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1 Formação docente no Brasil: entre avanços legais e recuos pragmáticos Clarice Nunes * A responsabilidade sobre os desacertos das Faculdades de Educação tem sido imputada a um conjunto de motivos que a literatura pedagógica e os movimentos de organização docente tem trazido à tona e que é ocioso repetir mais uma vez. Forçoso é reconhecer porém que, dentro da universidade, foi cultivada uma tradição de desqualificação sistemática tanto dos profissionais que atuam nas Faculdades de Educação, quanto dos professores que elas formam nos Cursos de Pedagogia, de Licenciatura, de Pós-Graduação stricto senso e lato senso. Essa tradição tem o peso de uma história que colocou contra a criação dessas instituições, desde o nascedouro, as faculdades tradicionais, ameaçadas pelo caráter integrador de que as Faculdades de Pedagogia estavam investidas, pelo menos na concepção dos seus idealizadores, e que potencialmente tinha força para romper as fronteiras de “feudos” solidamente instalados. Na raiz da criação da Faculdade de Educação está a disputa de poder das faculdades dentro da universidade i . Essa tradição se atualizou em níveis cada vez mais complexos. As políticas de desenvolvimento social que definiram concepções sobre o papel da universidade e estímulo a certas áreas e/ou cursos em detrimento de outros, a ambigüidade da legislação educacional, quanto à defesa de espaços públicos e privados de ensino, a diferenciação quanto a origem social de professores e estudantes e o processo interno de divisão do trabalho intelectual favoreceram a estratificação do ensino superior e dos seus diplomas, separaram perversamente o ensino da pesquisa, a graduação da pós-graduação, fornecendo o humus no qual germinaram e se consolidaram representações de descrédito da educação e dos seus profissionais. Essas representações estiveram presentes nas discussões internas dos departamentos e outras instâncias universitárias e se reforçaram com a produção de pesquisas, cujos resultados pretendem “recuperar” a Faculdade de Educação e legitimar a substituição dos Cursos de Pedagogia por outras agências formadoras de docentes, mais afinadas com as necessidades da escola básica. * Pesquisadora Associada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Professora do Curso de Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá.

Formação docente no Brasil

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entre avanços legais e recuos pragmáticos. Clarice Nunes.

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    Formao docente no Brasil: entre avanos legais e recuos pragmticos

    Clarice Nunes*

    A responsabilidade sobre os desacertos das Faculdades de Educao tem sido imputada a um

    conjunto de motivos que a literatura pedaggica e os movimentos de organizao docente tem

    trazido tona e que ocioso repetir mais uma vez. Foroso reconhecer porm que, dentro da

    universidade, foi cultivada uma tradio de desqualificao sistemtica tanto dos profissionais que

    atuam nas Faculdades de Educao, quanto dos professores que elas formam nos Cursos de

    Pedagogia, de Licenciatura, de Ps-Graduao stricto senso e lato senso. Essa tradio tem o peso de

    uma histria que colocou contra a criao dessas instituies, desde o nascedouro, as faculdades

    tradicionais, ameaadas pelo carter integrador de que as Faculdades de Pedagogia estavam

    investidas, pelo menos na concepo dos seus idealizadores, e que potencialmente tinha fora para

    romper as fronteiras de feudos solidamente instalados. Na raiz da criao da Faculdade de

    Educao est a disputa de poder das faculdades dentro da universidadei.

    Essa tradio se atualizou em nveis cada vez mais complexos. As polticas de

    desenvolvimento social que definiram concepes sobre o papel da universidade e estmulo a certas

    reas e/ou cursos em detrimento de outros, a ambigidade da legislao educacional, quanto defesa

    de espaos pblicos e privados de ensino, a diferenciao quanto a origem social de professores e

    estudantes e o processo interno de diviso do trabalho intelectual favoreceram a estratificao do

    ensino superior e dos seus diplomas, separaram perversamente o ensino da pesquisa, a graduao da

    ps-graduao, fornecendo o humus no qual germinaram e se consolidaram representaes de

    descrdito da educao e dos seus profissionais. Essas representaes estiveram presentes nas

    discusses internas dos departamentos e outras instncias universitrias e se reforaram com a

    produo de pesquisas, cujos resultados pretendem recuperar a Faculdade de Educao e legitimar

    a substituio dos Cursos de Pedagogia por outras agncias formadoras de docentes, mais afinadas

    com as necessidades da escola bsica.

    * Pesquisadora Associada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal Fluminense. Professora do Curso de Mestrado em Educao da Universidade Estcio de S.

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    O estatuto profissional da educao

    Ansio Teixeira (1900-1971) e os educadores que lhe foram contemporneos trabalharam na

    construo do estatuto profissional da educao, considerando simultaneamente a produo da

    formao docente, com a criao de agncias formadoras em nvel universitrioii, a produo da

    profisso docente, definindo uma carreira profissional, com a demarcao de um campo exclusivo de

    atuao, reconhecido em lei e protegido pelo Estado contra a intruso alheia e a produo da escola,

    atravs da reorganizao dos sistemas pblicos de ensino sob sua responsabilidade. Mas nem sempre

    foram bem sucedidos.

    Numa conferncia de encerramento do Seminrio de Educao realizado durante a ocasio

    da inaugurao das atividades do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de So Paulo, no ano

    de 1957, Ansio Teixeira definiu a educao como arte. Procurando precisar ainda mais a sua

    concepo, que endossava a maior complexidade da arte em relao cincia, afirmava que a

    educao no se configurava como uma bela arte, mas como uma arte prtica.

    Do seu ponto de vista, no se tratava de criar uma cincia da educao, mas de criar

    condies de um exerccio cientfico da atividade educativa do ponto de vista do currculo, dos

    mtodos de ensino e da disciplina e de organizao e administrao das escolas. Para que a educao

    obtivesse o seu estatuto profissional e transitasse do emprico para o cientfico necessitava, de um

    lado, que as cincias-fonte da educao (Psicologia, Antropologia e Sociologia) se desenvolvessem

    e, de outro, que se relacionassem com a prtica educativa, buscando a os seus problemas de estudo.

    Por esse motivo, defendia a aproximao entre cientistas sociais e educadores em projetos de

    investigao conjuntos. iii Seu objetivo era instituir a educao como rea de investigao acadmica.

    Essa concepo nunca foi hegemnica. Ao enfatizar a educao como arte prtica, Ansio

    buscava conciliar, na formao docente, a aprendizagem de mtodos de investigao e tcnicas de

    ensino com a reflexo filosfica que auxiliaria o docente na apropriao original do conhecimento

    cientfico, contribuindo para elaborar respostas criativas s situaes de sala-de-aula ou a elas

    relacionadas. Criticava a precipitada aplicao de certos dispositivos da cincia escola, enfatizando

    aspectos quantitativos e mecnicos, levando ao tratamento dos alunos como entes abstratos,

    manipulados por critrios de classificao em grupos supostamente homogneos.

    A definio da educao como arte aplicada pressupe as cincias sociais como provedoras

    dos instrumentos de anlise para o professor/educador. O problema dessa concepo a dificuldade

    que cria para esse agente no sentido de encontrar e/ou elaborar conceitos que faam a mediao entre

    os achados das cincias sociais e o trabalho de sala-de-aula. Alm do que, se se trata de aplicao,

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    est suposta a ausncia de um campo epistemolgico prprio..iv Ansio no resolveu essa questo

    mas, em contrapartida, flexibilizou, ao nvel discursivo, as fronteiras do conhecimento, criando um

    espao de trnsito entre diferentes saberes. Assim, ao sabor das necessidades, enfatizava mais a

    cincia ou a tcnica e chamava a ateno para a complexidade da pedagogia, sem cair na

    exclusividade dos procedimentos ou no distanciamento dos fins e valores educativos.

    Essa concepo da educao como arte aplicada ainda subsiste ao lado de outras que

    defendem a educao como atividade, no senso comum; como artesanato; como cincia; como

    sistema; como competncia. Muitas vezes essas concepes de educao esto presentes de forma

    ecltica e no muito consciente na nossa prtica. Podemos defender uma e trabalhar com outra ou

    admitir uma em pblico e usar outra privadamente.v O mesmo ocorre ao nvel das polticas pblicas.

    O governo pode assumir uma concepo e as faculdades de educao das universidades assumirem

    outra.

    O processo de produzir a profisso docente trouxe modificaes decisivas sobre o trabalho

    docente com repercusses nefastas medida que os governos foram se descomprometendo com a

    formao docente e a construo de condies de exerccio digno do magistrio. Aquele professor

    que fazia da sua casa uma escola desapareceu. No comeo deste sculo, na cidade do Rio de Janeiro,

    as escolas eram conhecidas pelo nome das suas professoras: a escola da Dona Olmpia, a da Dona

    Laura e assim por diante. Havia at manifestaes ostensivas de autonomia didtica, como a

    registrada num folheto de propaganda da professora Eliza Rizzo que, se apresentando como senhora

    distinta e independente, procurava um scio ou comprador para vulgarizar seu trabalho

    didtico.vi

    A partir da dcada de trinta, o sistema de educao fundamental foi se estruturando com o

    predomnio dos grupos escolares sobre as escolas isoladas. Essa consolidao se apoiou na

    especializao de funes e tarefas pedaggicas como a direo, a superviso pedaggica e outras

    atividades mediadoras entre a direo e a docncia. Essa organizao tcnica do trabalho escolar com

    funes especializadas consolidou-se durante as dcadas seguintes e significou a segmentao do ato

    de educar, das responsabilidades educativas, das reas de atuao do profissional da educao,

    levando-o a criar e reforar representaes muito fortes de diviso interna na prpria prtica de

    trabalho.

    A disseminao crescente de livros didticos, com seus respectivos manuais para os

    professores, restringiu a interveno pedaggica destes, j que a tendncia foi constru-los de forma

    cada vez mais auto-suficiente, fechada, detalhada nos contedos, na seqncia e nos procedimentos

    didticos. Ensinando o professor a manipular o livro do aluno estimulou-se uma facilitao que

    acomodou o profissional, empurrando-o para a passividade na relao com o conhecimento

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    produzido. O ensino reduziu-se, na mltipla jornada de trabalho do professor, reproduo do livro

    na sala-de-aula. Essa estratgia que reduz o conhecimento e a ao pedaggica no foi a nica.

    Uma outra, adotada pelo estado de So Paulo, nos anos vinte, foi a implementao de uma

    poltica popular reduzida, isto , a oferta da extenso da educao gratuita da escola primria s

    crianas das camadas populares, ao mesmo tempo em que se reduzia o tempo da sua permanncia na

    escola e concentravam-se os programas. O efeito dessas medidas foi tambm reduzir a formao dos

    seus professores, tudo em nome da necessidade de uma preparao para o trabalho que, aliada

    extenso do ensino, resultou em um programa de menos educao a um maior nmero de alunos.

    Como denunciou Ansio Teixeira, ao criticar a reforma Sampaio Dria, primeiro reduziu-se a

    durao do curso escolar, depois a durao do dia escolar com o surgimento dos turnos escolares e,

    finalmente, reduziu-se o perodo de formao de professores.vii

    Esse movimento de diluio do ensino e encurtamento dos cursos refletiu-se na formao do

    magistrio primrio a nvel nacional com a criao, vinte e seis anos depois, das Escolas Normais

    Regionais, pela Lei Orgnica do Ensino Normal, que abrangiam apenas o primeiro ciclo do curso

    secundrio e formavam regentes do ensino primrio. Esse fato chama a ateno porque o governo

    federal incorporou em sua legislao, ao lado das escolas normais e dos Institutos de Educao, o

    modelo experimentado pelo estado de So Paulo que depois das crticas recebidas o amenizou e,

    posteriormente, o abandonou. No final da dcada de sessenta apenas quatro estados no possuam

    Escolas Normais Regionais: So Paulo, Rio de Janeiro, Esprito Santo e Guanabara. Em oito

    unidades da federao o nmero de cursos para regentes era superior ao das escolas normais, porm,

    em relao aos dados globais, predominavam estas ltimas.viii

    As escolas normais foram, dentro do sistema ps-primrio, as que mais dificuldade tiveram

    de se deixar assimilar pelo sistema federal, j que este nunca manteve escolas desse tipo, ao

    contrrio, por exemplo, do Colgio Pedro II, que se tornou referncia nacional para todo o ensino

    secundrio. Tornaram-se escolas secundrias femininas, preparatrias para o ensino superior. Apesar

    da Lei Orgnica ter reorganizado as escolas normais em todo o pas e das Leis de Equivalncia

    permitirem, na dcada de cinqenta, o acesso dos seus egressos ao ensino superior, sobretudo s

    Faculdades de Filosofia, essas instituies continuaram a ser controladas, organizadas e a terem seus

    diplomas avalizados pelos governos estaduais.

    A ausncia de uma poltica educacional clara e disciplinadora da crescente iniciativa

    particular que abriu desordenadamente escolas normais, foi em boa parte a responsvel pela sua

    deteriorao. No que diz respeito s iniciativas dos poderes pblicos, Antonio Almeida Jnior,

    denunciava em meados dos anos quarenta - que os secretrios de educao do estado eram

    violentamente pressionados pelos prefeitos e pelos diretrios polticos a ampliarem o nmero de

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    escolas normais. Esse empenho, por parte dos municpios, era ocasionado pelo desejo de dar

    empregos pblicos a pessoas da localidade. Essas escolas, portanto, improvisadas, tornavam-se

    aparelhos de ruminao local.ix

    Nos anos cinqenta, em artigos de jornais, os educadores reclamavam do crescimento

    indiscriminado das escolas normais, da facilitao do ingresso dos candidatos que no atingiam o

    mnimo de exigncia desejvel, dos programas superados, da falta do seu entrosamento com as

    escolas primrias e da falta que possuam de bibliotecas especializadas.x Nessa mesma dcada

    iniciaram-se campanhas de aperfeioamento dos professores secundrios patrocinadas pelo governo

    federal j que as Faculdades de Filosofia, Cincias e Letras trataram a formao docente de forma

    residual.

    O estatuto profissional do educador (des)construdo numa trajetria pendular que

    ora aponta para a profissionalizao, ora para a pauperizao.xi Esta ltima produzida por um

    processo de desqualificao gerado atravs dos conflitos de classe, da feminizao do magistrio,

    aspectos que sequer cheguei a tratar, da perda do poder aquisitivo dos salrios e das prprias

    polticas pblicas ou da falta delas.

    Perfil do profissional da educao e agncias de formao: revendo a questo

    O perfil profissional nunca linear como aparentemente um instrumento legal pode nos fazer

    crer. No se esgota na definio do que seja o profissional e do seu lugar de formao. Minha

    participao na construo de etnografias das escolas de segundo grau, na primeira metade dos anos

    oitenta, quando tais pesquisas sequer eram valorizadas pelos mais importantes analistas da educao

    brasileira, revelou-me o perfil multifacetado do professor que obrigado a trabalhar em mais de uma

    instituio de ensino e a adaptar-se a culturas institucionais em muitos aspectos diferentes.xii J nessa

    ocasio era flagrante a oposio entre uma cultura escolar, isto , a seleo, reorganizao e

    transposio didtica de certos contedos a serem inculcados nos alunos e a cultura da escola, como

    um universo prprio em seus ritos, ritmos, linguagem, interao, o que faz com que, mesmo

    integrando um sistema de ensino, e sendo do mesmo nvel, uma escola nunca seja igual a outra.xiii

    Existe uma fora do local (do municpio, da cidade, do bairro, da escola) que persiste e

    convive com processos globalizadores. Nenhuma poltica pblica pode ou deve negligenciar este

    aspecto. O ambiente da ao educativa, como adverte Nestor Garcia Canclini, justamente a

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    hibridizao cultural ou esse amlgama de memrias heterogneas e inovaes interrompidas

    presentes na vida escolar. xiv

    Um dos grandes obstculos que praticamente toda lei enfrenta em sua aplicao decorrente

    da prpria pretenso dos seus formuladores em ignorar a cultura como constructo da sociedade e da

    escola, impondo uma generalidade e abrangncia, a rigor, e, de sada, impossveis de serem

    concretizadas em toda a sua desejabilidade e/ou extenso. No tem havido tambm sintonia entre

    princpios gerais e meios de execuo, o que evidncia da contradio da ao dos poderes

    pblicos que, como diria Otaza de Oliveira Romanelli, criam e pensam super-estruturas

    condicionadas a infraestruturas limitantesxv Foi o que ocorreu com o dispositivo da

    compulsoriedade da profissionalizao do segundo grau pela Lei 5692/71que acabou sendo extinta

    pela Lei 7044 de 1982. Mas admitindo-se que as leis so necessrias e que seus formuladores

    entendam estar trabalhando com uma totalidade hipottica, nem sempre facilmente modelada pelos

    seus desgnios, a soluo que encontram , por antecipao, regular os casos em que se prev o seu

    no cumprimento imediato, ordenando a diferena e institucionalizando patamares progressivos de

    implantao.

    As leis gerais reguladoras dos cursos de formao docente no pas criaram e reforaram

    escolas de diferente qualidade para a formao do mesmo profissional, traduzidas sobretudo em

    termos de critrios diferentes de admisso, durao e currculos. A Lei Orgnica de 1946 criou as

    escolas normais regionais que formavam o regente do ensino primrio, as escolas normais que

    formavam o professor primrio e os institutos de educao que, no pice da excelncia, alm de

    formarem o professor primrio, poderiam oferecer todas as modalidades de cursos de especializao,

    aperfeioamento e administrao escolar para os graduados da escola normal.

    As escolas normais regionais eram destinadas a alunos com a idade mnima de treze anos,

    portadores de certificados primrios completos (cinco anos). Seu currculo compreendia o estudo de

    matrias de cultura geral nos quatro anos, com a incluso, na quarta srie, de disciplinas pedaggicas

    (Psicologia, Pedagogia, Didtica e Prtica do Ensino), alm de conhecimentos de tcnicas das

    atividades econmicas da regio (agrcolas, martimas, pastoris, de minerao ou de indstria

    extrativa vegetal). As escolas normais aceitavam alunos aprovados em seu exame de admisso e

    portadores de certificados de concluso do primeiro ciclo do curso secundrio geral ou do curso de

    formao do regente. No havia idade mnima de ingresso e o curso poderia ser ministrado em dois

    anos intensivos, se necessrio. A Lei Orgnica exigia tambm dessas escolas o funcionamento de

    classes primrias anexas para treinamento do futuro professor.

    Os professores das escolas secundrias, cuja formao essa lei no regula, eram formados

    pelas Faculdades de Filosofia. Cincias e Letras criadas pelo Decreto-lei 1190 de 4/04/1939 que, ao

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    lado do preparo dos professores, propunha-se ainda a formar pesquisadores e especialistas. Essas

    faculdades foram organizadas em quatro sees: Filosofia, Cincias (Matemtica, Geografia,

    Histria, Cincias Sociais, Fsica, Qumica, Histria Natural), Letras (Anglo-germnicas e

    Neolatinas) e Pedagogia. O candidato ao magistrio cursava o bacharelado na disciplina escolhida

    (trs anos), complementando-o com um ano de estudos na licenciatura.xvi

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1961 reforou a diferena existente

    mas unificou a nomenclatura, j que para alm dos institutos de educao, que permaneceram com as

    mesmas prerrogativas da lei anterior, mantiveram-se apenas as escolas normais, embora de diferente

    nvel: as de grau ginasial e as de grau colegial. As primeiras conferiam diploma de regente do ensino

    primrio. As disciplinas de cultura geral das escolas de grau ginasial tornaram-se as mesmas

    obrigatrias para o curso ginasial secundrio. Apesar dessa obrigatoriedade, o prestgio dessas

    escolas continuou baixo. Eram consideradas agncias de formao obsoletas e medocres, criadas

    com o intuito de serem substitudas por outras mais desejveis e eficazes quando possvel. As escolas

    normais, com trs anos de durao, destinaram-se, como anteriormente, preparao psico-

    pedaggica do futuro mestre, dando maior nfase ao estudo das disciplinas educacionais que

    constituram o currculo das duas ltimas sries.xvii Os professores de ensino secundrio continuaram

    sendo formados pela Faculdade de Filosofia, mas como conseqncia da LDB/61 reformularam-se

    os cursos de licenciatura que passaram a durar quatro anos sob a justificativa, formulada por Valnir

    Chagas, da impertinncia de separar o que ensinar do como ensinar. xviii

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao de 1971, em seu artigo trinta, foi a mais audaciosa

    das leis quando pela primeira vez props a formao do professor primrio em nvel universitrio

    nos cursos de licenciatura plena. Promulgada trinta e seis anos depois de Ansio Teixeira criar

    pioneiramente a Escola de Educao da Universidade do Distrito Federal, a Lei 5692/71 foi tambm

    a mais detalhada na tentativa de ordenar a diferena encarnada pela diversidade regional que se

    apresentava como obstculo essa proposta.

    Essa lei criou um modelo de organizao que permitia ao futuro professor ou ao professor

    em exerccio acumular paulatinamente anos de escolaridade e atuar em sries cada vez mais

    avanadas do sistema escolar. Com essa finalidade estabeleceu dois esquemas de execuo quanto s

    condies futuras e s condies presentes para a implantao do sistema, um correspondente

    formao dada por cursos regulares e outro dado por cursos regulares acrescidos de estudos

    adicionais. Pressups vrios nveis de formao, a cada um correspondendo um nvel de exerccio.

    De forma sinttica, teramos: uma formao de segundo grau, com durao de trs anos, para formar

    o professor polivalente das quatro primeiras sries do primeiro grau; uma formao de segundo grau

    com um ano de estudos adicionais, destinada ao professor polivalente, com alguma especializao

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    para uma das reas de estudos, apto a lecionar at a sexta srie do segundo grau; uma formao

    superior em licenciatura curta, destinada a preparar o professor para uma rea de estudos e torn-lo

    apto a lecionar em todo o primeiro grau; uma formao em licenciatura curta mais estudos

    adicionais, destinada a preparar o professor de uma rea de estudos com alguma especializao em

    uma disciplina dessa rea, com aptido para lecionar at a segunda srie do segundo grau; uma

    formao de nvel superior em licenciatura plena, destinada a preparar o professor de disciplina e,

    portanto, a torn-lo apto a lecionar at a ltima srie do segundo grau. Os estudos adicionais sempre

    seriam aproveitados em nveis superiores de estudos.

    Na tentativa de ordenar a heterogeneidade e implantar-se como regra geral, essa lei vinculou

    os nveis salariais do professor no ao nvel de ensino do seu exerccio profissional, mas ao seu nvel

    de formao e criou, no artigo 77 das disposies transitrias, as condies mnimas para o exerccio

    do magistrio enquanto no houvesse condies para o cumprimento do dispositivo legal definitivo.

    Todos sabemos o que ocorreu: a obrigatoriedade da profissionalizao no nvel mdio (amenizada

    por pareceres subseqentes do Conselho Federal de Educao foi extinta onze anos depois de

    promulgada) transformou o magistrio numa das habilitaes do ensino de segundo grau,

    descaracterizando as escolas normais e os Institutos de Educao. A corrida s Faculdades de

    Filosofia. Cincias e Letras, nas grandes cidades brasileiras, tornou-se realidade, mas os salrios no

    melhoraram em decorrncia do nvel de formao do professor.xix

    A antiga Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras foi substituda pela Faculdade de

    Educao, que passou a integrar o sistema universitrio pela Lei 5540 de 1968 e tornou o magistrio,

    tal como ocorreu ao nvel de segundo grau, uma habilitao dentre outras (Administrao Escolar,

    Superviso Escolar, Inspeo Escolar e Orientao Educacional, etc...) Pela reforma universitria, a

    formao superior de professores para o ensino de segundo grau e a dos especialistas daria direito ao

    diploma de bacharel. Este diploma, no entanto, foi substitudo pelo de licenciado, quando o plenrio

    do Conselho Federal de Educao aprovou o Parecer 252/69, do Conselheiro Valnir Chagas, relatado

    por Newton Sucupira, sobre estudos pedaggicos superiores, que revisou o currculo mnimo e a

    durao para o curso de graduao em Pedagogia.xx

    Pela lgica de quem est habilitado para mais, tambm responde pelo menos esse parecer

    definiu que quem preparava o professor primrio estaria habilitado para ser professor primrio. O

    temor de distores fez com que esse parecer tambm exigisse experincia de magistrio para o

    portador de diploma em alguma outra habilitao que no a docncia, o limite do nmero de

    habilitaes a duas reas de cada vez e a permisso aos professores das disciplinas de contedo de

    obteno do diploma de licenciado em Pedagogia, mediante o mnimo de 1100 horas de

    complementao de estudos.

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    Esta deciso, como advertia Nair Fortes Abu-Mehry, conselheira que teve seu voto vencido

    durante a discusso e aprovao do Parecer 252/69, institua a duplicao de funes dos Cursos de

    Pedagogia e dos Institutos de Educao. Estes ltimos, nessa ocasio, saram esvaziados na sua

    funo formadora graas competio com outra instncia, estabelecida pela prpria

    regulamentao. Atingia-se, assim, a escola que, dos anos trinta aos anos setenta, havia sido um

    ponto de referncia de qualidade na formao do professor primrio.

    A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 aboliu as licenciaturas de curta durao e os avanos

    progressivos de escolaridade e exerccio profissional, embora explicite a possibilidade de

    aproveitamento de estudos e experincias anteriores em instituies de ensino e outras atividades as

    quais no discrimina. Manteve a proposta da LDB/71de formar o profissional da educao em curso

    superior (universidades, institutos superiores de educao, outras instituies congneres) e se

    depender apenas da sua determinao, as escolas normais esto com seus dias contados, embora

    continuem credenciadas para preparar professores da educao infantil e das quatro primeiras sries

    da educao fundamental (artigo 87).

    A criao dos Institutos Superiores de Educao aparece como a grande novidade, mas a

    sugesto de sua criao no exclusiva do nosso momento histrico. A primeira referncia que

    encontrei a tais instituies est presente nas recomendaes da Conferncia Regional Latino-

    Americana sobre a educao primria gratuita obrigatria, organizada pela UNESCO em

    colaborao com a OEA e o governo do Peru, realizada em Lima no ano de 1956. Ao defender a

    extenso da educao gratuita e obrigatria para cada criana por um perodo mnimo de seis anos, a

    conferncia deu nfase valorizao do profissional da educao, propondo a criao de institutos

    superiores, dentro ou fora da universidade, com o intuito de preparar os professores das escolas

    normais, sobretudo os voltados para a prtica docente. Ao lado dessa medida, considerou

    imprescindvel, dentre outras sugestes, a realizao de investigaes sobre os motivos

    determinantes do abandono da carreira do magistrio (causas de ordem econmica, poltica, de

    sade, etc...) com o objetivo de oferecer subsdios para a elaborao de planos de estmulo ao acesso

    carreira docente e permanncia do professor em seu exerccio pelos poderes pblicos.xxi Essa

    proposta surgia dentro de uma concepo de desenvolvimento integrado da Amrica Latina, desde

    que respeitadas suas diversidades nacionais.xxii

    Os atuais Institutos Superiores de Educao, ao contrrio da proposta de sua criao nos anos

    cinqenta, e que no foi concretizada em nosso pas, surgem numa conjuntura que no coloca mais a

    escola servio da construo e manuteno da unidade nacional. Suas atribuies, bastante amplas,

    tornaram-se instrumento de esvaziamento das tarefas at ento realizadas pelas Faculdades de

    Educao. Esto encarregados de formar docentes da educao infantil e fundamental. tambm sua

  • 10

    a misso de executar programas especiais de formao pedaggica para titulares de diploma de nvel

    superior desejosos de atuar no magistrio e programas profissionais de ps-graduao voltados para

    a docncia na educao bsica. Destaco que certas atribuies lhes foram garantidas exclusivamente

    pelo Decreto 3276 de 6/12/1999.

    Este decreto, j modificado como veremos a seguir, escancarou o esprito do legislador. Ele

    ordenou: cumpra-se! Atropelou a discusso da questo no mbito do Conselho Nacional de

    Educao, hoje um rgo apenas consultivo do Ministrio da Educao, revelando a ausncia de

    qualquer preocupao com a participao dos agentes implementadores. Em conseqncia,

    acentuaram-se conflitos j deflagrados e que, numa dimenso mais ampla, se estabeleceram por

    ocasio do debate e da tramitao do processo da elaborao da Lei de Diretrizes e Bases no

    Congresso Nacional, da elaborao do Plano Nacional de Educao. Dentro das escolas e do

    movimento de organizao dos profissionais da educao os nimos ficaram exaltados e as

    discordncias evidentes.

    Os professores das Faculdades de Educao foram contrrios proposta, e os professores de

    ensino mdio, sobretudo dos Institutos de Educao, portadores de ttulos de ps-graduao, mas que

    no tiveram acesso carreira universitria, favorveis. Dentro das escolas de ensino mdio, o

    conflito se acentua pela disputa da possibilidade de abrigar o projeto dos Institutos Superiores de

    Educao. Foi o que revelou, no mbito do estado do Rio de Janeiro, a discusso da proposta

    experimental que sugeria dois plos estratgicos de implantao: o Instituto de Educao Jlia

    Kubitschek, na cidade do Rio de Janeiro e o Instituto de Educao Professor Ismael Coutinho na

    cidade de Niteri, com a possibilidade de extenso a outros institutos. xxiii Causou, nas palavras de

    docentes dos cursos de formao de professores da rede estadual de ensino, uma comoo . xxiv

    Mesmo antes da elaborao desse projeto ocorreu, no mbito do governo de estado do Rio de

    Janeiro, um acerto entre as Secretarias de Estado de Educao e de Cincia e Tecnologia. A primeira

    transferiu o Instituto de Educao do Rio de Janeiro para a alada da segunda. Essa unidade hoje

    credenciada como Instituto de Educao Superior, o que foi efetivado pelo Parecer 258 de

    15/10/1998, para satisfao dos professores da tradicional casa de ensino, que viram a

    possibilidade de concretizar o to desejado aumento de vencimentos e recuperar, mesmo que

    parcialmente, o prestgio perdido.

    No entanto, em 9/5/2000 o Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educao

    aprovou o parecer 10/2000, encaminhando alterao na redao do decreto anteriormente

    citado. Essa alterao, no segundo pargrafo do seu artigo terceiro, afirma que "a formao

    em nvel superior de professores para a atuao multidisciplinar, destinada ao magistrio na

    educao infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental far-se- preferencialmente

  • 11

    (grifo nosso) em cursos normais superiores". Essa alterao foi homologada pelo despacho

    do Ministro da Educao, de 4/8/2000.

    Em decorrncia, as Faculdades de Educao no esto mais impedidas de formar

    professores da educao infantil e docentes para as quatro primeiras sries da educao fundamental,

    mantendo, embora em carter concorrente, sua misso de formar educadores para esses nveis de

    ensino. A LDB/96 tambm reservou s Faculdades de Educao, atravs dos seus cursos de

    pedagogia e de ps-graduao, critrio da instituio de ensino, garantida a base comum nacional, a

    formao dos outros profissionais da educao, j previstos pela Lei 5692/71: os administradores,

    planejadores, supervisores, inspetores e orientadores educacionais. H algo esdrxulo na definio

    desse territrio. que, no caso dos inspetores de ensino, a lei resgata uma funo praticamente

    extinta. Os Cursos de Pedagogia no tem oferecido a inspeo como habilitao. A indicao desses

    agentes praticamente desapareceu nos Estatutos do Magistrio. No momento em que a prpria LDB

    referenda a autonomia da escola na elaborao e implementao do seu projeto pedaggico, esse

    agente parece anacrnico.xxv Mesmo quando ela regula certas atribuies, como por exemplo, a

    autenticao dos documentos escolares, acaba conferindo essa responsabilidade exclusivamente s

    escolas e no aos inspetores. Os planejadores, por sua vez, nunca foram habilitados para esta funo

    pelos Cursos de Pedagogia, dado que a complexidade da tarefa tem levado o Estado a recrut-los

    entre os quadros multidisciplinares mais qualificados dos sistemas de ensino. Esses profissionais

    geralmente so portadores de diplomas de ps-graduao.

    Essa definio dos especialistas como profissionais da educao incorporada pela

    legislao numa conjuntura em que os governos insistem em cortes de pessoal. Esses cortes atingem

    os funcionrios de apoio e o especialista pedaggico ou o orientador educacional dentro das escolas.

    .xxvi Essa prtica associada aos baixos salrios destruiu as instncias de mediao, controle e apoio ao

    trabalho docente provocando, em boa parte, a deteriorao da escola, do ponto de vista da sua

    organizao, da interao social e mesmo de manuteno da limpeza e higiene. Como assinala a

    Carta do Rio de Janeiro pela renovao do ensino fundamental, essas instituies transformaram-se

    em escolas quase exclusivamente de professores e alunos, um dos primeiros assumindo a direo.xxvii

    Se essas condies de trabalho no forem alteradas, isto , se no se garantir a presena e a

    permanncia desses agentes de apoio ao trabalho do professor a letra da lei ser morta. Quem se

    candidatar qualquer especialidade?

    Chamo tambm a ateno para a possibilidade que a LDB/96 abre de que professores com o

    mesmo nvel de formao possam ser remunerados de forma diferenciada j que essa lei no

    incorporou o dispositivo da legislao anterior que obrigava os sistemas de ensino a remunerarem

    seus docentes pelo nvel de qualificao. A questo da diferenciao salarial docente remete para

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    uma questo decisiva: a hierarquia dos diplomas e dos salrios. Obriga tambm reflexo sobre

    o alcance dos dispositivos que tratam dos recursos financeiros destinados educao presentes na

    legislao de diretrizes e bases e, mais especificamente, do Fundo de Manuteno e

    Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (FUNDEF), que no tenho

    a possibilidade de aprofundar nessa oportunidade.

    Apenas assinalo que, no processo de discusso das medidas de valorizao do magistrio,

    dentro do Frum Permanente de Valorizao do Magistrio da Educao Bsica e da Qualidade de

    Ensino, instalado pelo Ministro Murilo Hingel em 1994, e que resultou no Pacto de 19/10/94,

    ficavam claros os trs elementos indissociveis que constituem a valorizao pretendida: formao

    inicial e continuada; piso salarial profissional nacional como referncia do vencimento inicial de

    novos Planos de Carreira e jornada integral, com pelo menos 25% de horas dedicadas apenas

    garantia da aprendizagem do estudante: planejamento, avaliao, estudo pessoal, reunies

    pedaggicas, trabalho interdisciplinar.xxviii

    No entanto, fatos polticos novos, como a eleio presidencial do candidato que sustentava

    idias conflitivas com as propostas do pacto, selou o destino do encaminhamento das propostas. O

    Frum Permanente foi desativado e no ano seguinte foram anunciadas medidas que se dirigiam na

    contramo do processo at ento existente, isto , que se apoiavam nas concepes de que a

    participao da Unio no financiamento do ensino fundamental deve ser decrescente; que o piso

    salarial profissional nacional deve ser substitudo pelos pisos regionais e, sobretudo, que a prioridade

    o ensino fundamental e no toda a educao bsica.

    Dentro dessa perspectiva foi aprovada a Emenda 14 da Lei de Diretrizes e Bases e da Lei do

    FUNDEF. O Estado do Par, governado pelo partido do presidente e do ministro da educao,

    antecipou a implantao do Fundo para o ano de 1997 e deixou evidente, naquele momento, para os

    analistas, os limites desse instrumento de operacionalizao da poltica. Dentre eles cito apenas o de

    que alunos jovens e adultos do supletivo presencial e alunos das classes de alfabetizao no foram

    includos nesse benefcio, a incluso da capacitao de professores como forma de dispender

    recursos dos 60% destinados a pagamento dos seus salrios e o risco da evaso das receitas de

    aplicaes financeiras do saldo das contas do FUNDEF para despesas estranhas.xxix

    Os artigos de jornais e de peridicos pedaggicos vm chamando a ateno no s para as

    incoerncias da LDB/96 e documentos legais adicionais com relao aplicao de recursos

    pblicos para a educao pblica, mas tambm para os mecanismos desvirtuadores na aplicao das

    verbas do Fundo. As polticas concretas dos governos federal, estadual e municipal tm minado o

    avano que, no plano da Lei, representa, dentre outras medidas, a vinculao de recursos para a

    manuteno e desenvolvimento do ensino. oportuna, portanto, a advertncia de Nicholas Davies:

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    mais importante que a letra da lei ou seu esprito so a vontade dos poderes Executivo, Judicirio e

    Legislativo, sobretudo a mobilizao da sociedade, e dos educadores em particular, para que a lei

    seja de fato cumprida.xxx

    Os dispositivos legais anunciados com relao formao docente tiveram como efeito

    imediato acentuar a fragmentao dos profissionais da educao e o conflito entre eles, impor a

    fragilizao da organizao docente e ampliar as condies de concorrncia. Esse um ponto

    importante. Se, definirmos como concorrncia escolar as relaes que se estabelecem entre os

    estabelecimentos produtores de servios educativos que disputam uma clientela, preciso estudar os

    fatores ideolgicos, poltico-administrativos que a favorecem ou a constrangem. A proposta de

    criao dos Institutos de Ensino Superior, assim como a autonomia na elaborao do projeto

    pedaggico das escolas, respeitadas certas disposies gerais, acentuaro a competio no apenas

    entre escolas pblicas e particulares, mas sobretudo dentro das escolas pblicas e dentro das escolas

    particulares. Essa a novidade que tais medidas encarnam indo ao encontro de outras solues,

    endossadas pelo governo, cuja estratgia a estratificao das escolas, instituindo e/ou legitimando a

    excelncia de algumas em contraposio s demais.

    Note-se que essa competio, pelo menos no momento, no necessariamente isola as

    instituies. o caso da recente aglutinao de escolas da rede particular de ensino, no Rio de

    Janeiro, Movimento Escolas Rio, que busca trocar experincias em torno da adaptao dos seus

    colgios s exigncias da LDB/96. Embora a experincia seja recente, pode ser a semente de criao

    de um novo espao, em que os estabelecimentos busquem se orientar de acordo com os

    estabelecimentos congneres que pertenam ao seu entorno cultural, circulando informaes e

    exercitando a cooperao. Pode estar se constituindo, a partir dessa situao, a no ser que essa

    aglutinao se desfaa, assimilada a novidade das alteraes propostas pela lei, um circuito de

    escolarizao, fenmeno j presente em outros pases.xxxi

    As atuais anlises da poltica educacional no podem ignorar a presso das agncias

    internacionais, locus de construo, disseminao e legitimao de discursos transnacionais.

    Discursos que elaboram e promovem um novo determinismo econmico, ao defender, por

    exemplo, que toda mudana educativa deve se submeter aos imperativos da competitividade. xxxii

    Como ignorar que a nfase na educao em servio, to defendida pelos prprios educadores, e

    contemplada na LDB/96, veiculada pelo Banco Mundial que recomenda o seu financiamento em

    pases perifricos? H uma diferena porm. Enquanto os educadores tendem a considerar a

    formao docente como um continuum e, portanto, a no desprezar a formao inicial, o Banco, a

    partir de um estudo encomendado em 18 pases (apenas dois na Amrica Latina), que conclua

    colocando em relevo os problemas dos programas de formao inicial apoiados naquele momento

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    (dcada de oitenta), decidiu financiar apenas programas de capacitao em servio. Os argumentos

    que avalizam essa medida so econmicos. Esse investimento rende mais e gasta menos, j que no

    h necessidade de contratar novos professores, o que se conjuga com medidas de redistribuio de

    docentes aumentando o nmero de alunos por docente. A economia que tal medida acarretaria,

    segundo o Banco, poderia ser investida na capacitao em servio e no livro didtico.xxxiii

    Sem concluses

    A trajetria das polticas pblicas de formao docente mostra que h uma tradio, na sua

    implementao, em nosso pas, que conjuga avanos legais e recuos pragmticos.xxxiv A mudana no

    est assegurada no anncio da lei, mas em proporcionar as condies de realizao do que se

    anuncia, como estruturas de apoio, recursos suficientes para melhorar as condies de trabalho e a

    qualidade cultural e pedaggica dos profissionais, uma gesto cotidiana eficaz.

    O estilo autocrtico do Ministrio da Educao no encaminhamento das mudanas trata o

    profissional da educao como menor. A concorrncia e a diferenciao so mecanismos que,

    incentivados legalmente, acentuaro a desigualdade dos cursos de formao de professores. Diante

    da lei constrangedora a reao de apatia e desesperana de muitos docentes dentro das escolas

    pblicas. Os professores vm se isolando nas salas de aula, num fenmeno que Sacristn qualifica

    como o exerccio privado da docncia. xxxv O cotidiano reduzido ao imediatismo e ao improviso se

    distancia da utopia e de uma viso de futuro.

    Sem o resgate do valor cultural da educao no podemos cultivar a imaginao pedaggica,

    que exige uma mentalidade aberta, a indignao com a perda de valor da escola de formao e a

    compreenso da teoria como subverso dos usos da prtica, como compromisso com a realidade no

    apenas para resolver problemas, mas tambm para formul-los. O professor, tanto quanto o aluno,

    no mudam por decreto ou pela imposio de quaisquer exigncias externas. Essa uma lio

    que ainda no se aprendeu.

    As reformas (...) costumam ser grandes cerimnias que movimentam muitas coisas

    ao mesmo tempo. Despertam expectativas que no se costumam cumprir, causam

    mais movimentos do que mudanas. Criam a imagem de que existe uma poltica

    educacional. No comeo, prestam-se muito ao brilho dos polticos e depois tambm

    ao seu fracasso, se perduram muito tempo no poder....xxxvi

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    i Uma verso mais ampla deste texto foi escrita como artigo e enviada para publicao no primeiro nmero da revista TEIAS, UERJ, 2000. No prelo. ii A Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, liderada por Fernando de Azevedo, teve a funo de formar professores secundrios. A Escola de Educao da Universidade do Distrito Federal, liderada por Ansio Teixeira, teve a funo de formar (e isso ocorreu pela primeira vez no pas) o professor primrio em nvel universitrio e constituir-se em centro de documentao e pesquisa para a formao de uma cultura pedaggica nacional. Para tanto incorporou-se o Instituto de Educao do Rio de Janeiro universidade. Essa iniciativa to promissora de 1935 teve existncia efmera e no vingou pela ameaa que representava, para a Igreja, devido ao seu carter laico e para o governo federal por ser uma iniciativa municipal. iii Ansio Teixeira, op. cit.,1992, 1992, p. 254-272. 16Idem vGeoffrey Squires. Teaching as a professional discipline. London, Falmer Press, 1999. vi Clarice Nunes. Ansio Teixeira: a poesia da ao. Rio de Janeiro, Departamento de Educao da PUC/Rio, 1991, Tese de Doutoramento, p. 275 e 276. vii Ansio Teixeira. O problema da formao do magistrio. Documenta, Rio de Janeiro, (62): 5-15, novembro de 1966, p. 7 . Tambm do mesmo autor, op. cit., 1994, p. 117. viii Maria Jos Werebe. Grandezas e misrias do ensino no Brasil. So Paulo, Difuso Europia do Livro, 1968, p. 210. ix Antonio Almeida Jnior. O excesso de escolas normais no Estado de So Paulo. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Rio de Janeiro, 7 (20): 223-232, fevereiro de 1946, p. 223 e 228. x Solon Borges dos Reis. Deficincias do ensino normal. Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos. Rio de Janeiro, 20 (51): 189-191, jul./set. de 1953. xi Mariano Fernndez Enguita, A ambigidade da docncia: entre o profissionalismo e a proletarizao, Teoria e Educao, Porto Alegre, (4): 41-61. xii Clarice Nunes. Lio de vida: aprendendo a ser professor. Legenda, Revista da Faculdade Notre Dame, Rio de Janeiro, 5 (9): 25-43, agosto/dezembro de 1984 Ver tambm em co-autoria com Maria Aparecida Franco e Sandra Camaro. A construo cotidiana de um perfil: o professor de segundo grau. ANDE. Revista da Associao Nacional de Educao. So Paulo, 4 (7): 47-51, 1984. xiii Nestor Garcia Canclini e J. C. Forquin apud Vera Maria Candau. Mudanas culturais e redefinio do escolar: tenses e buscas. Contemporaneidade e Educao 3 (3); 14-26, maro de 1998, p. 19 e 21. xiv Idem, ibidem. xv Otaza de Oliveira Romanelli. Histria da Educao no Brasil 1930/1970. Petrpolis, Vozes, 1978, p. 252. xvi Eurides Brito da Silva (org.). A Educao Bsica ps-LDB. So Paulo, Pioneira, 1998, 191. xvii Maria Jos Werebe, op. cit., p. 211. xviii Brasil. Conselho Federal de Educao. Parecer 292/62. Documenta (10):95-101, dez. 1962. xix Na cidade do Rio de Janeiro, desde o incio dos anos 80, os docentes de primeiro e segundo graus foram enquadrados pelo seu nvel de formao, distinguindo-se a remunerao pela carga horria de trabalho. Vanilda Paiva, op. cit (1999), p. 136. xx Brasil. Conselho Federal de Educao. Parecer 252/69. xxi Paulo Campos. Educao sempre. s/n/t, 1999, p. 22, 23, 27 e 28. xxii A delegao brasileira presente a esse evento foi chefiada por Almeida Jnior que se posicionou de maneira ambgua continuidade de um dos projetos da UNESCO ento em andamento: a Escola Normal Rural de Rbio, na Venezuela, iniciativa patrocinada pelo Programa de Cooperao Tcnica da Organizao dos Estados Americanos e que encarnava uma experincia internacional de formao e aperfeioamento docente para os pases latino-americanos. O chefe da delegao brasileira argumentou que do ponto de vista pedaggico a experincia deveria ser concluda, embora houvesse uma total discordncia doutrinria. A delegao argentina argumentou que a formao do professor havia de ser nacional e, ao lado do Uruguai, se posicionou contra as posies que defenderam a continuidade da experincia por no entenderem haver perigo de desnacionalizao de docentes j maduros como pessoas e profissionais. Como resultado da polmica fixou-se o perodo de permanncia dos cursos dessa escola at dezembro de 1959. Idem, p. 35. xxiii lvaro Chrispino. Implantao do Instituto Superior de Educao no Estado do Rio de Janeiro (ante-projeto). Curso Normal Superior e Ncleo de Formao Continuada Projeto Experimental com

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    acompanhamento e avaliao externa. Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Educao, s/d, mimeo, p. 7 e 8. xxiv Lite de Oliveira Acccio nos forneceu algumas indicaes sobre o tema da implantao do Instituto de Educao Superior no estado do Rio de Janeiro. xxv Apesar da autonomia do projeto pedaggico, o artigo 9, inciso VI da LDB, apresenta o dispositivo do processo nacional de avaliao do rendimento escolar do ensino fundamental e mdio. Considerar esse processo a proposta pedaggica dos Parmetros Curriculares Nacionais, apesar da nfase que o parecer sobre tais parmetros d no sentido de que essa proposta no obrigatria? Em caso afirmativo teramos a institucionalizao do modelo curricular nico para todo o pas. xxvi Mesmo nas escolas particulares o corte de pessoal realidade, atingindo sobretudo os profissionais que apoiam os professores no seu trabalho em sala de aula, como os orientadores educacionais. xxvii Carta do Rio de Janeiro pela renovao do ensino fundamental. Contemporaneidade e Educao 2 (3): 44-99, maro de 1998, p. 10. xxviii Joo Monlevade e Eduardo B. Ferreira, O FUNDEF e seus pecados capitais. Ceilndia/DF, Ida Editora, 1997, p. 13. xxix dem, p. 14, 39, 41, 42, 44. xxx Nicholas Davies. Os recursos financeiros na LDB, Universidade e Sociedade, Braslia, 7 (14): 56-63, p. 56. xxxi Sylvain Broccolichi e Agns van Zanten. Espaces de concurrence et circuits de scolarisation. Les annales de la recherche urbaine (75): 5-17, sd. xxxiiAgns van Zanten. Comparer pour comprendre: globalisation, rinterprtations nationales et recontextualisations locales des politiques ducatives nolibrales. Paris, 1999, mimeo, 19 pginas. xxxiii Rosa Maria Torres, Tendncias da formao docente nos anos noventa. In Mirian Jorge Warde (org.), op. cit., p. 176. xxxiv Foi o que aconteceu pouco tempo depois de promulgada a LDB/96. Sua primeira alterao ocorreu no artigo 33, que versa sobre o ensino religioso. A principal modificao na redao original foi a retirada da afirmao de que este ensino, facultativo nas escolas pblicas, seria oferecido sem nus para os cofres pblicos. A Lei 9475 de 22/07/1997, que traz essa mudana do texto legal, foi uma vitria dos diversos grupos religiosos no pas que exerceram forte presso junto ao poder executivo federal que, por sua vez, conduziu a acompanhou no Congresso Nacional o processo de alterao desse artigo. Cf. Eurides Brito da Silva (org.), op. cit., 1998, p. 14 e 15. xxxv Entrevista com Jos Gimeno Sacristn. Educao e Realidade, Porto Alegre, 21 (1): 213-227, jan/jun de 1996. xxxvi Idem, p.221.