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FOLHA 22-08-2015 HÉLIO SCHWARTSMAN Entre dois mundos SÃO PAULO - Eduardo Cunha diz que ficará na presidência da Câmara, mesmo tendo sido formalmente denunciado ao STF por envolvimento em esquemas de corrupção. É normal que ele deseje permanecer numa posição que, afinal, lhe dá a oportunidade de criar todo tipo de manobra diversionista –o que, a essa altura, pode ser sua melhor estratégia de sobrevivência. O que surpreende é que os demais deputados não estejam a exigir sua cabeça. Pela etiqueta política que vigorava até há pouco, parlamentares e governantes sobre os quais recaíssem suspeitas fortes logo renunciavam a seus postos, ou pedindo desculpas à população, ou dizendo confiar que sua inocência seria comprovada no curso das investigações. Em certas partes do mundo, até o suicídio despontaria como uma possibilidade. Esse gênero de reação, até certo ponto hiperbólica, é bastante típico das chamadas culturas de honra, nas quais a reputação de uma pessoa –e políticos, mais que outros segmentos da sociedade, vivem de reputação– é seu bem mais precioso, que ela defenderá a qualquer preço, mesmo que tenha de recorrer à força. Aos que perdem sua, vá lá, honra só resta resignar-se ao isolamento social. Contrapõem-se às culturas de honra as culturas da lei. Aqui, já não vale o cada um por si. A convivência entre as pessoas é mediada por um conjunto de normas escritas e assegurada por um poder impessoal –o Estado. É nesse contexto que emerge a famosa presunção de inocência, à qual Cunha e outros políticos acusados agora recorrem para não ser apeados do poder. Vivemos uma transição. A cultura de honra que sempre marcou o estilo "macho" latino-americano vai cedendo espaço para a cultura da lei, o que é bom, já que isso significa mais civilização e menos violência. O preço a pagar é que não devemos mais esperar que políticos ponham fim a suas carreiras, mesmo quando apanhados com a boca na botija. RUY CASTRO A cantora que canta RIO DE JANEIRO - A história é conhecida. Numa festa em Hollywood, nos anos 20, Charles Chaplin resolveu cantar. Soprou alguma coisa para o pianista e, com voz belíssima, entoou o "Recitar!... mentre preso dal delirio/ Non se più

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FOLHA 22-08-2015

HÉLIO SCHWARTSMAN

Entre dois mundos

SÃO PAULO - Eduardo Cunha diz que ficará na presidência da Câmara, mesmo tendo sido formalmente denunciado ao STF por envolvimento em esquemas de corrupção. É normal que ele deseje permanecer numa posição que, afinal, lhe dá a oportunidade de criar todo tipo de manobra diversionista –o que, a essa altura, pode ser sua melhor estratégia de sobrevivência. O que surpreende é que os demais deputados não estejam a exigir sua cabeça.

Pela etiqueta política que vigorava até há pouco, parlamentares e governantes sobre os quais recaíssem suspeitas fortes logo renunciavam a seus postos, ou pedindo desculpas à população, ou dizendo confiar que sua inocência seria comprovada no curso das investigações. Em certas partes do mundo, até o suicídio despontaria como uma possibilidade.

Esse gênero de reação, até certo ponto hiperbólica, é bastante típico das chamadas culturas de honra, nas quais a reputação de uma pessoa –e políticos, mais que outros segmentos da sociedade, vivem de reputação– é seu bem mais precioso, que ela defenderá a qualquer preço, mesmo que tenha de recorrer à força. Aos que perdem sua, vá lá, honra só resta resignar-se ao isolamento social.

Contrapõem-se às culturas de honra as culturas da lei. Aqui, já não vale o cada um por si. A convivência entre as pessoas é mediada por um conjunto de normas escritas e assegurada por um poder impessoal –o Estado. É nesse contexto que emerge a famosa presunção de inocência, à qual Cunha e outros políticos acusados agora recorrem para não ser apeados do poder.

Vivemos uma transição. A cultura de honra que sempre marcou o estilo "macho" latino-americano vai cedendo espaço para a cultura da lei, o que é bom, já que isso significa mais civilização e menos violência. O preço a pagar é que não devemos mais esperar que políticos ponham fim a suas carreiras, mesmo quando apanhados com a boca na botija.

RUY CASTRO

A cantora que canta

RIO DE JANEIRO - A história é conhecida. Numa festa em Hollywood, nos anos 20, Charles Chaplin resolveu cantar. Soprou alguma coisa para o pianista e, com voz belíssima, entoou o "Recitar!... mentre preso dal delirio/ Non se più

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quel che dico/ E quel che faccio!..." –"Ridi Pagliaccio", de Leoncavallo, sucesso de Enrico Caruso, que acabara de morrer. Os convidados se espantaram: "Não sabíamos que cantava, Sr. Chaplin!". E Chaplin, modestamente: "Mas eu não canto. Estava só imitando Caruso".

Bibi Ferreira, em cartaz em SP com um espetáculo dedicado a Frank Sinatra, definiu-se outro dia para a "Ilustrada": "Não sou cantora. Sou uma atriz que canta". Foi o que Chaplin quis dizer. E Bibi poderia citar diversas instâncias de sua carreira em que, como atriz, viu-se obrigada a cantar: os papéis de Eliza Doolittle, em "My Fair Lady", nos anos 60, e Joana, em "Gota d'Água", nos 70, ou os recitais mais recentes, em que interpretou Amália Rodrigues e Edith Piaf.

Bibi me perdoe, mas atrizes que cantam são ou eram Juliette Gréco e Jeanne Moreau, na França, Mae West e Lillian Roth, nos EUA, Marlene Dietrich e Zarah Leander, na Alemanha –grandes "diseuses", espiritualmente mais próximas da letra do que da música, e espertas em manter distância de certas canções, pela impossibilidade de chegar às notas. Espertas também em se fazer acompanhar por um simples piano (o pianista de Dietrich era o jovem Burt Bacharach) ou violão, e cantar durante as pausas.

Bibi está na categoria oposta, mil vezes mais difícil: a das cantoras que representam. As canções associadas a Sinatra pedem uma cantora de verdade, não uma atriz, e Bibi está lá, firme, com sua voz –desafiando os metais à toda da big band de 18 figuras que a acompanha.

Aos 92 anos, ela é, isto, sim, uma grande cantora que canta.

DEMÉTRIO MAGNOLI

Sergio Moro, político

Ao impugnar a politização da administração pública, a Lava Jato desafia a estabilidade do Brasil

Sergio Moro transfigurou-se, domingo passado, em ícone político. Nome e rosto estampados em meio às multidões, ele ocupou o lugar que, até há pouco, pertencia a Joaquim Barbosa. Repetindo as injúrias desfechadas contra o ex-presidente do STF, os "jornalistas" palacianos acusam-no de conduzir uma campanha de perseguição política. De fato, o juiz de Curitiba fundamenta seus atos em sólidos argumentos legais, que têm encontrado amparo nas instâncias jurídicas superiores. Contudo, ao mesmo tempo, suas manifestações, bem como as dos procuradores e delegados da força-tarefa da Lava Jato, estão permeadas pelo timing e pela gramática da linguagem política. Existe um Moro político, cujos contornos devem ser buscados na tensão dilacerante entre o ideal da república democrática e a realidade da "república dos companheiros".

Segundo o ideal da república democrática, a esfera pública desdobra-se nos domínios da política e da administração. Os partidos operam no primeiro,

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formulando plataformas de governo e produzindo legislação. O segundo, em contraste, pertence a uma burocracia profissional, meritocrática e não-partidária, que conduz a máquina pública conforme regras legais. À luz desse ideal, a corrupção política é uma aberração escandalosa, decorrente de uma brecha na cerca que demarca os dois domínios.

O Brasil nunca chegou perto da utopia da república democrática. O lulopetismo, porém, sem desvencilhar-se da herança nacional patrimonialista, elevou a corrupção a um novo patamar. A mudança não é (apenas) de zeros à direita, mas de paradigma. Da tradição comunista, o PT nada conserva a não ser o desprezo à república "burguesa", isto é, ao conceito de separação entre política e administração. O Moro político nasce da indignação social contra a ocupação partidária da máquina estatal.

Na "era do lulopetismo", amarraram-se os antigos fios do patrimonialismo com os nós da politização da administração pública. A propaganda oficial do governo e das empresas estatais difunde mensagens ideológicas. Por meio de financiamentos subsidiados, o BNDES teceu alianças entre o PT e o alto empresariado enquanto, no campo externo, amparava os regimes dos "companheiros" castristas e bolivarianos. Ministérios foram cedidos, "de porteira fechada", a partidos da base governista. Inventaram-se secretarias especiais que funcionam como pátios de folguedos de movimentos sociais. As diretorias das estatais foram loteadas entre operadores do PT e de partidos aliados, semeando-se o terreno onde brotou a árvore do "petrolão". A aversão a esse estado de coisas manifesta-se pela celebração do juiz de Curitiba.

Há mais que isso, entretanto. A marcha batida da ocupação partidária do Estado representa, potencialmente, uma ameaça à autonomia do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal. A Lava Jato é, além de uma operação anticorrupção, um levante de instituições estatais decididas a preservar suas próprias prerrogativas constitucionais. Por isso, todos os seus atores têm plena consciência de que estão inscritos numa arena política e midiática. Moro não fala apenas nos autos, mas emite mensagens políticas nas suas ordens de prisão preventiva. Os procuradores descrevem, pedagogicamente, a estrutura das redes de corrupção que associam empresários e operadores partidários. Os delegados fabricam signos políticos quando escolhem os nomes das fases da Lava Jato.

Ao impugnar a politização da administração pública, a insurgência da Lava Jato desafia a estabilidade do Brasil oficial. Moro faz política porque evoca, num país empapado de cinismo, a utopia da república democrática. Há motivos para que seja celebrado nas ruas. Contudo, no fim das contas, a ruptura que simboliza só pode ser concluída pela ação de representantes eleitos pelo povo. Um juiz ajuda, mas não salva.

CIFRAS & LETRAS

Livro conta vida de primeiro superbanqueiro da história

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Nascido no século 15, Jacob Fugger dedicou a vida a acumular riquezas

MARCELO NINIODE WASHINGTON

Mais novo entre dez irmãos, Jacob Fugger foi escolhido ainda pequeno pela mãe para ser padre. A enérgica viúva tinha outros seis filhos varões para cuidar dos prósperos negócios da família e o caçula poderia muito bem seguir a via espiritual, ela calculou, numa espécie de dízimo familiar.

Se o plano tivesse ido adiante, Jacob teria seguido uma vida regida pelo celibato, o dogma e, ironicamente, o voto de pobreza. Mas Barbara, a rígida e astuta matriarca, mudou de ideia sem motivo aparente e Fugger seguiu o caminho dos negócios, tornando-se um dos maiores financistas da história. E, como afirma o jornalista e consultor George Steinmetz, autor de uma biografia recém-lançada nos Estados Unidos, no "homem mais rico que já viveu". Embora tal título seja difícil de comprovar, o livro mostra com riqueza de detalhes e farta pesquisa que Fugger merece, no mínimo, ocupar um lugar de destaque no hall da fama das finanças, talvez como o primeiro superbanqueiro da história.

Sua trajetória oferece um fascinante retrato da evolução dos negócios através dos tempos e seus ingredientes perenes, como a interseção entre dinheiro e poder, o exercício da especulação e a ganância sem limites, entre outros que encontram ecos familiares até os dias de hoje.

Fugger nasceu em 1459 em uma família de mercadores prósperos na cidade de Augsburg, no que atualmente é a Baviera alemã. Ao morrer, em 1525, era o homem mais rico da Europa e um dos mais influentes, tendo desempenhado papel central na criação do Império Habsburgo.

Augsburg, hoje uma pacata cidade mais conhecida pelo teatro de marionetes, era na época um dos principais centros financeiros europeus, livre de controle feudal e bem posicionada na rota comercial entre a Itália e os Países Baixos, além de próxima das minas de prata e cobre da Europa Central.

Liberto de uma vida dedicada à religião, Jacob Fugger foi enviado ainda adolescente pela mãe a Veneza, na época a cidade mais mercantilista do planeta, onde os jovens de famílias ricas iam para aprender os meandros dos negócios e fazer contatos.

Foi lá que nasceu o banqueiro Fugger. Em Veneza ele aprendeu todos os princípios do ofício que o tornaria o homem mais rico de sua época. Não é por acaso que peças básicas do vocabulário bancário usado até hoje em vários idiomas têm origem no italiano, lembra Steinmetz no livro: crédito, débito e banca, são alguns exemplos.

Ao retornar a Augsburg, Fugger encontrou terreno fértil para exercitar as habilidades adquiridas em Veneza, fazendo empréstimos a senhores feudais garantidos pela produção das minas de prata e cobre. Aos 30 anos decretou que

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dedicaria seus dias a acumular o máximo de riqueza possível, e assim o fez até o último deles.

Entre as práticas inovadoras que colocaram Fugger em vantagem em relação a outros financistas da época, Steinmetz destaca o uso pioneiro das partidas dobradas, hoje um método-padrão da contabilidade, a criação de uma rede de informantes que lembra os serviços de notícias da atualidade e o levantamento de capital para o seu banco com a exploração de contas-poupança.

USURA

Para avançar neste último, bateu de frente com o veto à usura imposto pela Igreja Católica quando introduziu um retorno de 5% por ano aos empréstimos que tomava em Augsburg.

Fugger não desanimou: levou seu projeto diretamente ao papa Leão 10º. Membro da poderosa família de banqueiros Medici, o pontífice cedeu aos argumentos de Fugger e em 1515 a usura foi aprovada, convenientemente redefinida como "lucro adquirido sem trabalho, custo ou risco".

Para Steinmetz, "nascia ali a economia moderna".

Ex-repórter do jornal "Wall Street Journal" e atualmente analista financeiro em Nova York, o autor levou sete anos para reconstituir de forma minuciosa e fluente –apesar do uso exagerado de superlativos como o do título– a época e a vida de um personagem cativante e muitas vezes impiedoso em sua obsessão por acumular riqueza.

Se vivesse hoje, compara Steinmetz, "Fugger poderia ser um oligarca russo, um chefão latino-americano da telefonia ou um barão americano da ferrovia". Em seu epitáfio, escrito pelo próprio, o banqueiro deixa para a posteridade a marca de um ego do tamanho de sua fortuna. "Era incomparável, portanto após a morte não deve ser incluído entre meros mortais."

OSCAR VILHENA VIEIRA

Marcha institucional

O que mais impressiona é a firmeza com que as instituições estão respondendo aos desafios

A apresentação de denúncia contra o presidente Eduardo Cunha não gerou surpresa. Poucos acreditavam na sinceridade de seu discurso moralista. Mesmo assim, as acusações feitas por Janot são impressionantes.

A lista de delitos inclui corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Com lastro em depoimento decorrente de delação premiada e um vasto conjunto de documentos, o procurador-geral da República acusa o presidente da Câmara de

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ter recebido pelo menos US$ 5 milhões, de um esquema que movimentou cerca de US$ 40 milhões.

Caberá agora ao Supremo Tribunal Federal abrir prazo para a defesa prévia do deputado e, então, decidir se recebe ou não a denúncia. A chance de o Supremo não receber a denúncia é mínima, dada a robustez da acusação e a preocupação manifestada por vários de seus ministros com a degradação de nosso ambiente político.

Em face da gravidade e da extensão das acusações, muitos se perguntam se Eduardo Cunha poderia vir a ser detido, como ocorreu com muitos dos investigados e réus da operação Lava Jato, ou, ao menos, afastado do cargo.

Quanto à primeira questão, a Constituição é bastante clara. Deputados e senadores apenas podem ser presos em flagrante delito ou após trânsito em julgado de sentença condenatória. Assim, o deputado Eduardo Cunha não será preso, ao menos imediatamente.

A segunda questão é menos clara. A Constituição somente determina o afastamento imediato de um chefe de poder quando a denúncia recebida pelo Supremo for contra o presidente da República.

Nesse sentido, mesmo que se torne réu, por prática de crimes contra o patrimônio público, o deputado Eduardo Cunha poderá continuar presidindo a Câmara dos Deputados.

O deputado apenas poderá ser afastado do cargo em duas hipóteses. Na primeira delas, por decisão dos próprios membros da Câmara dos Deputados. Trata-se, portanto, de uma decisão política. Embora Eduardo Cunha exerça uma forte liderança na Casa e haja um grande número de parlamentares enroscados com a Justiça, o custo político de mantê-lo pode se tornar muito alto, especialmente para o PMDB, que pretende ser o beneficiário desta crise. Mais uma vez, no entanto, as ruas serão determinantes.

Uma segunda alternativa seria o próprio Supremo, por solicitação do procurador-geral da República, afastar o presidente da Câmara, por entender que o deputado estaria se utilizando do cargo para obstaculizar o devido desenvolvimento do processo judicial, constrangendo testemunhas ou buscando eliminar provas. O fato de Janot não ter feito essa solicitação na denúncia não significa que não poderá fazê-la num futuro próximo. Esse movimento, no entanto, dependerá de fatos muito contundentes, pois colocaria o Supremo numa rota de colisão com a Câmara.

A denúncia de Eduardo Cunha, sem sombra de dúvida, aumentou a temperatura da crise, bem como tornou mais imprevisível o seu desfecho. O que mais impressiona e importa destacar em toda essa história, me parece, é a consistência e a firmeza com que as instituições responsáveis pela aplicação da lei estão respondendo aos seus desafios. Estará o Brasil mudando a forma pela qual se relaciona com a lei? Se for isso, a refrega não terá sido vã.

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ENTREVISTA HERMAN VOORWALD

Ensino médio não precisa de disciplinas estanques

Para secretário, flexibilização de currículo do ensino médio não eliminará matérias, mas carga horária poderá mudar

ADRIANO QUEIROZCOLABORAÇÃO PARA A FOLHAFÁBIO TAKAHASHIDE SÃO PAULO

A intenção do governo Geraldo Alckmin (PSDB) de flexibilizar o currículo do ensino médio da rede pública paulista não trará uma mudança profunda na grade curricular, segundo o secretário de Educação, Herman Voorwald.

De acordo com ele, porém, a carga horária de algumas disciplinas poderá ser reduzida, já que o aluno, segundo o plano, poderá priorizar as áreas de seu maior interesse.

"Eu preciso dar a esse menino o entendimento de que a sua formação não deve ser estanque, com uma disciplina estanque, com uma carga horária definida", disse.

O projeto para dar início a esse processo de mudança foi encaminhado à Assembleia. Críticos, como o sindicato dos professores, dizem que disciplinas como matemática e português podem ficar esvaziadas nesse novo processo.

Leia trecho da entrevista dada à Folha na quarta (19).

Folha - Por que a decisão de flexibilizar o currículo? O que já existe de concreto? Herman Voorwald - O mais importante é que a secretaria, no Plano Estadual de Educação, fez questão de inserir uma meta que trata dessa matéria. O país discute a base nacional comum, e o Estado de São Paulo discute essa proposta [da flexibilização do currículo do ensino médio]. Eu não tenho pressa.

Mas pode haver substituição de disciplina? O eixo central da proposta é que esse menino tenha condições de, através da sua formação no ensino médio, buscar a solução de problemas. Como ela será construída? Ela está sendo formatada e finalizada. Esses eixos básicos garantem que não haverá eliminação de disciplina.

Qual é a previsão para a apresentação da proposta? A intenção é apresentá-la no segundo semestre [deste ano] ao Conselho Estadual de Educação. Não pretendo iniciar absolutamente nada em 2016. A intenção é submetê-la à rede, mas não fazer isso por si só. É discutir com a rede, a proposta.

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O aluno poderá escolher as disciplinas? A estrutura do ensino médio não vai mudar. Não vou eliminar ou substituir disciplinas, não é esse o conceito. O conceito é a manutenção de disciplinas, mas com a possibilidade de integrar disciplinas afins sob o conceito de áreas. Dentro desse conceito, dar as informações de que ele precisa para, naquela rota, solucionar problemas.

A estrutura será a mesma então? Você tem uma proposta que terá o conjunto das disciplinas do ensino médio.

Isso não contradiz o que vinha sendo divulgado: que o aluno ia ter mais maleabilidade no currículo? O senhor está dizendo que o ensino médio continuará único para todos? Não vou fugir da matriz. Essas disciplinas podem e serão agregadas no conjunto de áreas e o menino terá as informações para poder resolver as questões que se consideram importantes.

O aluno vai ter opções diferentes de currículo ou de organização do ensino médio dele? Eu posso mexer no conceito de número de aulas de uma disciplina para viabilizar que haja a atuação por área. Esse jovem que está interessado num certo conhecimento adicional, numa área que resulte da integração de disciplinas, terá essa possibilidade e conduzirá seu caminho formativo, através dos três anos, na área que lhe interessa. Pode até mudar de área.

Então vai ter um núcleo comum e, em alguma parte da carga horária, o aluno terá essa liberdade. Por exemplo: se quiser ambiente, focará mais em ambiente do que em exatas. É isso? [Leve pausa, seguida de um sorriso discreto] Se eu der mais um passo...[mais uma pausa] O conceito é mais ou menos esse. Eu crio o conceito de disciplinas afins, por definição de áreas, e apresento propostas e projetos para que, através desses conhecimentos, ele possa se desenvolver. Eu preciso dar a esse menino o entendimento de que a sua formação não deve ser estanque, com uma disciplina estanque, com uma carga horária definida.

Essa mudança vai ser feita para que caiba na jornada atual? Esse modelo [flexibilização curricular] mantém a grade do menino e a jornada no período em que ele está na escola. Não aumentarei o período dele na escola, até porque eu não consigo fazer isso.

O arranjo é nas disciplinas que já existem? O que se discute é se seria viável a introdução de disciplinas eletivas, fundamentalmente utilizando como instrumento o ensino à distância, a escola virtual, a possibilidade de oferecer um rol de disciplinas que não certifique, mas que dê um conjunto de informações que possa abrir o caminho para ele.

As disciplinas eletivas não seriam obrigatórias? Ele teria um certificado, não sob a ótica das certificações típicas de 800 a 1.200 horas. Ele teria um conjunto de informações em determinadas áreas. Terá um certificado dizendo que ele fez aquela disciplina, que pode agregar valor à sua

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formação. Não sob a forma da certificação [do ensino médio]. Isso está em discussão.

Há o risco de SP, tomando uma medida diferente do resto do país, impactar negativamente na decisão do estudante fazer o Enem ou um exame seletivo em outro Estado? Jamais faria alguma coisa irresponsável. A minha origem é o ensino superior. Eu sei exatamente quem é o jovem que estamos recebendo no ensino superior.

O currículo é o principal fator que pode impulsionar a melhoria do ensino médio? Não tenho dúvida. Esse que é o passo, o ponto fundamental.

E a formação de professores é uma questão secundária nessa discussão? Não é secundário. A secretaria tem um processo de formação continuada de seus profissionais. A própria carreira da secretaria induz a essa busca pela formação continuada.

MARILIZ PEREIRA JORGE

Prefiro quem não gosta de bola

Jamais me relacionaria com o tipo que só fala sobre futebol e veste camiseta com propaganda de plano de saúde

A regra deveria ser clara: camisas de time de futebol só estão liberadas para ir ao estádio, ao boteco em dia de jogo ou para praticar esporte. Estão proibidas em todas as outras ocasiões, incluindo almoço de Dia dos Pais, batizado, happy hour.

Se sua mulher reclama, saiba que não é implicância. E a maioria das mulheres não gosta.

Da camisa, do chaveiro, do boné, da mochila, da toalha, da colcha da cama, da cueca, da tábua para churrasco, que ostentam o símbolo do seu time como se fossem do Ermenegildo Zegna. Você pode achar que é uma demonstração de amor ao time, mas é só cafona mesmo.

Veja, eu disse que a maioria das mulheres não gosta, não todas. E se você é mulher e veste camisa de time para ir ao supermercado, só lamento. Você é cafona também.

Me dei conta de que me livrei do mico de andar com uma propaganda ambulante quando me casei com um homem que não liga para futebol. Em três anos, nunca o vi falando sobre o assunto durante jantar, festa ou chope com os amigos. Jamais deixamos de fazer nada porque tem jogo. Repito, jamais.

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Ele não tem nem mesmo um time do coração. Nem de mentirinha. Nem herdado pelo pai. As pessoas ficam constrangidas quando ele diz que não torce para ninguém. Olham com expressão de espanto, como se falasse que é devoto da cientologia.

No Brasil, não ter interesse pelo assunto é uma heresia. As pessoas têm preconceito. Há poucos anos, li um texto de uma jornalista dizendo que homem que não gosta de futebol é "viado", que ela "passa".

Não tive um único namorado desses fanáticos, que sofrem, que assistem a reprise de jogo, que discutem por horas se a bola deveria ter ido pela direita ou pela esquerda, ou perdem tempo vendo outras pessoas discutindo se a bola deveria ter ido pela esquerda ou pela direita.

Devo ser uma afortunada. Encontrei uma pesquisa da AmBev, de 2012, que aponta o futebol como a maior paixão entre os homens. Em segundo, a cerveja, depois Carnaval e só, então, as mulheres.

E tem gente que acha que homem que não gosta de futebol é viado?

Talvez os homens cresçam no Brasil sem muita escolha. Todos têm que ter um time apenas porque têm. Uns levam na esportiva, outros viram fanáticos. Jamais me relacionaria com o tipo que só fala sobre o assunto, que veste camiseta com a propaganda de plano de saúde.

Você deve pensar que a parte boa é que somos um casal que não briga pelo controle remoto. Engano. Meu marido é viciado em TV, conhece todos os seriados (já viu "Os Sopranos" três vezes e "Breaking Bad" duas), vê todos os noticiários.

Mas ainda prefiro ter que escolher entre dois filmes que ele escolheu a aguentar a reprise do jogo de um time para quem ele nem torce. E ainda ter que ouvir se a bola deveria ter sido jogada pela esquerda ou pela direita.

Paraense retrata mundo cão alucinado

Edyr Augusto surpreende com narrativa dura e intensa no romance 'Pssica' sobre sexo, violência e assassinato

Escritor, já premiado na França, se alimenta dos tipos que circulam pelo centro de Belém para elaborar suas histórias

MARCO RODRIGO ALMEIDADE SÃO PAULO

Há muitas gotas de sangue nas páginas de dois dos melhores livros brasileiros do ano. Os crimes são de autoria de Edyr Augusto e Marcos Peres, escritores fora dos grandes centros do país, ainda pouco conhecidos, mas com munição de sobra para conquistar os leitores.

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Edyr, 61, nasceu e vive em Belém (PA). Peres, 30, nunca se ausentou por muito tempo de sua Maringá (PR) natal.

Três décadas e quase 3.000 quilômetros separam os dois. O gosto por empilhar cadáveres em suas histórias os une.

Edyr lança "Pssica" (Boitempo). Peres, "Que Fim Levou Juliana Klein?" (Record). Romances policiais de linhagens diferentes –o primeiro, o mundo cão de Rubem Fonseca; o segundo, o noir filosófico de Jorge Luis Borges e Umberto Eco–, mas narrados com evidente talento.

"Pssica" é um livro fininho, de 96 páginas. Pode ser lido em uma sentada. Mas é preciso um fôlego longo para atravessar algumas partes.

O título já dá um bom indício do que se pode esperar do livro –pssica, na gíria paraense, significa azar, maldição. A trama de ritmo frenético retrata rapto de mulheres, estupros, tráfico de drogas, prostituição infantil, corrupção e muitas outras mazelas.

Não há travessão para demarcar os diálogos, nem descrições de cenários ou da psicologia dos personagens. O livro engatilha uma ação na outra e dispara com urgência.

Por isso é um tanto curioso encontrar Edyr Augusto pela primeira vez. O escritor de cabelos grisalhos tem fala suave, nada afobada, e olhar sereno. Aparenta ser um homem tranquilo, bonachão, livre de qualquer forma de pssica.

Quando alguém comenta alguma passagem mais chocante de seu livro, como um assalto crudelíssimo em uma embarcação, ele parece ouvir com espanto, como se não tivesse criado tudo aquilo. "É doido, né?", diz, antes de soltar uma risadinha.

A ficha corrida de Edyr, porém, não engana. Antes de "Pssica" foram outros quatro romances: "Os Éguas" (1998), "Moscow" (2001), "Casa de Caba" (2004) e "Selva Concreta" (2014). Todos são thrillers urbanos mergulhados no caos, na miséria social e na violência sem limite.

"Apesar dos temas pesados, me divirto muito enquanto escrevo. É o momento em que sou a pessoa mais feliz do mundo", conta durante passagem por São Paulo, em livraria da zona oeste da cidade.

"Para mim é sempre uma surpresa. Eu não planejo a trama, não sei o que vai acontecer. Vou descobrindo ao longo do caminho. É quase uma aventura conjunta com os personagens", completa.

Edyr é filho e neto de uma família de jornalistas. Já trabalhou como radialista, redator publicitário, autor de jingles. Também foi professor de jornalismo, mas desistiu porque se achava mais empolgado do que os alunos.

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Atribui a essas experiências o desenvolvimento de seu estilo ágil, de diálogos enxutos. "Eu não suporto ficar descrevendo as coisas. Vou direto aos fatos. Dou alguns indícios e o leitor vai completando com sua própria emoção."

Edyr é hoje dono de uma emissora de rádio e colunista do jornal "Diário do Pará".

Também escreve e dirige peças de teatro há 20 anos para o grupo Cuíra. Numa das montagens mais famosas, "Laquê", metade do elenco era formado por prostitutas que circulavam em torno da sede da companhia.

"Moro no centro da cidade. Sou cercado por craqueiros, engraxates, prostitutas, mendigos. Vou andando, falando e ouvindo essas pessoas todas. Tudo isso me inspira, me enriquece. Belém é meu cenário, é tudo o que eu tenho, é meu universo", conta.

Edyr vem expandindo seu universo para outros universos. Na França, colhe sucesso de público e crítico. "Os Éguas", lá traduzido como "Belém", ganhou o prêmio Caméléon, em Lyon, neste ano. Ele esteve há pouco em um festival francês de literatura policial e teve dias de ídolo pop, com entrevistas para rádios e TV. Situação bem diversa da que ocorre por aqui.

"No Brasil você entra numa livraria e nunca vê um livro de um autor paraense à mostra. Precisamos nos tornar visíveis para os leitores."

CRÍTICA ROMANCE

Livro atesta vitalidade da literatura feita fora dos centros

EURÍDICE FIGUEIREDOESPECIAL PARA A FOLHA

"Que fim levou Juliana Klein?", de Marcos Peres, é um romance policial que tem como protagonista Irineu, um delegado que apura uma série de crimes ocorridos em 2005, 2008 e 2011 em Curitiba.

Os capítulos se alternam com os respectivos anos em que se passam. Como acontece nos romances policiais, o foco reside no detetive que investiga e, ao final, o autor tira da cartola um criminoso insuspeito, o que pode parecer inverossímil. Entretanto, isso não importa, o prazer reside na curiosidade que leva o leitor a querer descobrir as causas do crime. Aqui não é muito diferente, apesar de as motivações serem complexas demais para o intelecto do delegado: o princípio do eterno retorno de Nietzsche.

Peres tece seus romances a partir de uma intrincada rede de leituras e teorias. Seu primeiro livro, "O Evangelho segundo Hitler", cujo personagem era o escritor argentino Jorge Luis Borges, tinha também uma trama complexa, quiçá um pouco estapafúrdia. Mas há de se reconhecer que o jovem autor de Maringá (PR) tem uma escrita primorosa e uma construção narrativa de grande habilidade.

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No novo romance, além de Nietzsche e outros filósofos, percebe-se explicitamente a citação de Shakespeare através da oposição entre duas famílias arquirrivais, os Koch e os Klein. Os crimes cometidos envolvem sempre as duas famílias, ora a vítima é um Koch, ora um Klein. A inimizade já vinha de Frankfurt, de onde são originários. Os personagens são todos professores universitários.

A nova geração de escritores oferece uma multiplicidade de formas de narrar. Marcos Peres pertence à tradição borgiana da citação de autores, apelando ao pastiche temperado pelo humor. Essa ampla gama de estilos atesta a vitalidade da literatura brasileira contemporânea que se produz também fora dos grandes centros.

Maringaense une crimes e Nietzsche em noir filosófico

(MRA)DE SÃO PAULO

Marcos Peres já estava conformado a ser um escritor sem leitores, como existem aos montes. A gaveta vivia entupida de romances e contos que dificilmente sairiam de lá. Tudo mudou quando a sorte de um conterrâneo lhe deu um novo ânimo.

Em 2011, o maringaense Oscar Nakasato venceu o prêmio Benvirá, teve seu romance "Nihonjin" publicado e venceu o prêmio Jabuti.

Peres então desengavetou "O Evangelho Segundo Hitler", romance que venceu o prêmio Sesc de Literatura em 2013, foi publicado pela Record e faturou ainda o prêmio São Paulo de Literatura.

Ele retorna agora com seu segundo romance, "Que Fim Levou Juliana Klein?". A trama se passa em Curitiba, protagonizada por um personagem de Maringá, o delegado Irineu. Cabe a ele elucidar uma trama envolvendo mortes e a rixa entre duas famílias que dividem o meio acadêmico curitibano.

A inspiração veio de aforismo de Nietzsche sobre a circularidade do tempo. A referência a outros autores, como Eco e Borges, é uma das marcas da ficção de Peres.

"Quis fazer um livro popular, acessível, a partir de um tema complexo. O risco era parecer cerebral ou superficial demais", comenta.

Formado em direito, mais por sobrevivência do que por paixão –é técnico judiciário no Tribunal de Justiça do PR–, Peres não faz planos de sair de Maringá. Diz-se satisfeito com a vida de escritor.

"A internet facilitou muito para o autor que mora no interior. Recebo sempre mensagens dos leitores."

CRÍTICA ROMANCE

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Edyr Augusto oferece narrativa assustadora com discurso enxuto

LUÍS AUGUSTO FISCHERESPECIAL PARA A FOLHA

O esquisito nome do livro, "Pssica", de Edyr Augusto, talvez mais afaste que aproxime; o começo da leitura impõe outro estranhamento, com suas frases simples, nunca com mais de dez palavras, empilhando fatos sobre fatos, sem dar notícia de qualquer subjetividade dos personagens. No entanto, trata-se de um experimento de valor no panorama brasileiro atual.

No centro do enredo está Janalice, adolescente de Belém do Pará; o tempo é agora; o narrador, externo ao enredo, alia a vocação para a crueza com um grande conhecimento empírico do mundo paralelo em que habitam traficantes de drogas e de pessoas, bandidos de toda ordem e toda a gente miserável.

Tudo começa por uma besteira: Janalice se deixou filmar em cena sexual com o namorado, e as imagens vão ao mundo. Sua vida na escola fica insuportável e seus pais a mandam passar uns tempos com parentes. Em lugar de paz, encontra estupro; para fugir frequenta a rua, e eis que o destino piora: é vendida como escrava sexual para sucessivos donos, até chegar à Guiana, vizinho que é uma abstração para o Brasil, mas destino de milhares de conterrâneos.

A trajetória de Janalice se mistura com a de um punhado de outros desesperados e desesperançados. O mundo do crack e do roubo pelos rios amazônicos encontra o de imigrantes ilegais, garimpo de ouro e imprensa sensacionalista, tudo compondo um horror sem fim de alta velocidade narrativa e de um muito bom resultado estético.

O reparo crítico possível aponta justamente para a virtuosa linguagem do livro: tendo optado por enxugar o discurso até o limite do suportável (as falas dos diálogos, sem travessões, sequer fazem mudar a linha do texto), o escritor nos deixa sem poder compartilhar da psicologia dos personagens. Daí seu desfecho seco. Antes dele, o sofrimento crescente, que "Pssica" oferece em uma narrativa marcante e assustadora.

CRÍTICA LIVROS/SOCIOLOGIA

Obra analisa de Picasso a Goya para mapear a experiência do horror

Autor usa quadros de catástrofes e deformidades para esquadrinhar aversão do homem àquilo que o contraria

MAURICIO PULSCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

"A Experiência do Horror", do sociólogo Rafael Araújo, procura mapear o sentimento evocado pelas catástrofes que se abatem sobre o homem por meio da análise de diversas obras de arte.

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Inspirado em Nietzsche e Marx, o autor observa que o horror é um sentimento de aversão ao que não está em conformidade com as nossas expectativas. Essa contrariedade pode emergir nas mais diferentes esferas da vida, o que explica sua natureza multifacetada: existe o horror existencial diante da morte, o horror econômico do desemprego, o horror político da repressão.

Francis Bacon sempre buscou pintar retratos que registrassem a aparência de cada indivíduo. Contudo, quando nos deparamos com suas figuras retorcidas, notamos que alguma coisa está errada.

O erro não está nos quadros, mas nas pessoas: tais retratos deformados são expressões do horror que os indivíduos sentem de si mesmos por não serem o que desejavam ser, e que se manifesta "quando procuramos ser outros", para que as pessoas nos aceitem, "ou quando nos penitenciamos por ser o que somos".

Existe o horror devastador das guerras, retratado por Goya em "Os Fuzilamentos de 3 de Maio" e por Picasso em "Guernica" ("as formas geométricas fragmentadas e sem cor parecem estar de acordo com os resultados da guerra que a tudo deforma").

A tela "Os Retirantes", de Portinari, mostra nômades "que já não têm lugar no mundo, que buscam uma forma de se manterem vivas num lugar desconhecido". Mas essa tragédia não afeta apenas camponeses distantes: "Os retirantes de Portinari representam esse horror de sentir-se um outro sempre... O horror trazido pelos retirantes pode ser vivenciado por qualquer indivíduo que se sinta um outro e, no capitalismo, a condição de outro é suscitada constantemente".

Araújo explica que cada época tem suas próprias modalidades de sofrimento.

O horror exposto por Käthe Kollwitz em suas gravuras sobre a Revolta dos Tecelões, no século 19, difere muito do que conhecemos hoje. Naquela época a industrialização estava num estágio embrionário –o que levou Marx a acreditar na viabilidade de uma revolução proletária.

O tempo permitiu que os operários se organizassem em sindicatos e partidos, mas possibilitou também à ciência novas formas de domínio. O colapso das velhas formas de sociabilidade viabilizou a emergência do império, descentralizado de dominação.

ABATE

A obra de Karin Lambrecht –com suas representações da morte a partir das experiências de abate de animais– expõe o horror moderno, "quando o capitalismo se estrutura em torno de uma sociedade biopolítica". O homem se afastou tanto da natureza que se tornou descartável.

Segundo Araújo, as obras de arte interpelam o homem para que ele possa superar suas dificuldades: "Somente a partir de uma postura ativa é que os

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homens são capazes de passar pela experiência do horror sem que caiam no abismo do pessimismo".

Coleção traz livro de Lévy sobre o impacto da internet nas relações

Chega às bancas texto de um dos maiores estudiosos sobre a rede

MAURICIO PULSCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Lançado em 1997, "A Inteligência Coletiva" –que chega às bancas dia 30– foi uma das primeiras obras a analisar o impacto da internet nas relações humanas.

Nascido em 1956 na Tunísia, Pierre Lévy estudou na Sorbonne e hoje leciona nas universidades de Paris e de Ottawa. Considerado um dos maiores estudiosos da internet, ele afirma que o ciberespaço alterou radicalmente as formas de sociabilidade e a produção do conhecimento.

Em "A Inteligência Coletiva", ele sustenta que a rede mundial possibilitou o compartilhamento da percepção, da imaginação e da memória: a troca de conhecimentos aprimorou a aprendizagem.

Segundo o autor, a inteligência coletiva não está restrita a alguns privilegiados, mas se distribui por toda a sociedade, pois o ciberespaço permite que os indivíduos se mantenham interligados independentemente do lugar onde vivem.

A internet promove a desterritorialização dos saberes, que abre caminho para o advento da inteligência coletiva.

"O intelectual coletivo é uma espécie de sociedade anônima para a qual cada acionista traz como capital seus conhecimentos, suas navegações, sua capacidade de aprender e de ensinar. O coletivo inteligente não submete nem limita as inteligências individuais; pelo contrário, exalta-as, fá-las frutificar e abre-lhes novas potências."

Ele diz que perguntar se o projeto de uma inteligência coletiva é utópico ou realista não faz sentido, porque "ainda não sabemos, em meio à mobilidade geral, que limites deslocará e até que ponto".

Para Lévy, sua obra é uma herdeira do Iluminismo. O projeto da inteligência coletiva levará a humanidade a encontrar uma saída pacífica para seus enigmas.

CRÍTICA LITERATURA/ROMANCE

Trama vencedora do Booker Prize prende a atenção, mas carece de dramaticidade

SYLVIA COLOMBODE SÃO PAULO

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É impossível descolar "O Caminho Estreito para os Confins do Norte" da experiência que deu origem ao romance. Ao ver seu pai aproximando-se da morte, o australiano nascido na Tasmânia Richard Flanagan, 54, viu-se na obrigação de vencer mais de uma década de hesitação e finalmente escrever uma ficção baseada nas histórias que ouvia desde garoto.

Flanagan pai havia sido um dos cerca de 300 mil prisioneiros de guerra do Japão que foram obrigados a trabalhar na construção da chamada "ferrovia da morte", em 1943, entre a Tailândia e Mianmar.

Foi um dos poucos a sobreviver. Como Flanagan reforça, houve mais mortos nesse terrível episódio do que no bombardeio a Hiroshima e do que a quantidade de palavras que escreveu em seu livro (que na edição brasileira tem 430 páginas).

ALGOZES DO PAI

Após longa pesquisa, que incluiu viagens ao Japão para entrevistar algozes do pai, Flanagan voltou com rico material, escreveu seu romance e viu o pai morrer no dia em que pôs, nele, o ponto final.

Seu esforço foi reconhecido ao receber o Man Booker Prize no ano passado. Do ponto de vista literário, porém, "O Caminho Estreito..." deixa a desejar.

Descrever com detalhes a crueldade de espancamentos e a desolação daqueles que caminhavam esquálidos para a morte pode até prender a atenção do leitor, mas por si só não dão corpo a um romance.

É interessante o modo como introduz o olhar dos oficiais japoneses, levando o leitor a concluir que também estes eram vítimas. O conceito de bons ou maus se dilui.

Mas a trama ficcional que Flanagan constrói para costurar a história, a do médico militar Dorrigo Evans em vários momentos de sua vida, é arrastada e pouco envolvente, esvaziando a obra de dramaticidade.

DRAUZIO VARELLA

Seu Dorival e os tapas na cara

'O dia em que a Terezona descobrir a desfeita, la maison va tomber', avisou Valdemar, amigo de infância

A mulher corpulenta parou na porta do botequim, olhou para o fundo e caminhou a passos duros na direção do casal na mesinha com a cerveja.

"Seu cachorro, ordinário. Tá fazendo o que com essa vagabunda?"

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O cachorro ordinário era Dorival, seu ex-marido, um mecânico de abdômen avantajado, de bermudão e havaiana, sentado bem perto de Soninha, morena oxigenada, 20 anos mais nova do que ele e a mulher de seios fartos que a agarrou pelos cabelos e derrubou a mesa, a garrafa e o pratinho de salame com os palitos e as rodelas de limão.

A desigualdade de estatura desequilibrava a refrega em favor da invasora, que chacoalhava a cabeça da inimiga, com a intenção aparente de arrancá-la do pescoço. Aos pedidos de calma, muita calma, Dorival se interpôs entre as contendoras, intervenção que teria obtido êxito não fosse a joelhada recebida nas partes baixas.

Com o corpo arqueado pelo golpe, pediu ajuda aos circunstantes, todos eles vizinhos e amigos da Vila Nova Cachoeirinha, nenhum dos quais se dignou a socorrê-lo. Valdemar, conclamado pessoalmente para interferir, em nome da amizade desde os tempos de meninos, limitou-se a murmurar: "Eu, hein!"

Quando resolveu parar, a agressora largou a cabeça chacoalhada, meteu as unhas no rosto da moça e na careca do ex-marido que teimava em contê-la, endireitou o corpo, esticou a blusa e alisou o cabelo com as mãos, virou dois tapas na cara do ordinário sem-vergonha e abriu caminho decidida entre os curiosos aglomerados no balcão.

Dorival e a ex-esposa, conhecida por todos como Terezona, tinham se separado depois de vinte e cinco anos de vida em comum e dois filhos, um dos quais casado. Separação civilizada, a ponto de morarem a uma quadra de distância: ela e o filho solteiro no conforto do sobrado adquirido pelo casal, ele num quarto e sala alugado de uma tia.

O divórcio informal fora acertado em comum acordo. Segundo ela, para se livrar da falta de consideração do marido que dava mais importância aos amigos do bar do que à esposa esperando horas, feito tonta, com o jantar à mesa. De acordo com ele, a causa dos desentendimentos constantes era o gênio encrenqueiro da mulher:

"Conta para mim que homem aguenta uma mulher buzinando na orelha dele, o tempo inteiro."

Depois de meses discutindo o formato da separação, acertaram uma cláusula pétrea: teriam liberdade para levar a nova vida como lhes aprouvesse, desde que não expusessem o outro ao falatório da vizinhança.

O entrevero acontecera num bar da avenida mais movimentada do bairro, quando o casal já vivia em casas separadas havia quase um ano, fase em que Dorival caíra encantado por Soninha, passista da Camisa Verde e Branco, a ponto de desfilar com ela pelas redondezas sem dar ouvidos ao amigo de infância que mais tarde lhe negaria auxílio na briga do botequim, o experiente Valdemar:

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"Meu, você está aí todo moderninho, tirando uma de divorciado, mas o dia em que a Terezona descobrir a desfeita, com uma mulher vinte anos mais nova do que ela, la maison va tomber".

Os meses se passaram, e a paixão por Soninha esfriou na mesma medida em que o relacionamento com a ex-mulher se tornava mais próximo.

Na saída da maternidade, do dia em que nasceu a primeira neta, o casal se reconciliou. Antes de voltarem a residir sob o mesmo teto, no entanto, Dorival achou por bem ser honesto com a namorada que não esperava perdê-lo "de uma hora para outra, sem ter feito nada de errado", conforme se queixou, aos prantos.

Domingos mais tarde, Terezona completou 52 anos. Dorival reuniu os filhos, a nora, dois casais de cunhados, três sobrinhas e a sogra na pizzaria mais concorrida da Nova Cachoeirinha.

Na hora em que o garçom servia os pratos, do nada, apareceu Soninha, com ar de poucos amigos, deu com a bolsa em duas garrafas enormes que esparramaram refrigerante pela mesa, jogou quase uma pizza inteira no rosto de Terezona, xingou Dorival de cachorro ordinário, deu-lhe dois tapas estalados na cara, virou as costas e saiu enfezada, sem que qualquer dos presentes ousasse esboçar reação.

CRÍTICA CINEMA/TERROR

Trama de thriller demora a atingir seu clímax

'Exorcistas do Vaticano' tem momentos tolos e constrangedores, mas algumas ideias se harmonizam no desfecho

SÉRGIO ALPENDRECOLABORAÇÃO PARA A FOLHA

No cinema de horror, o exorcismo é um tema muito explorado desde o sucesso do clássico "O Exorcista" (1973), de William Friedkin. A fórmula é requentada de diversas maneiras, com sucessos igualmente variáveis.

O mais novo exemplar é "Exorcistas do Vaticano", quinto filme de Mark Neveldine, o primeiro que dirige sem o parceiro Brian Taylor.

O título brasileiro é impreciso. Melhor seria uma tradução literal: "As Fitas do Vaticano" (para "The Vatican Tapes", no original). Porque não é bem de exorcismo que fala o filme, mas de uma luta mais ampla, do bem contra o mal.

Angela (Olivia Taylor Dudley) é uma bela garota que mora com seu namorado, Pete (John Patrick Amedori). Rejeitada pela mãe, tem uma ligação muito forte com o pai, Roger (Dougray Scott).

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No dia de seu aniversário, Pete convoca alguns amigos para uma festa surpresa. Até mesmo o pai, que detesta Pete, aparece. É um dia aparentemente perfeito para Angela.

Quando corta o bolo, ela machuca muito o dedo. Tem de ir ao hospital para levar alguns pontos. A partir desse episódio, coisas estranhas acontecem, incluindo um terrível acidente de carro que a leva de volta ao hospital.

Logicamente, vai demorar um pouco para que suspeitem de possessão demoníaca. Isso só acontece quando um padre chamado Lozano (o carismático Michael Peña) percebe que as coisas que acontecem perto da paciente não são de ordem natural.

Faz parte do gênero mexer com os nervos do espectador. Se todos pensassem nessa hipótese desde o começo, teríamos muito mais espaço para o conflito, e o que interessa é justamente o clima.

Além disso, Angela é bonita demais para hospedar o tinhoso em seu corpo. É normal que demorem para pensar em possessão.

O filme tem momentos muito tolos, como é praxe no horror atual. Algumas cenas chegam a ser constrangedoras. Mas algumas ideias se harmonizam no desfecho, justificando as opções bizarras da narrativa e preparando o terreno para uma continuação.

Fim de cartéis alimenta nova guerra

WILLIAM NEUMANCHILAPA, MÉXICO

Durante quase uma semana, homens armados e mascarados leais a uma gangue local de tráfico de drogas controlou esta pequena cidade, localizada em uma das principais rotas de contrabando do país. Policiais e soldados somente observaram enquanto pistoleiros procuraram por membros de um grupo rival e levaram pelo menos 14 homens, que desde então não foram mais vistos.

"Eles estão lutando pela rota que passa por Chilapa", disse Virgilio Nava, cujo filho de 21 anos foi um dos capturados em maio, apesar de não ter ligações aparentes com qualquer dos bandos. "Mas nós é que somos afetados."

Há anos, os EUA pressionam os países que combatem cartéis de drogas poderosos, como o México, a decapitar os grupos, matando ou prendendo seus líderes. O apogeu dessa estratégia foi a captura do mais poderoso narcotraficante do México, Joaquín Guzmán Loera, mais conhecido como El Chapo, que escapou no mês passado de uma prisão federal.

O resultado foi a fragmentação dos cartéis e surtos de violência em lugares como Chilapa, cidade de cerca de 31 mil habitantes, onde grupos menores disputam o controle. "O que vimos com a estratégia de alvos de alto valor é que a Al Qaeda diminuiu, mas apareceu o Estado Islâmico", disse Raúl Benítez Manaut,

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professor na Universidade Autônoma Nacional do México especializado em questões de segurança. "Com os cartéis foi parecido."

Enquanto os grandes cartéis são como monopólios envolvidos na produção, distribuição e venda de drogas, os bandos menores muitas vezes controlam apenas uma parte da cadeia de suprimento das drogas. Enquanto os grandes cartéis têm recursos para comprar autoridades do governo em nível nacional, os bandos menores geralmente se concentram nos níveis local e estadual, muitas vezes com consequências desastrosas para as comunidades.

Isso ficou extremamente claro em um caso que chocou o país no ano passado, quando 43 estudantes desapareceram em Iguala, que, como Chilapa, fica no Estado de Guerrero. Assim como aconteceu aqui, os desaparecimentos ocorreram em meio a uma disputa por território entre traficantes locais.

A violência e os sequestros em Chilapa expuseram a incapacidade ou falta de empenho do governo para encontrar respostas efetivas.

Governos sucessivos falaram sobre uma reforma da polícia nacional, mas seus esforços falharam em eliminar a corrupção e criar forças de segurança profissionais. O presidente Enrique Peña Nieto propôs uma série de mudanças em novembro passado, incluindo a centralização do controle da polícia local em cada Estado, mas isso não foi implementado.

Moradores e autoridades dizem que Chilapa fica em uma rota de contrabando de maconha e pasta de ópio disputada por dois bandos. Eles cresceram após o governo conseguir prender ou matar os líderes do cartel Beltrán Leyva.

Um grupo conhecido como Rojos (Vermelhos) hoje controla a cidade, segundo residentes e autoridades. Mas vilarejos rurais próximos são controlados pelos Ardillos, cujo nome deriva da palavra "esquilo" em espanhol. Os moradores acusaram o prefeito de ligações com os Rojos, o que ele nega.

A violência entre os grupos aumenta. É comum encontrar cadáveres. No mês passado, um corpo decapitado foi deixado com um bilhete: "Aqui está seu lixo, gambás com rabos". Dois dias depois, sete corpos foram encontrados. Um estava sem cabeça, com uma mensagem cortada no peito: "Sinceramente, Rojos".

Moradores dizem que os pistoleiros que invadiram a cidade em maio eram liderados pelos Ardillos. Os invasores desarmaram a polícia local e começaram a capturar alguns homens. "Eles diziam: 'Tragam o prefeito, tragam o Chaparro'", disse Matilde Abarca, 44, referindo-se ao apelido do chefe dos Rojos. O filho de Abarca, de 15 anos, foi apanhado, espancado e levado em uma caminhonete.

Segundo ela, os pistoleiros disseram que devolveriam os moradores sequestrados se os outros lhes entregassem o líder dos Rojos.

A ocupação ocorreu apesar de soldados e policiais federais estarem em Chilapa por causa da crescente violência. Testemunhas disseram que as autoridades simplesmente olharam, afirmação confirmada por fotografias e vídeos de

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celular. Alguns dizem que as autoridades se contiveram porque os invasores afirmaram ser uma força defensiva da comunidade, como os que surgiram para enfrentar traficantes em algumas cidades.

Desde que a ocupação de Chilapa terminou, as polícias estadual e federal ficaram para manter a ordem, e as autoridades prometeram investigar os desaparecimentos. Mas não há sinal de progresso.

Os parentes dos 14 homens capturados se reúnem diariamente. Muitos se agarram à esperança de que eles continuem vivos, talvez obrigados a trabalhar em plantações de papoula ou de maconha.

José Díaz, 52, porta-voz das famílias de Chilapa, disse que cerca de cem pessoas da área desapareceram desde meados do ano passado, incluindo seus dois irmãos e um primo.

Dados recentes do governo mostram que o índice nacional de assassinatos vem caindo. Mas muitas áreas continuam sofrendo com a violência de grupos menores de traficantes que tentam ocupar o vazio deixado pelos cartéis.

"Para o crime organizado, El Chapo não é o futuro", disse Alejandro Hope, ex-oficial da inteligência mexicana. "El Chapo é um remanescente, poderoso, mas de qualquer forma um remanescente."

Rebelião e fé inclinam garotas ao extremismo

KATRIN BENNHOLDLONDRES

Na noite antes de partir para a Síria, Khadiza Sultana dançou em seu quarto. Era uma segunda-feira nas férias escolares. Sua sobrinha de 13 anos -apenas três anos mais jovem que Khadiza- tinha vindo para passar a noite em sua casa. As duas meninas riam, girando ao som da música. Khadiza ofereceu seu quarto à sobrinha e dividiu a cama com sua mãe. Era uma filha amorosa, especialmente desde a morte de seu pai.

Salva no celular de sua sobrinha e vista dezenas de vezes desde então por membros da família, a cena no quarto mostra a Khadiza que seus familiares pensavam que conheciam: uma garota alegre, sociável, divertida e gentil.

Porém, como ficaria claro, a cena foi também o adeus cuidadosamente coreografado de uma adolescente que passou meses planejando como deixar sua casa em Bethnal Green, na zona leste de Londres, com duas colegas de classe, para seguir o caminho de outra amiga que tinha viajado para o território controlado pela facção terrorista Estado Islâmico.

Na manhã de terça, Khadiza disse à sua mãe que passaria o dia na biblioteca. Prometeu retornar às 16h30. Quando não tinha voltado às 17h30, sua mãe pediu à irmã mais velha de Khadiza, Halima Khanom, que lhe mandasse uma mensagem. Não houve resposta.

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Khanom, 32, foi até a biblioteca, mas a irmã não estava lá. Quando voltou para casa, sua mãe já tinha descoberto que o guarda-roupa de Khadiza estava vazio. Na manhã seguinte, a família informou à polícia do desaparecimento. Três agentes do SO15, o esquadrão de contraterrorismo da Polícia Metropolitana, bateram na porta. Um deles disse à mãe de Khadiza: "Achamos que sua filha viajou à Turquia com duas amigas".

Khanom viu sua irmã depois disso na televisão: imagens granulosas de câmeras de segurança mostravam Khadiza e suas duas amigas de 15 anos, Shamima Begum e Amira Abase, passando calmamente pela segurança no aeroporto de Gatwick para embarcar no voo 1966 da Turkish Airlines para Istambul e, mais tarde, subindo num ônibus rumo à fronteira da Síria.

As imagens converteram as três meninas de Bethnal Green no rosto de um novo fenômeno: jovens que se rendem à atração de algo que especialistas como Sasha Havlicek, do Instituto de Diálogo Estratégico, descreve como uma subcultura de "girl-power" jihadista. De acordo com o instituto, cerca de 4.000 ocidentais já partiram para a Síria e o Iraque para ingressar no EI, sendo mais de 550 meninas e mulheres jovens.

As mulheres ocidentais do EI apoiam os esforços do grupo para construir um Estado, atuando como esposas, mães e divulgadoras on-line. Muitas são solteiras, geralmente adolescentes ou com pouco mais de 20 anos. Para as autoridades, elas representam uma ameaça tão grande ao Ocidente quanto os homens: tendo probabilidade maior de perder o cônjuge em combate, podem voltar para seus países de origem, doutrinadas e cheias de ódio.

As meninas de Bethnal Green eram elogiadas por seus professores e admiradas por seus colegas. Eram garotas inteligentes e populares que viviam em um mundo onde a rebelião adolescente é expressa por uma religiosidade radical que questiona tudo à sua volta.

"Antigamente as meninas queriam homens bonitos; hoje o que elas buscam são muçulmanos praticantes", disse Zahra Qadir, 22, que faz trabalhos de "desradicalização" para a Active Change Foundation (Fundação Transformação Ativa), entidade sem fins lucrativos mantida por seu pai.

O EI se esforça para atrair essas meninas, adaptando seus chamados aos sonhos, vulnerabilidades e frustrações delas. Enquanto as feministas ocidentais enxergam o hijab como símbolo de opressão, essas meninas acham que a moda ocidental sexualiza crianças. Nove dias antes de deixar o Reino Unido com suas amigas, Amina escreveu no Twitter: "Sinto que não pertenço a esta era".

Khanom tinha 17 anos, apenas um ano mais que Khadiza, quando se casou. Tasnime Akunjee, advogado que representa as famílias das três garotas, disse que, no mundo delas, ir à Síria e aderir ao EI é uma maneira de tomar as rédeas de seu próprio destino.

As poucas notícias que emergiram sobre as três amigas desde que partiram revelam um misto de ingenuidade e determinação juvenil. Uma conhecida das garotas disse que Amira "se apaixonou pela ideia de se apaixonar". Já Khadiza

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disse à sua irmã, depois de chegar à Síria: "Não vim para cá apenas para me casar".

"É um feminismo distorcido", comentou Havlicek. "Para as meninas, aderir ao EI é uma maneira de se emancipar de seus pais e da sociedade ocidental, que elas consideram que as traiu. Para o EI, é ótimo para a moral das tropas, porque os combatentes querem mulheres ocidentais. E, na batalha das ideias, eles podem apontar para essas garotas e dizer: 'Veja, elas estão optando pelo califado'."

Em janeiro de 2014, uma das melhores amigas de Khadiza, Sharmeena Begum (sem parentesco com Shamima), perdeu a mãe para um câncer. Pouco depois, seu pai começou a namorar. Filha única, Sharmeena ficou profundamente abalada. Após a morte da mãe, ela começou a passar mais tempo na mesquita. Quando seu pai se casou novamente, Khadiza a acompanhou ao casamento. Pouco depois disso, em 6 de dezembro, Sharmeena desapareceu. "Ela estava vulnerável, traumatizada", comentou o advogado Akunjee, que não representa a família de Sharmeena, mas conhece o caso dela. "Sharmeena não reagiu fazendo um piercing ou começando a namorar um traficante de drogas -ela aderiu ao EI."

Na época, um policial foi encarregado de entrar em contato com as meninas, mas elas não atenderam seus telefonemas nem responderam às mensagens dele. O policial pediu à escola para marcar encontros com as meninas e quatro outras amigas delas. Duas reuniões chegaram a acontecer. Apesar disso, segundo Khanom, nem a escola nem a polícia informaram às famílias sobre exatamente o que estava acontecendo. Um representante da Polícia Metropolitana disse que não houve qualquer indício de que as garotas "estivessem vulneráveis de qualquer maneira ou tivessem sido radicalizadas". Em 5 de fevereiro, policiais entregaram cartas às meninas que elas deveriam entregar a seus pais, pedindo a autorização para tomar depoimentos formais delas sobre o desaparecimento de Sharmeena. Mas as meninas não entregaram as cartas.

Como a polícia e a escola estavam guardando silêncio sobre a suspeita de que Sharmeena tivesse viajado à Síria, Khadiza e suas amigas começaram a planejar seguir o exemplo dela. Numa página arrancada de um calendário, as meninas redigiram uma lista de coisas que teriam que levar na viagem: sutiãs, celular e agasalhos, entre outros itens. Encontrada no fundo do guarda-roupa de uma delas, a lista parece conter também a letra de uma quarta garota. Desde então, um juiz confiscou os passaportes da quarta garota, de três outras alunas da Bethnal Green Academy e de uma quinta garota do bairro.

Elas formavam o que Shiraz Maher, membro sênior do Centro Internacional para o Estudo da Radicalização e da Violência Política, descreveu como um núcleo padrão, razão pela qual é ainda mais espantoso que a escola e a polícia tenham deixado o fato passar despercebido em mais de uma ocasião. Segundo Maher, se um membro de um grupinho de amigos foi para a Síria, esse é um indicativo confiável de que os outros amigos farão o mesmo.

Em 15 de fevereiro, dois dias antes de as três meninas partirem, Shamima mandou uma mensagem pelo Twitter a uma conhecida recrutadora do EI

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residente em Glasgow, Aqsa Mahmood. Shamima é a mais jovem das três amigas e também a mais esquiva. Sabe-se pouco sobre ela, tirando o fato de que gostava de assistir ao programa "Keeping Up With the Kardashians" e que viajou à Turquia com o passaporte de sua irmã de 17 anos, Aklima. Aqsa Mahmood negou ter recrutado as meninas.

Familiares de Khadiza dizem que é pouco provável que as garotas tenham conseguido sozinhas o valor estimado de 3.000 libras esterlinas (cerca de R$ 16.300) para custear as passagens.

"É uma viagem complicada", falou Akunjee. Ele sabe disse em primeira mão. Uma das primeiras coisas que o advogado fez depois de ser contratado pelas famílias das garotas foi viajar com parentes delas à Turquia e lançar um apelo público para que elas entrassem em contato.

Na manhã depois de as famílias retornarem a Londres, uma mensagem apareceu na conta de Instagram de Khanom. Seu pedido de seguir sua irmã, bloqueado desde que Khadiza tinha partido para a Síria, tinha sido aceito. Khanom contou que mandou uma mensagem a Khadiza pedindo que ela lhe dissesse se estava em segurança. Khadiza respondeu e mais tarde mandou outra mensagem, pedindo notícias de sua mãe.

Baseadas nessas conversas, as autoridades concluíram que as três garotas estavam em Raqqa, a capital "de facto" do EI, em um de vários albergues para mulheres solteiras que existem ali.

Desde então, as três se casaram, confirmou o advogado das famílias. Elas puderam optar entre vários homens ocidentais.

Uma delas escolheu um canadense, outra um europeu. Amira se casou com Abdullah Elmir, australiano que já foi visto em vídeos de recrutamento do EI. Elas mantêm contato esporádico com suas famílias. As conversas passam a impressão de que as meninas não lamentam sua decisão, mas também dão a entender que elas enfrentam dificuldades como cortes de eletricidade e escassez de produtos. Um bate-papo recente foi interrompido abruptamente porque um ataque aéreo estava começando.

Está ficando mais difícil saber se são as próprias meninas que estão se comunicando. Cada vez mais, suas conversas são entremeadas por frases padronizadas de propaganda. "Será que elas adotaram essa linguagem? Será que há alguém ao lado delas quando escrevem?", indaga Akunjee. "Não sabemos. Mas elas não são mais as pessoas que suas famílias reconhecem. Não são mais as mesmas. E como poderiam ser?"

CRÔNICAS DOS EUA

Segregação racial vence iniciativas para moradia mais justa

JOHN ELIGONST. LOUIS

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Um ano depois que um policial de Ferguson, no Missouri (centro dos EUA), matou a tiros Michael Brown, um jovem negro de 18 anos que estava desarmado, a região de St. Louis esteve envolvida em uma difícil discussão sobre raça e classe -e não apenas relacionada à polícia.

Para muitos, uma questão permeia todas as outras: as barreiras que mantêm os negros fora das comunidades prósperas, geralmente brancas, podem ser derrubadas?

Os dados, em geral, sugerem que não. Segundo diversas medidas, a região de St. Louis continua entre os lugares mais segregados do país, onde a maioria dos negros e dos brancos, embora separados apenas por uma curta distância, vivem em mundos diferentes.

Tal é o caso de Ferguson. A parte onde Brown morreu é um bairro predominantemente negro, cujos moradores se queixam do assédio da polícia e da alta criminalidade. A vida é muito diferente a apenas três quilômetros dali, no bairro comercial no centro da cidade, cheio de atrações, cercado por bolsões de bairros afluentes, predominantemente brancos.

Reagindo às preocupações de que as condições nos bairros negros de baixa renda contribuem para os problemas que detonaram as rebeliões após a morte de Brown, a câmara de Ferguson, convocada pelo governador Jay Nixon, propôs medidas para promover a habitação mais integrada, incluindo a implementação de leis de moradia para reduzir práticas discriminatórias de empréstimos.

No entanto, entrevistas com moradores, ativistas e acadêmicos sugerem que uma série de forças que perpetuam a segregação continuam muito presentes.

Um grande obstáculo para os negros que procuram residências em comunidades mais brancas, segundo os defensores da moradia justa, é que muitos proprietários não aceitam os bônus da Seção 8, subsídio federal para pessoas de baixa renda.

Recusar-se a aceitar os bônus é legal na maioria dos lugares e contribuiu para a concentração dos cidadãos negros em comunidades pobres, dizem especialistas em habitação.

A cidade de St. Louis aprovou um decreto neste ano que basicamente proíbe os senhorios de discriminarem com base na Seção 8. O condado não tem esse decreto, e a câmara de Ferguson recomendou que o Legislativo aprove uma medida estadual.

Os negros hoje lutam para conseguir financiamento, dizem especialistas. Mesmo levando-se em conta a renda, os brancos são aprovados para empréstimos habitacionais em maior porcentagem que os negros no condado de St. Louis, segundo dados de 2012.

O bônus da Seção 8 paga uma certa quantia para o aluguel de uma família com base em um índice de mercado calculado pelo Departamento da Habitação e Desenvolvimento Urbano, do governo federal. A família deve contribuir com

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algum dinheiro para o aluguel, geralmente cerca de 30% da renda familiar. Assim como em outras áreas metropolitanas, as partes da região de St. Louis de maior renda tendem a ter aluguéis altos demais para que o bônus os cubram. Isso muitas vezes deixa as propriedades em bairros pobres como única opção para os que recebem bônus.

A disparidade nos valores das propriedades entre comunidades negras e brancas também tende a empurrar o desenvolvimento da habitação subsidiada para locais mais pobres. Além disso, o governo federal realmente dá maiores incentivos financeiros à construção de moradias de valor acessível em bairros de baixa renda.

No entanto, as empreiteiras e os defensores da habitação dizem que há outra grande barreira social para se levar as famílias de baixa renda para bairros melhores -a resistência das pessoas que já vivem neles.

Um relatório preparado para o condado de St. Louis em dezembro passado, que analisa os empecilhos à habitação justa, descobriu que "alguns moradores da área do estudo têm fortes sentimentos contra esse tipo de vizinhos, assim como atitudes preconceituosas contra pessoas de baixa renda, as que residem em moradias subsidiadas e as minorias étnicas/raciais".

Três quartos dos inquilinos da Seção 8 na região de St. Louis vivem na parte norte da cidade ou do condado, apesar de ela ter uma população total menor que a da região sul.

Colin Gordon, professor da Universidade de Iowa e autor do livro "Mapping Decline", que estuda a história urbana de St. Louis, disse: "Apesar de os mecanismos de segregação visíveis estarem contidos hoje, você acaba com um mercado habitacional espacialmente dividido, em que negros não conseguem pagar para viver no mesmo local em que moram os brancos".