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64 Formação nas artes cénicas em Portugal: a preparação corporal do intérprete em diferentes tipologias de ensino Ana Cristina D’Andrea Galmarino 1 RESUMO: Este artigo, realizado através da participação nos Seminários Transculturais Corpo e Cena na Contemporaneidade, promovidos pelo PPGAC da UFBA, tem como ponto de partida o estudo intitulado Formação e profissionalidade nas artes cénicas, interfaces das dimensões pedagógica, artística e sócio-cultural: tendências actuais em Portugal, concretizado entre os anos de 2002 e 2008 no âmbito do Doutoramento em Ciências da Educação, ramo Educação e Desenvolvimento, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, com orientação do Professor Doutor Sérgio Grácio 2 . Em tal estudo exploramos a apreensão sociológica de práticas artísticas e artístico- formativas em Portugal, articulada com uma abordagem pedagógica da formação nas artes cénicas, com a finalidade de analisar as suas implicações no desenvolvimento local. Para o presente artigo seleccionamos tópicos relacionados com a actividade de escolas que respondem pelo ensino das artes cénicas, evidenciando projectos formativos e abordagens do corpo. Palavras-chave: Formação em artes cénicas e novas tendências na abordagem do corpo. ABSTRACT: This article, carried out through the participation in the Body and Scene in Contemporaneity Trans-cultural Seminars (Seminários Transculturais Corpo e Cena na Contemporaneidade), promoted by PPGAC at UFBA, has as starting point the study entitled “Training and professionalism in performing arts, interfaces of pedagogical, artistic, social and cultural dimensions: current trends in Portugal”, that was materialized between the years 2002 and 2008 under the Doctorate Programme in Educational Sciences – branch of Education and Development – from the Faculty of Social and Human Sciences (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) at the Universidade Nova de Lisboa, under the guidance of Professor Dr. Sérgio Grácio. In that study we explore the sociological grasping of artistic practices and artistic training in Portugal combined with a pedagogic approach to the training in performing arts, in order to analyze its involvement on local development. For the present article we have selected topics associated with the activity of schools that are responsible for the teaching of performing arts, pointing out training projects and approaches to the body. Keywords: Training in performing arts and new trends towards the body approach. 1 Performer, pesquisadora do CNPq e professora do PPGAC/ Universidade Federal da Bahia. 2 O projecto contou com uma bolsa de estudos da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) a partir de outubro de 2007. A participação nos Seminários Transculturais Corpo e Cena na Contemporaneidade A oportunidade de participar nos seminários promovidos pelo PPGAC (pela qual agradeço em especial à Antonia Pereira, coordenadora do programa, e à professora Ciane Fernandes) foi um momento de enriquecedora partilha, numa dinâmica de trabalho que, proposta pela organização, favoreceu potentes cruzamentos disciplinares, trânsitos entre a teoria e a prática e um intenso envolvimento dos participantes. Soma-se a isto a evidência de uma comunidade de estudantes- pesquisadores da casa, a primar por um assertivo, consistente, criativo e inovador empenho com a pesquisa em artes cénicas. Corpo transcultural: os seminários realizados foram uma privilegiada ocasião colectiva de produção de conhecimentos. “Notas introdutórias sobre o estudo Formação e profissionalidade nas artes cénicas, interfaces das dimensões pedagógica, artística e sócio-cultural: tendências actuais em Portugal” Na investigação que concretizamos levamos em conta a recente história das instituições dedicadas ao ensino das artes cénicas em Portugal,

Formação nas artes cénicas em Portugal: a preparação ... · exploramos a apreensão sociológica de ... a fim de exercer docência numa escola ... 5 Resolução sobre a situação

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Formação nas artes cénicas emPortugal: a preparação corporaldo intérprete em diferentestipologias de ensino

Ana Cristina D’Andrea Galmarino1

RESUMO: Este artigo, realizado através da participação nosSeminários Transculturais Corpo e Cena na Contemporaneidade,promovidos pelo PPGAC da UFBA, tem como ponto departida o estudo intitulado Formação e profissionalidade nas artes

cénicas, interfaces das dimensões pedagógica, artística e sócio-cultural:

tendências actuais em Portugal, concretizado entre os anos de 2002e 2008 no âmbito do Doutoramento em Ciências da Educação,ramo Educação e Desenvolvimento, na Faculdade de CiênciasSociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, comorientação do Professor Doutor Sérgio Grácio2. Em tal estudoexploramos a apreensão sociológica de práticas artísticas e artístico-formativas em Portugal, articulada com uma abordagempedagógica da formação nas artes cénicas, com a finalidade deanalisar as suas implicações no desenvolvimento local. Para opresente artigo seleccionamos tópicos relacionados com aactividade de escolas que respondem pelo ensino das artes cénicas,evidenciando projectos formativos e abordagens do corpo.

Palavras-chave: Formação em artes cénicas e novas tendênciasna abordagem do corpo.

ABSTRACT: This article, carried out through the participationin the Body and Scene in Contemporaneity Trans-culturalSeminars (Seminários Transculturais Corpo e Cena naContemporaneidade), promoted by PPGAC at UFBA, has asstarting point the study entitled “Training and professionalismin performing arts, interfaces of pedagogical, artistic, social andcultural dimensions: current trends in Portugal”, that wasmaterialized between the years 2002 and 2008 under the DoctorateProgramme in Educational Sciences – branch of Educationand Development – from the Faculty of Social and HumanSciences (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas) at theUniversidade Nova de Lisboa, under the guidance of ProfessorDr. Sérgio Grácio. In that study we explore the sociologicalgrasping of artistic practices and artistic training in Portugalcombined with a pedagogic approach to the training inperforming arts, in order to analyze its involvement on localdevelopment. For the present article we have selected topicsassociated with the activity of schools that are responsible forthe teaching of performing arts, pointing out training projectsand approaches to the body.

Keywords: Training in performing arts and new trends towardsthe body approach.

1 Performer, pesquisadora do CNPq e professora do PPGAC/

Universidade Federal da Bahia.2 O projecto contou com uma bolsa de estudos da Fundação para a

Ciência e Tecnologia (FCT) a partir de outubro de 2007.

A participação nos Seminários

Transculturais Corpo e Cena na

Contemporaneidade

A oportunidade de participar nos semináriospromovidos pelo PPGAC (pela qual agradeço emespecial à Antonia Pereira, coordenadora doprograma, e à professora Ciane Fernandes) foi ummomento de enriquecedora partilha, numa dinâmicade trabalho que, proposta pela organização,favoreceu potentes cruzamentos disciplinares,trânsitos entre a teoria e a prática e um intensoenvolvimento dos participantes. Soma-se a isto aevidência de uma comunidade de estudantes-pesquisadores da casa, a primar por um assertivo,consistente, criativo e inovador empenho com apesquisa em artes cénicas. Corpo transcultural: osseminários realizados foram uma privilegiadaocasião colectiva de produção de conhecimentos.

“Notas introdutórias sobre o estudo

Formação e profissionalidade nas

artes cénicas, interfaces das

dimensões pedagógica, artística e

sócio-cultural: tendências actuais

em Portugal”

Na investigação que concretizamos levamosem conta a recente história das instituiçõesdedicadas ao ensino das artes cénicas em Portugal,

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situando a abordagem num perspectivar doscontextos temporal, geográfico, nacional, político-cultural e global, realizando uma aproximação aosubcampo local da região metropolitana do Porto,procurando levantar pistas para o repensarcontextualizado dos rumos da formação e daprofissionalização na área das artes cénicas,identificando estratégias dinâmicas culturaisproduzidas por agentes e instituições artísticas,promotoras de diferentes níveis de envolvimentoe de participação pública.

Nos propusemos a evidenciar as dinâmicasgeradas no contexto estudado a partir de umaaproximação às lógicas subjacentes à acção dosseus interlocutores. A caracterização dos factoresendógenos e exógenos da formação e do trabalho noâmbito artístico foi o mote para a aferição dasmotivações, posicionamentos, interacções eestratégias engendradas pela intervenção deestruturas profissionais e escolas de teatro e dança.Entendemos por Dimensão Endógena da actividadeartística aquela que se relaciona com o treinamentotécnico, preparação artística e pesquisa deelementos estéticos e por Dimensão Exógena arelativa à luta pela construção do impacto públicoe das condições profissionais.

Concentramo-nos em apreender um arcotemporal específico, contemporâneo à vinda daautora do estudo do Brasil para Portugal em 1992,a fim de exercer docência numa escola do ensinoartístico especializado. Paralelamente a actividadeno ensino deu continuidade ao trabalho depesquisa, criação e produção artística, instânciaonde a motivação para o presente estudo nasceu;a proximidade com o objecto de observaçãocondicionou as directrizes adoptadas para aformulação das problemáticas. A presença decódigos comuns favoreceu a presença de umaescuta cúmplice em relação aos agentes abordados.

Assumimos um compromisso existencial eafectivo com o trabalho científico, pelas possibilidadesque o gesto reflexivo tem para a compreensãofundamentada da realidade social nas suas variadasformas de expressão. A tarefa fundamental assumidafoi a de estabelecer as condições para uma objectivação

consistente da subjectividade, através de umaexploração intensiva dos métodos qualitativos deinvestigação que associamos complementarmentecom métodos quantitativos.

Para a apreensão das particularidades daspráticas artístico-performativas em Portugallevamos em conta os processos de globalização elocalização mediante os quais Sousa Santos (1994)problematiza a situação de Portugal, entrelaçandoos níveis analíticos macro e microssociológico. Aabordagem dialéctica da globalização/ localizaçãoofereceu suportes conceptuais para uma reflexãosobre as articulações das condicionantes globaisdos percursos no universo das actividades artístico-performativas e artístico-formativas e as respostaslocais engendradas pelos agentes e estruturas quecompõem o universo de observação.

Como afirma Correia (2001, p. 19),

o Teatro e as artes do corpo consistem em práticas relativamentelocalizadas, ou seja, existem enquanto representações (...),que são únicas para um determinado espaço e tempo (...); osrepertórios artísticos, podem ser dimensionados comorecursos culturais globalizados que circulamtransnacionalmente e que são apropriados localmente.

O escritor português Miguel Torga consideraque o universal é o local, menos as paredes. A levar emconta que as produções realizadas no âmbito dasartes cénicas, muito embora encontrem os seusalicerces num internacionalismo artístico(constituído, tal como indica Bourdieu, através dosmicrocosmos sociais onde se concretizamorientações técnicas, estéticas e artísticas mais oumenos legitimadas, mais ou menos conflituais ouconsensuais), são localmente concretizadas poragentes localmente inseridos.

No estudo que realizamos sobre as artes cénicasem Portugal, equacionamos como referencialidade

cultural global aquela que incide de forma maismarcante sobre o valorizar e privilegiar dereferencialidades artísticas e colaboraçõesinternacionais para a promoção da formação,produção e difusão artística, com influência, ao níveldas opções programáticas das estruturasprofissionais, na adopção e no desenvolvimento decódigos artísticos reconhecidos como legítimos nocontexto internacional.

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Equacionamos como referencialidade cultural

local, aquela onde é fomentada a identificação departicularidades e a optimização dos recursosculturais disponíveis no contexto envolvente, emtermos de parcerias artísticas e institucionaislocais para a consolidação de práticas e infra-estruturas, influenciando a procura e o fomentode particularidades culturais, em ligação com asopções artístico-programáticas. Entenda-se aquio local não como ligação a um territóriogeográfico, mas como instância de procura dasingularidade e exacerbação da subjectividadecontextual; tal conceito, fundamentado na teoriadesenvolvida por Sousa Santos, não se constituide forma dicotómica relativamente àspossibilidades de influência de referenciaisculturais e artísticas transnacionais de índolecosmopolita. Associamos a referencialidadecultural local à acção cultural que visadesenvolver a dimensão identitária, informada poruma racionalidade pós-moderna, onde, de acordocom Harvey (1995, p. 23), é estabelecida umaviragem na estrutura de pensamento e sentimento,numa revisão multifacetada das categorias que,até então, sedimentavam o discurso cultural, que,na modernidade, revelava um carácter teleológicoe linear, representando o emergir do interesse peladescontinuidade e pela heterogeneidade, comoforças libertadoras do discurso cultural.

Abordamos também como nucleares osconceitos de habitus, campo social, autonomia e

heteronomia, desenvolvidos pelo sociólogo francêsPierre Bourdieu. A Autonomia de um campo socialdiz respeito à defesa de regras próprias, na luta pelaafirmação da sua legitimidade, e a Heteronomia serelaciona com a permeabilidade de um campo sociala outros campos (no campo artístico, por exemplo,com os campos político e o económico em situaçõesde espessamento da construção de um impactoexterno e de índices de audiência).

Relativamente à dimensão pedagógica doensino artístico, equacionamos os desenvolvimentospropostos por Giroux (1983) relativamente àsdimensões política e cultural da Educação,associando, nesta discussão, os princípios

filosóficos da Educação pela Arte preconizados porHerbert Read (1982).

A aproximação a actuais estudos científicosportugueses sobre as políticas e hábitos culturaisliderados por Maria de Lurdes de Lima dos Santos(concretizados através do Observatório deActividades Culturais, tutelado pelo Ministério daCultura), os estudos desenvolvidos por JoãoTeixeira Lopes (sobretudo no âmbito daaproximação às práticas culturais na escola), ostrabalhos de Claudia Marisa Oliveira e André deBrito Correia (que se debruçaram sobre práticasteatrais profissionais no país, questionamentoscientíficos sobre a aparente dicotomia entre osprocessos de criação e recepção e de globalização/localização) são reveladores da situação actual emtermos científicos da investigação realizada nocontexto nacional, sobre temáticas relevantes paraa nossa investigação. Somam-se a este conjuntode estudos abordados as contribuições de AugustoSantos Silva, relativas à discussão da dimensãocultural do desenvolvimento e à análise daspolíticas culturais.

A caracterização do mercado de trabalhoteatral, desenvolvida por Pierre Menger (1997/2002) em França, cujas assertivas sãorecontextualizadas nos estudos desenvolvidos porVera Borges (2003) em Portugal, são tambémmarcos científicos de referência na presenteabordagem, assim como a investigação sobre aprofissão coreográfica em Portugal desenvolvidapor Cristina Farinha (2001).

A apreensão do “habitus artístico”

(sistema de disposições herdadas)

como vector de aproximação à

realidade empírica das artes cénicas

O conceito de habitus,3 desenvolvido porBourdieu, é nuclear na investigação que realizamos;

3 Segundo Micelli, para Bourdieu o habitus constituiria o fundamento

mais sólido da integração dos grupos ou das classes, pressupondo um

mínimo de domínio e de controlo de códigos comuns.

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4 Bourdieu coloca em relevo nos seus estudos a questão de acesso à

experiência estética, criticando a exclusão social e propondo-se a verificar

as posições em curso. Com isto, é preciso observar que a pouca referência

que Bourdieu faz à experiência estética propriamente dita deve-se ao

facto de este não ser seu objecto de discussão.5 Resolução sobre a situação e o papel dos artistas na União Europeia –

relatório ao Parlamento Europeu, elaborado pela Comissão Cultura. In:

Ser artista em Portugal. Edição do Centro Nacional de Cultura, 2000.

Coordenação de Teresa Tamen.

na génese do mesmo, o autor pretendeufundamentalmente questionar a visão dicotómicafomentada pela sociologia de pendor estruturalistaem relação aos binómios indivíduo-sociedade,subjectividade-objectividade, explorando a criação deum pensamento histórico-sociológico relacional,como afirmam Noronha e Rocha (2008).

A representar exterioridades interiorizadas,incorporação de determinadas estruturas sociaiselaboradas pelas práticas individuais e colectivas,e permitindo a aquisição de um senso de jogo capaz de

orientar as estratégias individuais no interior das estruturas

sociais (ibidem), o habitus revela disposições específicas

para sentir, pensar e agir; tais disposições têm o seuenraizamento no Corpo, uma vez que, tal comopostula o pedagogo Wallon (1968), a cognição sedesenvolve a partir do fisicalidade desde as etapasmatriciais do desenvolvimento humano. O Corpo

é o suporte afectivo das aprendizagens sociais eculturais e, para compreender o habitus de umindivíduo ou de um grupo, é necessário analisartrajectórias e a história do meio onde estãoinseridos. O habitus, como sistema de disposições e

patamar de partilha, construção e recriação de códigos

comuns a um determinado grupo social, se constituicomo parte integrante da identidade dos sujeitosindividuais e colectivos.

Consideramos que o conceito de habitus, quese poderia sintetizar como razão prática incorporada,é fundamental para a apreensão das práticasartístico-performativas na medida em que ofereceum aporte para a observação das dinâmicas deacção e de interacção que os agentes estabelecem,configurando-se como um substrato para aidentificação das coerências internas dos campos

sociais4.

Trabalho artístico e profissão

artística: constituir história/

legitimar realidades

Muito embora profissão artística e trabalhoartístico sejam dimensões indissociáveis naspráticas ligadas ao mundo do espectáculo, haverá

uma distinção entre estes aspectos, já que nemsempre o trabalho artístico encontra um patamarde realidade enquanto prática exercida comoprofissão formalmente sistematizada.

Num certo sentido, na sua gênese, a formaçãoartística académica deriva da actividade artística,sendo um espaço privilegiado para a reprodução etransformação do campo. Por outro lado, teráestabelecido, pelo compromisso com o campoeducacional, um contexto prático menos autónomodo que o artístico, sujeito a uma normatividadeexterior às artes. Institucionalizando-se, o ensinoartístico torna-se um contexto de salvaguarda docampo, ao integrar artistas-docentes, que encontramneste contexto possibilidades de manter a ligaçãoao trabalho artístico. O conhecimento artísticoemerge a partir de contextos práticos e a conversãodeste em matéria de aprendizagem equivale aorobustecimento das suas propriedades autónomas,por ser um contexto de especialização. A luta pelaautonomia dos campos é um dado das sociedadesmodernas, que tendem a especializar-se emsubcampos cada vez mais específicos.

Para desenvolvermos a distinção entretrabalho artístico e profissão artística, levamos emconta a definição do artista adoptada pela Unesco,segundo a qual,

artista é toda a pessoa que cria ou participa através da suainterpretação na criação ou recriação de obras de arte, queconsidera a criação como elemento essencial na sua vida(...), e que é reconhecido (...) enquanto artista,independentemente de estar ligado ou não por umvínculo laboral ou de associação.5

A fluidez do conceito apresentadocorresponde em larga medida à realidade vivida porquem actua no espaço das artes cénicas emPortugal, visto que este engloba profissões com

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carácter intermitente e com perspectivas de carreiradifusas, exercidas a partir de um constantedesdobramento da actividade dos agentesenvolvidos numa diversidade de funções assumidaspara assegurar a manutenção da actividadepropriamente artística. Informado pelo habitus, otrabalho artístico, ou a criação como elemento essencial

na vida do artista, poderá ser dimensionado comomotivo e motor que conduz a pluralização depráticas encetadas com a finalidade de constituiras condições da existência da profissão artística.

Farinha, que realizou um estudo sobre asidentidades sociais e as práticas profissionais doscoreógrafos em Portugal (2002), identificou que,simultaneamente ao sentimento de paixão pelaactividade, coexistem contextos de crise eprecariedade laboral e a defesa de uma situação deflexibilidade, mobilidade e exercício interdisciplinar.Identificou a existência de situações de multiempregopara a gestão da irregularidade, conferindo que amaioria dos artistas ligados à área da dança emPortugal não sobrevive da sua actividade criativa, massim de um emprego paralelo. A autora considera que,muito embora as artes sejam, por definição, aceitascomo actividades produtivas com uma função social,com um papel distinto do lazer, a identidade artísticaprofissional e o reconhecimento da mesma nãoderivariam dos critérios utilizados para a definiçãode grande parte das profissões.

Na recensão dos livros de Menger La profession

de comédien. Formation, activités et carrières dans la

démultiplication de soi (1997) e Portrait de l’artiste en

travailleur (2002), Borges (2003, p. 129-134) realizaum apanhado global sobre a contribuição do autorpara o estudo das características particulares dasprofissões ligadas ao palco. A formação éconsiderada por Menger como um passoimportante para a socialização e integração no meioprofissional artístico. O autor ressalta que a escolhadas profissões ligadas às artes cénicas é motivadaprincipalmente pelas recompensas resultantes danatureza e variedade de tarefas e actividadesartísticas, a autonomia individual, a aprendizagemincessante do eu, o reconhecimento do méritoindividual, prestígio e estatuto.

Actividade artístico-performativa

em Portugal

De acordo com Garcia (2007), podem seridentificadas algumas tendências recentes nomercado e nas políticas culturais no sector das artescénicas em Portugal, tais como o crescimentoglobal do sector, a desregulação do mercado detrabalho, os constantes processos de reformulaçãodas políticas culturais públicas e o incremento denovas áreas de actividade. Entre estas novas áreasé possível referir a difusão das artes do espectáculoatravés de Programas do Ministério da Cultura, osserviços educativos nos recintos de espectáculocom a preocupação nuclear de sensibilizar para asartes, a emergência de funções nas áreas técnicasde suporte, tais como a gestão, planeamento ecomunicação e o crescimento da formação (de basee contínua), sendo esta uma das tendências maismarcantes e um factor determinante na evoluçãodo emprego artístico.

A actividade no âmbito das artes cénicas emPortugal se caracteriza pela intermitência. Contudo,apesar da instabilidade laboral, a oferta deespectáculos em Lisboa e no Porto é constante.Os contratos de trabalho nas áreas ligadas àprodução das artes cénicas restringem-sehabitualmente ao tempo que antecede a montageme a concretização de espectáculos; normalmente,não há vínculo estável com uma empresa oucompanhia.

Em Portugal ainda não existe uma Lei deBases que regulamente as profissões ligadas aopalco ou uma instituição que emita carteirasprofissionais. De acordo com informaçõesrecolhidas no terreno através de entrevistas aagentes culturais, a maior parte dos actores nãoestá sindicalizada e, até muito pouco tempo, as suasestruturas representativas se revelavam muitofracas. Motivada pela necessidade de intervir natransformação das condições para o exercícioprofissional na área das artes cénicas, em 2004 foicriada no Porto uma Associação local deProfissionais.

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Actividade artístico-formativa na

área das artes cénicas e tipologias

de ensino

De acordo com Santos (2002), o conjunto dereformas educativas em Portugal não foi capaz deimplementar um sistema de educação artística debase no ensino genérico. Por outro lado, o marcopara a estruturação do ensino artísticoespecializado em Portugal foi, segundo afirmaSantos (2002), o Plano Nacional de EducaçãoArtística dos finais da década de 70, seguido poroutras iniciativas legislativas, como a publicaçãodo DL 310/83, que introduziu a reforma dosconservatórios públicos e instituiu o EnsinoArtístico Vocacional (Ensino Artístico Especializado),nas áreas da música e da dança, estabelecendo aseparação entre ensino artístico superior e nãosuperior. A seguir, a LBSE de 1986 e o DL 344/90 favoreceram o surgimento de escolasparticulares e cooperativas de nível básico esecundário no contexto do Ensino ArtísticoEspecializado, instituindo também a criação doEnsino Artístico Profissional.

O Ensino Artístico Especializado, um subsistemade ensino, integra-se no sistema regular de ensino(Decreto-Lei nº 310/83) como formação vocacionalministrada nas áreas da música e da dança em escolaspúblicas ou privadas; acompanha em paralelo asequência dos anos de escolaridade, (do 5º ao 12ºanos), funcionando em regime articulado com este.Neste regime, os alunos são dispensados de umconjunto de disciplinas na escola do ensino regular,cujas cargas horárias revertem a favor da frequênciano ensino artístico. O Ensino ArtísticoEspecializado integra também o regime integrado, ondeas escolas respondem pela totalidade do currículo(como é o caso da Escola de Dança doConservatório Nacional de Lisboa). Na área dadança há no país três escolas que respondem porcursos secundários de dança (nas cidades de Lisboa,Setúbal e Vila Nova de Gaia).

São destinatários dos Cursos ArtísticosEspecializados de nível secundário jovens com o9º ano de escolaridade. Os cursos têm a duração

de três anos lectivos e são ministrados emestabelecimentos especializados de ensino público,particular e cooperativo. Os cursos podem estardirigidos, consoante a área artística, para oprosseguimento de estudos de nível superior ou, nadupla perspectiva do prosseguimento de estudos einserção no mercado de trabalho. O plano de estudosdos cursos secundários de dança compreende trêscomponentes de formação: formação geral;formação específica; formação técnico-profissionalou técnica/artística. A avaliação dos alunos rege-sepelos normativos em vigor do ensino secundárioregular e por normativos específicos.

O ensino profissional inicia com a transiçãopara o secundário, formando profissionais de nívelintermédio. As escolas profissionais são tambémtuteladas pelo Ministério da Educação eacompanhadas pela Direcção Geral de FormaçãoVocacional. Destinam-se, principalmente, a jovensque, tendo concluído o 9º ano de escolaridade,pretendam obter uma qualificação profissional quelhes possibilite o ingresso no mercado de trabalho.Têm a duração de 3 anos e são promovidos porescolas profissionais públicas ou privadas e porescolas secundárias da rede pública.

Os planos de estudo dos cursos profissionaisintegram três componentes de formação: sociocultural,científica e técnica (sendo que esta incluiobrigatoriamente uma formação em contexto detrabalho). Os cursos estão distribuídos por 39 áreasde formação, entre as quais se encontra a Área dasArtes do Espectáculo; nesta área existem em Portugalseis instituições que respondem por 10 cursos (Dança– 2 cursos, Teatro – 4 cursos, Realização Plástica eTécnica – 2 cursos, Artes Circenses – 1 curso). Todasas instituições, com excepção de uma, são privadas.A oferta formativa, ao nível dos cursos profissionaisno âmbito das artes cênicas, se concentra em Lisboa(3 escolas) e no Porto (2 escolas), existindo tambémuma escola no Funchal.

A taxa global de crescimento da procura decursos profissionais no país entre 1992 e 1994 foide 55%, o que indica que a formação profissionalpassou a ser uma alternativa para os jovensportugueses.

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Uma outra vertente da formação nas artes cénicas,para a qual Garcia et al (2007) chama a atenção,principalmente em relação ao papel que desempenha(tanto no aumento da procura como na formação denovos profissionais do sector), é o Ensino não graduado

(cursos que não conferem certificação equiparável comos níveis de ensino de acordo com a Lei de Bases doSistema Educativo). Tais cursos são desenvolvidos porfundações, associações culturais, entidades privadas ecompanhias de teatro e dança e correspondem a umatipologia abrangente, evoluindo na dependência dasdinâmicas de procura.

Ao nível do Ensino Superior, a oferta de cursosno âmbito das artes cénicas é circunscrita ao teatroe à dança. Utilizando a base de informações doObservatório da Ciência e do Ensino Superior paraa recolha de dados sobre o Ensino Superior, Garciaet al indicam que em 2005 registam-se 11instituições de ensino na área de teatro do país (aresponder por 14 cursos, entre os quais cursosbietápicos, que representam cerca de dois terçosdo total, licenciaturas, especializações emestrados), maioritariamente na região de Lisboae Vale do Tejo (6 cursos), Centro (5 cursos) e Norte(4 cursos, concentrados no Porto). Na área dadança há duas instituições a ministrar 3 cursossuperiores (ambas situadas em Lisboa). Exceptouma das instituições, todas pertencem ao sectorpúblico. O número de alunos tem aumentado nosúltimos 15 anos, sobretudo, na área do teatro (nadécada de 90 o número de alunos dobrou, períodoem que a diferença do número de alunos diplomadosnas áreas do teatro e da dança não era muitosignificativa); nos cursos de dança o número dealunos tem se mantido nos últimos cinco anos,sendo dois terços do número total de alunos dosexo feminino e, na área da dança, 87%. Em termosgeográficos, cerca de 70% da totalidade dos alunosque frequentam o ensino das artes cénicas sãoregistrados na região de Lisboa e Vale do Tejo e20% no Porto. O número total de alunos de teatroem Portugal tem vindo a crescer desde 2003. Aconcentração dos cursos em apenas algumas dasregiões tende a limitar as possibilidades de acessoa alunos das regiões não contempladas.

A aproximação empírica ao universo

da formação em artes cénicas

A aproximação empírica realizada no estudoFormação e profissionalidade nas artes cénicas, interfaces

das dimensões pedagógica, artística e sócio-cultural:

tendências actuais em Portugal, que oferece bases paraa realização da palestra realizada nos SemináriosTransculturais Corpo e Cena na Contemporaneidade,promovidos pelo PPGAC da UFBA, visou a análisedas articulações e sinergias entre as políticasculturais e educacionais relativas às artes cénicas eas orientações artístico-pedagógicas, programáticase socioculturais de instituições que respondem pordiferentes tipologias de ensino (vocacional,profissional e superior) nas áreas da dança e doteatro. Equacionamos as conexões existentes entrea aprendizagem artística e a preparação dosestudantes para o contacto com o público, uma vezque as aprendizagens técnico-artísticas se inscrevemno corpo do intérprete como espaços constitutivosde um habitus específico e de competênciascomunicacionais ligadas ao trabalho de palco.

Formação no âmbito das artes

cénicas na região metropolitana

do Porto

Para identificarmos as orientações específicasa cada instituição nas diferentes tipologias deensino das artes cénicas, apelamos à recolha eanálise de um conjunto de dados documentais dasescolas que respondem pelo ensino profissional,vocacional e superior ao nível da dança e do teatrona região metropolitana do Porto. Caracterizamose analisamos os tipos de orientação formativarevelados e as interfaces desenvolvidas entre asdimensões pedagógica e artística, abordando osconteúdos produzidos nas entrevistas a direcçõese docentes, complementando as informaçõeslevantadas com dados provenientes de inquéritosaplicados a estes, a um conjunto mais alargado deprofessores e a estudantes dos dois últimos anosdos cursos observados. A recolha de dados foirealizada entre os anos de 2004 e 2006.

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Para iniciar a abordagem às escolas artísticas(Escola Profissional Academia Contemporânea doEspectáculo, Balleteatro Escola Profissional eGinasiano Escola de Dança – Escola Vocacional,Escola Superior de Música do Instituto Politécnicodo Porto e Escola Superior Artística do Porto),apresentamos quadros síntese para a caracterizaçãoglobal das mesmas.

Balleteatro Escola Profissional: a

dimensão estética e endogenamente

orientada das práticas criativas e a

acção frente ao meio como

afirmação de uma particularidade

artística

Fundada em 1989 no contexto das EscolasProfissionais, estabelecida pelo ME. Foi criada apartir do Balleteatro Contemporâneo do Porto,fundado em 1983, estrutura que na sua origemobjectivou a constituição de uma plataforma paraa criação e produção artística. A fundação da escolateve como motivo o lançamento de programas deformação informados por uma vertentecontemporânea da dança, com um vinco naexperimentação. A experiência formativa atravésda qual foram lançadas as bases para a EscolaProfissional foi o Centro de Formação, estruturaanterior não integrada no sistema educativo. Foifundado e é dirigido por profissionais ligadas à

criação artística que realizaram especialização emdança fora do país. O BT é uma estruturapolivalente, que assume num mesmo projecto aformação (cursos profissionais e centro deformação, com actividades para um públicomultietário), a criação artística (através do BTCompanhia de Dança associada) e a programação(a sala de espectáculo alberga com relativaregularidade produções de dança contemporâneae performances multidisciplinares).

Cursos profissionais promovidos (de nívelIII): Curso Profissional de Teatro e Curso Profissional de

Dança.

Academia Contemporânea do

Espectáculo: fomento de

disposições para a conquista de

espaços para o exercício

profissional

A Academia Contemporânea do Espectáculocompleta o conjunto das duas Escolas Profissionaisna área das artes cénicas existentes na regiãometropolitana do Porto. Fundada em 1990 porprofissionais de teatro do Porto, surgiu na sequênciade uma parceria de companhias teatrais com oMinistério da Educação, a Fundação Gulbenkian,a Câmara Municipal do Porto, o Governo Civil e aFundação Engenheiro António de Almeida. Em2002, a ACE constituiu-se como unidade de

QUADRO SÍNTESE DA RECOLHA DE DADOS

Estruturas

profissionais

Categorias de

inquiridos

População

estimada

Nº de pessoas

previstas

para

inquirir

Inquéritos

distribuídos

Inquéritos

respondidos

Contactadas

para

entrevista

Entrevistados Entrevistados

que

responderam

ao inquérito

A) Escolas do Ensino Artístico Especializado

1. Directores de Escolas

e Coordenadores de

Cursos

13 10 10 10 9 9 8

2. Estudantes (dos dois

últimos anos dos cursos)

150 100 130 105 - - -

3. Docentes 120 40 100 26 14 14 10

B) Estruturas Profissionais de Teatro e Dança

1. Direcções de

Estruturas Profissionais

de Dança e Teatro

50 20 40 25 20 15 23

2. Actores/Bailarinos 150 40 90 26 11 8 6

3. Profissionais de

Programação e Produção

20 10 6 4 6 5 4

Total 500 200 376 196 60 50 41

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produção teatral – ACE/ Teatro do Bolhão apoiadapela Direcção Geral das Artes/ Ministério daCultura, ocasião em que passou a assumir-se comoestrutura simultaneamente orientada para aformação e produção teatral. A actividade da ACEintegra a formação (Escola Profissional) e aprodução teatral (Companhia de Teatro),assumindo uma ligação orgânica entre as duasestruturas, ambas regidas pelos objectivos defomentar o tecido profissional e dinamizar a vidacultural local.

Cursos promovidos (de nível III): Interpretação

(formação de actores); Realização Plástica (formaçãode cenógrafos, figurinistas e aderecistas); Realização

Técnica (formação de iluminadores, sonoplastas etécnicos de cena).

Ginasiano Escola de Dança:

ensino centrado no aluno e

intervenção sociocultural

O Ginasiano é uma instituição privada comestatuto de utilidade pública, com existência legaldesde 1987, localizada em Vila Nova de Gaia; estáinserido na rede de escolas do Ensino ArtísticoEspecializado. Possui uma estrutura de ensinoartístico reconhecida oficialmente, com planos deestudos próprios. Propõe a formação deprofissionais na área de dança; desenvolvepropostas de ligação à comunidade local(actividades dirigidas a diferentes níveis etários,com componentes físicas, culturais, lúdicas eartísticas); cria e monta espectáculos com os seusestudantes, envolvendo também profissionais comexperiência. Desenvolve, para além da actividadecurricular, projectos de sensibilização e formaçãoartística dirigidos a estudantes do ensino básico esecundário e mantém uma actividade regular deprodução de espectáculos, com a comunidadeescolar no seu conjunto e com a Kale CompanhiaEscola, estrutura de produção associada, criadapara fomentar espaços correlatos ao contextoprofissional de trabalho.

Cursos promovidos (ensino articulado):

Curso Vocacional de Dança: Curso Básico – 2º e 3º

Ciclos e Cursos Secundários: Formação de Bailarinos eSecundário Especializado Artístico, Vertente Dança

(experiência pioneira no país, criada em 1998 coma finalidade de alargar a oferta artístico-formativa,procedendo a flexibilização do acesso).

Escola Superior de Música e Artes

do Espectáculo do IPP: prática

teatral como exercício colectivo

Fundada em 1994, resultou da extinção daEscola Superior de Música (ESM) criada em 1983.É uma unidade orgânica do Instituto Politécnicodo Porto. Foi criada com o objectivo de alargar oseu âmbito de formação, de modo a responder anecessidades do desenvolvimento local. O CursoSuperior de Teatro da Escola Superior de Música eArtes do Espectáculo teve seu início no ano lectivo1993/1994 com os ramos de Interpretação e deProdução. A partir do ano lectivo 1998/1999, aESMAE reformulou os seus cursos, organizando-os em dois ciclos, bacharelato e licenciatura, emfunção do disposto na Lei de Bases do SistemaEducativo (Portaria nº 413-A/98).

Cursos promovidos: Teatro, LicenciaturaBietápica, opção de Interpretação (1º ciclo) e ramode Estudos Teatrais (2º ciclo); opção de Técnica e

Produção Teatral: Design de Cenografia (1º Ciclo),Design e Produção Teatral – Design de Cenografia (2ºCiclo), Design de Figurino (1º Ciclo), Design e Produção

Teatral – Design de Figurino (2º Ciclo), Design de Luz

e Som (1º Ciclo), Design e Produção Teatral – Design de

Luz e Som (2º Ciclo), Direcção de Cena e Produção

Teatral (1º Ciclo), Design e Produção Teatral – Direcção

de Cena e Produção Teatral (2º Ciclo).

Curso de Teatro da Escola

Superior Artística do Porto

(ESAP): orientação estético-

artística

A partir da Cooperativa de Ensino SuperiorArtístico Árvore I, criada em 1982, passou adesignar-se como Escola Superior Artística doPorto, sendo a sua entidade tutelar a mesma

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cooperativa que passou a designar-se porCooperativa de Ensino Superior Artístico, CRL(CESAP), instituição de utilidade pública, sem finslucrativos. A ESAP é uma escola associada daUnesco, o que permite o desenvolvimento deacordos bilaterais com universidades europeias, noâmbito do Programa Sócrates e Leonardo demobilidade internacional de docentes e estudantes.

Abordagem formativa em

diferentes tipologias de ensino das

artes cénicas

As escolas em diferentes tipologias de ensinodas artes cénicas em Portugal tendem a privilegiaruma formação artística de carácter eclético, compoucas excepções, o que não quer dizer, na opiniãode Garcia et al (2007), que as escolas não apelema tendências mais contemporâneas.

São notórias as diferenças de orientação entreas duas escolas profissionais no âmbito das artescénicas na região metropolitana do Porto: aformação promovida pelo BT concentra-se napreparação estético-artística do intérprete,enquanto que a formação desenvolvida pela ACEarticula de forma incisiva a preparação técnico-artística com o ensino de aspectos pragmáticos daprofissão, pretendendo proporcionar odesenvolvimento de uma visão contextualizada daprática teatral.

As diferenças de orientação são em certamedida informadas por nuances do habitus artísticoque profissionais da dança e do teatro tenderão adesenvolver, devido às características subjacentesao treinamento técnico de cada área e às diferençasintrínsecas a estas formas de expressão cénica.Grosso modo, na dança, se manifesta uma forteacentuação de factores endógenos da aprendizagem(treinamento técnico); haverá em certa medida umpredominar do trabalho individual, tendência quetende a ser alterada a partir da presença deabordagens do movimento que apelam à interacçãocorporal entre intérpretes, ao toque e àimprovisação colectivamente explorada (tal comono contacto-improvisação e no Método Laban);

comparativamente, no teatro, as componentes dacontracena e do conflito tendem a criar ascondições para a geração de disposições artísticasdiferenciadas, apelando de forma mais evidente aosfactores exógenos relacionados com a dimensãopragmática das profissões ligadas ao palco.

O habitus na dança é produto de tradiçõesartísticas que encontraram sistematização atravésda formulação e transmissão das técnicas, com umabase de ensino vincadamente oral, de onde não épossível alienar a presença e o papel dos modelos,a evocação das disposições elementares daaprendizagem (as respostas motoras, aafectividade, a imitação) e a interacção entre mestree discípulo. Tal habitus é firmemente sedimentadoporque, muitas vezes, a aprendizagem em dança éiniciada em tenra idade (o que expõe o bailarino aum longo processo de inculcação), envolvendointenso, complexo e profundo trabalho corporal.

A aprendizagem técnica em dança envolve avivência de repertórios, num equacionar dodomínio de vocabulários artísticos que se traduzemem obras coreográficas. A dança institui umapluralidade de sentidos e fomenta a abstracção. Oteatro não foge a estas características, masestabelece uma comunicação de carácter maisobjectivo. Estas nuances de tradições e dedisposições, que se foram construindo e que sereconstroem ao longo de percursos de formação,influenciarão a presença de diferentes tónicas nasescolas, sempre sujeitas a reorientações, de acordocom a presença de maiores ou menores consensosno interior da comunidade de formadores. O quefaz uma instituição de ensino artístico ser única éa (re)produção/ (re)criação de determinadosmodelos mediada pela dinâmica formativa interna,em linhas de força introduzidas pelosintervenientes que ocupam posições de liderançae pelo conjunto de agentes, gerando uma culturade escola, elo de ligação entre o contexto intrínsecoe extrínseco com o qual pretende dialogar.

Quanto à Escola Vocacional de Dança(GED), as afirmações reunidas dão-nos elementosque endossam a constatação de que a orientaçãoformativa desta escola faz frente à visão de escola

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vocacional declarada pelo ME (que postula que talsistema deve dar resposta ao desenvolvimento dejovens com manifesto talento artístico). Observamosa convergência entre a necessidade de adequar aoferta da escola aos diversificados perfis dosestudantes (cuja motivação para a frequência no cursopoderá ou não estar associada ao interesse peloexercício profissional no contexto das artes cénicas)e o desenvolvimento de uma perspectiva educacionalinformada pelos pressupostos da Educação pela Arte,onde finalidades ligadas ao desenvolvimento pessoale social do jovem são notoriamente acolhidas nasaprendizagens artísticas, subordinando a aquisição decompetências técnicas específicas a uma visão dedesenvolvimento humano. É problematizada peladirecção do GED a tendência à saturação do mercadode trabalho e a necessidade de flexibilização da missãodo ensino vocacional de dança.

Indagados sobre as suas disciplinas depredilecção, os alunos do BT, ACE e GEDreclamam da baixa incidência das disciplinasteóricas. Apresenta-se nos alunos de dança deambas as escolas (BT e GED) uma maior apetênciapara as disciplinas orientadas para a preparaçãotécnico-artística, o que contribui para o espessarda ideia que esta área artística tem comocaracterística uma acentuada orientação endógena,que se reflecte nas disposições artísticasmanifestadas pelos alunos.

Identificamos que os alunos de teatro daescola profissional BT tendem a valorizar de formamais evidente a possibilidade de adquiriremcompetências psicofísicas ligadas à interpretação(o que reflecte a forte presença do trabalho corporalna formação ministrada); os alunos de dança damesma escola dividem o mesmo factor depredilecção com a capacitação técnica, o que podereflectir a influência das técnicas contemporâneasque se apresentam na formação, apelando àdimensão somática do movimento corporal, e aconjugação da aprendizagem de códigos demovimento com a finalidade de adquirircompetências físicas de carácter mais global.

Os alunos de interpretação da ACE revelamuma inclinação para valorizar as possibilidades de

autoconhecimento que as disciplinas práticasproporcionam. No GED, se apresenta uma grandemargem de subjectividade das respostas relativasàs razões atribuídas à preferência por determinadasdisciplinas, respostas estas que se aproximam davalorização das possibilidades de autoconhecimentoe aquisição de competências psicofísicas, o quetambém reflete o impacto das novas abordagensdo corpo, que terão vindo a influenciar mudançasdisposicionais nos bailarinos (que tendem nacontemporaneidade a substituir a valorização dodomínio formal pela valorização dos processos deapreensão sensível do movimento). Contudo, odomínio formal, imprescindível ao desenvolvimentodo trabalho cénico, não estará necessariamente nopólo oposto da integração da dimensão somáticana apreensão e desenvolvimento corporal e dosvocabulários de movimento. É possível afirmar queas abordagens que apelam às dimensões orgânicae sensível da fisicalidade contribuem para umdomínio mais profundo, completo e consciente daacção cénica de actores e bailarinos.

As diferenças entre as duas escolas superioresde teatro do Porto ligam-se em parte à oferta quedesenvolvem: pluralidade de opções no Curso deTeatro da ESMAE e concentração da oferta no Cursode Teatro da ESAP. Ao nível da abordagemformativa, na ESMAE é evidente o enfatizar daprática teatral propriamente dita, assumindo umainterligação entre as componentes técnicas e criativasassociadas fortemente à realização profissional deespectáculos. Já na ESAP é manifesta uma orientaçãoformativa mais generalista. Verificamos que os seusinterlocutores problematizam a proporção exigida noensino universitário entre disciplinas teóricas epráticas, manifestando a necessidade de uma presençamais significativa da segunda componente em termosde carga horária. É clara a missão defendida para ocurso: formar actores e sensibilizar os formandos paraum futuro exercício ao nível da encenação. Oenquadramento da ESMAE no ensino politécnico(uma variante do ensino superior, assumidamenteorientada para a formação profissional) potencia umaincorporação mais substancial da componenteprática.

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Tal como nas escolas profissionais, o apelo àresposta singular do aluno é um aspecto nuclearno ensino desenvolvido pelas escolas superioresde teatro estudadas. Muito embora ao nível dasaprendizagens artísticas, a técnica, a criatividade e odesenvolvimento de uma visão de contexto são aspectosque se articulam, é possível apreender diferentestónicas formativas nas orientações assumidas porescolas nas diferentes tipologias.

Apesar da ACE ser uma escola secundária,recebendo estudantes mais jovens do que os queacedem às escolas superiores, há uma valorizaçãomais evidente da dimensão pragmática do trabalhoartístico do que a que se evidencia nas escolassuperiores. A intercolaboração entre alunos,indicada pela ESMAE, é descrita principalmenteem termos associados aos processos de criação,enquanto que na ACE, em termos associados àprodução. Por outro lado, a pluralidade de opçõesoferecida pela ESMAE, onde uma das áreascontempladas é Direcção de Cena – Produção, nãosó permite, como realça que esta vertente sejadesenvolvida e assumida, contudo, especificamentepelos estudantes que fazem esta opção. Parece-nosque, quanto mais especializante for a formaçãoartística, menor será a probabilidade dos alunos seorientarem para a diversificação de tarefas nocontexto profissional que se evidencia como umanecessidade do próprio mercado de trabalho.

Aprendizagens artísticas ligadas à

fisicalidade

Em cada uma das escolas nas diferentestipologias (ensino profissional, ensino vocacionale ensino superior) se apresentam diferenciadosconjuntos de disciplinas ligadas à fisicalidade; nosplanos de estudo dos cursos secundários de dançado GED (ensino vocacional), a leccionação dasdisciplinas de Técnica de Dança Clássica e deTécnica de Dança Moderna partilham a mesmacarga horária semanal, com aulas diárias; no cursoprofissional de dança do BT, a carga horária deTDM é ligeiramente superior à de TDC.

No contexto da disciplina de Técnica deDança Moderna em ambas as escolas, os alunos

têm contacto com uma diversidade de abordagens,integrando, entre outras, as Técnicas Cunhighan,Limon, Graham, Release e elementos de Contacto-Improvisação, e sínteses pessoais dos professores. NoGED, as aulas são ministradas predominantementepor professores fixos e alternadas por acções deformação, com professores convidados nacionaise estrangeiros. No BT, as aulas de Técnicas deDança se desenvolvem numa estrutura modular,com alternância entre professores da escola eprofessores convidados, que normalmentedesenvolvem projectos coreográficos com osalunos. Parte significativa dos docentes de TDM eContemporânea das escolas estudadas exploramcomo elemento transversal no ensino a exploraçãode abordagens somáticas de diferentes procedências(orientadas para o trabalho de consciência corporal),elementos do Método Laban e elementos detrabalho de abordagens de matriz oriental.

Nos cursos de teatro, a presença deaprendizagens ligadas ao corpo é bastantesignificativa e integra, simultaneamente, elementosde trabalho direccionados para o desenvolvimentode competências expressivas e o treinamentocorporal propriamente dito. A presença de docentescom formação em dança é significativa. O amploespaço dedicado ao desenvolvimento dafisicalidade e a incorporação de técnicas e práticascorporais de matriz oriental e de educaçãosomática, integradas no conjunto de técnicas dedança e movimento, são partilhados por todas asescolas (BT, ACE). Perspectivando o treinamentocorporal como factor transversal às diferentesabordagens formativas e artísticas desenvolvidaspelas escolas de diferentes tipologias estudadas,solicitamos aos estudantes, através do inquérito queaplicamos, que indicassem aprendizagens ligadasao corpo que consideram fundamentais.

Os alunos de dança são mais específicos naindicação de aprendizagens ligadas ao corpo (aoreferir as competências psicofísicas adquiridas),tendendo a realizar observações maispormenorizadas, relativas a aspectos queextrapolam o domínio e a reprodução de códigosde movimento cénico, relevando a valorização da

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dimensão cinestésico-perceptiva. Os alunos deteatro parecem valorizar mais a dimensão formalda aprendizagem corporal.

Entre os alunos de dança, 25% indicam odesenvolvimento da consciência corporal comofactor importante nas aprendizagens ligadas aocorpo, 12,5% o domínio corporal, 12,5% acondição física, 25% o exercício dos domíniospsicofísicos (concentração, foco, presença, domíniopostural, autocontrole, autoconfiança) e 12,5%indicam a prevenção de lesões. A distribuição derespostas revelada pelos estudantes de dançaevidencia a diversidade de aspectos que aaprendizagem nesta área elucida em termoscorporais. Tal diversidade será fruto detransformações das disposições que moldaram omodelo clássico de bailarino, em cuja origem ovirtuosismo e o domínio técnico em aproximaçãofiel ao modelo são factores determinantes.

A emergência das técnicas de dança modernase contemporâneas (processo iniciado no princípiodo século XX) conduziu a uma diversificação decódigos e a uma gradual transferência de umaênfase na reprodução de códigos para a construçãode processos de aprendizagem mais apropriativose individualizados. Tal como pudemos observar,as abordagens contemporâneas de dança têmtambém um impacto ao nível do treinamento físicode intérpretes de teatro.

Quanto às escolas superiores de teatro da regiãometropolitana do Porto, no contexto de disciplinasligadas ao treinamento corporal é apresentada umaalargada gama de práticas (Aiki-Do, MovimentoCénico, Dança e tópicos especiais relacionados como trabalho de interpretação, tais como MáscaraNeutra, Clown, entre outros). Verificamos que oconjunto global de escolas superiores de teatro daregião metropolitana do Porto se insere nestatendência: acentuada presença de trabalho corporalna preparação do actor, envolvendo a integração detópicos ligados ao fomento da fisicalidade,exploração expressiva, codificação do movimento,vivência de abordagens somáticas e de abordagenscorporais de procedência oriental, tal como nasescolas profissionais de teatro (de nível secundário).

Apreendemos que assim como nos cursosprofissionais de teatro, a disciplina de movimentoabrange, nas escolas superiores observadas,conteúdos relativos às técnicas de movimentocontemporâneo que apelam simultaneamente avocabulários específicos de dança e à dimensãoligada à consciência cinestésica (contacto econsciencialização de sistemas anátomo-fisiológicos), integrando também o Método Laban(cujo núcleo é a criação de espaços para aexperimentação individual e colectiva depossibilidades de acção e expressão física). Épartilhada uma orientação quanto ao exercício decompetências relacionadas com a improvisação,observação e composição do movimento,objectivando fundamentalmente que os alunosdesenvolvam percursos que têm como ponto departida a descoberta e o reconhecimento corporal.

Os profissionais de dança que, em ambas asescolas superiores, respondem pela disciplina demovimento exercem simultaneamente trabalhos aonível da criação coreográfica, aspecto que favoreceabordagens globalizantes do trabalho corporal, emrelação às componentes técnicas e criativas. Oscontextos de aprendizagem corporal registadospelos alunos das escolas superiores incidem deforma mais notória na identificação daaprendizagem técnica do que na aquisição decompetências psicofísicas de ordem mais global,contrastando com as evidências apresentadas pelosalunos das escolas profissionais de nível secundário.

Formação em artes cénicas na

região metropolitana do Porto:

projectos singulares e a

singularidade do conjunto

As orientações pedagógicas das escolasartísticas encontram as suas bases nas finalidadessubjacentes às práticas artístico-formativas,criadoras de disposições específicas, onde aabordagem à individualidade do aluno tende a terum espaço destacado. Na contemporaneidade dasartes performativas, tendem a ser muito valorizadasas componentes subjectivas da formação,

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relacionadas com o papel da implicação e com oexercício inventivo que subjaz às práticasinterpretativas; o habitus, cultivado nos estudantesde artes cénicas, tende a se apresentar comodisposição individualista, enfatizando a afirmaçãoda singularidade, originalidade e autonomiacriativa. As diferenças de orientação formativa dasescolas artísticas estudadas são informadas pornuances do habitus artístico que profissionais dadança e do teatro tenderão a desenvolver devidoàs características subjacentes ao treino técnico decada área e às diferenças intrínsecas a estas formasde expressão cénica.

Uma abertura deselitizante das artes pode serconsiderada como aspecto comum entre as escolasde diferentes tipologias estudadas (profissionais,vocacional e superiores), seja pela inexistência deum discurso sobre um suposto carácter inato dotalento artístico, seja pela criação de condições paraum acesso mais alargado do jovem a este tipo deensino (através da diversificação da oferta e daadmissão de alunos não detentores de disposiçõesartísticas anteriormente adquiridas), seja, naintenção de actuar na dinamização da ofertacultural, através da captação de novos públicos (apartir da produção de espectáculos e realização deactividades de complemento de formação na áreaartística dirigidas à comunidade). Tal aberturapoderá ser considerada, por um lado, como produtode convicções pedagógicas e artísticas, e, por outro,como estratégia para uma adequação à realidadeapresentada no contexto local e nacional, frente auma débil presença de formação cultural e artísticade base nas populações juvenis e frágil mercadode trabalho na área artística.

Coexistem no mesmo subcampo perspectivasmais claramente orientadas para a dimensãoexógena da actividade (profissionalização,projecção e impacto no meio) ou para a dimensãoendógena (desenvolvimento pessoal, pesquisa,experimentação, criação), mais notoriamenteassociáveis ao teatro no primeiro caso e à dançano segundo.

Ambas as escolas superiores estudadasdemonstram estar sensibilizadas e atentas às

evidências do mercado de trabalho, e interessadasem concretizar a estruturação de outros ramos parao curso de teatro, que respondam simultaneamenteà necessidade de oferecer o suporte científico epedagógico para o trabalho ao nível do ensino doteatro e das actividades de animação sociocultural,identificando a existência de um apelo que vem domeio envolvente, através de solicitações realizadaspor instituições educacionais e culturais.

O fomento de disposições artísticas encontra,como espaço privilegiado, os interstícios dacomponente relacionada com a aprendizagemtécnico-expressiva e as instâncias ligadas àrealização de projectos artísticos dirigidos àapresentação pública. A observação dos territóriosda formação artística oferece pistas para aidentificação de projectos culturais que extravasamas fronteiras escolares, orientadas com maior oumenor intensidade para a defesa do campo artístico,ou para a sua permeabilidade a outros campossociais, constituindo-se tal processo comorecontextualização do habitus e das tradiçõesartísticas.

A pluralidade de frentes de intervenção pareceser uma das características desenvolvidas pelasescolas artísticas estudadas, forjadas através de suasculturas organizacionais de base voluntarista efortalecidas pelas parcerias institucionais cultivadassobretudo ao nível local (autarquias e instituiçõesculturais). Uma das escolas superiores e ambas asescolas profissionais possuem salas de espectáculose estruturas de produção artística associadas, o quepermite aos seus estudantes a criação dereferências sobre a prática profissional esimultaneamente uma intervenção cultural paraalém das fronteiras escolares.

As evidências que permitem algumageneralização são reveladoras de uma valorizaçãoda experiência artística em si mesma, o que, decerta forma, se sobrepõe à luta por condiçõesprofissionais adequadas. A possibilidade derealização em termos pessoais, ligando-se esta aoautoconhecimento e ao autoaprimoramento, é umdos posicionamentos mais presentes no conjuntototal de estudantes, possivelmente acentuada pela

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vivência de formas de abordagem do corpo e domovimento centradas na experiência sensível e naintegração psicofísica.

Tanto em estudos de carácter artístico comoem abordagens de cunho sociológico epsicopedagógico, a abordagem das representaçõesdo Cor po como instância fundamental daaprendizagem artístico-performativa oferece pistasessenciais para apreensão das transformaçõescontemporaneamente operadas ao nível do ensinoe da actividade profissional das artes cénicas,particulares a contextos locais ou transversais adiferentes culturas teatrais ao nível global.

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