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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO€¦ · Vol. I, Edição e Estudo Linguístico, pp. 17-19 (notas 19 a 27). 5 M. Caetano (1985), História do Direito Português, p. 235. FORAL

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Foral da Guarda: caracterização do documento

Autor(es): Almeida, Maria Luísa

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23892

Accessed : 6-Aug-2020 10:41:53

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MÁTllESIS 5 1996 247·264

FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO*

MARIA LuíSA ALMEIDA

INTRODUÇÃO

"En no nome do padre. e do filho. e do spritu santo. Esta e a carta de foro. a qual encomendey seer eu don Sancho. pelha graça de deus Rei de Portugal ensembraI com meu filho. Rei dõ alfonso. e os outros filIos. e mas filIas. A vós pobradores2 da cidade da Guarda. assi <II>OS que ora sum: com aos que an-de vijr."

Assim começa o texto da tradução do Foral que D. Sancho I concedeu à Guarda, em Coimbra, a 27 3 de Novembro da era de MCCXXXVII (ano de 1199), confrrmado por seu filho, D. Afonso II, em Santarém, em meados de Dezembro de 1217.

O manuscrito do Foral da Guarda faz parte de um códice guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde ocupa os fólios 41 a 43. Trata-

'Este estudo tem por base o trabalho de síntese elaborado no âmbito da História da Língua Portuguesa para as Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, subordinado ao tema "Foral e Foros da Guarda. Edição e estudo linguístico do manuscrito português", apresentado à Universidade Católica Portuguesa, em Julho de 1992. O trabalho foi realizado sob a orientação do Prof. Azevedo Ferreira cuja memória me é extremamente grata.

1 ensembra]: Juntamente.

2 pobradores]: Moradores.

3 27] e não a 26, como vários documentos referem (Veja-se, a título de exemplo, António Carvalho da Costa na sua Corografia Portugueza, p. 332). É curioso que o próprio feriado municipal da Guarda, que comemora a concessão do Foral por D. Sancho I, é a 26 de Novembro. No entanto, no fólio 42 v Is. 17-18 do manuscrito diz-se: "Feyta foy esta carta en Coinbra .v". dias ante as calendas de dezembro. É esta a data que consta também nas duas versões do ms. latino (Forais Antigos, maço 12, nOs. 3 e 4).

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se do códice n° 4 do maço 6° de Forais Antigos, composto de 155 fólios em pergaminho, de que fazem parte vários documentos, alguns dos quais recentemente publicados4

Os fólios 44 a 60 do mesmo códice são ocupados por um outro documento bastante mais extenso, igualmente designado "carta do foro", que Alexandre Herculano transcreve nos Portugaliae Monumenta Histo­rica sob o título Costumes e Foros da Guarda. Começa assim:

"Esta e a carta do foro da Guarda a qual fezerõ os boos omees des<s>e menesmo logar por saude de toda a cidade dos mayores e dos meores."

É curioso que ambos os documentos são designados pela mesma expressão carta de/do foro como se de coisas idênticas se tratasse. E não deixa de ser também curioso notar que as palavras foral e foros não aparecem uma só vez no texto de qualquer dos dois documentos. Aparece, sim, a palavraforo 12 vezes no Foral e 27 nos Foros.

Por sua vez,joral é o nome utilizado para designar tanto um como o outro documento em anotações insertas em dois fólios, em época provavelmente muito posterior à redacção do manuscrito. Assim, na parte superior do fólio 41r está escrito a tinta: aqui começa o foral (parcialmente cortado pelo encadernador). Com o mesmo tipo de letra, aparece no final do fólio 60v: aquy s' acaba o foral, parecendo tratar-se de um único documento, ou seja, parece que, para a pessoa que fez aquela anotação, o que hoje se considera os Foros da Guarda fazia parte do Foral.

Na sua História do Direito Português, Marcello Caetan05 explica: "A palavra «foral» deriva do termo latino forum, que também deu foro, usado até ao século XV para designar o que depois se chamou foral". E continua: "Neste período o termo forum aparece empregado na linguagem jurídica em diversas acepções. Uma delas é a de lei.". Ex:forum iudicum, expressão que originou no castelhano o fuero juzgo.

"Mas os foros eram também os costumes praticados tradicionalmente em certa localidade ou região, o direito objectivo peculiar dos cidadãos desse lugar e que eles defendiam como privilégio seu."

4 Mais de dois terços do códice foram já objecto de estudo do Prof. Azevedo Ferreira tendo publicado a versão portuguesa designada por Tempos dos Preitos da "Summa de los Nueve tiempos de los pleitos" (foI. 67v a 7Or), e a versão portuguesa do Fuero Real (foI. 70v a 150r). Sobre estas e outras publicações pode consultar-se Ferreira, J .A., (1987), Afonso X: "Foro Real". Vol. I, Edição e Estudo Linguístico, pp. 17-19 (notas 19 a 27).

5 M. Caetano (1985), História do Direito Português, p. 235.

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 249

Marcello Caetan06 , depois de tecer algumas considerações acerca da dificuldade quanto à definição deforal, aponta as várias características dos forais originários (que ele distingue dos forais confirmativos e amplia­tivos). A primeira característica é que "o foral é um documento escrito (carta) outorgado unilateralmente pelo rei ou por entidade senhorial que possa dispor de certa área de terra em benefício de uma colectividade de pessoas."

No Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, M. J. Almeida Costa define foral como "o diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante". Diz-se aí também que os forais tratam, "fundamentalmente, de normas de direito público" e que, por via de regra, "as normas de direito privado ocupam nos forais um plano muito secun­dário".

Em A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo', Lindley Cintra, utilizando as palavras de Paulo Merêa, defineforaiscomo: a) "diplomas em que o rei ou o particular poderoso concedia terreno e o uso de matas e pastos, e outorgava direitos pessoais mais ou menos extensos, enquanto pelo seu lado os povoadores se comprometiam a pagar ou a prestar estes e aqueles serviços" ou como b) "cartas constitutivas de concelhos, diplomas por que se regulavam os direitos e deveres colectivos das cidades, vilas e lugares". Lindley Cintra chama a atenção para esta segunda acepção que, segundo ele, era aquela em que Alexandre Herculano pensava ao empregar o termo foral, devendo a definição a) ajustar-se melhor a carta de povoação.

Alexandre Herculano chama a atenção para que não se confundaforal com carta de povoação: "Enquanto que ... [o foral] representa um acto constitutivo, um monumento de direito público, ... [a carta de povoação] representará rigorosamente um contrato, uma fórmula de direito civil" 8 .

Digamos que aquilo que fundamentalmente distingue foral de carta de povoação é a existência naquele de referência a magistraturas locais, electivas ou não, e a deveres e direitos colectivos.

A par do foral que, como dissemos, eslaluía os direitos e deveres de determinada povoação, fixando, grande parte das vezes, também os seus "termeos", as normas de direito público e privado, assim como as de direito penal, eram reguladas nos foros e costumes de cada concelho.

6 Op. cit. , p. 236.

1 Lindley Cintra (1984),A Linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, pp. LXXV­LXXVI.

S A. Herculano (1981), História de Portugal, p. 96.

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250 MARIA LUÍSA ALMEIDA

Conforme refere Lindley Cintra9 "Os historiadores espanhóis usam a palavra fuero para designar tanto o foral como os foros ou costumes municipais de um concelho, limitando-se a indicar, por meio dos adjectivos breve, extenso, se se trata de uma fonte do primeiro ou do segundo dos géneros mencionados. Para referir-se à carta de povoação [ ... ] empregam por vezes a designação carta-puebla."

M. J. Almeida CostalO define foros ou costumes como sendo "certas compilações medievais de direito local, concedidas aos municípios ou simplesmente organizadas por iniciativa destes. [ ... ] Trata-se de autênticos códigos que estiveram na base de toda a vida jurídica do concelho, abrangendo normas de direito político e administrativo, normas de direito privado - como contratos, sucessões, direitos reais -, normas de processo e de direito penal. São, na verdade, fontes com dimensões e alcance muito mais vastos do que os forais cujos preceitos frequentemente transcrevem".

Havia determinados modelos de forais de entre os quais o rei escolhia, para cada caso, aquele que mais se adequava às condições da população e, deste modo, se foram originando as diversas «frum1ias» de concelhos.

Assim, segundo os respectivos forais, e, de acordo com a terminologia de Alexandre Herculano, os concelhos medievais podem dividir-se em rudimentares, imperfeitos e perfeitos ou completos 11 •

O que caracteriza essencialmente os concelhos rudimentares é já a referência no foral a magistratura civil (alcaide, p.ex.) e também a expressão de uma certa liberdade por parte dos moradores.

Os concelhos completos ou perfeitos, como o próprio nome indica, possuem uma organização mais perfeita dispondo de magistrados. Alexandre Herculano considera os concelhos desta categoria agrupados em quatro tipos de acordo com o modelo de foral utilizado. Pertencem ao primeiro os que seguem o foral de Santarém; ao segundo os que seguem o foral de Salamanca; ao terceiro, os que têm por modelo o foral de Ávila ou de Évora e, finalmente, ao quarto, aqueles que não obedecem a qualquer um desses tipos. Os concelhos perfeitos caracterizam-se, ainda pela existência de duas classes de burgueses: cavaleiros vilãos e peões12

9 Op. cito , p. LXXVI.

10 ln Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão.

11 Há quem conteste esta classificação, como se pode verificar em Alexandre Herculano (1981), p. 178, nota [46].

12 Tanto os cavaleiros vilãos como os peões eram lavradores livres. Os peões eram mais pobres. Os cavaleiros vilãos, mais ricos, possuiam cavalo, apto para a guerra, e armas, de modo a prestarem serviço, por convocação do rei ou seu delegado durante

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FORAL DA GUARDA: CARACfERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 251

o que distingue os concelhos do tipo de Salamanca é o facto de os magistrados jurisdicionais serem designados genericamente por alcaides. Além disso, nestes concelhos há um magistrado da mesma espécie a que se atribui o nome de juiz (iudex).

Aos concelhos incompletos, que Alexandre Herculano subdivide em seis géneros, ou falta uma magistratura completa ou os moradores pertencem apenas a uma classe.

Quanto à organização dos concelhos, Marcello Caetano\3 chama a atenção para o facto de que "não é fácil destacar traços comuns na organização dos concelhos ... " mas que "Em todos eles existe a assembleia de vizinhos ou concelho propriamente dito, em que podem tomar parte todos os homens livres que tenham casa e morada habitual na povoação ou território municipal". E acrescenta: "Em nosso entender é mesmo a existência desta assembleia com autoridade própria que caracteriza o município medieval. "

CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO

Partindo destas considerações, uma análise linguística do Foral concedido em 1199 à cidade da Guarda por D. Sancho I, mais tarde confirmado por D. Afonso II, permite-nos, de facto, afirmar que esse documento reúne as características de um verdadeiro foral, algumas da quais permitem mesmo incluir o concelho da Guarda entre os concelhos perfeitos do segundo tipo.

Salientarei, entre essas características, algumas que me parecem especialmente esclarecedoras:

a) é um documento escrito (uma carta); b) outorgado unilateralmente pelo rei Guntamente com a rainha e

filhos); c) em benefício de uma colectividade de pessoas (moradores da cidade

da Guarda); d) contém os limites da área concedida; e) contém referência a magistraturas locais;

certo periodo do ano. Por vezes eram equiparados aos infanções ou nobres de mais baixo grau.

13 Op. cito p. 223.

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252 MARIA LUÍSA ALMEIDA

f) OS magistrados jurisdicionais são aí designados pelo vocábulo alcaIdes existindo, além disso, um magistrado da mesma espécie a que se atribui o nome de juiz;

g) há referência à assembleia de vizinhos ou concelho; h) reconhece-se a existência de cavaleiros vilãos e de peões; i) e, finalmente, nele estão consignadas normas de deveres e direitos

colectivos.

Procurarei de seguida dar conta dos dados que recolhi a partir da leitura e da observação de algumas marcas que me parecem particularmente informativas para a caracterização do Foral da Guarda conforme explicitei de a) a i) 14.

Para melhor esclarecer alguns aspectos do Foral que é objecto deste estudo, utilizarei também exemplos colhidos dos Foros sempre que achar conveniente para melhor realçar as características daquele.

1.Foral é um instrumento ou um objecto configurado pelo suporte material da escrita bem identificado e geralmente designado «carta» como nele próprio se pode ler:

Esta é a carta do foro ... (41r, 2)15 ; Feytafoy esta carta en Coinbra (42v, 17).

2. É um documento outorgado unilateralmente pelo rei (juntamente com a rainha e filhos), para ser recebido como um acto linguístico que deve valer como um gesto de senhorio, ou de poder, executado pela palavra e mediatizado pela escrita.

Em todo o texto há abundância de marcas do senhor, autor, enunciador. Destaco, entre outras, um eu explícito ou implicitamente presente no morfema da flexão verbal da la pessoa do singular e nas formas correspondentes dos pronomes pessoal e possessivo:

Esta é a carta de foro a qual encomendO'- seer, gM, don Sancho ... ensembra com meu filho, Rey dõ alfonso, os outros fiUos e mas fiUas (fol.41r, 2-6).

[4 Nas transcrições que apresentar neste trabalho serei o mais possível fiel ao manuscrito. Desenvolverei, no entanto, as abreviaturas e, para maior facilidade de interpretação, utilizarei acento gráfico em palavras que poderiam confundir-se com as respectivas homógrafas. Pela mesma razão, a pontuação será feita de acordo com os critérios actuais assim como o uso de maiúsculas e minúsculas. Os sublinhados são sempre meus.

[5 O primeiro número indica o fólio; "r" ou "v", respectivamente, "recto" ou "verso"; o segundo número representa a linha.

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 253

E ... non entre meu meyrinhol6 (4lr, 10).

Como se pode constatar, no Foral as normas são impostas de fora para dentro. E parece ser esta a característica que mais objectivamente permite distinguir foral de foros. Os foros contêm disposições que resultam dos usos e costumes que se foram enraizando ao longo dos tempos. Eram compilações do direito costumeiro.

É sabido que nem sempre os usos e costumes dispostos nos foros são originários do concelho a que dizem respeitol7

• Os foros da Guarda, por exemplo, são uma adaptação dos de Salamanca. Mas as normas neles contidas são dispostas como se fossem ditadas pelos próprios moradores do concelho.

Comparando, pois, o texto do Foral com o dos Foros da Guarda, no que toca ao emissor, podemos verificar que:

- no Foral as formas nós e nosso nunca se referem a ninguém nem a nada que diga respeito directamente ao concelho da Guarda. Os referentes ou são o rei (e demais outorgantes) ou "o nosso reino":

Damos a uos ainda porforo que nõ ayades outro senhor senõ nós. reys. e nossos filhos; (42r, 20-21).

Damos a uos por foro que o caualeyro da guarda ste por enfançõ de todo nosso reyno. (4Iv, 2-3).

- Nos Foros o emissor/enunciador é um colectivo que em certa me­dida se hipostasia, o "concelho", os "boos omees", mas que ao mesmo tempo faz parte "des<s>e menesmo lugar" e que é, simultaneamente, destinatário.

Aí a primeira pessoa do singular do pronome pessoal é usada algumas vezes mas sempre em exemplificação de situações hipotéticas. Vejam-se os exemplos:

Que carreyra teuer a uizinho da Guarda ... e dis<s>er: «matar me quiseste», ou «me feristi à trayzõ» (45r, 5-7);

Todo ome que dixer ... :«que assi é como eu digo» (48v, 25).

16 meyrinho]: Magistrado local directamente subordinado ao rei e investido de poderes para, em nome do monarca, proceder à cobrança das taxas dos impostos e administrar a justiça.

17 Marcello Caetano Copo cit. p. 234) refere que "é frequente o monarca, no texto de um foral, outorgar aos munícipes o foro e o costume de certa localidade: «damus vobis forum et costume» - de Ávila, de Salamanca, de Évora ... - remetendo os interessados para a pesquisa desse costume a praticar."

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254 MARIA LuíSA ALMEIDA

A primeira pessoa do plural tem três ocorrências. Na primeira está em vez de "os boos omees des<s>e menesmo logar" e supõe-se que o mesmo acontece na segunda:

Plougue a nós que ... (44r, 4); E quen torto ouue depoys que nós . ... (45v, 25);

Na última ocorrência, a explicitação do nome em aposto não deixa qualquer dúvida:

e nós. concello. aiudaremos (60v, 21-22).

o uso do possessivo é também significativo: Na primeira pessoa do singular s6 ocorre em exemplificação de

situações hipotéticas: Todo ome que dixer ... <ifarey do meu corpo ao teu» (48v, 24-25); Que dixer ... «ma morte conselhasti ou conselhas (49v, 1-2); quê' dixer «tulleu-my mya herdade ou meu auer» (58v, 4-5)

Em situação idêntica ocorre "nossa" em: e os alcaides [ ... ] dixere a alguu ome «nossa morte consellasti ou

consellas (49v, 25-26). Neste último caso "nossa" é um anafórico de "os alcaldes" e não do

enunciador. Em todas as outras ocorrências os anafóricos identificam como enunciador os moradores do concelho da Guarda, e determinam bens ou serviços colectivos.

Ex: ao nosso foro (48r, 21); por iustiça que fezere, ou por nossos exilos ou por nosso termo (50v,

17-18); ao nosso foro (48r, 21); assim como é nosso foro (54v, 9); E quen segurança der a nosso foro (54v, 10); E se non der dereyto como é nosso foro (54v, 11); E se nõ poder iurar, peyte o forto per nosso foro (55v, 5).

3. O destinatário no Foral é um vós, os habitantes da cidade da Guarda: A uós pobradores da cidade da Guarda, assi <a>os que ora sum, come

aos que an-de uijr (41r, 5-6). As marcas linguísticas desse destinatário encontram-se presentes quer

na terminação das formas verbais de presente do conjuntivo façades", "dedes" (3 oe.), "aiades" e "ayades", 18 quernasformasdopronomepessoal "uos" (tónicas ou átonas) quer ainda na ocorrência do possessivo na 28

pessoa do plural. Vejamos os exemplos que se seguem:

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 255

outorgamos a uósque non dedes ... senõ CCC soldos ... e destes ... dedes <a> Vir ao paaço (41r, 7-9);

La terça parte de uosso concello façafossado1 9 e as outras duas partes sten en uossa cidade (41r, 11-12);

E nõ façades fossado senõ com uosso senor ... se nõ for per uosso plazer (41r, 14-15);

se alguu antre uós (41r,19-20); per foro de uossa cidade (41r, 27); Damos a uós por foro (41v, 2); en cõçello uosso (41v, 13-14); omees de uossos termyos que seuere en uossas herdades ou en uossos

solares (41v, 26-27); Damos a uós ainda por foro que nõ ayades outro senhor senõ nós, reys,

e nossos filhos (42r, 20-21); outorgamos a uós que nõ aiades deuesa (42v, 7); Todas estas entenções iu[l J ge os alcaydes de uossa uilha per sua carta

(42v, 14-15).

Continuando a estabelecer um confronto entre os dois manuscritos constatamos que, nos Foros,

- a segunda pessoa do plural do pronome pessoal nunca se encontra documentada. Isso é compreensível se pensarmos que a barreira entre o emissor e os receptores é, em grande parte, diluída. Os emissores são, como vimos, também destinatários.

4. Nem sempre o Foral faz referência aos limites do concelho e isso tem causado sérios embaraços aos historiadores e a outros estudiosos que sentem dificuldades quanto às demarcações de certas áreas territoriais. No Foral da Guarda os limites do concelho são estabelecidos:

Estes son os termeos os quaes Rey don Sancho outorgou à cidade da Guarda. (42v, 23-28 a 43r, 1_9).20

18 Estas são as únicas formas de 2" pessoa do plural documentadas no Foral (nos Foros não ocorre qualquer forma verbal de 2a pessoa do plural), e, para a história da língua portuguesa é interessante verificar que o "d" da terminação se mantém em todas elas.

19 fossado]: Guerra ofensiva.

20 No trabalho que referi em nota no início deste estudo apresento um mapa do terri­tório que, com ligeiras rectificações, terá constituído o concelho da Guarda medieval.

Não foi fácil a determinação dos limites. Topónimos desaparecidos e a omissão dos "termeos" em forais de concelhos limítrofes foram algumas das dificuldades com que me vi confrontada. Felizmente pude contar com algumas pistas fornecidas pelo

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256 MARIA LUÍSA ALMEIDA

5. Como acima lembrei, citando Alexandre Herculano, o que distingue foral de carta de povoação é a referência naquele a magistraturas locais, além do estabelecimento de deveres e direitos colectivos. Note-se, porém, que não se encontram no Foral quaisquer disposições sobre a organização do concelho. É provável que a organização municipal existisse já antes da outorga do Foral. Marcello Caetano lembra que era normal isso acontecer: "Debalde se procurará no foral a organização do município, com a indicação das suas magistraturas. Muitos forais são totalmente omissos a tal respeito. Noutros apenas aflora aqui ou ali uma referência incidental ao conct1io, às magistraturas municipais ou aos funcionários régios. A organização municipal era costumeira: existia já na data da outorga do foral ou se estrutura depois, segundo os costumes locais ou do concelho a cuja farm1ia o foral pertencia." 21

Verifiquei que o Foral da Guarda faz referência a alcaydes. Mas é apenas uma referência em todo o Foral. As funções que lhe são atribuídas são aqui apenas judiciais:

Todas estas entençoes iu[lJge os alcaydes de uossa uilha per sua carta. (42v, 14);

Uma outra categoria de magistrados, igualmente aí referenciada e também uma só vez, é a de alcaide. Entre os presentes, aquando da assinatura do Foral, conta-se "Sueyro Veegas alcaIde da Guarda" (43r, 26);

O iuiz (de concelho) está largamente documentado no Foral. Sobre as suas funções falar-se-á em 6.

Além destas três categorias, fala-se ainda em iurados22 e em porteyro23 como se pode verificar pelas disposições seguintes:

e ueça esse cõ dous iurados (41v, 29-30); de todo o portadigo que ueer a Guarda, óspede u pousar filhe a lIIa

parte, e o porteyro as II partes. (42v, 12-13).

6. Nos concelhos perfeitos do segundo tipo os magistrados juris­dicionais eram designados alcaIdes, havendo um dessa categoria que era designado juiz. 24

Prof. João I. Vaz e, principalment pelo Eng. J. Patrício Curado que constituiram uma ajuda preciosa.

21 Marcello Caetano, pp. 237-238.

22 iurados]: Indivíduos que exerciam jurisdição nas Delegações secundárias e locais em concelhos demasiado extensos ou populosos, para facilitar a administração da justiça. Também se chamavam alcaides aldeões ou aportelados.

23 porteyro]: Ocupava-se das notificações e das execuções civis. Designava-se "porteyro do alcaide".

, 24 Veja-se o que refere o Dicionário de Hist6ria de Portugal a respeito dos diversos magistrados: "Os juízes tinham nalguns concelhos a designação de alvazis, noutros a de

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 257

o substantivo iuiz tem 7 ocorrências no Foral. Através dessas ocorrências ficamos a saber que é ao juiz que compete canalizar para o paço o produto das coimas aplicadas por certas infracções e que, em alguns casos, parte do valor da multa é devida ao juiz:

e destes CCC ssoldos dedes <a> vIr ao paaço ... per maao de iHiz. (41r, 8-9);

E en alguum peyto ou en algua comya non entre meu meyrinho senõ iHizde uosso concelho. (41r, 9-11);

e seya ende a septima do paaço, per mao do iuiz. E as outras duas partes parta con o iHizper meo. (41r, 21-22).

Ome da guarda que molher ouuer a beeçõ, se elha leyxar peyte I dineyro ao luiz. (42r, 25-26).

É também das suas funções emitir determinadas ordens, como se pode deduzir das seguintes disposições:

Caualeyros da G<u>arda nê' molheres uiuuas nõ dê' pousada per foro da Guarda senõ per mãdado do iuiz (41v, 24-26);

Omees de uossos termyos que ... uenã ao synal do iHiz (41v, 26-28);

Não há qualquer norma no Foral que determine expressamente ou mesmo de modo implícito que a função do juiz sejajulgar. Em contrapartida, na única referência a "iuizes" que aparece nos Foros parece poder perce­ber-se essa função:

Todo ujzinho da guarda possa auer uoz de penhorar o uinho de fora do termo e aquel que o penhorar e per dante os alqualdes e luizes demandar aya ende a terça parte e as duas partes aya o cõcelho e os alqualdes como mãda oforo. (52r, 18-20 a 52v, 1-3).

o que parece claro a partir de uma leitura cuidada do manuscrito é que a quem competia julgar era, de facto aos alcaIdes (e, como vimos em 5, aos alcaides ). Tentarei mostrá-lo através de algumas disposições dos Foros que transcrevo:

Todo ome que dixer a alcaide de concelho ou à iustiça: «torto iu[l]gas», ou «nõ fezesti iustiça», ou «periurado és daquelha iura que iurasti», peyte C soldos e desdiga-lho en concelho. (50v, 8-11);

E os alqualdesfaçã do seu [corpo] lustiza. (52v, 19-20).

alcaIdes e ainda noutros o nome genérico de juízes. [ ... ] A par destes juízes municipais funcionava um magistrado, o alcaide, que representava o poder do rei e, além das atribuições jurisdicionais, tinha outras administrativas e militares ... "

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258 MARIA LUÍSA ALMEIDA

Hos alcaides iuflJgue o que iaz na carta e aquelho que nõ iaz na carta iu[IJgue dereyto a seu saber. (53v, 19-20).

Quen mouro ou moura achar conforto dê-o a iusti[ ç Jar aos alcaides. (54r, 9-10).

Os alcaldes tinham poder para: - emitir determinadas ordens: O concelho se faça u mandare os alcaides (57v, 11);

- para determinar coutos: Qual couto possere os alcaides a todo uizinho, que no britar [caea J

aos alcaides (55v, 13-14);

- para estabelecer prazos: Los alcaides non ponhã plaço senõ della missa meor ata a mayor

dicta.(55v, 15-16).

E há multas previstas para quem não cumprir as ordens dos alcaldes: Todo ome a que alcaide dixer «aiuda-me a sobrecabar este ome» e non quiser peyte XX maravedis aos alcaides. (55v, 20-21).

Não explorarei mais este aspecto uma vez que é o Foral e não os Foros o objecto do estudo de momento.

7. Algumas são as referências à assembleia de vizinhos ou concelho que poderemos encontrar no Foral. As funções deste órgão, tal como as dos magistrados, terão que ser deduzidas a partir da interpretação das normas estabelecidas dado que não se apresentam regulamentadas no próprio documento:

e destes CCC ssoldos dedes <a> VIr ao paaço per concelho e per maao de iuiz (41r, 8-9);

Se alguu antre uós, enmercado ou en eygreya ou en cõcello preguado25

ferir seu uizinho peyte LX soldos ao concelho (41r, 19-21). quê' ome da guarda penorar e ante nõ pedyr dereyto en cõçello uossp

peyte ao paaço LX soldos e duble a penhora àquel a que a thomar. (41 v, 13-15).

8. No Foral reconhece-se a existência de cavaleiros vilãos e de peões.

25 preguado]: Reunido.

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FORAL DA GUARDA: CARACI'ERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 259

Os cavaleiros vilãos e os peões constituíam os lavradores livres do concelho e a sua categoria dependia da maior ou menor riqueza que possuíam. Constituíam os vizinhos do concelho e os mais ricos ou respei­tados eram designados por homens-bons. Os mais pobres denomina­vam-se peões e estavam obrigados ao pagamento de tributos em géneros, dinheiro ou serviços.

Os cavaleiros vilãos ou cavaleiros plebeus, que eram mais ricos, possuíam cavalo e constituíam uma cavalaria municipal que assegurava a defesa local, juntamente com os besteiros, podendo ser, pelo rei, mobili­zados para a guerra 26. Estavam obrigados ao pagamento dos mes­mos tributos que competiam aos peões com excepção do imposto de jugada 27.

No Foral da Guarda há algumas referências às duas categorias de vizinhos. Ex:

E clerygos e peoes nonfaçãfossado. (41r, 16); Ome doutra terra que caualeyro da Guarda descaualgar peyte IX

soldos. (41v, 15); Caualeyros da G<u>arda ... nõ dê'pousada ... senõ per mãdado do

iuiz. (41v, 24-26).

Por vezes, em certos forais concedidos pelo rei, os cavaleiros vilãos eram equiparados, para certos efeitos, aos infanções ou nobres de mais baixo grau. Isso acontece também no Foral da Guarda:

Damos a uos por foro que o caualeyro da Guarda ste por enfançõ de todo nosso reyno. (41v, 2-3).

Por sua vez, o peão é equiparado a cavaleiro vilão: O peõ da Guarda ste por caualeyro uilaao de todas nossas terras (41 v,

4-5).

9. Finalmente, no Foral são estabelecidas normas de deveres e direi­tos colectivos e, dado tratar-se de um texto legislativo, aí estão também

26 Marcello Caetano, p. 186.

27 jugada]: Era um direito real que os reis ordenaram lhes fosse pago nas terras que reservaram para si quando deram os forais a essas terras e consistia em trigo, milho, linho e vinho. Segundo o Dicionário de Hist6ria de Portugal, "Estava este tributo relacionado com o jugo ou o singel de bois com que o lavrador agricultava a terra e, regra geral, a quantia a pagar era um moio (medida) de cereais [ ... ] por cada junta de bois com que lavrasse. [ ... ] De vinho e de linho pagar-se-ia o oitavo, excepto nas terras onde o foral determinasse de modo diferente."

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260 MARIA LuíSA ALMEIDA

regulamentadas as penas para os diversos tipos de delitos e contra­venções.

São de vária ordem os deveres dos moradores da Guarda: - Obrigatoriedade de prestação de serviço militar: La terça parte de uosso concello façafossado28

... e aquel que y nõ for peyte por fossadura 29 V soldos em apreçadura30 (41r, 11-14);

- Obrigatoriedade de pagamento de colheita31:

E nõ dedes por coleyta senõ LX maravedis I vez no ano. (43r, 9).

- O rei tinha o direito de, acompanhado da sua comitiva, "pousar" em casas particulares que deveriam fornecer-lhes abrigo, roupas, lenha e víveres. Este era também um direito dos vassalos do rei e havia ainda fidalgos que abusivamente o reclamavam. Os concelhos lutavam contra tais abusos mas parece que sem grande resultado.32 Há no Foral da Guarda uma disposição que isenta da obrigação de "pousada" os cavaleiros e as mulheres viúvas: caualeyros da G<u>arda nê' molheres uiuuas nõ dê' pousada per foro da Guarda senõ per mãdado do iuiz. (41 v, 24-26).

Quanto aos direitos, é fácil constatar que o Foral é pródigo nas regalias que concede aos seus munícipes. Vejamos alguns desses direitos que poderemos considerar colectivos:

Era direito dos moradores da Guarda terem como seu único senhor o rei:Damos a uós ainda por foro que nõ ayades outro senhor senõ nós, reys, e nossos filhos, e quê' o concelho quiser (42r, 20-21).

Note-se, porém, que a palavra "senhor" podia ser utilizada com vários sentidos. A propósito desta disposição do Foral, A. Hercu­lano esclarece33: "O privilégio de não ter senhor, sénior (dominus),

28 fossado]: Serviço militar a que se encontrava obrigada a população vilã. Guerra ofensiva.

29 fossadura]: Multa aplicada aos indivíduos que não cumpriram a sua obrigação de acudir ao fossado.

30 apressadura]: Coima.

31 Colheita]: Contribuição paga colectivamente por cada concelho e que consistia no fornecimento de víveres para a mesa do rei e seu séquito quando aquele passava pelas povoações.

32 Veja-se J. Mattoso (1993), n Vol. , p. 240.

33 História de Portugal, IV, pp. 218.

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 261

consistia em não se dar ao concelho, a que era concedido, um presta­meir034 especial que exercesse aí uma subdelegação do rico-homem (do­minus terrae)".

Não era permitido ao meirinho do rei entrar no concelho da Guarda para exercer direitos fiscais:

E en alguum peyto ou en algua comya non entre meu meyrinho senõ iuiz de uosso concelho (41r, 9-11);

Os homens da Guarda só podiam ser penhorados pelos vizinhos do concelho:

Homees da Guarda nõ page penora polho senor da Guarda, nõ por meirinho ne seyã penorados senõ por seu [uizinhoJ. (41v, 22-24).

No que toca à obrigatoriedade de fossado, o Foral determina: E nõ façades fossado senõ cõ uosso senor una uez no ano, se nõ for per

uosso plazer (41r, 14-15); todo ome da Guarda que ouuer herdade em outra terra nõ façafossado

senõ por foro da Guarda (42r, 23-24).

Os nossos primeiros reis, nomeadamente D. Sancho, procu­ravam fomentar o povoamento do reino criando medidas que incenti­vassem as populações a fixarem-se à terra e a colaborar na defesa do reino. Com essa finalidade os forais continham frequentemente normas que colocavam em situação de grande superioridade os moradores do respectivo concelho por oposição aos que o não eram. A Guarda, pela sua situação geográfica num lugar de fronteira, era das regiões que particularmente interessava manter povoadas, com a população satisfeita. Por isso o seu Foral é pródigo em regalias. É interessante a disposição que impõe a coima de sessenta soldos ao homem doutra terra que "descavalgar" um cavaleiro da Guarda e apenas cinco ao cavaleiro da Guarda que "descavalgar" cavaleiro de outra terra:

ome doutra terra que caualeyro da Guarda (que o) descaualgar peyte LX soldos; ome da Guarda que caualeyro doutra terra descaualgar peyte V soldos. (41v, 15-17).

E é igualmente interessante a que se segue:

34prestarneiro]: Indivíduo a quem eram concedidos benefícios, geralmente vitalícios, outorgados pelo rei em retribuição de serviços e que consistiam em rendimentos de uma porção de casais ou aldeias.

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se ome doutra terra prender ome da Guarda e o en prisõ meter, peyte CCC soldos; se home da Guarda prender ome doutra terra, peyte v soldos.

Havia dois impostos a que s6 os homens de fora da Guarda estavam obrigados. Eram os impostos de "portádigo"35 e de "montádigo"36:

Sobre o primeiro o Foral dispõe: de carrega de peõ, III mealhas; do caualho, I soldo; do muu, I soldo;

do asno e do asno e do boy, VI dinheyros (42v, 10-12). Para se assegurar a cobrança deste imposto os mercadores de fora

tinham de alojar-se em casa de um vizinho do lugar, responsável em razão disso pela portagem, e a quem se abonava um terço da quantia:

de todo portadigo que ueer à Guarda, óspede u pousar filhe a IIIa

parte, e o porteiro, as II partes." (42v, 12-13);

Em contrapartida, como se disse, os moradores da Guarda estavam isentos desse imposto em todo o reino:

omees da Guarda non den, en todo nosso reyno, portadigo. (42v, 16).

Quanto ao segundo, o Foral dispõe que os cavaleiros da Guarda recebam o "montádigo" referente aos gados que pastem no termo da Guarda e que fiquem com a terça parte:

montadigo do stremo da Guarda recebã caualleyros da Guarda con senhor; aiã ende a terça parte. 42v, 8-9).

Os gados da Guarda podiam, contudo, pastar livremente: nenhuu nõ filhe montadigo de gaados da Guarda. (42v, 9-10).

Outras regalias eram de carácter individual. - Era, por ex, permitido a qualquer morador da Guarda vender a sua

casa ou vinha ou herdade: e se as quiser vender, venda a que quiser per foro de uossa cidade.

(41r, 26-27);

- a sua residência era protegida: que derrüper casa cü lança e cü escudos da porta a dentro peyte CCC

soldos (42r, 27-28);

35 portádigo]: Portagem. Tributo pago pelos mercadores, à entrada das povoações, sobre as mercadorias trazidas de fora do concelho.

36 montadigo]: Tributo que recaía sobre as pastagens e que, geralmente, consistia em uma ou mais rezes de cada manada ou rebanho.

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FORAL DA GUARDA: CARACTERIZAÇÃO DO DOCUMENTO 263

- e ninguém era julgado sem haver queixoso: todo uizinho da Guarda nõ responda sen rancoroso (42v, 22-23).

Pela mesma razão acima referida, interessava atrair pessoas quaisquer que fossem o seu lugar de origem e os motivos da sua vinda. Talvez isso justifique a disposição seguinte:

ome( es) que de sas terras exyrm cõ omyzyo ou con molher alhea, e fazer se uassalho dalgu homê' da Guarda, seya liure e quyto e defesso per foro da Guarda", (4lv, 6-8).

E não deixa de ser interessante que, de todas as multas previstas no Foral, a mais pesada é, precisamente, para punir todo aquel que entrar na Guarda em perseguição de um homicida, ou de alguém que venha com penhor, e lhe fizer qualquer mal:

E se homê' dalgua terra ... ueer cõ omizio ou cõ penor, poys que no termeo da Guarda entrar, se seu enmijgoo de pos el entrar e lhy penor tolher ou alguu mal a el fezer, peyte ao senor que teuer a Guarda D soldos e doble o penor àquel que o tolher e asferidas que lhyfezer. (4lv, 9-12).

Com efeito, se considerarmos que a pena terá de ser adequada à gravidade da falta, este é, sem dúvida, o delito mais grave de todo o Foral. Parece mesmo mais grave do que os crimes por homicídio ou por atentado contra a integridade física ou moral, cuja pena não ultrapassa os trezentos soldos:

outorgamos a uós que nõ dedes por omizyo senõ CCC soldos en apreçadura. (4lr, 6-8);

E quê' no termyo da Guarda roubar filia alhea contra sa uoontade peyte ao paaço CCC soldos e seya por omizyã. (4lr, 17-19);

E que molher forçar, e elha uoçes metendo ueer, se esse cu XII nõ se poder saluar, peyte CCC soldos. (42r,5-7);

que molher alhea ferir peyte a seu marido XXX soldos e a VIla ao paaço. (42r,7-8).

A casa era um lugar protegido. Ninguém podia perseguir alguém que se acolhesse na sua própria casa mesmo que a ira do perseguidor tivesse como motivo um crime de morte:

E que seu uizyo matar e en sa casa fogir, que depoys a el <a> entrar e o y matar peyte CCC soldos. (42r,4-5).

Embora o Foral não seja um documento tão rico de informação como os Foros, constitui, no entanto, um instrumento de grande valor para quem pretender conhecer as relações sociais do homem medieval. E o seu conhe­cimento é, inclusivé, de grande interesse para a História das mentalidades.

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264 MARIA LUÍSA ALMEIDA

A este propósito não deixa de ser curiosa a disposição que a seguir transcrevo:

ome da Guarda que molher ouuer a beeçõ, se elha leyxar peyte J dinheiro ao Juiz. Se a molher leyxar seu marido que ouuer beeçoes peyte CCC soldos e a meyadade seya de seu marido. (42r, 25-27).

Se tivermos em atenção que nos primeiros tempos da monarquia um soldo valia doze dinheiros, imagine-se a disparidade entre o valor da multa a que ficava sujeito o homem e aquele que teria de pagar a mulher por idêntico delito. Com efeito, uma mulher que deixasse o marido com quem estivesse legitimamente casada deveria pagar uma multa de valor 3 600 vezes superior à que pagaria o marido se fosse ele a deixar a mulher, sendo metade desse valor destinado ao marido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MANUSCRITOS DO ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO:

Forais Antigos, maço 12, n° 3; Forais Antigos, maço 12, n° 4; Forais Antigos, maço 6, n° 4. Caetano, M. 1985 - História do Direito Português. Fontes - Direito

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