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CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO Stefania Sansone Bosco Giglio Rio de Janeiro Setembro de 2017

‡ÃO_FINAL_STEF… · 3 CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE TRADUÇÃO Stefania Sansone Bosco Giglio Orientador: Professor Doutor Ricardo de Souza Nogueira Dissertação

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    CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE

    TRADUÇÃO

    Stefania Sansone Bosco Giglio

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2017

  • 2

    CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE

    TRADUÇÃO

    Stefania Sansone Bosco Giglio

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de

    Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessários à obtenção do título de Mestre em Letras

    Clássicas.

    Orientador: Prof. Dr. Ricardo de Souza Nogueira

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2017

  • 3

    CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE

    TRADUÇÃO

    Stefania Sansone Bosco Giglio

    Orientador: Professor Doutor Ricardo de Souza Nogueira

    Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras

    Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

    necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.

    Examinada por:

    ______________________________________________________________________

    Presidente, Prof. Doutor Ricardo de Souza Nogueira, PPGLC - UFRJ

    ______________________________________________________________________

    Profa. Doutora Tania Martins Santos, PPGLC - UFRJ

    ______________________________________________________________________

    Profa. Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira, PPGCL - UFRJ

    ______________________________________________________________________

    Prof. Doutor Rainer Guggenberger, PPGLC – UFRJ (Suplente)

    ______________________________________________________________________

    Profa. Doutora Dulcileide Virginio do Nascimento Braga, UERJ (Suplente)

    Rio de Janeiro

    Setembro de 2017

  • 4

    GIGLIO, Stefania Sansone Bosco.

    Cavaleiros, de Aristófanes: Estudo de uma proposta de tradução/ Stefania Sansone

    Bosco Giglio – Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2017.

    170 f.; 31cm

    Orientador: Ricardo de Souza Nogueira.

    Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-graduação

    em Letras Clássicas, 2017.

    Referências Bibliográficas: f. 167-170

    1. Comédia Antiga 2. Cavaleiros de Aristófanes. 3.Tradução. 4. Cavaleiros, de

    Aristófanes: Estudo de uma proposta de tradução. I Nogueira, Ricardo de Souza. II.

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-

    graduação em Letras Clássicas. III. Cavaleiros, de Aristófanes: Estudo de uma

    proposta de tradução.

  • 5

    CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE

    TRADUÇÃO

    Stefania Sansone Bosco Giglio

    Orientador: Professor Doutor Ricardo de Souza Nogueira.

    Resumo da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação

    em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

    requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.

    Nesta pesquisa, procura-se refletir acerca da problemática da tradução de textos literários,

    em especial textos da Antiguidade Clássica, com base nas teorias de Berman (2007),

    Ricoeur (2011) e Campos (2015). Pretende-se pensar a prática tradutória e desenvolver

    uma proposta de tradução para a comédia Cavaleiros, de Aristófanes, representada nas

    Leneias de 424 a.C., a fim de (re)construir a linguagem cômica proposta pelo autor, em

    seu tempo, na língua portuguesa falada no Brasil. Além da tradução e das notas, serão

    apresentados os procedimentos da tradução recategorizados por Barbosa (1989)

    utilizados como suporte teórico para desenvolver a versão do texto do grego para o

    português.

    Palavras-chave: Comédia grega; Aristófanes; Cavaleiros; Estudos da tradução; Técnicas

    de tradução

  • 6

    CAVALEIROS, DE ARISTÓFANES: ESTUDO DE UMA PROPOSTA DE

    TRADUÇÃO

    Stefania Sansone Bosco Giglio

    Orientador: Professor Doutor Ricardo de Souza Nogueira.

    Abstract da Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação

    em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

    requisitos necessários para obtenção do Título de Mestre em Letras Clássicas.

    In this research, we try to reflect on the problematic of the translation of literary texts,

    especially texts of Classical Antiquity, based on theories of Berman (2007), Ricoeur

    (2011) and Campos (2015). The intention is to think the translation practice and develop

    a translation proposal for the comedy Knights by Aristophanes, represented in the Leneias

    of 424 BC, in order to (re)construct the comic language proposed by the author, in his

    time, in the Portuguese language spoken in Brazil. In addition to the translation and notes,

    the translation procedures recategorized by Barbosa (1989) will be presented as

    theoretical support to develop the version of the text from Greek to Portuguese.

    Keywords: Greek comedy; Aristophanes; Knights; Translation studies; Translation

    techniques

  • 7

    À família e amigos,

    À tia e professora Rosalia Bosco Giglio Alvarenga (in memoriam).

  • 8

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço, primeiramente, a Deus, por colocar pessoas tão iluminadas em meu caminho

    e por guiar todos os meus passos.

    Aos meus pais, Maria Francesca e Giuseppe, e ao meu irmão, Giuseppe, por acreditarem

    em mim e por estarem sempre comigo nos bons e nos maus momentos, e à minha grande

    família italiana, que muito incentiva minha formação humana e profissional.

    Ao meu orientador, professor e amigo, Ricardo Nogueira, pelo acolhimento, carinho,

    hospitalidade e leitura criteriosa, que tanto me auxiliaram nessa jornada. Sem sua

    orientação precisa e segura, nada do que se encontra produzido nestas páginas seria

    possível. Obrigada pelas correções e direcionamentos. Assumo as falhas contidas neste

    trabalho como de minha inteira responsabilidade.

    À Universidade Federal Fluminense, pela bagagem de conhecimento que me possibilitou

    adquirir e trocar, principalmente com as professoras Rosane Monnerat, Dalva Calvão,

    Flávia Amparo e Marisol Barenco, com quem vivi momentos inesquecíveis durante as

    aulas da graduação. Aprendi com elas que, quando existe amor no que se faz, a vida se

    torna mais bonita e as responsabilidades mais leves.

    À professora e amiga Greice Drumond, para quem não existem palavras suficientes para

    agradecer toda a experiência de vida e de troca profissional. Obrigada pelas maravilhosas

    aulas de língua e de literatura grega, pelos anos de orientação, parceria, amizade e

    incentivo.

    À professora e amiga Glória Onelley, pelo carinho, pelo incentivo e pelas maravilhosas

    aulas, que tanto me inspiraram a conhecer e aprofundar o estudo da língua grega.

    Ao professor e amigo Beethoven Alvarez, que me orientou durante um ano da graduação,

    com quem pude aprender a dar os primeiros passos na pesquisa acadêmica.

    À amiga Beatriz de Paoli, quem também muito me incentivou a ingressar na pós-gradução

    e me encorajou nos momentos mais difíceis.

    Aos professores que muito bem me acolheram na UFRJ: Auto Lyra, Tania Martins,

    Shirley Peçanha e Priscila Matsunaga, por proporcionarem reflexões que tanto me

    auxiliaram na escrita desta dissertação.

  • 9

    À professora Martha Alkimin, por aceitar generosamente compor a banca examinadora.

    À professora e amiga Marta Mega e aos colegas dos grupos HHAG (História e

    Historiografia da Antiguidade Grega) e Anexo, com quem pude olhar para a minha

    pesquisa com olhos interdisciplinares. Obrigada pelas trocas, pela hospitalidade e por me

    escolherem como professora de grego.

    Aos amigos todos, representados por Alfredo Vivas, Amanda Amaro, André Luiz Vieira,

    Bruna Almeida, Daniel Taveira, Fernanda Fernandes, Jack Rocha, João Pedro Andrade,

    José Victor Gripp, Juliana Brand, Laura Bettini, Luana Schweizer, Ludmila Carvalho,

    Marianne Cozzolino, Morena Santana, Nattália di Lanaro, Ricardo Borges, Thamires

    Barcelos e Thayane Marins. Muitos me acompanham desde a infância, outros chegaram

    depois, mas todos compartilham a vida, os sonhos e os anseios. Agradeço a amizade, o

    afeto, o companheirismo e a paciência em ouvir minhas ansiedades durante a escrita desse

    trabalho.

    Aos meus alunos, que me fazem todos os dias acreditar na possibilidade de mudança e na

    construção de um mundo melhor. Enxergar a realidade ao lado de vocês é uma dádiva!

    Finalmente, agradeço à CAPES pelo auxílio financeiro que tanto me auxiliou na

    realização desta pesquisa.

    Muito obrigada!

  • 10

    SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO.............................................................................................. 11

    2. A PROBLEMÁTICA DA TRADUÇÃO DE TEXTOS LITERÁRIOS........ 14

    3. OS TIPOS E TÉCNICAS DE TRADUÇÃO.................................................. 32

    4. ARISTÓFANES E O CONTEXO DE CAVALEIROS................................... 45

    4.1. Aristófanes e seu tempo................................................................................. 45

    4.2. Cavaleiros: conteúdo, crítica política e estrutura formal............................... 50

    5. TRADUÇÃO.................................................................................................. 58

    6. A TRADUÇÃO DOS NOMES DAS PERSONAGENS............................... 122

    7. O PROCESSO DE TRADUÇÃO DE CAVALEIROS NAS PASSAGENS DO

    TEXTO.......................................................................................................... 130

    7.1.Prólogo.......................................................................................................... 132

    7.2.Párodo........................................................................................................... 143

    7.3. Primeiro Agón.............................................................................................. 146

    7.4.Cena iâmbica de transição............................................................................ 148

    7.5.Primeira Parábase......................................................................................... 148

    7.6.Primeiro Episódio......................................................................................... 151

    7.7. Segundo Episódio........................................................................................ 153

    7.8. Segundo Agón............................................................................................. 155

    7.9. Terceiro Episódio........................................................................................ 159

    7.10. Quarto Episódio........................................................................................ 161

    7.11. Segunda Parábase..................................................................................... 162

    7.12. Êxodo........................................................................................................ 163

    8. CONCLUSÃO.............................................................................................. 164

    9. REFERÊNCIAS............................................................................................ 167

  • 11

    1. INTRODUÇÃO

    Traduzir Aristófanes na atualidade: essa foi a tarefa proposta para esta pesquisa

    de mestrado, iniciada em 2015. Verdade é que, majoritariamente, a tradução dos Clássicos

    tem sido o carro chefe das dissertações e teses de mestrado e doutorado. No entanto, será

    que se pensa na prática tradutória, levando, de fato, em consideração mecanismos capazes

    de auxiliar o processo, de acordo com o gênero a que pertence o texto e com a proposta

    de tradução colocada pelo tradutor? Essa questão motivou o desenvolvimento deste

    trabalho e permeou a tradução da peça Cavaleiros, do comediógrafo em questão.

    A justificativa primeira em se traduzir Cavaleiros foi o desejo de contribuir com

    uma tradução da peça voltada para o falante brasileiro de língua portuguesa, uma vez que,

    até o momento, há apenas uma tradução para o português dessa peça, realizada pela

    professora Maria de Fátima de Sousa e Silva, que é uma excelente tradução reeditada em

    2000, pela Editora UnB. Sua versão está voltada para os leitores lusitanos, leitores e

    falantes de uma variante da Língua Portuguesa. As soluções dadas pela tradutora, muitas

    vezes, não são inteligíveis para o público brasileiro que, embora seja falante da língua

    portuguesa, em determinados momentos apresenta dificuldades para ler e compreender

    sua versão. Acredita-se que, por se tratar de uma comédia, o tradutor de um texto cômico

    deve utilizar os dispositivos cômicos ao alcance dos leitores que o receberão, a fim de

    construir um texto claro, engraçado e capaz de transmitir o efeito proposto pelo gênero e

    pelo autor. A tradução lusitana, no entanto, adapta as piadas criadas por Aristófanes para

    o seu público leitor, apresenta uma sintaxe truncada e típica do falar, além de utilizar um

    vocabulário um tanto específico do português de Portugal.

    Dessa forma, o objetivo primeiro desta dissertação é traduzir a peça Cavaleiros

    para a língua portuguesa falada no Brasil, permeada de coloquialidade, com uma estrutura

    mais próxima à sintaxe dos brasileiros e com um significado que seja capaz de alcançar

    esses leitores, principalmente no que diz respeito à construção do sentido da linguagem

    cômica. Além disso, faz-se necessário pensar nessa prática tradutória e nas questões que

    foram fomentadas por ela acerca da metodologia de tradução utilizada, das escolhas

    lexicais e da construção do cômico como um todo.

    A tradução de um texto de sua língua original para outra língua está permeada por

    questões que podem nortear o desenvolvimento desta prática e, consequentemente,

  • 12

    determinar o seu resultado. A figura do tradutor é de suma relevância no processo, pois

    ele precisa optar por escolhas que não são tão simples, mas que devem ser pertinentes ao

    tipo de tradução que pretende fazer e ao público que deseja atingir.

    Há muito tempo se pensa a tradução como traição e se julga tal tarefa como

    impossível, pelo fato de não dar conta nem da forma nem do conteúdo que o texto original

    produz, transmitindo, certas vezes, uma interpretação do texto original por parte do

    tradutor. Este trabalho pretende refletir como traduzir uma obra literária sem romper, de

    certa forma, em conteúdo, com a obra original, utilizando-se de técnicas de tradução que

    auxiliem no processo e deem o suporte teórico necessário. Nesse sentido, essa dissertação

    divide-se em cinco capítulos, sendo um deles a própria tradução do corpus selecionado.

    No capítulo 2, intitulado “A PROBLEMÁTICA DA TRADUÇÃO DE TEXTOS

    LITERÁRIOS”, faz-se um estudo acerca da história da teoria da tradução, enquanto

    disciplina autônoma, não mais vinculada aos campos da linguística e teoria da literatura.

    Além disso, questões como traduzibilidade versus intraduzibilidade são discutidas com

    base nas seguintes teorias: em Berman, que condena a tradução domesticadora, elencando

    treze mecanismos que “deformam” a letra; na teoria de Ricoeur, que, menos radical,

    defende a ideia da possibilidade de se efetuar uma tradução, ainda que não se opte por

    uma perfeição e fidelidade à letra; e, finalmente, na teoria de Haroldo de Campos, que

    defende a possibilidade de recriação de um texto literário.

    O capítulo 3, intitulado “OS TIPOS E TÉCNICAS DE TRADUÇÃO”, consiste

    na sistematização dos tipos de tradução fixados por Bassnet (interlingual, intralingual e

    intersemiótica). Além disso, as técnicas de tradução recategorizadas por Barbosa, de

    extrema importância na realização da versão de Cavaleiros, foram apresentadas, definidas

    e explicadas.

    O capítulo 4, “ARISTÓFANES E O CONTEXTO DE CAVALEIROS”, apresenta

    o contexto histórico e ficcional da obra. Esse capítulo busca oferecer subsídios para que

    o leitor da tradução compreenda a obra, o contexto histórico e, principalmente, seja capaz

    de relacioná-los na composição da comédia, do gênero.

    O capítulo 5 traz consigo a tradução da peça, pautada na edição de Sommerstein

    (1997), cotejada, também, com as edições de Neil (1901) e Henderson (1998), e nos

    mecanismos de tradução elencados no capítulo sobre os tipos e técnicas de tradução.

  • 13

    Além da tradução, há, também, notas explicativas que esclarecem construções, escolhas

    lexicais e piadas, muitas vezes, adaptadas, mas cujo sentido original é explicado nas notas

    de rodapé, como uma técnica de tradução eficaz na compreensão da obra.

    No capítulo 6, “A TRADUÇÃO DO NOME DAS PERSONAGENS” inicia-se a

    proposta de estudo da tradução, com base nas leituras e interpretações realizadas pela

    crítica aos nomes das personagens que fazem parte da ação dramática. Da mesma

    maneira, utilizou-se das técnicas de tradução para auxiliar o processo e apresentar

    soluções que fossem capazes de trazer o texto grego para o público brasileiro.

    Finalmente, no capítulo 7, intitulado “O PROCESSO DE TRADUÇÃO DE

    CAVALEIROS”, desenvolve-se o estudo e aplicação das técnicas de tradução propostas

    por Barbosa em trechos de cada seção da peça, cuja divisão estrutural em prólogo, párodo,

    agón etc, se baseia na tradução para o francês de Navarre (1956). Esse capítulo

    exemplifica e justifica as escolhas lexicais, as adaptações e outros procedimentos

    escolhidos para traduzir o texto em questão e torná-lo mais compreensível para seu

    público leitor que, infelizmente, só possui o texto teatral escrito. Tal capítulo possui a

    forma de alguns comentários feitos às tomadas de posição no ato de traduzir a peça.

  • 14

    2. A PROBLEMÁTICA DA TRADUÇÃO DE TEXTOS LITERÁRIOS

    Diante das supérstites obras da Antiguidade Clássica, a tarefa delegada aos

    estudiosos da área, majoritariamente, volta-se para os estudos da tradução. Grande parte

    das obras estudadas precisam ser traduzidas para atingir um público acadêmico extenso,

    abrangendo não só a área das Letras Clássicas, mas também as áreas de conhecimento

    que necessitam desses textos como fontes. Cabe aos estudiosos da área de letras não só a

    tradução de tais obras, mas também as análises mais aprofundadas sobre o autor, da

    linguagem e, principalmente, da construção de sentidos proposta no texto original, em

    seu contexto de elaboração.

    O questionamento recorrente instaurado no âmbito dos estudos linguísticos acerca

    da tradução de textos literários direciona-se para as possibilidades e impossibilidades de

    traduzir uma obra literária. Essa indagação motivou a discussão de muitos autores sobre

    as questões de traduzibilidade e intraduzibilidade a respeito daquilo que é construído

    artisticamente por meio de uma escrita que reflete o sistema de uma língua em evolução

    em um determinado tempo, espaço e cultura. Será que a tradução poderia se concretizar

    através de uma linguagem não simplesmente informativa1, mas por uma linguagem

    poética e diferindo, de certa forma, da empregada originalmente pelo autor, com fins a se

    aproximar ao máximo, pelo menos em sentido, do discurso literário original construído?

    As distâncias temporais, espaciais e culturais são longas e complexas, mas seria possível

    diminuí-las por meio do ato tradutório? De acordo com Berman2 (2007, p. 32), existe um

    potencial de traduzibilidade, uma vez que “a tradução é, por assim dizer, a demonstração

    da unidade das línguas”.

    Em 1976, começou-se a pensar a tradução como uma disciplina autônoma, sem

    relacioná-la somente a uma parte dos campos da linguística ou da ciência da literatura.

    Surgia, portanto, neste momento, um campo de estudos vasto e complexo, para suprir a

    1 Utiliza-se a nomenclatura informativa aqui para qualificar textos de cunho técnico, como afirma Berman

    (2007, p. 64), ou seja, são mensagens visando a transmitir de forma (relativamente) unívoca uma certa

    quantidade de informações. Pensa-se aqui, portanto, que essas informações não são escritas com base em

    uma literariedade, como por exemplo, um artigo científico. A linguagem utilizada em textos informativos

    pode ser considerada diferente e simples, se comparada à linguagem de uma obra literária.

    2 Teórico e tradutor francês, considerado como um dos principais nomes nos estudos de tradução

    contemporâneo.

  • 15

    falta de autonomia que o processo tradutório possuía. Além disso, a tradução era

    reconhecida somente por estar relacionada ao resultado do progresso do ensino de línguas,

    já que não existia uma preocupação com o processo tradutório em si, apenas com o seu

    resultado. O foco da tradução direcionava-se para a compreensão de um aluno-tradutor

    no que tange às estruturas sintáticas e semânticas da língua de origem, sem levar em conta

    o processo criativo e o estilo da obra traduzida. Por conseguinte, estudar o ato tradutório

    confundia-se, como muitas vezes ainda hoje se confunde, como parte do aprendizado de

    línguas estrangeiras, desvalorizando e não reconhecendo o papel do tradutor e o fruto do

    seu trabalho. Dessa forma, neste período a tradução encontrou um espaço próprio para

    ser estudada e tratar de si mesma. Fez-se necessário superar tal problema em prol do

    estabelecimento de uma verdadeira ciência para o ato tradutório.

    André Lefevere3 (apud Bassnet, 2002, p. 12), em 1978, pensou, a partir da

    problemática levantada acerca da produção e descrição de traduções, em artigos

    apresentados no colóquio sobre literatura e tradução (Louvain Colloquium on Literature

    and Translation), em uma ciência que abordasse essas questões e fosse capaz de refletir

    seus procedimentos, técnicas e mecanismos. Com base nesses questionamentos, surgiram

    vários estudos e indagações acerca do que se entendia como tradução e de quais

    mecanismos um tradutor deveria valer-se para realizar tal tarefa.

    A tradução, antes de ser considerada uma disciplina autônoma, definia-se, de

    acordo com Bassnet (2002, p. 12), como:

    [...] a interpretação de um texto em sua língua original (SL) para uma língua

    de destino (TL), de modo a assegurar que (1) o significado de superfície dos

    dois será aproximadamente semelhante e (2) as estruturas da língua de origem

    serão preservadas tanto quanto possível, mas não tanto que as estruturas da

    língua de destino sejam seriamente distorcidas.4

    3 Teórico da tradução e professor da Universidade do Texas em Austin. Entre os pressupostos de suas ideias

    está a ideia de tradução como reescrita, a fim de garantir a sobrevivência das obras literárias e contribuir

    para a sobrevivência das obras de autores em qualquer tempo e espaço.

    4“[...] the rendering of a source language (SL) into the target language (TL) so as to ensure that (1) the

    surface meaning of the two will be approximately similar and (2) the structures of the SL will be preserved

    as closely as possible but not so closely that the TL structures will be seriously distorted.”As traduções das

    citações de textos em outras línguas, assim como as traduções de textos gregos, são de nossa inteira

    responsabilidade.

  • 16

    Pensando dessa forma, o interesse pelo ato tradutório preocupava-se em medir a

    competência linguística daqueles que tinham como objetivo ler, compreender e traduzir,

    de uma língua para outra, determinados textos. A tradução era meramente utilizada como

    um meio para demonstrar o entendimento sobre aquilo que fora lido e a competência dos

    alunos na sintaxe e na semântica. Essa prática proporcionava, de certa forma, a

    desvalorização do tradutor, pois, assim como ele, qualquer indivíduo que tivesse

    conhecimento de uma língua, tanto no nível estrutural como no nível lexical, seria capaz

    de produzir uma tradução.

    Mesmo sendo comum na área, tal procedimento não vigorou posteriormente com

    a evolução dos estudos sobre a tradução, pelo menos não no âmbito da tradução de obras

    literárias. Traduzir arte, se assim se puder reconhecer a produção literária da humanidade,

    somente a partir de um conhecimento estrutural e lexicográfico de uma língua, não daria

    conta da complexidade artística e cultural que emana do texto original. O texto literário

    possui em si a inventividade de seus autores, e, por isso, cabe ao tradutor refletir os

    mecanismos necessários para (re)construir o texto na língua desejada.

    Berman (2007, p. 17), em sua obra A tradução e a letra ou o albergue do

    longínquo, propõe, inicialmente, um estudo da tradução como “uma experiência que pode

    se abrir e se (re)encontrar na reflexão”, e, assim, cria uma possibilidade de meditação e

    experiência acerca do processo de tradução, em vez de levar em consideração

    simplesmente uma teoria e sua aplicação na prática. A ideia de tradução se constrói na

    relação entre uma obra e a “formação cultural de um povo” (PETRY, 2008, p.10), fato

    que contribui com a recepção do texto traduzido, ou seja, uma relação de troca, de

    alteridade entre o texto original e seu receptor.

    Para Berman (2007, p. 18), “tradução é experiência” a partir do momento em que

    o tradutor vive o processo de interpretar a obra, a língua, a cultura do objeto traduzido, e,

    sendo, de certa forma, alterado por isso tudo, “sofre” o processo do início até o fim. Assim

    como Petry (2008, p. 6), reconhece-se aqui que a tradução, segundo Berman, é relação

    entre o que vem da cultura de origem e se instaura na cultura de chegada, com base na

    relação entre obra e tradutor.

    O mesmo autor defende uma ideia do estudo da tradução como tradutologia, uma

    tentativa teórica de não elaborar uma metodologia que orientasse os tradutores durante a

    construção da tradução. Sua proposta não era de normatizar ou analisar o processo

  • 17

    tradutório em si, mas entender esse processo enquanto experiência, vivência, que precisa

    ser sentida do início ao fim do processo (2007, p. 19): “A tradutologia: a reflexão da

    tradução sobre si mesma a partir da sua natureza de experiência.”

    Para, então, pensar nas questões de tradutologia, encontram-se, na análise de

    Berman, dois traços marcantes e estilos de tradução: a tradução etnocêntrica e a tradução

    hipertextual. A tradução etnocêntrica é apresentada pelo autor nos seguintes termos:

    que traz tudo à sua própria cultura, as suas normas e valores, e considera o que

    se encontra fora dela – o estrangeiro – como negativo, ou, no máximo, bom

    para ser anexado, adaptado, para aumentar a riqueza desta cultura. (BERMAN,

    2007, p. 28)

    Esse estilo de tradução que altera o original de acordo com as exigências de valor

    do tradutor (e consequentemente dos leitores que o recebem) é historicamente

    compreensível, uma vez que São Jerônimo, no contexto da Roma cristã, foi o precursor

    da tradução etnocêntrica, no período em que os textos gregos eram traduzidos para o

    latim, adaptando o texto grego às normas do latim e à própria cultura latina, latinizando,

    portanto, a cultura grega que chegava a Roma. Tradução, nesse contexto, nada mais era

    do que uma “anexação de sentido”5, como demonstra Berman (2007, p. 33):

    Para que haja anexação, o sentido da obra estrangeira deve submeter-se à

    língua dita de chegada. Pois a captação não libera o sentido numa linguagem

    mais absoluta, mais ideal ou mais "racional": ela o encerra simplesmente numa

    outra língua, considerada, é verdade, como mais absoluta, mais ideal e mais

    racional. E esta é a essência da tradução etnocêntrica; fundada sobre a primazia

    do sentido, ela considera implicitamente ou não sua língua como um ser

    intocável e superior, que o ato de traduzir não poderia perturbar. Trata-se de

    introduzir o sentido estrangeiro de tal maneira que seja aclimatado, que a obra

    estrangeira apareça como um "fruto" da língua própria.

    Existem, portanto, dois princípios que norteiam essa tradução etnocêntrica

    (BERMAN, 2007, p. 33). É preciso, primeiramente, que a obra seja traduzida de forma

    que não se perceba a realização, de fato, de uma tradução, mas um texto criado na própria

    língua para a qual se está sendo traduzido. Em segundo lugar, a obra traduzida deve causar

    ao seu leitor de chegada a mesma impressão que o texto original causou para o seu leitor

    de origem. O tradutor, partindo dessa perspectiva de Berman, privilegia um modo de

    5 BERMAN, 2007, p. 30.

  • 18

    traduzir que preserva as características da língua de origem, “domesticando” o texto

    original em benefício da cultura da língua de chegada.

    Berman critica esse tipo de tradução etnocêntrica por apresentar um certo

    sentimento de superioridade a outras línguas, aproximando de sua cultura o outro, sob

    ótica da língua de chegada. Ele delimita, define e exemplifica treze “tendências

    deformadoras da letra”, que se apresentam resumidas abaixo:

    a) Racionalização: “A racionalização recompõe as frases e sequências de frases de

    maneira a arrumá-las conforme uma certa ideia da ordem de um discurso.” (Berman,

    2007, p. 48). Consiste na organização sintática das frases na língua de chegada, com

    fins a uma linearidade sequencial. Ignora-se, portanto, a sintaxe do original em prol

    da organização da ordem do discurso na língua de tradução.

    b) Clarificação: Tradução explicativa, impondo algo que outrora não estava definido;

    torna a tradução mais clara que o original. “A explicação visa a tornar "claro" o que

    não é e não quer ser no original. A passagem da polissemia à monossemia é um modo

    de clarificação. A tradução parafrásica ou explicativa.” (Berman, 2007, p.51)

    c) Alongamento: “A racionalização e clarificação exigem um alongamento, um

    desdobramento do que está, no original, "dobrado".” (Berman, 2007, p.51). Essa

    tendência é responsável por tornar a tradução mais longa do que o texto original, como

    resultado da racionalização e da clarificação.

    d) Enobrecimento: Consiste em “traduções "mais belas" (formalmente) do que o

    original” (Berman, 2007, p. 52), ou seja, “em poesia, isto produz a "poetização"; na

    prosa, uma "retoricização".”

    e) Empobrecimento qualitativo: Essa tendência “remete à substituição dos termos,

    expressões, modos de dizer do original por termos, expressões, modos de dizer, que

    não têm nem sua riqueza sonora, nem sua riqueza significante” (Berman, 2007, p. 53).

    Nota-se, portanto, uma substituição de termos do original por outros que não têm a

    mesma riqueza significante e sonora.

    f) Empobrecimento quantitativo: Quando há um desperdício lexical (Berman, 2007,

    p.54), em que, na tradução, há a opção em utilizar um termo de significado restrito

    para designar uma palavra cujo significado é amplo.

    g) Homogeinização: Resultado de todas as tendências já citadas (Berman, 2007, p. 55).

    h) Destruição dos ritmos: Alteração do ritmo original, como através da pontuação

    (Berman, 2007, p. 56).

  • 19

    i) Destruição das redes de significados subjacentes: Destruição da estrutura do texto

    quanto à escolha vocabular, que também faz parte dos significantes que formam

    “redes sob a superfície do texto” (Berman, 2007, pp. 56).

    j) Destruição dos sistematismos: Alteração da construção sintática e dos tempos verbais

    empregados (Berman, 2007, p. 57).

    k) Destruição ou exotização das redes de linguagens vernaculares: Supressão do

    vernacular do texto (diminutivos, substituição dos verbos ativos por verbos com

    substantivos) ou exotização (Berman, 2007, p.59).

    l) Destruição das locuções: Substituição de provérbios e expressões por construções

    equivalentes de sentido (Berman, 2007, p.60).

    m) Apagamento das superposições das línguas: As variedades linguísticas do texto

    original são substituídas pela variedade padrão da língua de tradução (Berman, 2007,

    p. 61).

    Nota-se que a tradução etnocêntrica não apresenta grande preocupação em manter

    o que, de certa forma, pertence a uma cultura específica, que está em processo de versão

    para uma outra língua. A todo instante o original é “adaptado” para o público que o

    receberá. Vale questionar se esse tipo de tradução acontece por querer reafirmar sua

    cultura e/ou, ao mesmo tempo, distanciar aquilo que é diferente de si.

    Diante de sua experiência enquanto tradutor, é fato compreensível tal análise de

    Berman, pois, dentro do seu tempo, o tradutor e crítico encontrava-se diante de uma

    polaridade tradutória: de um lado, a postura francesa de receber os textos e adaptá-los à

    sua maneira – as chamadas belas infiéis –, de outro a proposta de tradução alemã, cujo

    principal interesse era manter em sua língua aquilo que chegava de novo, enxergando, de

    certa forma, esse processo como uma forma de expandir, adicionar e enriquecer a cultura

    local (BERMAN, 2007, p. 29).

    Essa concepção abordada por Berman ainda se mostra pertinente e discutível na

    atualidade, no que tange à postura do tradutor enquanto o primeiro leitor da obra e o

    responsável por torná-la legível ao seu público. O diferente, o estrangeiro, muitas vezes,

    é capaz de assustar e não poder trazer consigo os seus valores, a sua cultura para

    transformar, construir e até mesmo ser capaz de se identificar com aquele que o recebe.

    Pelo fato de adaptar o texto à realidade que o receberá, Berman (2007, p. 36)

    também trata de um estilo de tradução chamado hipertextual, que consiste na criação de

  • 20

    textos por imitação, paródia, adaptação, plágio ou qualquer outra espécie de

    transformação formal a partir de um outro texto já existente.

    Segundo Petry (2009, p. 3), Berman condena esses tipos de tradução como

    portadoras de uma ética negativa e são responsáveis pelo que ele chama de sistema de

    deformação, muitas vezes, inerente à tarefa do tradutor, quando este apaga o Outro, o

    Estrangeiro, no momento em que visa um texto mais acessível ao seu leitor, adaptando-o

    à cultura de chegada. Contudo, Berman afirma que, se há uma ética negativa, há,

    consequentemente, uma ética positiva, cujo ato ético da tradução “consiste em reconhecer

    e receber o Outro enquanto Outro.” (2007, p.68).

    Trazer o diferente para um possível (re)conhecimento é uma tarefa importante

    para se abordar as relações entre texto, tradutor e, principalmente, público de chegada.

    Reconhecer o outro enquanto outro é fundamental e faz parte da leitura. Contudo, esse

    outro também precisa imergir no mundo daquele que o recebe, para que este também

    possa compreender a outra cultura com seus próprios olhos. Não com os olhos de quem

    condena uma cultura estranha da sua, mas daquele que a recebe, a reconhece e é capaz de

    reconhecê-la dentro de sua própria língua.

    Nota-se uma pequena contradição na proposta inicial de Berman, segundo Battisti

    (2000, p. 22), voltada para a reflexão do ato tradutório, ao definir como certa e coerente

    apenas uma postura a seguir durante o processo tradutório, o que ele considerava

    infrutífero e capaz de apenas categorizar o processo em si. O teórico defendia a tarefa do

    tradutor enquanto parte fundamental do processo, no entanto, na maioria das vezes, não

    leva em consideração sua tarefa, permeada por uma experiência extremamente subjetiva

    com fins específicos, como outrora argumentava. O texto original não deveria, desta

    forma, passar por alterações vivenciadas pelo tradutor na prática, visto que chegaria sem

    grandes alterações e estaria “fiel” à forma, à letra e, segundo o autor, consequentemente

    ao conteúdo. A tradução ora seria portadora de uma ética positiva se chegasse ao seu

    leitor como fiel à letra, ao conteúdo, ora seria portadora de uma ética negativa se realizada

    se apropriando da língua e da cultura de seu leitor.

    Enquanto Berman aborda a tradução de uma forma mais filosófica e, de certa

    forma, mantendo apenas uma vertente de ideia a ser seguida, Ricoeur em sua obra Sobre

    a Tradução (2011) pensa a tradução de maneira muito “prática” (2011, p. 7) em três

    ensaios. Ele deixa a reflexão filosófica acerca das possibilidades e impossibilidades da

    tradução um pouco para trás e traz à tona as questões envolvendo fidelidade versus

  • 21

    traição. Traduzir, para ele, também é algo difícil, e sempre se deve ter em mente um

    sentimento de perda ao se traduzir uma obra (RICOEUR, 2011, p. 22).

    Para legitimar sua teoria que defende a dicotomia fidelidade versus traição,

    Ricoeur (2011, p. 22) afirma que traduzir é “servir a dois mestres”, nesse caso ao

    estrangeiro, ou seja, ao autor de uma obra, e ao leitor, aquele que quer se apropriar desta

    obra. Dessa forma, ele acaba chegando ao que propõe Schleiermacher (apud Ricoeur,

    2011, p. 22) quando reflete sobre a prática tradutória nos termos a “levar o leitor ao autor”

    ou “levar o autor ao leitor”. É possível se deparar, então, com a problemática proposta

    por Ricoeur.

    Quando se pensa em levar um determinado autor para um leitor, logo se tenta

    facilitar a leitura, colocando no texto já traduzido as interpretações do tradutor com vistas

    a estabelecer uma ponte de significância entre o conteúdo traduzido e aquilo que é

    necessário ao receptor para compreender a obra, ou seja, faz-se uso de técnicas, como a

    adaptação de expressões do texto original para o seu futuro leitor. Por outro lado, na

    medida em que se leva um leitor para o autor, entende-se que, por mais que exista certa

    adaptação linguística, o leitor seria levado principalmente para a cultura desse autor, sem

    adaptações, sem alteração no conteúdo e na forma da mensagem.

    Diferentemente de Berman, Ricoeur mostra-se neutro no que se refere à prática

    tradutória e afirma que, embora o tradutor queira permanecer fiel ao texto original, deve

    “renunciar ao ideal da tradução perfeita” (2011, p. 27). No caso da poesia, por exemplo,

    por esta ser construída com base em uma linguagem inventiva e passível de desconstrução

    no nível do conteúdo, esse ideal encaixa-se perfeitamente. Ricoeur, portanto, propõe um

    equilíbrio de forças por meio da dicotomia exemplificada pela imagem de servidão a dois

    mestres, o autor e o leitor.

    A poesia, segundo Ricoeur oferece mais dificuldade para a tradução, pois trabalha

    tanto no nível do sentido, como no nível da sonoridade (significado e significante).

    Laranjeiras (2003, p. 11) compartilha da mesma opinião. As obras filosóficas, embora

    não apresentando, muitas vezes, construções significantes no nível da sonoridade,

    segundo Ricoeur (2011, p. 25), possuem conceitos que não se mostram superposáveis6 de

    uma língua a outra e, como ele mesmo diz, “são elas mesmas condensações de

    6 Esse termo é do próprio autor quando compreende que conceitos filosóficos de tempos diferentes e

    contextos diferentes não podem ser substituídos ou compreendidos a partir de outra visão de mundo.

  • 22

    textualidade longa, na qual contextos inteiros se refletem”. Essas condensações podem

    ser compreendidas como o significado de termos específicos de uma língua dentro de

    uma obra filosófica, e até mesmo literária em meio ao seu contexto de elaboração.

    Berman (apud Battisti, 2000, pp. 39-40) ainda, diferencia dois termos que muitas

    vezes podem parecer sinônimos, mas que resumem bem a ideia de Ricoeur: a diferença

    entre “obra” e “texto”. Ainda que não seja o foco deste trabalho diferenciar tais conceitos,

    torna-se interessante para se perceber como são compreendidos por tal autor,

    relacionando-o com a diferenciação proposta por Ricoeur nas diversas experiências de

    tradução, visando o tipo de texto traduzido. A tradução de uma obra deve ser o mais fiel

    quanto possível do original para manter a infinidade de sentidos que possui pelo seu

    caráter literário. Já a tradução de um texto poderia sofrer alterações ou passar por

    adaptações ou qualquer outro processo contido em seu sistema de deformação por

    meramente ser um texto informativo, cuja função é simplesmente informar a respeito de

    um determinado conteúdo.

    Como já tratado anteriormente, Berman está interessado em um tipo de tradução

    em detrimento de outra, discordando com o que de fato defende Ricoeur em propor uma

    tradução baseada na “situação”, se assim se puder afirmar. No entanto, a diferença entre

    obra e texto é capaz também de revelar pontos em comum entre a teoria de tais autores,

    que entendem uma obra literária como portadora de uma poeticidade infindável, que

    precisa ser ora mantida, ora adaptada.

    Quanto ao processo de tradução pensado e efetuado nesta dissertação, pode-se

    dizer que a experiência tradutória durante o ato de se verter um texto da língua grega para

    o português foi capaz de ressaltar os pontos abordados por tais autores. Alguns vocábulos

    do grego não apresentam equivalentes semânticos na cultura da língua de chegada e, para

    tentar solucionar esse problema, não se pretendeu optar por uma adequação em

    determinados casos, mas por manter a palavra estrangeira na tradução. No entanto, há

    momentos em que a adequação precisa ser feita, pois é necessário construir a linguagem

    cômica do texto grego na língua portuguesa.

    O leitor perceberá que, ao longo da tradução da peça Cavaleiros, são mantidos, na

    medida do possível, vocábulos com a mesma realidade sonora da língua original, pois

    somente serão transliterados para o alfabeto latino, visto que, segundo Ricoeur (2011, p.

    47) “uma boa tradução só pode visar uma equivalência presumida, não fundada numa

  • 23

    identidade de sentido demonstrável. Uma equivalência sem identidade”. Ver-se-á adiante

    que essa também é uma técnica de tradução que consiste em trazer para a língua de

    chegada um conceito que não existe em sua cultura e que, por isso, não teria possibilidade

    de ser traduzido por uma palavra equivalente, sem perda do valor semântico e cognitivo.

    Tomando por base a visão de Ricoeur, pode-se dizer que não só os campos

    semânticos são colocados em questão, mas também a sintaxe, as formas de construção

    das frases, que muitas vezes oferecem um risco de intraduzibilidade. Há vários exemplos

    disso na versão do grego para o português, pois enquanto a primeira possui uma sintaxe

    predominantemente sintética e, por isso mesmo livre, quanto à ordenação das palavras no

    enunciado, a segunda língua apresenta uma sintaxe predominantemente analítica e presa,

    portanto, à ordem das palavras na frase.7 Além disso, a poesia grega por excelência

    usufruía muito da oralidade, do som, da presença de partículas que, muitas vezes,

    encontravam na sonoridade um bom resultado para seu efeito, seja de ênfase, de

    introdução de uma pergunta ou de uma dúvida.8 Como se deve, então, traduzir essas

    estruturas para uma língua que não se serve tanto de partículas, como o português?

    O maior problema concernente à tradução, portanto, é o próprio instrumento que

    torna possível tal ação, ou seja, a língua representada em sua realidade escrita, que é

    empregada em estreita relação com a língua original presente no texto do autor. Essas

    línguas são diferentes, pois abarcam realidades linguísticas diferentes. Forma-se, assim,

    7 Note o início do prólogo de Cavaleiros (vv. 2-3):

    κακῶς Παφλαγόνα τὸν νεώνητον κακὸν

    αὐταῖσι βουλαῖς ἀπολέσειαν οἱ θεοί.

    Bem que os deuses podiam destruir Paflagônio,

    a nova desgraça adquirida,e seus planos.

    Nos versos acima, a ordem sintática apresentada não segue as mesmas regras do português: sujeito + verbo

    + complementos (tanto os objetos verbais, quando as circunstâncias. Percebe-se que os advérbios e o

    complemento verbal vêm antes do verbo, que se encontra no final da frase, antes do sujeito. Em Português,

    devido à sua sintaxe presa, o advérbio κακῶς deveria estar próximo ao verbo que constrói sua significação

    dentro do texto.

    8 É interessante mencionar aqui que na Grécia Arcaica e Clássica não havia espaçamento ou sinais de

    pontuação, sinais esses introduzidos por gramáticos alexandrinos no momento em que a cultura grega se

    espalhou pelo mundo após as conquistas de Alexandre. Eram as partículas gregas, portanto, e a sua inserção

    no próprio contexto de elaboração da obra que concediam a pontuação nos textos gregos. Assim, o tradutor

    desse tipo de texto coloca-se diante de um duplo problema: o foco sobre as partículas e a pontuação

    estabelecida pelos editores que se debruçaram sobre um texto manuscrito já alterado no decorrer do tempo.

    Esse problema será melhor vislumbrado quando houver o cotejamento entre as edições de texto pensadas

    no ato tradutório de Cavaleiros.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kakw%3Ds&la=greek&can=kakw%3Ds0&prior=i)attatai=http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=*paflago%2Fna&la=greek&can=*paflago%2Fna0&prior=kakw=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=to%5Cn&la=greek&can=to%5Cn0&prior=*paflago/nahttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=new%2Fnhton&la=greek&can=new%2Fnhton0&prior=to/nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kako%5Cn&la=greek&can=kako%5Cn0&prior=new/nhtonhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=au%29tai%3Dsi&la=greek&can=au%29tai%3Dsi0&prior=kako/nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=boulai%3Ds&la=greek&can=boulai%3Ds0&prior=au)tai=sihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29pole%2Fseian&la=greek&can=a%29pole%2Fseian0&prior=boulai=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=oi%28&la=greek&can=oi%280&prior=a)pole/seianhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=qeoi%2F&la=greek&can=qeoi%2F0&prior=oi(http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kakw%3Ds&la=greek&can=kakw%3Ds0&prior=i)attatai=

  • 24

    um paradoxo, uma vez que a própria língua necessária à tradução coloca-se como um

    problema para a existência dessa mesma tradução, uma vez que se opõe à língua original

    utilizada na obra por servir a uma sociedade completamente diversa em tempo, espaço e

    cultura. A palavra “idioma” consegue refletir perfeitamente essa problemática subjacente

    ao ato tradutório. Pensando basicamente na sua formação, a partir do acréscimo do sufixo

    -μα, que significa produto ou resultado de uma ação, ao adjetivo ἴδιος (próprio,

    particular), deriva-se o termo ἰδίωμα que, etimologicamente, possui o significado de

    “produto particular” ou seja, o produto do instrumento pertencente exclusivamente ao

    falante de certa comunidade, o instrumento linguístico por meio do qual tal falante pensa

    e fala sua realidade circundante.

    Como, então, esse produto que traz um significado particular de um tempo

    específico poderia ter seu significado recriado em outro idioma? Como traduzir, portanto,

    o texto de uma peça de teatro encenada no V século a.C. e que já chegou para a

    posteridade via copistas que, se são responsáveis por sua permanência, o modificaram em

    sua essência original? Como deixar que os “olhos” do leitor moderno, influenciados por

    seu tempo, sua cultura, consigam olhar para as obras sem colocar nelas, muitas vezes,

    preconceitos enraizados no presente? Como fazer com que esse mesmo leitor não

    compreenda de forma diferente dos destinatários do passado ideias e pensamentos que se

    encontravam em pleno processo de elaboração na antiguidade?

    Ler os gregos antigos, mesmo sendo por meio de uma tradução, é uma tarefa

    laboriosa, principalmente no que diz respeito ao espaço de tempo que separa os autores e

    a época de composição de suas obras da atualidade. Além disso, há outro elemento

    problemático: o fato de se tentar traduzir textos teatrais. Textos esses que foram sim

    fixados por escrito, mas, para além da escrita, existia a representação das peças, os

    elementos extraverbais que faziam parte da estrutura do gênero e possuíam um

    significado em conjunto com o texto para formar a totalidade da obra.

    Quando se reflete a respeito da tradução de um texto artístico de estrutura

    elaborada, pensa-se, na maior parte nas vezes, na tentativa de manter a expressividade e

    o conteúdo do texto original, ao mesmo tempo fazendo com que ele seja mais deleitável

    e convidativo para os receptores que, logicamente, não possuem conhecimento da língua

    a ser traduzida e talvez até mesmo dos conceitos que permeiam um texto. Seria preciso,

    então, “limpar a vista” do leitor de conceitos pré-concebidos e de ideias do seu cotidiano,

  • 25

    mas isso só seria possível se fosse proposta uma tradução integralmente etnocêntrica, sem

    levar em consideração seu contexto de produção e os mecanismos que fazem um texto

    pertencer a um gênero específico. Porém, dar a ele condições para que seja capaz de ler

    essa literatura, e até mesmo compreendê-la como um espetáculo pertencente a um tempo

    específico repleto de questões políticas, sociais, morais e pedagógicas, é uma tarefa

    possível, levando-se em conta determinados mecanismos de tradução, que vão além de

    uma tradução unicamente etnocêntrica.

    Berman e Ricoeur dialogam nesta pesquisa, pois não se pretende traduzir o texto

    cômico apenas para ser mais uma fonte da Antiguidade, uma leitura completamente

    voltada para o conteúdo de uma peça encenada no V século. Este projeto, ao traduzir uma

    peça de Aristófanes, pretende fornecer ao público atual uma obra de arte do gênero

    cômico no que tange a sua linguagem, com a criação de trocadilhos, piadas e referências

    políticas. Contudo, quando Berman propõe que se reconheça o outro enquanto outro,

    grandes questões podem ser solucionadas no impasse de se manter um vocábulo, um

    significado, um sentido original. Muito do que se conhece do mundo grego precisa ser

    mantido na tradução, pois são elementos fundamentais para caracterizar uma cultura, um

    tempo passado de cujos conceitos e ideias em processo de elaboração são significativos

    para essa cultura.

    Não é inutilmente que, hoje em dia, no campo dos Estudos Clássicos, surge grande

    interesse pela prática tradutória, suas teorias, técnicas e reflexões. Interesse válido, pois,

    como já dito, a tarefa principal dos pesquisadores em Língua e Literatura Grega

    concentra-se, majoritariamente, em traduzir e realizar estudos com base nessas traduções.

    Em uma conferência apresentada recentemente na Universidade Federal

    Fluminense, a professora Adriane Duarte expôs um panorama da tradução dos clássicos

    realizada por figuras não relacionadas com os estudos clássicos e a importância do estudo

    acadêmico tanto de grego, quanto de latim para a permanência e aumento das traduções

    e estudos relacionados à área. A professora em questão é uma das principais tradutoras

    de Aristófanes no mercado e destacou que (DUARTE, 2016, p. 26):

    [...] as traduções, hoje o principal veículo de dar a conhecer o mundo grego e

    latino, devem cumprir o papel de atualizar os clássicos para cada geração. O

    tradutor, como o primeiro intérprete de um texto, é o elo inicial de uma rede

    que visa a tornar o clássico vivo, presente, para a sociedade. Mas o tradutor

    também é parte da rede que começa com o texto grego ou latino, seu contexto,

    a história de sua recepção, sua tradução pregressa na língua materna de tradutor

    e leitores [...]

  • 26

    A ideia levantada por Duarte dialoga com o que Vasconcellos (2011, p. 69), em

    seu artigo sobre a experiência da tradução poética nos Estudos Clássicos, procura discutir

    quando fala das atitudes e práticas no âmbito da tradução, no que diz respeito à fidelidade

    ao sentindo, ao “fetiche” pela tradução literal e à rejeição à tradução criativa, temas atuais

    e muito recorrentes para a crítica da tradução de textos clássicos. A academia preza por

    traduções ditas “fieis” ao texto original, baseadas basicamente tanto na tradução palavra

    por palavra, como na literal, justamente por tentar manter a primazia do significado. Aqui

    se esbarra, então, em uma questão importante: o significado superposto à forma, à

    construção de sentido.

    Vasconcellos, com base na leitura de Haroldo de Campos – difusor do conceito

    de tradução poética –, defende que “toda tradução, de qualquer tipo de texto, qualquer

    tradução, é uma recriação.” (2011, p. 71). A justificativa desta teoria é fundamentada no

    fato de se utilizar um sistema linguístico diferente do texto original, com estruturas e

    implicações diferentes nesse sistema, tais como o conjunto de significantes e significados

    de uma língua para traduzir o que fora construído por um autor em um tempo e espaço

    completamente diferentes do seu leitor.

    Segundo o estudioso, pensar em uma tradução literal, a chamada “fiel ao original”,

    principalmente ao conteúdo, é plena ilusão, pois um texto em uma língua jamais poderá

    significar da mesma forma em outra língua. Além disso, não somente o conteúdo de um

    texto pode ser expressivo, mas também a sua forma, já que os significantes de um texto

    possuem sentido em uma obra literária.

    Diante das questões levantadas por Vasconcellos, foi possível refletir acerca dos

    objetivos de se traduzir uma comédia, em especial, em traduzir Cavaleiros. Para isso,

    retornar-se-á a uma das fontes do autor na escrita de seu artigo: Haroldo de Campos. No

    campo dos Estudos Clássicos, ele foi conhecido e reconhecido por suas traduções de

    Homero, com soluções pouco usuais, se comparadas a outras versões.

    Ao observar as teses sobre a impossibilidade da tradução de textos literários, o

    poeta e tradutor Haroldo de Campos (2015, p.4) defende a possibilidade não só da

    tradução, mas também da recriação de textos puramente criativos, verdadeiras obras de

    arte. Há, segundo Campos, uma relação de isomorfia capaz de relacionar as línguas, ainda

    que elas produzam uma informação estética diferente. Essa relação as aproxima pela

  • 27

    forma, mas as diferenciam enquanto linguagem, enquanto discurso, enquanto informação

    estética dentro de um tempo, espaço e cultura.

    Campos (2015, p.6) cita como exemplo máximo de tradutor recriador Ezra Pound,

    que traduziu poemas chineses, peças japonesas, trovadores provençais, Guido Cavalcanti,

    Propércio e, inclusive, Sófocles, com a peça Traquínias em um coloquial americano,

    desviando-a de uma variante padrão da língua. Seu lema era make it new: “dar vida ao

    passado literário válido via tradução” (CAMPOS, 2015, p. 6).

    É possível, dessa forma, não só traduzir um texto, mas também recriá-lo dentro da

    língua que agora o recebe. Como fazer, então, com a comédia? Como trazer uma peça de

    Aristófanes, do V século a.C., para o Brasil, em pleno século XXI? Sim, segundo Campos,

    é possível e importante realizar esta tarefa, devido ao foco do ensino de literatura, que se

    utiliza das traduções dos textos para construir uma crítica via tradução:

    Se a tradução é uma forma privilegiada de leitura crítica, será através dela que

    se poderão conduzir outros poetas, amadores e estudantes de literatura à

    penetração no âmago do texto artístico, nos seus mecanismos e engrenagens

    mais íntimos (CAMPOS, 2015, p. 17).

    A tradução, então, será responsável por, além de facilitar a leitura de quem não

    domina a língua original, propiciar que os estudantes e interessados pela área tomem o

    texto para o estudarem em uma nova construção de sentido, de discurso e de texto. Além

    disso, Campos (2015, p. 17) enxerga o trabalho tradutório da recriação como um campo

    especializado, reconhecida a importância do papel dos linguistas e poetas na construção

    do texto.

    [...] é necessário que o artista (poeta ou prosador) tenha da tradução uma ideia

    correta, como labor altamente especializado, que requer uma dedicação

    amorosa e pertinaz, e que, de sua parte, o professor de língua tenha aquilo que

    Eliot chamou de “olho criativo”, isto é, não esteja bitolado por preconceitos

    acadêmicos, mas sim encontre na colaboração para a recriação de uma obra de

    arte verbal aquele júbilo particular que vem de uma beleza não para

    contemplação, mas de uma beleza para a ação ou em ação (CAMPOS, 2015,

    p.17).

    Desta forma, o trabalho do tradutor estende-se ao de professor e pesquisador,

    passando pelo da criação poética, pela possibilidade de pensar o texto na língua de

    chegada, de dar vida ao passado no momento aqui e agora.

  • 28

    Da mesma maneira, para se consumar o ato tradutório, faz-se necessário o

    conhecimento de características do tempo do autor, no caso de Aristófanes, da

    constituição da pólis do período clássico e até mesmo dos problemas políticos que dela

    surgiam. Nesse sentido, é preciso analisar o contexto histórico e político que vigorava no

    momento da criação e representação da peça Cavaleiros. Assim será possível conduzir o

    leitor para a proposta de tradução apresentada neste trabalho, de modo que ele possa

    compreender as referências ao contexto político de seu tempo e o uso ficcional desses

    mesmos referentes no texto construído pelo autor, mesmo em uma tradução que ora opta

    por recriar a realidade do passado no presente.

    Obviamente, a tradução de um texto de sua língua original para outra língua está

    permeada por questões que podem nortear o desenvolvimento desta prática e,

    consequentemente, determinar o seu resultado. O tradutor precisa optar por escolhas que

    não são tão simples, mas que precisam ser pertinentes ao tipo de tradução que pretende

    fazer e ao público que deseja atingir. Há muito tempo se pensa a tradução como traição e

    se julga tal tarefa como impossível, pelo fato de ela não dar conta nem da forma nem do

    conteúdo que o texto original produz, transmitindo, certas vezes, uma interpretação do

    texto original por parte do tradutor. Pretende-se, portanto, refletir (e de fato concretizar)

    como traduzir uma obra literária sem romper, de certa forma, em conteúdo, com a obra

    original, utilizando-se de técnicas de tradução que auxiliem no processo e deem o suporte

    teórico necessário, a fim de apresentar caminhos para possíveis soluções durante a

    tradução, no intuito de empregar esse aparato na versão do texto grego de Cavaleiros para

    o português coloquial9 falado no Brasil.

    A primeira questão que envolve a tradução de Cavaleiros, de Aristófanes, faz-se

    presente pelo fato de a obra possuir um discurso estético de estilo teatral característico de

    um tempo, mais especificamente de 424 a.C. Já é possível perceber aqui dois obstáculos:

    um cronológico, pois o texto pertence a Antiguidade helênica, e outro performático, uma

    vez que não se possui sua representação cênica. A peça fora encenada em um tempo em

    que não havia registro das representações, pois, nesse período, somente existiam

    pequenas referências cênicas nas didascálias, que eram como notas de rodapés nos textos

    dramáticos, e indicavam as direções e referências durante a peça.

    9 Entende-se por linguagem coloquial aquela cujos falantes não se preocupam com a norma culta de sua

    língua e enfatiza-se aqui que esse tipo de linguagem é mais uma teoria do que propriamente uma tentativa

    de reproduzir o falar de determinadas regiões ou comunidades específicas.

  • 29

    Também relacionado com o problema temporal mencionado, encontra-se, ainda,

    o obstáculo da distância cultural entre a Antiguidade e a atualidade, o que ocasiona uma

    série de significados que precisam ser atualizados e esclarecidos para o receptor moderno.

    Aristófanes foi um autor cômico que produziu suas peças teatrais entre os séculos V e IV

    a. C. Sabe-se que, nesse período, o teatro grego possuía uma relevância política

    importantíssima, pois nele se fazia o debate de questões que a sociedade vivia,

    questionavam-se as guerras, os problemas sociais, políticos e até mesmo literários. As

    peças cômicas do autor tratavam da realidade política do seu tempo, utilizando-se de

    caricaturas políticas e da ironia, valendo-se de referências históricas satirizadas por meio

    de piadas e gracejos. Para compreender as piadas, o leitor precisa conhecer o contexto em

    que Aristófanes escrevia, os problemas sociais de Atenas, os políticos, principalmente os

    demagogos de seu tempo, e os objetivos de sua comédia, que claramente iam além da

    intenção de vencer uma competição dramática.

    Ao se observar as teorias de todos os autores citados, percebe-se que as questões

    são latentes e extremamente filosóficas. O fato é que não há uma única possibilidade de

    tradução, assim como uma verdade absoluta acerca de como se traduzir, e que as inúmeras

    traduções de uma mesma obra, por exemplo, podem apresentar para os leitores qual seria

    a proposta do tradutor, pois traduzir é tomar uma posição, de acordo com os objetivos da

    leitura, da produção de sentidos de um texto poético. O ideal ao ato tradutório seria, então,

    a perfeita equivalência entre a obra original e a sua tradução. Contudo, como é impossível

    traduzir todos os elementos literários de um texto, resta ao tradutor a função de aproximar

    o máximo possível as duas instâncias, tanto do ponto de vista da forma, como do ponto

    de vista do conteúdo. Essa seria uma atitude fundamental para se chegar a um bom

    resultado na tradução de uma obra literária.

    Sabe-se que a comédia, no pouco tempo que durou, tinha uma estrutura e um

    objetivo de existir, enquanto produto da democracia de seu tempo. De acordo com Jaeger

    (1989, p. 421) tanto o crescimento como a decadência do gênero estavam relacionados

    justamente aos períodos de apogeu e de crise de Atenas. A comédia antiga viveu enquanto

    a democracia viveu, e esta era pensada, sobretudo, na parábase, lugar cênico onde o

    comediógrafo dirigia suas questões aos cidadãos.10 Havia liberdade de expressão,

    problemas políticos, sociais e culturais colocados na ágora, no espaço público, no teatro.

    10 Conforme a democracia e o imperialismo se deterioravam, a parábase desaparecia das peças cômicas

    aristofânicas.

  • 30

    Essa comédia significava em seu tempo com a utilização de uma linguagem coloquial,

    próxima da fala11, com a construção de personagens grotescos, com as sátiras políticas e

    com as ironias criadas por Aristófanes para construir no teatro uma imagem cômica da

    sociedade.

    Não se pretende, portanto, esgotar as possibilidades de tradução de Cavaleiros,

    mas estabelecer uma tradução cuja leitura seja capaz de traduzir os efeitos de sentido para

    o português, o que significa dizer que tentar-se-á priorizar a função primordial do gênero

    cômico do Período Clássico, a saber, fazer rir por meio da representação risível do

    contexto político ateniense, seja de maneira implícita, como, em Cavaleiros, o fato de se

    fazer referência a políticos atenienses em voga no período de encenação da peça, ou

    explícita, quando, por exemplo, nessa mesma comédia, Aristófanes utiliza termos que

    claramente fazem referência ao tragediógrafo Eurípides, uma das figuras preferidas do

    estilo mordaz do autor. Para tentar manter o tom cômico elaborado por Aristófanes,

    utilizar-se-á uma linguagem mais própria à comédia e o texto será traduzido de acordo

    com a ordem sintática do português, a fim de torná-lo mais acessível e convidativo ao

    leitor.

    Além disso, será preciso, como já dito, lançar mão de técnicas para a tradução do

    texto e algumas delas serão uma grande ferramenta para que o efeito cômico seja

    reproduzido na língua portuguesa. A técnica da adaptação, por exemplo, que consiste em

    recriar o texto na língua de chegada, por este não ter um equivalente cômico que provoque

    o riso e desperte o entendimento do leitor acerca da construção e do reconhecimento do

    gênero, como afirma Chapman (1983, p. 42):

    A fidelidade ao texto deve submeter-se à necessidade de se comunicar de

    forma clara e imediata com a audiência, uma vez que essa comunicação é vital

    para representar as qualidades cômicas da peça, e isso significa que devemos

    adaptá-la frequentemente, compensar um trocadilho ou uma brincadeira

    obscura, parafrasear, generalize e até mesmo excluir.12

    Vale ressaltar aqui que, embora a forma do texto exerça um papel fundamental

    para o seu significado, não se levará em consideração a métrica utilizada pelo poeta para

    11 Daí a preferência por versos iâmbicos: o tipo de métrica mais próximo do falar humano, segundo

    Aristóteles (Poet. 1449a 25-26).

    12 “Faithfulness to the text must yield to the necessity to communicate clearly and immediately with the

    audience, since such communication is vital in representing the play's comic qualities, and this means that

    we must frequently adapt, compensate for a pun or an obscure joke, paraphrase, generalise and even delete.”

  • 31

    realizar a tradução. A proposta de tradução criativa aqui apresentada visa, na maioria das

    vezes, apenas o significado. Contudo, em alguns momentos, o leitor perceberá que se

    tenta reproduzir, na tradução, o ritmo, os fonemas e as estratégias sonoras que Aristófanes

    utilizou para compor sua comédia.

  • 32

    3. OS TIPOS E TÉCNICAS DE TRADUÇÃO

    No capítulo anterior, destacou-se a necessidade da tradução de textos literários,

    bem como as possibilidades e impossibilidades que englobam tal prática, sob o ponto de

    vista de três teóricos que dialogam em prol da realização da tarefa tradutória. No entanto,

    faz-se necessário abordar a questão fundamental já colocada para o desenvolvimento

    desta pesquisa: como traduzir uma obra literária? Quais mecanismos facilitam o processo

    tradutório, viabilizando seu desenvolvimento e auxiliando na recriação de uma obra em

    uma língua diferente, como propõe Campos?

    Buscando responder tal indagação, com base na reflexão do ato tradutório a partir

    da sua prática como tradutora e professora, Barbosa (1989) propõe, em sua dissertação de

    mestrado, recaracterizar e recategorizar os procedimentos técnicos da tradução propostos,

    inicialmente, por Vinay e Darbelnet. A descrição proposta por esses autores, embora

    muito significativa para o campo em questão, era ainda insatisfatória e incompleta, pelo

    fato de enumerar apenas sete procedimentos tradutórios de acordo com o nível de

    dificuldade de realização do tradutor. Esses procedimentos direcionam a tarefa tradutória

    e buscam oferecer saídas técnicas para o processo e facilitar a tarefa do tradutor. A autora

    lança mão também da análise de outros autores que também tomaram por base os

    procedimentos de Vinay e Darbelnet, entre eles Nida (1964), Catford (1965), Vázquez-

    Ayora (1977) e Newmark (1981), pois incorporaram outras maneiras de traduzir e

    eliminaram aquilo que não consideravam pertinentes no estudo dos autores que abriram

    espaço para este campo (BARBOSA, 1989, p.24).

    Vinay e Darbelnet publicaram, em 1958, o livro Stylistique comparée du français

    et de l´anglais: Méthode de traduction, como parte da série Bibliothèque de Stylistique

    Comparée, utilizando a estilística comparada para comparar a tradução de enunciados do

    inglês para o francês e vice-versa, depois de uma viagem de Nova Iorque a Montreal. Ao

    observarem as traduções das placas de sinalização do inglês para o francês, perceberam

    que a versão fora feita de uma maneira da qual os franceses não o fariam, pelo fato de a

    tradução ter sido produzida com base no modelo linguístico e extralinguístico inglês, ou

    seja, não se levaram em consideração as estruturas linguísticas e a visão de mundo dos

    falantes de francês. Para que esse tipo de problema fosse sanado, estes autores, tomando

    por base a estilística comparada, procuraram levantar questões e soluções para traduções

    do tipo “Paul kicked the bucket” - Paulo chutou o balde – para falantes da língua

  • 33

    portuguesa, por exemplo, pois o significado da expressão em inglês não se relaciona com

    o significado literal dado pela tradução para o português. Essa expressão, em inglês,

    encontra-se no campo semântico da morte, “Paulo morreu” (BARBOSA, 1989, p. 28).

    Contudo, para os falantes do português, indica o fato de Paulo desistir de alguma situação

    de forma violenta, sem pensar muito nas consequências de suas ações.

    Os autores pretenderam, nessa obra, tratar da tradução interlinguística com base

    nos estudos da estilística comparada, pois é preciso relacionar as duas línguas para que a

    tradução seja efetivada, como ressalta Bastianetto (apud Barbosa, 1989, p. 15), ao

    compreender a estilística comparada aplicada à tradução de acordo com Vinay e

    Darbelnet:

    A tradução, operação de transferência de uma língua A para uma língua B,

    com o objetivo de expressar uma mesma realidade X, se baseia numa

    disciplina particular, de natureza comparada, cujo objetivo é evidenciar as

    características específicas de cada língua. Trata-se da estilística comparada,

    disciplina que reside no conhecimento de duas estruturas linguísticas, dois

    léxicos, duas morfologias e, sobretudo, duas visões de mundo particulares

    que determinam a cultura, a literatura, a história, enfim, o “gênio” de cada

    língua.

    Percebe-se que, na tradução, a mensagem do texto original precisa ter uma

    equivalência na língua de chegada, e isso só é possível se o responsável pela versão

    conhecer as estruturas linguísticas da língua do texto original, bem como as da língua de

    chegada. Somente desta maneira será possível encontrar um equivalente de mesmo valor

    semântico entre elas, pois as línguas são a expressão da realidade de seus próprios falantes

    e a tradução, sob este ponto de vista, ressalta as peculiaridades de cada língua.

    De acordo com Barbosa (1989, p. 10), ao se pensar teoricamente nos

    procedimentos técnicos, diferentes questões são fomentadas, como a dicotomia

    possibilidade e impossibilidade da tradução; o emprego de uma tradução livre em

    oposição a uma tradução literal e, finalmente, as diferenças entre uma tradução puramente

    técnica e uma tradução literária.

    Para a autora, as questões de traduzibilidade e intraduzibilidade provocam uma

    discussão estéril, visto que tal prática já é comprovada e difundida, e discutir sobre tal

    assunto não toca no foco do seu objetivo: analisar e estudar técnicas para que a tradução

    seja de fato realizada. Contudo, no capítulo anterior, já se desenvolveu uma reflexão sobre

    as possibilidades e impossibilidades de tradução, com base nas teorias de Berman,

    Ricoeur e Campos. Compreende-se que refletir sobre as possibilidades e impossibilidades

  • 34

    da tradução, sobre as dificuldades de se estabelecer um objetivo na tradução e,

    principalmente, como agir diante de um texto que precisa passar um conteúdo em outra

    língua pode ajudar no processo tradutório, de acordo com o objetivo do tradutor, do

    conteúdo do texto traduzido e da forma desse texto.

    No que tange ao segundo tópico abordado pela autora, ou seja, a oposição entre

    tradução livre e tradução literal, visa-se o modo como a tradução vai ser feita ou não, e

    parte daqui a categorização de procedimentos técnicos para o ato tradutório.

    De acordo com Barbosa (1989, p. 22), a descrição dos procedimentos técnicos

    utilizados durante o ato tradutório é motivada pelo questionamento de “como traduzir?”,

    colocando-se questão da literalidade versus liberdade (conteúdo), e, no caso desta

    dissertação, da literariedade. Para ela, muitas vezes, manter a literalidade de um texto traz

    dificuldades de compreensão para o seu receptor. Da mesma forma, privilegiar somente

    o conteúdo pode tirar da mesma obra traduzida muito do seu valor legal, da sua

    identidade. Uma reflexão e categorização de possíveis procedimentos técnicos seria capaz

    de proporcionar, portanto, subsídios nos quais o tradutor poderia se basear e tomar como

    parâmetros de desenvolvimento de uma tradução.

    Finalmente, também relacionada com o modo como um texto será traduzido,

    encontra-se a oposição entre uma tradução técnica e uma tradução literária, ou seja, a

    tradução de termos técnicos voltados a um tema específico ou de textos literários, que

    compõem a formação cultural e artística de um povo, de uma língua.

    Dentro dessas questões, levantam-se as questões de fidelidade, já bem notadas por

    Ricoeur (2011). Contudo, é de grande importância resgatar este conteúdo, pois, para

    muitos, a fidelidade a um texto encontra-se em sua literalidade, ou seja, na tradução de

    um texto palavra por palavra. Não seria este, porém, o procedimento adequado para a

    tradução de um texto literário, no qual a construção de sentidos é desenvolvida,

    majoritariamente, através de uma escrita elaborada, extrapolando a simples linguagem

    denotativa, dando lugar à conotação, a uma linguagem poética.

    Há três tipos de tradução que podem variar de acordo com o corpus, com a

    finalidade do tradutor no que se refere a traduzir um texto ou uma obra literária. São eles,

    de acordo com Bassnet (2002, p. 23): a tradução interlingual, intralingual e intersemiótica.

    A tradução intralingual define-se como a interpretação de signos verbais de uma

    língua por meio de outros signos dessa mesma língua, ou seja, quando há uma

    reformulação da obra com base na mesma língua em que fora composta. Observam-se,

    atualmente, muitas propostas de tradução desse tipo no que diz respeito a adaptações de

  • 35

    obras, muitas vezes antigas na história da literatura, para públicos pré-estabelecidos,

    como a adaptação dos clássicos para adolescentes.

    A tradução intersemiótica consiste na interpretação de signos verbais por meio de

    um sistema de signos não verbais. Seria, portanto, uma transmutação, em que uma obra

    literária poderia ser adaptada a fim de ser encenada no teatro moderno, ou até mesmo

    transformada em filme, história em quadrinhos etc.

    A tradução interlingual é aquela realizada entre códigos linguísticos diferentes, ou

    seja, a tradução tal como se conhece, na qual há uma “interpretação” de signos verbais de

    uma língua por meio de signos verbais de uma outra língua.

    Neste sentido, traça-se aqui o objetivo desta dissertação: a tradução para o

    português brasileiro contemporâneo de um texto grego editado modernamente, que em

    sua origem fora composto no século V a.C., e que sobreviveu ao tempo por meio de cópias

    manuscritas. O trabalho desses copistas permitiu que fossem estabelecidas as várias

    edições utilizadas nesse trabalho, como as de Neil (1901), Henderson (1998) e,

    principalmente, a de Sommerstein (1997), que foi a principal para a elaboração da

    tradução apresentada neste trabalho, juntamente com suas notas explicativas.

    O dialeto predominante no texto é o ático, mas deve-se levar em consideração

    também que, no teatro grego, apesar de as partes dialogadas serem compostas nesse

    dialeto, há ainda elementos arcaicos, principalmente no canto do coro, que prima pela

    utilização do dialeto dórico. Como se sabe, no teatro grego antigo havia representação de

    tragédias e comédias, poesias dramáticas que eram compostas para a encenação, tomando

    como base uma métrica. Os atores e coreutas, além de se preocuparem com a

    representação, com a parte performática, precisavam recitar suas falas de acordo com uma

    métrica.

    Com a finalidade de apresentar subsídios para a prática da tradução de poesia,

    Bassnet (2002, p. 87), na mesma obra, propõe estratégias, como (1) a tradução fonêmica,

    que visa a tentativa de reprodução do som da língua fonte na língua traduzida, produzindo

    uma paráfrase de sentido, o que muitas vezes não ocorre devido ao resultado desajeitado

    e desprovido completamente de sentido. Outro procedimento apontado por Bassnet é a

    própria (2) tradução literal, na qual há uma ênfase na tradução palavra por palavra,

    distorcendo, muitas vezes o sentido e a sintaxe do original. Além disso, a autora faz

    referência à (3) tradução métrica, em que há uma reprodução da métrica na tradução,

    concentrando-se apenas nisso, não levando em conta o conjunto do texto, bem como a

    tradução de poesia em prosa, alterando o sentido, o valor comunicativo e a sintaxe do

  • 36

    texto original. Por último, a autora aponta a (4) interpretação, na qual a substância do

    texto é mantida, mas a sua forma é alterada.

    As alternativas indicadas por Bassnet (2002) podem ser percebidas no estudo de

    diversos autores e, inclusive, foram apontadas por Berman (2007), como já visto, como

    tendências que não deveriam ser utilizadas por um tradutor comprometido com a “letra”

    do texto, com seu sentido puramente original. Contudo, como a proposta de tradução

    presente nesta dissertação apoia-se nos estudos de Ricoeur (2011), Bassnet (2002) e

    Barbosa (1989), determinados procedimentos que priorizam a língua de chegada em

    detrimento da língua do texto original serão escolhidos para melhor significar em

    português.

    Da mesma forma que Bassnet, ao tentar criar saídas para se traduzir um

    determinado texto, Barbosa elenca quatorze técnicas de tradução que auxiliam na tarefa

    da tradução de um texto, baseadas, conforme já dito anteriormente, na obra de Vinay e

    Dalbernet (apud Barbosa, 1989). Tais autores trabalham com dois eixos de tradução:

    tradução direta e tradução oblíqua, com base nos estudos de estilística comparada, ou seja,

    quando a tarefa da tradução é produzir um texto com as estruturas e sentidos esperados

    na língua e cultura na qual será realizada a tradução, sem alterar o conteúdo da mensagem,

    ainda que mudanças morfossintáticas sejam necessárias.

    A tradução direta consiste em uma tradução literal, palavra-por-palavra, que é

    possível devido às semelhanças linguísticas e extralinguísticas entre as línguas. Contudo,

    muitas vezes esse modelo não contempla o significado produzido pelo autor do texto

    original, sendo necessário, frequentemente, realizar a tradução oblíqua, que apresenta

    uma não literalidade, pelo fato de essa literalidade não dar contar de significados,

    estruturas e cultura da língua original na língua de chegada. Vinay e Dalbernet, portanto,

    pensaram a tradução oblíqua como um recurso para traduções que não encontram

    equivalências em uma tradução literal. Nesse tipo de tradução, podem ser desfeitos mal-

    entendidos, ausência de significado e a incompreensão instaurada no leitor.

    A categorização proposta por tais autores subdivide-se nesses dois grupos (direta

    e oblíqua), atendendo às necessidades do tradutor. A tradução direta incorpora três

    procedimentos básicos: o empréstimo, o decalque e a tradução literal. Já a tradução

    oblíqua reúne quatro procedimentos: a transposição, a modulação, a equivalência e a

    adaptação.

  • 37

    Tais procedimentos serão, primeiramente, descritos e, em seguida, aplicados ao

    corpus desta dissertação.

    a) Tradução palavra-por-palavra

    De acordo com Barbosa (1989, p. 81), o uso desse procedimento é restrito, pelo

    fato de não existir uma relação tão próxima entre as línguas e de um texto extenso não ser

    passível a esta prática pela sua construção de sentido estar muito além da esfera da forma.

    Neste tipo de tradução, mantêm-se as categorias gramaticais na mesma ordem sintática

    na língua de tradução, além de se utilizar vocábulos com o mesmo valor semântico

    daqueles presentes no texto da língua de origem, como a organização sintática dos versos

    abaixo (Cav. vv 11-12):

    Demoforte

    τί κινυρόμεθ᾽ ἄλλως; οὐκ ἐχρῆν ζητεῖν τινα

    σωτηρίαν νῷν, ἀλλὰ μὴ κλάειν ἔτι;

    Por que estamos lamentando à toa? Não seria necessário buscar alguma

    salvação pra gente, pra não chorarmos sem necessidade?

    Como se pode perceber nos versos acima, realiza-se a tradução palavra-por-

    palavra, visto que não há alteração na ordem dos vocábulos, sendo possível manter, no

    português, a mesma organização, ou seja, a mesma estruturação sintática.

    b) Tradução literal

    Muitas vezes confundida e identificada com a tradução palavra-por-palavra, a

    tradução literal possui apenas um traço distintivo: adequar a morfossintaxe às normas

    gramaticais da língua de tradução, porém mantendo fidelidade semântica, como nos

    versos proferidos pelo escravo no início do prólogo (vv. 2-3):

    Demoforte

    κακῶς Παφλαγόνα τὸν νεώνητον κακὸν

    αὐταῖσι βουλαῖς ἀπολέσειαν οἱ θεοί.

    Bem que os deuses podiam destruir Paflagônio,

    a nova desgraça adquirida,e seus planos.

    Nos versos acima, o sujeito (οἱ θεοί) encontra-se no final do último verso. No

    entanto, em português, faz-se necessário, muitas vezes, optar pelo sujeito anteposto ao

    verbo, desfazendo o hipérbato e possibilitando maior clareza na leitura. O verbo do

    período (ἀπολέσειαν), anteposto ao sujeito no final dos versos, acompanhou seu sujeito

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=ti%2F&la=greek&can=ti%2F0&prior=*dhmosqe/nhshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kinuro%2Fmeq%27&la=greek&can=kinuro%2Fmeq%270&prior=ti/http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29%2Fllws&la=greek&can=a