram? – repreende a mãe, barrando-nos a entrada. – Francamente, estávamos todos à vossa espera.

Desculpamo-nos. Mas é o acto de contrição da Leonor, com cara de bezerro mal morto e sorriso maroto, que apazigua todos quantos faziam má cara.

Sentamo-nos, enquanto o autocarro se vai metendo em marcha. A guia regressa ao seu posto, de microfone na mão. Ao que, depois de umas palavrinhas

ao motorista e de olhar em volta – sabe-se lá à procura do quê – resolve perguntar ao seu grupo de turistas preferidos – que são todos! – se gostaram do santuário.

Entusiasmada com o nosso ar de suor em bica, decide-se a falar do restaurante onde iremos tomar o nosso almoço.

Agora sim, os turistas lhe respondem com entusiasmo. Ela ri-se. Enquanto não chegamos ao destino, a guia resolve entreter-nos. A falar de quem, de quem? - Do maior dos heróis gregos. Alexandre Magno! Que visitou este maravilhoso

santuário – e aponta para o local de onde viemos a correr – antes de partir para as famosas campanhas da Ásia.

- Boa. – entusiasma-se a Leonor – Esse, ao menos, não é mito. Entusiasmo-me. Podemos começar por dizer que Júlio César é o Alexandre Magno dos romanos. Magno inspirou toda uma série de individualidades que, à força do seu exemplo, se

tornariam figuras históricas por mérito próprio. Segundo consta, Alexandre nasceu no ano de 356 a.C., na cidade de Pella que então

era a capital da Macedónia. Os seus pais eram o próprio rei Filipe II da Macedónia e Olímpia, princesa do Epiro.

Filho de um casal desavindo, cedo tomou posição pela mãe. Antes do pai ser assassinado, no ano de 336 a.C., e de Alexandre lhe suceder ao trono, recebeu lições particulares do filósofo Aristóteles, tutor exímio que lhe estimulou o gosto pela ciência, pela retórica e pela literatura. Aliás, o jovem general adorava a Ilíada de Homero e queria

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à força toda ser tão valoroso como um dos seus heróis, Aquiles filho de Peleu, cujos feitos considerava referência basilar para a sua conduta em vida.

Herdou um império turbulento, cheio de rebeliões e desafios à sua autoridade. Ao que ele respondeu aos seus inimigos com severidade, matando todos quantos fossem ameaça à sua pessoa ou aos seus projectos. �ão permitiu que a região da Tessália, imediatamente abaixo da Macedónia, conseguisse a independência. E acabou por ser eleito, em 335 a.C. na cidade de Corinto, por um congresso de estados; ao ponto de terminar esse ano a chefiar o exército grego contra os persas.

�em todos os estados gregos estavam ainda do seu lado, mas a sua submissão incondicional estaria para breve; em especial após a vitória de Alexandre sobre os Trácios, de ter vencido os Ilírios em apenas uma semana e de avançar sem dó nem piedade contra a insurrecta cidade de Tebas que acabou num mar de chamas, com os sobreviventes – cerca de 8000 – reduzidos à escravatura e de tudo, à excepção dos templos e da casa do poeta Píndaro, reduzido a escombros.

Antes de partir para a Ásia em 334 a. C., Alexandre terá vindo ao santuário de Delfos; quando provavelmente lhe apeteceu e numa altura que nem seria a melhor, uma vez que o oráculo estava proibido nesse dia. Mas como tal não o demoveu, exigiu que a Pitonisa se pronunciasse sobre a sua pessoa. Ao que esta lhe teria aparecido, para lhe dizer:

- Meu filho, és invencível! Levado talvez por estas palavras, Alexandre teria deixado Antipater a governar a

Macedónia em seu nome antes de partir com cerca de 35000 soldados para a Ásia. Consta que a primeira escala importante foi a cidade de Tróia, na qual prestou tributo

aos antigos heróis da guerra imortalizada por Homero. Os anos que se seguiram, foram empregues na queda do rei Dário da Pérsia. Meta alcançada quando Alexandre mal tinha 26 anos de idade.

Com o mundo a seus pés, optou por consolidar o império, ao invés de regressar à Macedónia e assim satisfazer as reivindicações dos seus homens que há muito sentiam saudades de casa e estavam fartos de lutar. E retomou a campanha, chegando a levar o seu exército tão longe quanto ao sul do Irão e o vale do Indo. Até que os soldados se revoltaram, não querendo avançar mais. Com certeza pela primeira vez na vida, Alexandre aquiesce perante a vontade geral, contrariando a sua. Foi o princípio do fim.

Entretanto, em termos pessoais, Alexandre sofria de ataques de epilepsia. Como se não bastasse, possuía um feitio hiperactivo, de altos e baixos.

Conta-se que, certo dia, por estar completamente bêbado, matou um dos seus amigos de longa data. Ao que ele, apercebendo-se do que tinha feito, ali mesmo se quis matar; não o tendo conseguido porque os seus guarda-costas lhe contrariaram a vontade; mas, ainda assim, isolou-se de toda a gente durante três dias.

Magno casou-se com Estatira, filha do rei Dário, de quem teve um menino. �essa época, fazia de sua residência favorita a corte da Babilónia e convencia os seus soldados a casarem com mulheres persas. Para que os dois povos se unissem, sob a sua égide.

Para o fim, convertido em semideus ao qual os persas se prostravam, Alexandre passou a proclamar-se descendente do lendário Héracles, filho de Zeus, insistindo em cunhar moedas com as feições de ambos. Para o qual terá contribuído a versão do seu nascimento, divulgada pela mãe Olímpia; que passara a asseverar que engravidara de uma serpente e não do marido, Filipe II da Macedónia.

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Maria Galito 75 Força do Exemplo, 2001

Quanto à morte de Alexandre propriamente dita, a dúvida subsiste. Depois do falecimento do seu maior amigo Hefaístos – alguns afirmam que era mais do que isso – Alexandre teve um grande desgosto, passando a dedicar-se a bebedeiras monumentais que fragilizaram a sua saúde. �ão muito depois, vacilava perante uma doença menor.

Chegaram a correr rumores de assassínio e conluio; outros dizem que morreu de doença. Hoje em dia, prefere-se a teoria de que morreu da cura; ou seja, que o seu médico exagerou na dose de medicamento que supostamente deveria salvar o herói, na tentativa de satisfazer o paciente que estava ansioso por recuperar a robustez e regressar ao combate.

Seja como for, aos 33 anos tornou-se numa lenda maior que a vida. E ainda é o orgulho supremo do povo grego.

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- Olha, chegámos ao restaurante. – avisa a Joana, retirando a música dos ouvidos. - Como é que sabes? – ainda me sai, virando-me para a janela. Pois eu estava a ouvir

a guia e nem me apercebi do caminho que seguíamos. Por seu lado, a Joana elogia os seus sucessos no jogo do telemóvel – que, por razões

óbvias, perdeu entretanto a bateria. - Já cheguei ao nível cinco, mana. Devias ver, bati um recorde fantástico. – sem

exclamações mas olhar vidrado, como é seu hábito. Sorrio-lhe. Ela fica toda contente. A mãe organiza-nos: - Estamos todos? Óptimo. – mas olhando para a Joana – Vens sobrecarregada com a

câmara de filmar para quê, posso saber? Vai levá-la ao autocarro, se não esqueces-te dela no restaurante. Vá, antes que o motorista se vá embora.

A Joana esconde-se atrás do pai, com um: - Não é preciso... – enrolando-se toda. O pai defende-a. A mãe insiste. Antes que os três aprofundem a questão, interfiro com

uma solução que agrade a todos: - Vou lá eu. Por isso interrompo a marcha; correndo para a entrada do autocarro, de onde saem os

últimos dois companheiros de viagem. Faço um sinal ao motorista – porque ele só percebe grego e duas palavras de inglês – e entro num autocarro já vazio. Faço o caminho no sentido inverso a uma velocidade superior, o que muito tranquiliza o condutor.

Contorno a esquina, a olhar para a estrada. Vou a atravessá-la, quando a Leonor me brame qualquer coisa.

- Queres o quê? – ainda pergunto. Mas um som vibrante e rasgado atravessa-me os ouvidos; ao ponto de me obrigar a

olhar para a estrada, onde um carro faz uma travagem brutal. De repente, o silêncio. Respiro fundo. Começo a tremer. Aquela máquina mal parou a tempo de me levar pelos ares. E agora quer passar,

buzinando com petulância. Retrocedo uns passos, para a berma, enquanto o condutor dá umas guinadas ao carro, soltando cobras e lagartos num grego rico em gestos.

A culpa terá sido minha? Mas porque vinha o carro tão depressa? E tão rente aos autocarros, sabendo que há um restaurante em frente e pessoas a cruzarem a estrada?

Continuo absorta, como que fechada numa estufa.

Page 39: Fo Força do Exemplo mplo · dia é o coração de um país que faz parte da União Europeia e enxerga longe, pois muito ... Todos correm qual os perseguisse uma manada de elefantes

Maria Galito 76 Força do Exemplo, 2001

Até que a mãe me enrola nos braços e me leva em segurança para o outro lado da estrada. Onde o pai me agarra pela cabeça e a Joana me puxa pela saia. A Leonor está justo à minha frente, a fazer macacadas. A Prof. Maria Eduarda à esquerda. O que é que a Cláudia está a dizer? Até o Dr. Montenegro! E o casal de advogados.

- Então, ficaste muda? – atira-me a Leonor. Parecer mais nervosa do que eu. – Não viste o meu sinal?

Respiro fundo. Fora precisamente o seu sinal que me confundira e me afastara a atenção dos carros que circulavam. Mas não o expresso em voz alta.

A mãe e o pai falam alternadamente, manifestando apreensão. A mãe insiste em perguntar-me se não me doem as pernas e os braços, se não terei rasgões na pele; e o pai tenta sossegar-me, passando-me a mão pelos cabelos. Parecem aliviados por eu ter sobrevivido à experiência, mas continuam tão aflitos que me vejo obrigada a falar:

- Eu estou bem. – tranquilizo, aventurando um sorriso. E com a coragem da roda dos moinhos, abro os braços – E cheia de fome!

Quem me rodeia, deixa-se rir. E assim engulo o embate que apanhei.

O almoço foi de despedida. A maioria dos nossos amigos regressa a Lisboa amanhã, num voo ao princípio da tarde. O casal de advogados fará primeiro escala em Londres, antes de chegar ao Porto mais ao fim do dia. Nós, como lhes explicamos – aos que ainda não sabem ou já não se lembram – seguimos ainda para Istambul, na Turquia.

- Bela viagem que os vossos pais vos ofereceram, meninas. – lembra o Dr. Montenegro, com o seu olhar circunspecto.

O pai prefere acrescentar, colocando-me o braço sobre o ombro: - A Sancha queria ver Tróia e eu resolvi fazer-lhe uma surpresa. Sorrio em resposta, agradecida. O pai prossegue, já preocupado com a sopa aguada que

lhe servem, espreitando-a com uma cabeça meio inclinada. - Não viajamos todos os anos, porque elas são três. – como quem diz que financiar

férias para cinco pessoas, exige algum sacrifício. – Por isso, quando saímos é em estilo!

A Prof. Maria Eduarda deixa-se rir. Parece concordar com a estratégia. Pouco depois, trocamos moradas e números de telefone. Que, como de costume,

ninguém fará questão de usar. Viro-me para a Cláudia, que está meio tristonha: - Acabaram-se as férias, não foi? Que pena. Ela motiva um esgar: - Não gostei muito da Grécia. Prefiro voltar para casa. Leonor finge que não ouve e agarra-se a ela e às manas: - Abraço de grupo! Abraço de grupo! Deixamo-nos rir e elevamos cânticos como se fossemos já universitárias.

(tem continuação – Parte III)