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DMS-5 Perfil Crítica de cinema Novo manual de psiquiatria gera polêmica Pág. 3 A dona da rua Pág. 6 Uma jornada chocante e sinistra Pág. 8 CONFIRA TAMBÉM IMPRESSO E ON-LINE - BOLETIM Nº 22 ABR/MAIO/JUN/JUL - 2013 ANO 06 ELES TÊM FOME DE QUÊ

FOME DE QUÊ - sindhosp.com.br · estudos sobre o impacto da cirurgia da obesidade na vida das pessoas. Uma solução ... grande ponto é que o médico, o psicólogo, o ... da Sociedade

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DMS-5 Perfil Crítica de cinemaNovo manual de psiquiatria gera

polêmica Pág. 3A dona da rua

Pág. 6Uma jornada chocante e sinistra

Pág. 8

Confira TaMbéM

iMPrESSo E on-LinE - boLETiM nº 22abr/Maio/JUn/JUL - 2013

ano 06

ELES TÊM

FOME DE QUÊ

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Esta edição do Saúde Mental em Foco vem emoldurada pela diversidade. Mas o que é a diversidade afinal? É algo inerente ao ser humano, certamente. Algo que transforma os indivíduos em mentes complexas, abstratas, difíceis de entender. É o elemento que diverge o ser humano de todo o resto, porque permite que as pessoas sejam tão ricas quanto o número de possibilidades existentes em se transformar. Por outro lado, a diversidade é o que exclui, uma vez que, por conta das diferenças, erguemos barreiras instransponíveis entre o que somos e o que queremos que o outro seja. Deveríamos ser todos iguais, no entanto. Respeitadas as diferenças. Exercício bastante complexo, não?

Está lançado o desafio. Trazemos, na reportagem de capa, matéria que analisa recentes estudos sobre o impacto da cirurgia da obesidade na vida das pessoas. Uma solução cirúrgica para um mal que só cresce, inventada na modernidade de nossa espetacular ciência, pode não ser a resolução de todos os problemas de um indivíduo que sofre. Porque um obeso, afirmam os especialistas, é sobretudo um indivíduo que está em sofrimento. E come porque tem fome. Muitas vezes, não para de comer mesmo depois de cessada a fome. Terá fome de quê?

Apresentamos ainda uma sessão nova, que chega com o objetivo de debater o vício das drogas em diferentes segmentos de nossa sociedade. Em busca de personagens, nossa equipe de reportagem acabou se deparando com uma história de vida muito mais rica do que o envolvimento com drogas. Brunna Valin, nossa entrevistada, nos presenteia com sua sinceridade, e até nos constrange um pouco ao mostrar que sim, somos todos iguais. Embora ninguém enxergue isso.

Repercutimos também o lançamento do DSM-5, a mais nova versão do Manual Diagnóstico da Associação Americana de Psiquiatria. Embora tenha gerado polêmica, e ainda esteja gerando, o livro é referência para a psiquiatria brasileira, e traz novi-dades importantes. Tem sido acusado de ampliar diagnósticos e de “psiquiatrizar” sentimentos inerentes à natureza humana. Veremos...

No âmbito político, trazemos a repercussão de uma recomendação, vinda do Conselho Estadual de Saúde, para o fechamento do AME Psiquiatria, que funciona da zona norte da cidade de São Paulo, e é referência na assistência de alta complexidade em saúde mental. Ao que tudo indica, no entanto, e em nome da qualidade, a Secretaria Estadual de Saúde afirmou que irá ignorar o posicionamento do Conselho e manterá o serviço.

Uma crítica de cinema, do filme Segredos de San-gue, completa a edição. Deixamos aos leitores uma dica cultural intrigante, e que tem a ver com esta complexidade do ser humano a que me referia no início do texto. Ela foi escrita, especialmente para o Saúde Mental em Foco, pelo nosso colabora-dor Carlos Eduardo, coordenador de Marketing do Sindicato e que se dedica, paralelamente, ao exercício da crítica de filmes. Provocar o debate é sempre bom. Fica a dica. Boa leitura e bom filme!

Ricardo Mendes écoordenador do departamento de Saúde Mental do SINDHOSP

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CanaL abErTo EXPEDiEnTE

SomoS diverSoS, porém

DIRETORIA:

EFETIVOYussif Ali Mere Jr. (presidente)

EDITORA:

Ana Paula Barbulho (MTB 22170)

REDAçãO E REVISãO:

Ana Paula Barbulho, Aline Moura, Fabiane de Sá e Rebeca Salgado

EDITORAçãO ElETRônIcA:

Carlos Eduardo, Thiago Alexandre(Marketing)

cOlAbORARAM nESTA EDIçãO:

Ricardo Mendes, coordenador de Saúde Mental do SINDHOSP, e Carlos Eduardo Silva (Marketing)

TIRAGEM:

2.000 exemplares

cIRculAçãO:

Entre diretores e administradores de hospitais psiquiátricos e clínicas

PERIODIcIDADE:

Trimestral

FOTOS MATÉRIA cAPA:

Thinkstock

DEMAIS FOTOS:

Thinkstock e divulgação

cORRESPOnDêncIAS PARA:

Assessoria de Imprensa R. 24 de Maio, 208 - 9º andarCEP: 01041-000 - São Paulo - SPTel. (11) 3331-1555 - Fax: (11) [email protected]

Saúde Mental em Foco é uma publicação do SInDHOSP

igUaiS

DSM-5

pelo menos duas semanas, e se apresenta outros sintomas de tristeza persistente e sofrimento, pode ser diagnosticado com depressão.

Na avaliação do psiquiatra da Unifesp, Thiago Marques Fidalgo, as críticas ao novo DSM são exageradas. “Muito foi dito pela imprensa que, a partir do lança-mento do DSM-5, as pessoas acordariam com um diagnóstico psiquiátrico. Isso não é verdade. O DSM continua tendo como um de seus critérios fundamentais a presença de sofrimento. Além das características clínicas, é necessário que elas acarretem sofrimento ao paciente ou às pessoas próximas. Mas se você funciona bem na vida com seus ´pequenos novos sintomas´, isso continua não sendo um problema”.

Para Fidalgo, ainda é preciso lembrar que o livro é um manual diagnóstico e que, em momento algum, ele faz referência a medicamentos. “Nenhuma sugestão é dada. É importante ressaltar também o preparo do psiquiatra. Se o DSM for utilizado apenas como um checklist, para determinar o diagnóstico e o remédio, ele vai se tornar em uma ferramenta nefasta”, alerta.

A nova versão ainda traz mudanças importantes para crianças. Uma delas é a criação de um novo diagnóstico para crianças com humor instável. Trata-se do transtorno disruptivo de desregulação do humor, que difere do transtorno bipo-lar por ser menos abrangente. Para que seja diagnosticada, segundo o manual, a criança precisa apresentar irritabilidade persistente e episódios frequentes de surtos de comportamento três ou mais vezes por semana, por mais de um ano. Os psiquiatras defensores da novidade afirmam que isso será benéfico, uma vez que muitas crianças têm sido diagnosticadas como bipolares, sem efetivamente serem.

O risco do estigma, segundo os críticos, é um dos maiores problemas de se cravar no-vos diagnósticos. No entanto, se o autismo não tivesse sido classificado e estudado, receberia verbas para pesquisas e proporcionaria tratamentos a tantos pacientes? É o que defende Fidalgo: “Sem dúvida nenhuma a classificação é importante. Ela auxilia os médicos na prescrição de tratamentos medicamentosos, auxilia os pesquisadores na busca de novas alternativas de medicações, tem um papel importante no financiamento da saúde. O grande ponto é que o médico, o psicólogo, o terapeuta ocupacional e a família não podem deixar que aquela pessoa que está ali se resuma a um diagnóstico, a um rótulo, a uma classificação. Se não perdermos de vista esse aspecto humano e individual, não há o risco de a classificação ser um fator estigmatizante”.

Lançado em maio deste ano, o novo Manual de Diag-nóstico e Estatística dos Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria (APA), chega à sua quinta edição, em meio a controvérsias. Um dos grandes nomes ligados à revisão da quarta edição, feita há 15 anos, anunciou seu desligamento da comissão que revisaria a quinta versão. Foi o psi-quiatra Allen Frances quem ajudou a criar critérios de diagnóstico que, mais tarde, resultariam em uma “epidemia” de doenças mentais, como a do déficit de atenção por hiperatividade. Hoje, ele milita ao lado de psicólogos na briga contra o monopólio dos psiquiatras sobre a redação do manual.

Embora não seja determinante de regras ou condutas e funcione apenas como um guia, o livro orienta a atividade de psiquiatras do mundo inteiro. Ainda serve de base para que planos de saúde paguem tratamentos. No Brasil, planos de saúde se baseiam na Classificação Internacional de Doenças da Organi-zação Mundial de Saúde (OMS), que é virtualmente igual ao DSM no que diz respeito à área mental. Sua quinta edição vem sendo criticada por ampliar ainda mais os critérios para diagnósticos de transtornos mentais, assim como por se distanciar de pesquisas que conectam a prática clínica à neurociência. Esta tendência levou a um racha entre o Instituto Nacio-nal de Saúde Mental (NIMH) dos Estados Unidos, e a APA. O NIMH afirmou que se distanciará das pesquisas relacionadas ao DSM, e somará esforços em seu próprio projeto, o Pesquisa em Domínio de Critérios (RDoC, da sigla em inglês).

A alegação da APA é a de que não existe ainda ciência suficiente para nortear diagnósticos e que, portanto, a prática clínica tradicional deve ser mantida como parâmetro. A despeito das críticas, o DSM-5 foi lan-çado. Ele amplia, em certa medida, alguns critérios para que pacientes sejam encaixados em determina-dos diagnósticos. O luto, por exemplo, pode ser um sintoma da depressão. Na edição anterior, o luto era condição excludente do diagnóstico da depressão, por ser entendido como um processo natural de perda. A partir de agora, se um indivíduo está em luto por

NOvO MaNUaL DE pSiQUiaTria gEra pOLÊMica

Thiago Fidalgo

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outras dependências. Há pacientes que emagreceram, mas que passaram a be-ber. Claramente, trocaram a compulsão por comida pela compulsão pelo álcool. Sabe-se que obesos, assim como dependentes químicos, possuem uma falha no receptor de dopamina no cérebro”, explica a médica. A tese de doutorado “Vivências emocionais de mulheres submetidas à cirurgia bariátrica no Hospi-tal de Clínicas da Unicamp”, de 2009, também faz o alerta: “O procedimento cirúrgico afeta diretamente a experiência de saciedade, mas não a satisfação alimentar, o que pode levar a uma sensação de intensa insatisfação pessoal. Esta insatisfação é vivida como angústia e pode levar à transformação da compulsão alimentar em direção a outras compulsões ou mesmo ao desenvolvimento de novas estratégias alimentares que permitam a ingestão de quantidades aumen-tadas de calorias, levando ao reganho de peso”.

Daí a importância de se levar em conta, de preferência antes da cirurgia, diag-nósticos de compulsão. “Quando falamos em compulsão, precisamos classifi-car. É muito difícil no pós-operatório saber se o paciente continua compulsivo, porque ele não consegue mais comer como antes. Os critérios se tornam dife-rentes, e alguns pacientes se tornam o que chamamos de ´beliscadores´”, afirma Claudia. Segundo ela, cerca de 30% dos pacientes obesos mórbidos apresentam compulsão, uma característica já existente na base da personalidade do obeso que, pouco a pouco, após a cirurgia, começa a se fazer presente. “Instala-se o

MaTéria DE CaPa

Considerada uma epidemia mundial, a obesida-de possui causas multifatoriais. Estilo de vida se-dentário, hábitos alimentares ruins e aumento dos transtornos de ansiedade são alguns fatores que têm contribuído para o crescimento do número de pes-soas obesas, sem distinção de idade, sexo ou classe social. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), a população de obesos já supera a de desnutridos na América Latina e, no Brasil, o núme-ro de pessoas acima do peso dobrou nas últimas três décadas, chegando a 70 milhões de brasileiros. Des-tes, 18 milhões estão até 45 quilos acima do ideal. São os chamados obesos mórbidos, e os que correm mais riscos de vida. Não à toa, a cirurgia de redução do estômago – também conhecida como cirurgia da obesidade – tornou-se tão popular. Em 2012 foram 72 mil realizadas no país.

Será a cirurgia, no entanto, a solução mágica para os problemas de quem luta contra a balança? Especia-listas afirmam que não. Sozinha, segundo mostram diversos estudos, a cirurgia não é capaz de mudar a forma de pensar do obeso, cuja personalidade pode ser mais dada a compulsões. Há implicações psico-lógicas no processo que leva à obesidade e também no momento em que o paciente, antes obeso, se vê às voltas com o emagrecimento. O próprio presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Me-tabólica (SBCBM), Almino Cardoso Ramos, alerta

MaTéria DE CaPa

para a banalização das cirurgias. “Elas se tornaram populares, principalmente com os avanços das técnicas, e passaram a ser feitas em sua maioria por meio de videolaparoscopia, o que reduziu drasticamente a mortalidade. Mas temos que atentar para a abordagem multiprofissional, de orientação e preparo, e também para a fase pós. Isso é o mais importante de todo o processo”, alertou o médico, durante participação no XV Congresso Brasileiro de Obesidade e Síndrome Me-tabólica, promovido pela Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesi-dade e Síndrome Metabólica), em Curitiba, no início de junho. Segundo ele, o reganho de peso ainda é o maior desafio das equipes que realizam a cirurgia da obesidade: cerca de 15% dos pacientes fracassam no emagrecimento.

Para o psiquiatra Arthur Kaufman, em geral os obesos possuem personalidade negativa, poucas noções alimentares e só conhecem dietas restritivas, que le-vam à perda de peso de maneira cíclica. “Ser gordo pode significar o cultivo do símbolo visual dos fracassos físicos e psicológicos do paciente. Isso não é uma regra, mas é facilmente identificado em pacientes que lutam contra a balança”. Esta visão tem sido corroborada em diversos estudos que avaliam populações submetidas à cirurgia da obesidade. O trabalho “Características psicológicas de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica”, publicado na Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, nº 1, de 2009, descreve com precisão este cenário: “A alimentação, que era anteriormente vivida como prazer incondicional, salvo por certa culpa pelas quantidades de alimento ingeridas, passa a ser um problema a ser enfrentado. O prazer em comer diminui muito. E agora, o que fazer com os indivíduos que tinham quase como prazer exclusivo em suas vidas o ato de comer? O que fazer com os sujeitos que ´pensam com o corpo´? É a partir deste momento que começam a se apresentar, verdadeiramente, para esses sujeitos os problemas que terão que enfrentar. Até o momento da cirurgia, por mais que te-nham sido orientados e esclarecidos quanto às dificuldades, estavam, digamos, fascinados com a certeza de resolverem todos os seus problemas a partir da cirurgia, como que num passe de mágica”. A mágica, no entanto, não existe. E a obesidade, que antes poderia mascarar outros problemas, vai embora após a cirurgia. É quando surgem novas com-pulsões, segundo a doutora em endocrinologia e metabologia pela FMUSP, Claudia Cozer. “A obesidade pode funcionar como um fator de proteção para

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FOME DE QUÊ

terror e o fascínio pelas bolachas que dissolvem na boca, pelo biscoito de polvilho, pelo leite conden-sado, pelo sorvete e o chocolate. Uma verdadeira batalha interna se impõe”, descreve o estudo da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, que acompanhou grupos clínicos de pacientes que pas-saram pela cirurgia. Segundo Claudia Cozer, de 30% e 50% os pacientes pós-cirúrgicos continuam apresentando a compulsão, o que contribui para a falha na perda de peso.

Outro caminho percorrido pelo paciente pós-cirúrgi-co pode ser o da depressão. “Sensação de vazio, per-da de interesse por coisas que anteriormente eram valorizadas, perda de eficiência no trabalho e angús-tia”, descreve a Revista de Psiquiatria do Rio Gran-de do Sul. “A fome para o obeso mórbido é uma área de déficit representacional psíquico, o que o impos-sibilita elaborar psiquicamente a angústia, restando a via de descarga corporal como única possível. Por isso a cirurgia bariátrica é um procedimento que traz importantes transformações psíquicas, sociais e físi-cas”, descreve o trabalho da Unicamp.

Segundo o psiquiatra especialista em distúrbios ali-mentares, Arthur Kaufman, é preciso propor um tra-tamento integral ao indivíduo, no qual a atividade física possui efeito antidepressivo. “Fazer um diário de recordatório alimentar pode ser eficaz também. No qual o paciente registra o dia em que comeu, hora, se comeu sozinho ou acompanhado, como se sente quando está comento, o que o leva a comer ou beber e o que pensa enquanto come e bebe”. A psi-coterapia, segundo ele, também pode ser uma forma de encontrar um novo estilo de vida, tendo em vista as inúmeras implicações emocionais que giram em torno da obesidade.

Na visão do psiquiatra Adriano Segal, também membro da Abeso, os transtornos de humor são muito comuns em grupos de obesidade. “Além disso, a obesidade está associada a depressão em homens e mulheres. Mas estamos no começo do caminho mais científico sobre a obesidade, e come-çando a estabelecer relações entre a obesidade e os transtornos psiquiátricos”, disse.

Almino cardoso

claudia cozer

Arthur Kaufman

Adriano Segal

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Ela é altiva, espirituosa e parece não guardar res-sentimentos da vida. Embora tenha motivos para se anunciar vítima de uma sociedade que não está pronta para a diversidade. A fase de revolta, que a levou para as ruas e a enfiou nas drogas e na prostituição, passou. E do alto de seus 40 anos, Brunna Valin agora multiplica sua vivência intensa com os que passam pelo seu caminho, sem vergonha de usar a própria história como ensinamento para o mundo.

O nome Brunna não é o de batismo, mas é o que ela escolheu para ser seu. Assim ela se identifica, se sente, se apresenta e é. Simples e naturalmente. Não fosse por um detalhe biológico: Brunna nasceu menino. Mas nunca se sentiu como um. “Com sete anos, fui para a escola e queria ser igual às meninas. A professora não deixava, eu levava reguada, cader-nada”, conta a transexual.

O primeiro enfrentamento de Brunna, ao se descobrir, foi com a família. O embate foi o divisor de águas que a levou à marginalidade. Com 14 anos, o menino que se sentia menina cansou da hipocrisia do pai, que preferia que ela fosse “bichinha” a “traveco”, e fugiu de casa. Foi de Fernandópolis, cidade em que nasceu, para São José do Rio Preto. “Meus pais são evangélicos. Quando disse ao meu pai como me sentia, apanhei muito. Ele dizia: ´joga sal grosso que passa´. Na igreja, não era aceita. Na escola, apanhava dos meninos e era assediada por homens mais velhos”, revela.

Na rua, Brunna foi aliciada por cafetinas e passou a cheirar cola. Embora quase todo o dinheiro que ganhava fosse para os aliciadores, ela passou a se sentir mais mulher nesta época, uma vez que apren-deu a se produzir. “Virei a mulher sonhada. Com 18 anos, eu já tinha dinheiro no banco, dividia casa com amigas. E decidi que estava na hora de voltar para visitar a família”.

O retorno à sua cidade foi traumático, já que novamente veio a rejeição. “Vi que não me encaixava ali, e percebi que não voltaria mais”. Foi quando surgiu um lado agressivo de sua personalidade. “Passei a violar o direito das pessoas porque tinha tido o meu direito violado. Batia no cliente quando ele não me pagava, virei a cafetina mais poderosa das ruas de São José do Rio Preto e ganhei o apelido de Brunna Facão”. A fase durona veio junto com a bebida. “Me sentia mais forte bebendo. Virei a dona da rua”, revela.

Eram os anos 90. Época em que Brunna conheceu um garoto de programa. E se apaixonou. “Ele era lindo, capa de revista”, relembra. O relacionamento trouxe para a transexual novas perspectivas, como construir uma família, e uma vontade mais forte de fazer a cirurgia de mudança do sexo. Foi quando Brunna aceitou um emprego de auxiliar de cozinha num restaurante de shopping, na tentativa de abandonar os programas. “Eu vivia esse dilema interno. Era um travesti na rua, fazia programa porque as pessoas buscavam algo diferente. Mas comigo mesma, me sentia mulher, não queria ter traço de homem, órgão sexual, nada”.

O sonho e a paixão acabaram em 1999, quando o companheiro adoeceu repenti-namente, e morreu após 45 dias no hospital. “Vivemos juntos durante seis anos e oito meses. De repente ele começou a sentir dores fortes nas pernas, na cabeça. E faleceu por choque séptico”. No atestado de óbito, dias depois de sua morte, Brunna leu a própria sentença: Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. “Aquilo pra mim foi um choque. Nem os médicos sabiam que ele tinha aids. Naquela época, o teste levava 30 dias para ficar pronto”.

A partir daquele momento, Brunna perdeu o rumo. Largou o emprego, gastou todo o dinheiro que tinha em cocaína, abandonou casa e bens. “No momento da depressão, a cocaína era a minha cura. Eu ficava ótima. Voltei à prostituição, e com os clientes era mais fácil, porque eles traziam a droga. Cheguei a cheirar R$ 18 mil em pó. Aprendi a injetar cocaína na veia, dava um barato muito melhor, e que passava em 20 minutos. Depois vinha a depressão e eu queria morrer de novo. Então usava mais”. Ao invés de andar de táxi para se locomover entre um programa e outro, Brunna passou a ir a pé. “O dinheiro do táxi eu gastava em droga. Ganhava 20 reais com um programa, procurava um quarto dentro da zona mesmo, e ficava me drogando”. Passou 20 dias diretos no vício, sem comer nem beber. Pesava 100 quilos, chegou a 48. “Fui encontrada num quarto, quase morta”.

Sua redenção veio no hospital. Após ser resgatada, Brunna foi internada no Hos-pital de Base de São José do Rio Preto. Ficou um mês em recuperação. Contou com a companhia constante de uma de suas irmãs, gesto que a salvou, segundo

a DONa DaPor Aline Moura

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Nesta edição do Saúde Mental em Foco, inauguramos uma série de reportagens que contarão histórias de vida, sobre pessoas de classes sociais diferentes, profissões, idades, sexo. Os personagens poderão ser médicos, motoristas, mães, estudantes, garis, jornalistas, pros-titutas, donas de casa, empresários, telefonistas, advogados, juízes. O ponto em comum será a questão das drogas. O objetivo é alertar para o fato de que nós, seres humanos, somos vulneráveis, vivemos em conflito e estamos sujeitos a passar por este problema. E também mostrar como a negligência para os nossos problemas mentais, tão contemporâneos, pode estar colaborando para que mais pessoas se refugiem na dependência química. Se você se interessou e quer contar a sua história, mande um e-mail para [email protected]

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conta. “Minha irmã apareceu e disse que não iria arredar o pé dali enquanto eu não ficasse boa”. Tamanha devoção despertou Brunna para a realidade. “Perguntava--me que amor era aquele. Depois de uns dias, comecei a olhar em volta. Todo dia morria um. As pessoas estavam morrendo de aids. Percebi que se não me cuidasse, iria morrer também”.

Esta foi a época em que Brunna se encontrou na militância. Após receber alta, integrou-se ao projeto Libélulas, liderado por um ONG que atende mulheres em situação vulnerável. Lá, ela aprendeu um pouco de tudo, e se descobriu nas oficinas de arte. “Era onde eu queria estar. Em pouco tempo, passei a ensinar as outras mulheres. Fui percebendo minha capacidade de liderança. Antes eu entrava num lugar e abaixava a cabeça, ficava com síndrome de dor nas costas. Quando comecei a conviver com aquelas mulheres, vi que minha história era fichinha”.

Além de apoio social e psicológico, Brunna encontrou trabalho, no Grupo de Amparo ao Doente de Aids da cidade. Virou agente da ONG, fez diversos cursos e, quando se deu conta, tinha criado uma associação, a primeira do Brasil voltada para travestis e transexuais. Impulsionada por sua história, e pela vocação em ajudar ao próximo, Brunna foi tomando as rédeas da vida e se tornando uma líder. Integrou o Conselho Municipal de Saúde de São José do Rio Preto, assumiu a vice-presidência do órgão e, quando viu, estava viajando para Brasília ao menos uma vez por semana para participar das reuniões federais. “A militância elevou minha autoestima. Passei a ser respeitada, falava nos microfones e todo mundo me ouvia. Sem perceber, passei a exercer um papel de controle social”.

Brunna foi entendendo o que eram direitos humanos e descobriu que a polícia não podia bater em travestis. Aprendeu também que tinha direito de usar seu nome social, aquele que escolheu para ser seu. Trabalhou fazendo prevenção nas ruas, aprendeu a cuidar da própria saúde, largou as drogas e abandonou de vez a prostituição quando veio para São Paulo, a convite, para trabalhar no Centro de Referência da Diversidade, man-tido pela prefeitura de São Paulo em parceria com o Grupo Pela Vidda.

De marido novo, ela faz planos: voltou a estu-dar e aguarda as provas finais para terminar o segundo grau. Quer fazer faculdade de psicologia. Também espera os trâmites legais para trocar os documentos. Em-bora tenha o laudo para fazer a cirurgia de mudança de sexo, Brunna já tentou a fila do SUS por duas vezes, mas acha que conseguirá mais rápido por recursos próprios. Ela tem parte do dinheiro para fazer a cirurgia fora do país. Afirma que o marido não liga para o fato de ela ser transexual, mas que a maior incomodada é ela mesma. “Nosso grande enfrentamento é o constrangimento conosco. Preciso provar a todo o momento que estou habilitada a ser mulher”.

Embora otimista, Brunna não acredita que verá a sociedade evo-luir a ponto de aceitar as diferenças. “Muita coisa mudou. Tenho esperança de que virá uma grande revolução de entendimento, mas acho que vai acontecer com os que vêm, não com os que já estão aqui”. E desabafa, agora dona de si: “Será que somos

tão diferentes? As pessoas se referem aos trans como ´vocês´. Vocês quem? Eu sou igual a você. Somos nós, somos humanos”.

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o tio Charlie (Matthew Goode) apenas no dia do funeral. Charlie é misterioso, sedutor e chega para substituir a presença masculina na casa. Não demora muito e ele se envolve com a mãe de India, Evelyn (Nicole Kidman).

A morte do chefe da família abala as estruturas, tra-zendo à tona novas faces psicológicas nos três personagens principais, que se tornam quase que um triângulo amoroso. Desejos escondidos, carências afetivas e facetas obscuras ganham proporções inimagináveis.

O suspense é fundamental, o ritmo é lento, os detalhes são tratados com esmero e muitas cenas parecem desconexas. O que aparentemente não faz sentido torna-se pertinente, já que a narrativa vem da cabeça conturbada da menina India. A incli-nação oriental do diretor contribui para a exploração dos símbolos e dos elementos mitológicos, dando um toque de requinte em cenas primorosas, como a que se passa entre India e Charlie em torno do piano.

Os traumas psicológicos de infância, mais a sugerida influência genética na for-mação da personalidade, são ingredientes fundamentais da trama, que acaba por revelar como nascem os indivíduos psicóticos, tão hábeis na arte da manipulação. A loucura da narrativa se encaixa como uma luva em uma história que retrata a perturbação mental. O desfecho, impossível de se revelar aqui, deixa o debate: legados sombrios são responsáveis por tonar o presente igualmente obscuro?

*Carlos Eduardo Silva é coordenador do departamento de Marketing do SINDHOSP e desenvolve, paralelamente, o site C-Cine, no qual escreve críticas de cinema. Conheça: www.ccine10.com.br

FEchar aME pSiQUiaTria é pOUcO cONviNcENTE

UMa jOrNaDa chOcaNTE E SiNiSTra

Os quase 6 mil atendimentos por mês, realizados pelo AME Psiquiatria, em funcionamento na zona norte de São Paulo, correm o risco de serem extintos. Isso porque em reunião realizada em 24 de maio de 2013, os membros do Conselho Estadual de Saúde vota-ram pela recomendação de fechamento do serviço, alegando que ele deve se integrar aos demais Am-bulatórios de Especialidades Médicas já existentes. Na opinião majoritária do Conselho, a existência de um AME exclusivamente voltado ao atendimento psiquiátrico concorre com a existência dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Para o SINDHOSP, a recomendação de fechamento de um serviço como o AME Psiquiatria, e a avalia-ção de que ele simplesmente não é necessário para complementar a rede, é meramente “ideológica”. “Há uma corrente que busca, a qualquer custo, excluir a participação do psiquiatra na atenção à saúde mental. Esta ala acredita que a reforma psiquiátrica se faz sem leitos e sem psiquiatras. Isso é uma bobagem”, afir-ma o coordenador de Saúde Mental do SINDHOSP, Ricardo Mendes.

Inaugurado em 2010 pela Secretaria Estadual de Saúde, o AME Psiquiatria é uma iniciativa da pasta

em parceria com os departamentos de Psiquiatria da Unifesp, USP, Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa e Unisa, além do Cremesp e do Ministério Público Estadual. O equipamento atua no atendimento da alta complexidade, proporcionando cinco linhas diferentes de cuidado (psicogeriatria, álcool e dro-gas, psiquiatria da infância e adolescência, psicoses e transtornos afetivos e de ansiedade). O serviço atende em níveis terciário e quaternário, ou seja, é destinado a pacientes com quadro clínico mais complexo, sem necessidade de internação.

Na opinião de Mauro Gomes Aranha de Lima, vice-presidente do Cresmesp, o fechamento é pouco convincente. “O fato de existir um espaço físico para o AME Psiquiatria, separado dos demais, é importante principalmente nos atendimentos de alta complexidade, porque a atividade não se resume a consultório médico, mas abrange o trabalho de uma equipe multiprofissional”. Além disso, segundo o psiquiatra, é preciso levar em conta que os CAPS não possuem vocação para atendimentos de casos mais graves. “Não há formação técnica suficiente para proporcionar atendimento de atenção terciária e quaternária nos CAPS”.

Embora a recomendação de fechamento exista e tenha sido publicada em Diário Oficial do Estado, em 6 de junho de 2013, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo esclareceu, em nota, que não pretender fechar o serviço. “O AME Psiquiatria é uma referência para toda a zona norte de São Paulo, que abrange uma população de 2.214.654 habitantes. Atualmente realiza cerca de 5.500 atendimentos por mês e consiste em um atendimento para pacientes com transtornos mentais mais graves. Além disso, o AME é referência para todas as Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial e pacientes provenientes de internação psiquiátrica que necessitam de cuidados especializados”, posicionou-se a secretaria.

PoLÍTiCa

CrÍTiCa DE CinEMa

Sabe o ditado que diz “de perto ninguém é normal”? No filme “Segredos de Sangue” (2013, do diretor coreano Park Chan-Wook), a lente das câmeras dá um zoom na família Stoker e revela que, de fato, a sabedoria popular faz sentido. Valendo-se de seu cinema fantástico, Chan-Wook faz sua estreia em Hollywood, com estilo único.

O coreano é conhecido por abordar sexo e violên-cia em seus filmes. Dirigiu o aclamado “Oldboy” e esbanja referências de Alfred Hitchock em suas direções. Em Segredos de Sangue, Hitchock está lá, ao lado de Bram Stoker, autor de Drácula. Não à toa, a família se chama Stoker (dá nome ao filme na versão original), e as relações consanguíneas funcio-nam como espécie de estigma para os personagens.

No desenrolar da história, paralelos simbólicos são traçados entre o prazer do orgasmo e o ato de assas-sinar. É o estilo do diretor de dizer ao público: o ser humano é profundo como um abismo. A história se passa em um ambiente quase imaginário, protagoni-zada pela atriz Mia Wasikowska, que encarna India Stoker, uma jovem que completa 18 anos no mesmo dia em que enterra o pai (Richard, vivido por Dermont Mulroney). Introvertida, virgem e de hábitos peculia-res - como somente usar sapatos que ganhou do tio desconhecido, a cada aniversário – India irá conhecer

Por Carlos Eduardo Silva

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