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Autora: Daniela Palma Principal trabalho sobre a obra e a biografia do fotógrafo Hans Gunter Flieg.
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1
DANIELA PALMA
FOTOGRAFIA: ARTE E SOBREVIVÊNCIA A trajetória de Hans Gunter Flieg
Dissertação apresentada à Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do Título de Mestre, sob a
orientação do Prof. Dr. Boris Kossoy.
São Paulo
2003
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_____________________________________
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5
RESUMO
A proposta desta dissertação é um exame da produção fotográfica de Hans
Gunter Flieg, desde da chegada ao Brasil, no final de 1939, até o fim de suas atividades
profissionais, na década de 1980. Foram utilizados dois eixos para o desenvolvimento
das análises. O primeiro toma como centro a relação do fotógrafo estrangeiro com o
país tropical em vias de modernização, privilegiando as temáticas da cidade de São
Paulo, as viagens pelo Brasil e os retratos. Na seqüência, verifica-se a configuração de
uma estética moderna em suas imagens, produzidas na esfera da indústria cultural
nascente no país, a partir da atuação nos campos da fotografia de arquitetura, de
indústria e de publicidade. A natureza dupla da obra de Flieg - o empenho artístico e
artesanal na produção de imagens ricas em significações e a necessidade de sobreviver
integrando-se ao mercado - é traço comum à parte da produção de fotógrafos imigrantes
que desempenharam um papel renovador na fotografia brasileira do século XX.
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7
ABSTRACT
This work propose to examine the production of Hans Gunter Flieg in
photography, since his arrive in Brazil, in 1939, until the end of his professional
activities in the 1980s. Two axis had been used for the analysis’ development. The first
one has focus on the relation of the foreign photographer with the tropical land that was
about to modernize itself, and privileges as themes São Paulo city, the travels through
Brazil and the portraits. In sequence, examines the configuration of a modern aesthetic
in his images, produced in the sphere of the rising brazilian cultural industry, from his
performance in archtectural, industrial and advertising photography. The double nature
of Flieg’s work – the artistic and artisanal interest present in the production of images
full of signification and the necessity in surviving through the integration to market – is
a commom trace in part of the immigrant photographers works that represent a
renovation in the brazilian photography the the XX’s century.
8
9
À Laura.
Por ela
e para ela.
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11
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos sinceros a pessoas e instituições que tornaram este trabalho
possível:
Hans Gunter Flieg, fonte de tudo, pela dedicação, amabilidade e generosidade com que
me abriu seu baú de imagens, objetos e histórias;
Boris Kossoy, meu orientador e grande referência para mim e para a fotografia
brasileira, obrigada pelo estímulo, carinho e confiança depositada;
Cremilda de Araújo Medina e Marcos Silva, pelas leituras atentas e sensíveis;
Adson Vasconcelos, pela seriedade na revisão, amizade e alegria de sempre;
Marisa Masumi Komura e Walney Rozemberg Alves, pela ajuda fundamental e serena
nas entranhas do arquivo de Flieg;
Museu da Imagem e do Som de São Paulo, pela reprodução das fitas de depoimentos;
Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, nas figuras das gentilíssimas Marília Freidenson,
Gaby Becker e Paulina Faiguenboim, por me ceder o depoimento e outros materiais;
Arquivo do Estado de São Paulo, pelo atendimento atencioso de seus funcionários;
Instituto Martius Staden, pela presteza no fornecimento de cópias do material de seu
arquivo;
Fausto Couto Sobrinho, pela prontidão no empréstimo de equipamentos;
Ilona Simon Strimber , pelo contato com o Museu Judaico de Berlim;
Bárbara Heller e Helouíse Costa, pelas leituras dedicadas da primeira versão do projeto;
12
Heliana, pelo carinho com que se desdobrou em cuidados com a Laura, para me permitir
dedicar tempo a este trabalho;
Ligia e Miguel, meus pais, por tudo que me propiciaram, pelo carinho e por
compreenderem de forma tão tranqüila minhas ausências,
Lauro, que dividiu cada momento desde as primeiras idéias, me deu incentivo,
tranqüilidade, confiança e muito amor.
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Sumário
Apresentação..................................................................................... 17
Capítulo 1: Da Alemanha ao Brasil................................................ 23
1.1) Na Alemanha, entre duas guerras.................................. 26
1.2) Destino: Brasil................................................................ 45
1.3) Panorama da fotografia no Brasil................................... 53
1.4) Flieg, fotógrafo................................................................ 60
Capítulo 2: O fotógrafo estrangeiro................................................ 69 2.1) Os europeus e a iconografia sobre o Brasil.................... 72
2.2) São Paulo, a cidade-refúgio............................................ 80
2.3) As viagens em busca de um país.................................... 122
2.4) Ver o outro: galeria de retratos e tipos........................... 143
Capítulo 3: Um olhar moderno........................................................ 171
3.1) Modernidade e fotografia............................................... 173
3.2) Uma nova perspectiva na fotografia de arquitetura........ 179
3.3) A beleza da máquina: reportagens sobre indústria......... 193
3.4) Fotografia e publicidade: a celebração dos objetos........ 213
Considerações Finais........................................................................ 235
Bibliografia........................................................................................ 238
14
15
Portanto, é fonte de grande virtude para a mente
exercitada aprender, pouco a pouco, primeiro a mudar em
relação às coisas invisíveis e transitórias, de tal modo que
depois ela possa deixá-las para trás completamente. O homem
que acha doce seu torrão natal ainda é um iniciante fraco;
aquele para quem todo solo é sua terra natal já é forte; mas
perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é uma terra
estrangeira. A alma frágil fixou seu amor em um ponto do
mundo; o homem forte estendeu seu amor para todos os
lugares; o homem perfeito extinguiu tudo isso.
(Hugo de Saint Victor, monge que viveu na Saxônia
no século XII. Apud SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e
outros ensaios.)
16
17
Apresentação
Desde os primeiros contatos entre os dois continentes, o Brasil já foi enquadrado,
prismado, traçado, colorido e focado por penas, pincéis e lentes de muitos
estrangeiros. Viajantes que chagaram e se foram, imigrantes que chegaram e ficaram.
Estes olhares ádvenas desempenharam papel fundamental na construção de
imaginários sobre o país.
A literatura sobre iconografia estrangeira no Brasil até o século XIX é
razoavelmente consistente e permite a identificação de processos de produção e
perpetuação de modelos, bem como, de certas particularidades dentro do que foi
produzido nas artes visuais por viajantes e imigrantes. E no âmbito do século XX e da
arte moderna, podemos identificar processos semelhantes? E especificamente no
campo fotográfico, é possível identificar a presença estrangeira na constituição, não
tanto de uma estética, mas, principalmente, de um imaginário moderno sobre o Brasil?
É justamente a partir destas questões que nasce a proposta deste livro. A
fotografia ganha no século XX forte status de atividade de viajantes – do
fotojornalismo à fotografia de turismo. Se se passou a observar constantes
deslocamentos de fotógrafos pelo mundo; é também certo que muitos imigrantes
encontraram na fotografia um meio de sobrevivência. Principalmente a partir da
década de 1920, o incremento das indústrias de mídias impressas no Brasil criou
demandas por imagens. Depois, uma grande leva de imigrantes começava a chegar ao
país em função da guerra na Europa e do nazismo. Assim, muitos fotógrafos europeus
passaram a atuar no Brasil na primeira metade do século XX, principalmente nas áreas
mais aplicadas ao mercado cultural (fotojornalismo, publicidade, fotografia industrial,
retratos, fotografia de arquitetura e trabalhos vários de documentação).
Dentro deste quadro, o caso de Hans Gunter Flieg é representativo de um grupo
maior de fotógrafos imigrantes que desenvolveram seu trabalho como meio de
sobrevivência, integrando-se em vários ramos de uma indústria cultural que começava
a se estruturar até meados do século XX nos principais centros urbanos do país.
Mais especificamente, posso dizer que a atuação profissional de Flieg, que se
inicia em 1940 e se encerra no final da década de 1980, não era, originalmente, parte
de um projeto artístico ou político predefinido, nem se articulava a algum tipo de
agremiação como o caso dos fotógrafos fotoclubistas. Assim, no conjunto das imagens
18
de Flieg, a modernidade não era programática, o fotógrafo permitia-se entrar e sair
dela, quando desejasse ou considerasse necessário. A tensão entre antigo e novo, de
forma manifesta ou latente, está sempre presente nos trabalhos de Flieg, eles carregam
as contradições e dialogam, diacrônica e sincronicamente, com o tempo de seu fazer.
Acredito, desta forma, que o presente trabalho possa ajudar no entendimento da
modernidade fotográfica nos trópicos, que se insere dentro de um quadro mais amplo
do próprio funcionamento e uma cultura moderna no Brasil.
Mais especificamente, espero que esse volume chame a atenção para a obra de
Hans Gunter Flieg, um fotógrafo primoroso que aparece citado timidamente dentro da
literatura da fotografia, das artes visuais e da publicidade brasileiras, sem que nunca
tenham se desenvolvido estudos mais preocupados com o teor da obra e de seu papel
dentro do ambiente fotográfico no Brasil.
No processo desta pesquisa, pude contar com um arquivo primoroso, organizado e
bastante documentado, que Hans Gunter Flieg vinha guardando e cuidando ao longo
de algumas décadas.
Além disso, foi essencial a participação direta e intensa do próprio fotógrafo, que,
durante meses, dedicou muitas de suas tardes a me contar episódios que sua memória
trazia à tona. No apartamento da rua Antonia de Queirós, cercada por um mar de
pilhas de papéis, envelopes, caixinhas, objetos e livros, tive o privilégio de ouvir tantas
histórias. Histórias que levavam a outras histórias e que levavam a outras mais. Nada
era narrado de forma direta, havia sempre um intróito que remetia a eventos
inicialmente remotos, mas que, no decorrer da fala normalmente calma, com discreto
sotaque, iam se alinhavando e mostrando a complexidade de um pensamento.
Assim, no texto que apresento, procuro trazer parte dessas histórias e outras
histórias nascidas a partir delas. Com este expediente busco modestamente mimetizar
um pouco a forma de pensar do autor estudado, tirando-o, dessa maneira, da condição
exclusiva de objeto e permitindo - para usar a expressão de Edward Said - que ele
apareça como um sujeito escrupuloso nesse trabalho.
A dissertação está estruturada em: apresentação, três capítulos, considerações
finais e bibliografia.
O capítulo 1, Da Alemanha ao Brasil, traz uma linha biográfica de Hans Gunter
Flieg costurada num painel de contextualização histórica da situação política, social e
19
cultural da Alemanha no período do entreguerras e do Brasil na virada dos anos de
1930 para 1940, época da chegada do fotógrafo ao país, com foco especial na questão
da imigração. O capítulo finaliza com um panorama histórico da fotografia brasileira,
principalmente em São Paulo, do século XIX até os anos iniciais da atividade de Flieg,
na década de 1940, e a inserção dos imigrantes no ambiente fotográfico brasileiro.
Termina com uma síntese das atividades profissionais do fotógrafo. Além dos campos
de atuação e dos temas mais recorrentes, há outros trabalhos pontuais que merecem ser
destacados como na fotografia de objetos artísticos. Trabalhou com artistas plásticos,
fotografando as obras e registrando exposições, eventos e/ou a rotina de trabalho de
Bruno Giorgi, Tarsila do Amaral, Felícia Leirner, entre outros. Destaque também para
a atuação de Flieg na formação de novos fotógrafos, laboratoristas e técnicos em
impressão. Encerra o capítulo fazendo menção à pesquisa na área do restauro
fotográfico, às participações em exposições, além do trabalho de reprodução e
localização de coleções históricas.
No capítulo 2, O fotógrafo estrangeiro, as imagens estão analisadas sob a
perspectiva da construção do olhar do estrangeiro que busca conhecer e se adaptar à
realidade brasileira. O capítulo abre com um quadro histórico das artes visuais
produzidas por estrangeiros que têm como motivo o Brasil, desde os primeiros
viajantes dos tempos coloniais. Para a análise propriamente das fotografias, dentro
desta abordagem, elegi três temas que, acredito, dizem diretamente à questão da
percepção do imigrante. O primeiro é a cidade de São Paulo, tendo como idéia central
observar a relação do fotógrafo exilado com a sua cidade-refúgio, os mecanismos de
adaptação do olhar e a constante tensão entre antigo e novo. Depois, o tema das
viagens pelo Brasil, que se liga com a idéia de “descobrir o verdadeiro Brasil”, uma
busca das origens desta terra, deste novo lar. E, por fim, o gênero do retrato, a face dos
habitantes da terra-refúgio. Retratar é confrontar-se com o outro. E o outro neste caso
está dentro de um amplo leque que vai dos “nativos” até outros imigrantes que no
Brasil também buscaram refúgio, vai do amigo, dos parentes até pessoas anônimas
flagradas em seu cotidiano.
O capítulo 3, Um olhar moderno, é a apresentação das fontes principais sob o
prisma da fotografia moderna. Primeiro, faço algumas colocações de ordem conceitual
a respeito da noção de modernidade e fotografia moderna. Na seqüência, traço um
panorama do surgimento e desenvolvimento da fotografia moderna no mundo, quais
20
os principais movimentos e propostas e os processos de assimilação da imagem
fotográfica pela indústria cultural. Aqui, trabalho com outros três temas que acredito
estarem historicamente ligados às principais propostas da modernidade no campo
fotográfico. Começo pela arquitetura, destacando a utilização de técnicas modernas de
composição, quebra de proporções, uso de ângulos inusuais, desnorteamento espacial,
montagens, contrastes, achatamento da perspectiva etc. e como estes procedimentos
fotográficos criam representações de um determinado ideal arquitetônico ligado às
concepções de cidade moderna de ocupação capitalista e, ao mesmo tempo, expressa a
reminiscência marginal do antigo. O segundo tema é a indústria, também buscando
ressaltar os aspectos formais e a identificação das técnicas e métodos de trabalho que
permitem construir um novo ideal de beleza extraído do ambiente industrial. Fecho o
capítulo tratando da fotografia de publicidade, também identificando as questões
formais que permitiram a valorização do objeto no âmbito da imagem, expressando o
papel da mercadoria nos contextos sociais em que se formavam.
21
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Capítulo 1
Da Alemanha ao Brasil
Filme na câmera... Fotogramas da última foto tirada na Alemanha e da primeira, registrada no
Brasil. Chemnitz, ago. 1939; São Paulo, dez. 1939.
24
25
O trecho do filme que Hans Gunter Flieg trazia na câmera ao sair da Alemanha e
aportar no Brasil continha o registro de dois mundos. O primeiro, a cidade onde nascera,
uma “última olhada” pela janela do apartamento onde vivia. É a origem, antes desta
imagem, o aprendizado, a formação pessoal, um núcleo familiar mais amplo,
transformações políticas, econômicas e sociais que pontuaram acontecimentos da vida
pessoal, tradições que moldaram o pensamento das várias gerações, trajetos de trem,
visitas ao leste, infortúnios, perdas, pinturas nas paredes e tanto mais. O segundo mundo
era, ainda naquele momento, uma incógnita, uma interrogação expressa pelo detalhe de
um novo mundo, apenas um vaso de flor -- flores que a mãe recebera de boas-vindas. A
imagem traz um clichê -- a vegetação tropical -- e muitas indagações – um vaso
pequeno, no ambiente íntimo, cortado, não se vê o buquê por inteiro.
Um olhar para o segundo mundo não é só a descoberta do novo, mas também o
resgate do primeiro. A faixa preta que separa os dois fotogramas não é um muro, mas
uma ponte. O entendimento de tudo que virá para a direita da tira de filme perpassa por
um entendimento do que existe à esquerda dela. Assim, antes de iniciar a análise
propriamente das imagens e dos contextos de produção da obra de Flieg, é preciso
apresentar sua biografia, relacionando-a ao amplo contexto que a envolve. Ela começa
na Alemanha e chega ao Brasil, é um processo, tem vida, tem transformação.
A própria história da Alemanha está relacionada com este processo, tomando
aqui a tese de Peter Gay de que a história cultural alemã do período da República de
Weimar é basicamente a história dos exilados do nazismo, pois estes foram portadores
do “espírito de Weimar”, ou seja, de todo um projeto moderno, gerado em solo alemão e
realizado para além de suas fronteiras. Em sua gênese também esta cultura é
universalizante, já que a Alemanha pré-Hitler também foi um polo de atração cultural:
“A cultura de Weimar foi criação de forasteiros, impelidos pela história para o seu
interior, por um momento curto, vertiginoso e frágil”.1
Flieg não viveu esta modernidade de Weimar em idade tenra, os circuitos
culturais da Alemanha da época estavam longe de sua vida cotidiana. Mas, nem tanto,
pois estas idéias se infiltravam na sociedade alemã e se inseriam na cultura de massa,
despertando novas percepções e criando novos gostos. Também muito deste projeto
moderno era calcado em idéias e valores bem mais antigos que talvez estivessem
arraigados no comportamento e no imaginário alemão de um modo geral. Então, Flieg
1 GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 12.
26
consumiu esta modernidade e assimilou-a, bem como foi formado sob a égide de alguns
dos princípios que a motivaram.
1.1. Na Alemanha, entre duas guerras
Hans Gunter Flieg nasceu em 3 de julho de 1923, na cidade de Chemnitz, região
da Saxônia, na Alemanha, filho de Eva2 e Karl Flieg. Era o auge da crise econômica
alemã do pós-Primeira Guerra:
Eu nasci na inflação, tanto que meu pai se antecipava
(...) ele estava de pé ao lado da minha caminha e disse
“escuta, eu quero te informar que o dólar hoje representa
tantos milhões de marcos, só para você mais tarde não me
culpar que não foi informado”. (...) Não foi a única inflação
que eu vi, não... foi um bom começo.3
Lembranças da hiperinflação alemã rondam relatos e outros tipos de registro
sobre a vida naquele período. Outro fotógrafo imigrado para o Brasil, Curt Schulze,
também registrou suas memórias da época:
Em [19]23, eu conhecia uma inflação tremenda da
qual eu me lembro até hoje (...). A experiência prática desta
inflação: minha mãe me mandou com seis milhões de marcos
para ir para o padeiro, que era no mesmo prédio, e eu fiquei
talvez entre uma e duas horas na fila, com mulheres e outras
crianças, quando chegou minha vez, eu recebi em vez de um
pão inteiro, a metade. Fui chorando para casa, não entendi, eu
me achei culpado porque não tinha nada para comer em
nenhum lugar. Meu pai me explicou, alguns anos mais tarde,
que nesta época, do tempo que fiquei na fila, o dinheiro
desvalorizava 50%.4
E, no cinema, Ingmar Bergman abre o seu filme O ovo da serpente (1976) com o
comentário: “Estamos no dia 3 de novembro de 1923. O maço de cigarros custa 4
bilhões de marcos. A maioria das pessoas perdeu a fé no futuro...”.5 Os anos iniciais da
República de Weimar são descritos como uma época de profunda desilusão, com uma
2 O nome de solteira é Margit Emma Eva Schafer.
3 Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
4 Depoimento de Curt Schulze a Ivan Negro Isola, Gery Schulze e Ricardo Lua. Museu da Imagem e do
Som, São Paulo, 1984. 5 RICHARD, Lionel. A República de Weimar: 1919-1933. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.
85.
27
Alemanha mergulhada em miséria e fome, resultado da derrota na guerra que pouco
tempo antes representava o depósito das esperanças para a afirmação nacional. No ano
de 1914, o Império gozava de grande aprovação, a disposição de Guilherme II pela
entrada da Alemanha na Primeira Guerra foi ao encontro direto aos anseios de uma
população ávida pelo reconhecimento mundial da grandeza germânica.
A unificação tardia colocava a Alemanha (e também a Itália) em posição
desfavorável na corrida imperialista. A entrada na Guerra era a primeira grande
oportunidade do povo alemão expurgar o fantasma do atraso nacional, era o momento
da Alemanha se colocar em posição de igualdade com as outras potências européias.
Assim, o início da Guerra gerou uma tal histeria patriótica que arrebatou os mais
diversos setores da sociedade alemã:
Desde 1848 a Alemanha não conhecia semelhante
impulso de fervor coletivo. Há muito tempo os grandes
problemas da nação não eram colocados no centro dos debates
intelectuais com essa paixão sem discórdia.6
Havia o orgulho nos jovens alemães em servir o país num momento tão crucial. Muitos
judeus engordaram as fileiras que partiam para os fronts. O pai de Flieg, Karl Flieg, foi
um deles, serviu na artilharia montada. Os dois irmãos da mãe de Flieg também
serviram na Guerra. O mais velho, Arthur Schafer, lutou na frente russa, enfrentando o
inverno russo em trajes de verão o que lhe casou uma atrofia renal devido a uma
infecção. O irmão mais novo de Eva, Hans Gunter Schafer, movido por uma intensa
animação patriótica, alistou-se e foi à França para servir na frente ocidental. Porém, a
contagem de judeus realizada pelo exército alemão em suas fileiras em 1916 arrefeceu
os ânimos de Hans Schafer, que acabou morto em março de 1918, durante um
bombardeio às trincheiras, próximas à cidade de Cambrai, local em que ele estava. Tem-
se o registro de que, durante a Primeira Guerra, morreram cerca de 12 mil judeus que
serviam ao exército alemão.
Conforme se configurava a derrota na Guerra, a empolgação patriótica revertia-se em
descontentamento popular com o poder imperial, pois, ao invés da glória germânica,
assistiam à humilhação nacional, no âmbito externo, e à escassez de alimentos e demais
produtos básicos para as classes trabalhadoras, no âmbito interno.
6 RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 20.
28
Desta distensão social, surgem os movimentos políticos com forte apoio popular
que irão forçar Guilherme II a se retirar do poder. Em novembro de 1918, os
spartakistas convocaram os operários a iniciar um movimento revolucionário, saindo
das fábricas e caminhando para o centro de Berlim, os cortejos eram engordados por
transeuntes. Tomaram quartéis e redações de jornais, com o intuito de instituir uma
república socialista na Alemanha. No entanto, parte dos social-democratas, numa
manobra, se antecipou ao líder spartakista, Karl Liebknecht, e, num discurso de
Scheidemann no Parlamento, proclamaram a República alemã. Guilherme II fugiu para
a Holanda e o social-democrata Friedrich Ebert foi eleito presidente pela Assembléia
Nacional de Weimar e Scheidemann, primeiro-chanceler. Os spartakistas Liebknecht e
Rosa Luxemburgo foram assassinados por corpos voluntários recrutados pelo governo,
depois de uma longa campanha difamatória.
Karl Flieg, após a Guerra, voltou à sua cidade de origem, Schrimm, na província
de alemã de Posen7. Com a redefinição das fronteiras, imposta pelo Tratado de
Versalhes, a região ficaria com a Polônia8. Os Flieg optaram por permanecer na
Alemanha. O irmão mais velho de Karl havia se casado e se mudado para a cidade de
Chemnitz durante a Guerra para compor sociedade com o sogro numa firma da área
têxtil. Em 1921, Karl se juntou a eles para tocar a empresa que produzia meias e, em
1922, casou-se com Eva Schafer, judia natural de Dresden, cuja família mudou-se
posteriormente para a cidade Görlitz, na Silésia.
Chemnitz era uma cidade de colonização eslava, eminentemente industrial – era
conhecida como a “Manchester da Saxônia” -- e se destacava principalmente no ramo
têxtil: tanto na produção de máquinas, como nas tecelagens e confecções. A cidade
tinha uma curiosa tradição nessa área, pois detinha os diretos imperiais de Bleichen
(branqueamento), ou seja, todo o linho produzido na Alemanha durante o Império
deveria ser branqueado em Chemnitz, o que era uma das fontes principais de recursos
do município. Estavam instaladas na cidade também importantes indústrias de outras
áreas como a Wanderer, do grupo Auto Union, que produzia bicicletas e motocicletas e
a Hartmann, gigante na fabricação de locomotivas.
7 O nome polonês de Schrimm é Srem e, de Posen é Poznan.
8 “A cidade de Poznan, cidade outrora chamada Posen e que injustamente pertencia à Prússia, já que era
povoada por uma maioria de poloneses, tornou-se parte da Polônia. Além disso, como esta devia
possuir livre acesso para o mar, um corredor polonês de 100 quilômetros foi criado artificialmente no
território alemão, entre a Prússia oriental e a Pomerânia, abrindo caminho para o Báltico”.
RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 65.
29
No pós-Primeira Guerra, por praticamente toda a Alemanha, existiam sérios
problemas habitacionais. Em Chemnitz, a municipalidade exigia que quem se mudasse
para a cidade providenciasse a construção ou a disponibilização de mais um
apartamento ou casa, além do que iria habitar. Assim, Karl Flieg comprou uma casa
num bairro afastado do centro e, no prédio da firma, adaptou um apartamento para ser
posto à disposição da cidade. Nesta casa, nasceu Hans Gunter Flieg em 1923.
Em 1927, a família mudou-se para um apartamento mais confortável na mesma
rua da primeira residência. Em 1929, nasceu o segundo filho do casal Flieg, Stefan.
Segundo Flieg, esta era uma “época relativamente um pouco melhor, meu pai já estava
trabalhando naquela firma há uns cinco anos, havia um certo progresso na época (....)
a época não era das piores”9. De fato, os anos de 1924 a 1929 são considerados de
aparente estabilidade política, social e econômica, comparado ao estado de tensão que
se viveu na primeira fase da República. Como observa Peter Gay, era o momento
quando a Alemanha gozou de estabilidade fiscal,
relaxamento da violência política, renovação de prestígio no
estrangeiro, e prosperidade muito difundida; as artes
progrediam para a fase do Neue Sachlichkeit, da objetividade,
causalidade, sobriedade.10
No campo da cultura alemã, o período da República de Weimar é considerado
um dos mais profícuos da história ocidental. Nos anos iniciais, grande parte da produção
artística girava em torno das experiências expressionistas. O expressionismo precede a
República, mas ganha nova carga com o fim da Primeira Guerra e a Revolução de
novembro. Os expressionistas viam a experimentação como meio de combater o senso
comum e buscar uma renovação para aplacar “o descontentamento com a realidade e a
incerteza acerca dos valores que marcavam a Alemanha em geral”11
, ou, como definiu
Louis Dupeux, era “um estado de espírito mais do que uma doutrina”12
. Kandinsky em
seu ensaio de 1912, Acerca do Espiritual na Arte, criava uma oposição entre a
interioridade e a aparência, e a arte deveria ser a expressão do que há de mais profundo
no ser humano. O expressionismo se desenvolveu em quase todas as artes (pintura,
9 Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
10 GAY, Peter. Op. cit. p. 140.
11 GAY, Peter. Op. cit. p. 121.
12 DUPEUX, Louis. História cultural da Alemanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992. p. 79.
30
teatro, cinema, música, arquitetura, dança e artes gráficas), tendo pouca expressão na
escultura, com a exceção de Ernst Barlach, e praticamente nenhuma, na fotografia.13
Além de Berlim, as principais referências culturais para Chemnitz eram Dresden
e Leipzig, tendo a primeira uma das principais universidades da Alemanha, além de
uma portentosa atividade no campo das artes plásticas, e a segunda era centro nacional
das artes gráficas na produção de livros. Nas residências de Flieg e de seus parentes
próximos, a presença de nomes ligados ao expressionismo vinha principalmente dos
antigos integrantes do grupo Die Brücke, de Dresden, fundado em 1905: gravuras de
Karl Schmidt-Rottluff, Max Pechstein e Emil Nolde e esculturas de Barlach. Fora de
casa, o contato com a arte expressionista também acontecia, como, por exemplo, nos
passeios às Lojas Schocken, no centro de Chemnitz, cujo prédio, construído em 1928, é
um dos mais importantes trabalhos de Erich Mendelsohn.
(...) havia uma convivência com o tipo de arte que
hoje tem aquele nome e a gente reza para isto, como se fossem
deuses. No entanto, o nome Schmidt-Rottluff não era nada
mais que o seguinte: era o senhor Schmidt, dos arredores de
Chemnitz, [de um local] que se chamava Rottluff. (...) não sei
se meu pai o conhecia pessoalmente, mas, em todo caso, havia
trabalhos nas paredes desse pessoal.14
Karl Flieg era ligado a uma sociedade de bibliófilos de Leipzig, que
subvencionava edições especiais de artistas e escritores que consideravam de certa
qualidade. As tiragens limitadas dessas edições eram destinadas aos sócios, que
recebiam mensalmente uma obra. A sociedade chegou a patrocinar também escultores e
Flieg se recorda de duas pequenas esculturas de animais, de Renée Sintenes e Georg
Kolbe.
Se o expressionismo é tendência principal no cenário artístico alemão, desde o
início do século XX, a partir de 1924, aproximadamente, período que Peter Gay associa
com a estabilidade, desenvolve-se a chamada Nova Objetividade (Neue Sachlichkeit). A
proposta da nova tendência era, em oposição ao expressionismo, uma abordagem mais
realista como meio de atingir a “superação da oposição entre uma cultura imagética,
orientada segundo o passado, e o cotidiano do presente, dominado pela concentração
13
CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
14
Entrevista de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico
Brasileiro, São Paulo, 1993.
31
dos habitantes nas grandes cidades, pela indústria e técnica e não pelos deuses e elfos
do panteão guilhermino”.15
Era o momento de se formar a Alemanha moderna. Que ficasse para trás o país
derrotado e destruído, que ficasse para trás o atraso e as antigas concepções. A
Alemanha de Weimar deveria ser o símbolo de um novo mundo. Assim, da feiura do
pós-Guerra precisaria sair um novo padrão de beleza que deveria se distanciar da
idealização expressionista. A Nova Objetividade propunha um novo olhar sobre o
mundo circundante, um novo olhar que revelasse a estranheza dos objetos mais
próximos. Este olhar procurava criar um novo conceito de belo. A beleza estaria contida
nos pequenos detalhes, no acaso, nos objetos banais.16
O ambiente muda, com efeito, a partir de
1925. A moda se volta para o concreto, a pesquisa
sociológica, a reportagem. Depois da era da
imaginação, da intuição e do misticismo, há o
retorno ao positivismo radical. A pintura recupera a
sobriedade, uma representação quase naturalista.
Otto Dix, antigo expressionista e dadaísta (...), disse
mais tarde: “Arte, os expressionistas tinham feito
demais. Nós queríamos que as coisas fossem vistas
no seu despojamento, em toda a sua evidência –
quase sem arte.” 17
Para se opor à inconstância política do período anterior, buscou-se a
racionalidade, um “racionalismo crítico”. Desenvolve-se o funcionalismo arquitetônico,
nascido a partir do expressionismo e do Grupo de Novembro (Novembergruppe), que
buscava dialetizar “todos os contrastes” e resolvê-los “pelo fio da lógica e não da
espada”18
. Em 1919, um dos principais nomes do funcionalismo arquitetônico alemão,
Walter Gropius, funda e dirige a Bauhaus, uma escola dedicada à formação de artistas
para atuar no novo mundo, com uma nova postura. “A finalidade imediata é a de
15
MOLDERINGS, Hebert. As coisas. In: INSTITUT FÜR AUSLANDSBEZIEHUNGEN. A fotografia
na República de Weimar: catálogo. Bonn, 1979; São Paulo (Paço das Artes), 2000. pp. 8-9. 16
Os preceitos da Nova Objetividade foram fundamentais no desenvolvimento da Nova Visão e, por
conseguinte, na fotografia que se configurou a partir dos anos 1920-1930, como veremos no capítulo 3. 17
RICHARD, Lionel. Op. cit. p. 258. 18
ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 269.
32
recompor entre a arte e a indústria produtiva o vínculo que unia a arte ao
artesanato.”19
Na concepção de Gropius, o artista tinha de o ser por completo, precisaria
conhecer profundamente seu ofício, não seria apenas um criador, mas também um
artesão, era preciso saber as técnicas, os materiais, os procedimentos e,
fundamentalmente, ter método. Ao encarar a arte como ofício, a escola capacitaria o
jovem artista a “encontrar seu próprio caminho, quaisquer que sejam as circunstâncias,
que ele crie independentemente formas autênticas, a partir de condições técnicas,
econômicas e sociais a ele dadas, em vez de impor uma fórmula aprendida a um
ambiente que talvez exija uma solução completamente diversa.”20
Estes postulados de Gropius remontam à noção, muito cara aos alemães, da
instrução para o trabalho. Esta idéia de instrução não significa obrigatoriamente a
educação formal, mas diz respeito à dinâmica na qual um mestre passa conhecimento ao
aprendiz. O trabalho não é uma ocupação, mas um ofício e existe toda uma simbologia
que valoriza isso. Vale citar o exemplo do filme de F. W. Murnau, A última gargalhada
(Der letzte Mann), de 1924, em que um porteiro de hotel tem sua dignidade
representada em seu uniforme de trabalho. Quando o trocam de posição e tiram sua
casaca é como se abortassem o seu orgulho e o respeito dos demais.
A idéia de ofício está muito relacionada aos artesãos, na tradição das
corporações. Assim, parte da educação alemã passada para os filhos está na valorização
das habilidades manuais. Flieg recorda-se de sua mãe sempre insistir para que, no
aniversário de pessoas próximas, ele produzisse o(s) presente(s). “Ela dizia: ‘Não
compre, não compre, porque qualquer um pode comprar. Tem dinheiro, vai à loja,
compra. Faça alguma coisa, faça alguma coisa, alguma coisa feita com a mão dá
valor”21
.
Para um determinado aniversário do avô, Flieg confeccionou uma capa para lista
telefônica, que era revestida na parte externa por um papel decorado e, na parte interna,
havia duas silhuetas da cidade de Görlitz. Ele desenhou os motivos, copiados a partir de
outras imagens, depois os recortou em papel preto e colou-os na capa. Outro exemplo, é
o presente que fez para o pai no aniversário de 1936. Na data, a família passava férias
19
Ibid. 269.
20
GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 25. 21
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
33
na Tchecoslováquia e Flieg havia levado, entre os materiais, uma serra tico-tico. Eva
conseguiu uma foto da família de Karl. Flieg fez para a foto uma capa em madeira
compensada, em que a partir de um cartão-postal, desenhou pintou de preto a prefeitura
de Srem, como se fosse uma silhueta, e a aplicou sobre um fundo em amarelo. Na
moldura ao redor, escreveu o nome da cidade e, nos cantos, pequenas moscas, fazendo
referência aos Flieg.
Este apreço pelo trabalho manual bem realizado e uma acuidade estética nos
detalhes do cotidiano eram marcantes na família de Flieg. Na segunda residência em
que viveram em Chemnitz, havia muito cuidado com a decoração e os objetos. Karl
Flieg conhecia um pintor e artista plástico, Gustav Schaffer, que havia trabalhado como
designer para a fábrica de meias. Schaffer realizou a pintura de todo o apartamento dos
Flieg com afrescos que cobriam as paredes dos cômodos.
(...) trabalho dele no meu quarto que, em 29, se tornaria nosso quarto (...), um
quarto levemente retangular, no meio, um ponto de luz, em volta do ponto de luz, o Sol
raiando e, diagonalmente, o teto dividido, separando cada parede para uma estação do
dia: manhã, hora de almoço, tarde, noite, dividido por cores, manhã -- rosa, hora de
almoço – mais para laranja, verde, de repente, verde, laranja à tarde, azul à noite, com
umas alegorias referentes, sei lá, flores referentes à noite. Á minha frente, quando estava
deitado na cama, (...) havia atrás do aquecedor de estufa, essas estufas européias que são
feitas com azulejos brancos e são aquecidas por lenha e expelia o carvão, aquecimento
individual para cada quarto. Então, atrás (...) eu sei que havia um gato no telhado à noite
miando, não miava. Havia um Lua, uma meia-lua com rosto e, não sei se foi de manhã,
na hora do almoço, estavam levantando um balão. Havia, à tarde me parece, que sobre
o lugar onde estava minha cama um anjo com uma fita que levava o texto “Ao querido
Hans Gunter” e, no fim, uma mosca que estava, digamos, pondo um ovo em cima de um
“e” que era riscado, lá está a piada, porque era pra dizer não é Fliege, mas é Flieg, o “e”
era eliminado pela mosca. Muito espirituoso... (...) Em todo o apartamento, havia uma
só privada, não no banheiro. Nesta privada, o pintor espirituoso, de acordo com o dono
do apartamento, (...) decorou com cactus...22
22
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
34
Os móveis do apartamento tinham projeto assinado pelo designer Bruno Paul e
haviam sido executados por renomadas oficinas de marcenaria de Berlim. Além dos
quadros e das esculturas, enfeitavam o apartamento dos Flieg objetos do artesanato
local, com destaque para o vidro: “Vidro, cristal, vi muito em casa e muito na casa de
meu avô”.23
Chemnitz é cercada por regiões com grande tradição na produção de vidros,
como a Boêmia e a Silésia. Flieg tem uma recordação forte destes objetos, como
também de vasos de cristal sueco já muito apreciados na época. Além do vidro, havia
um rico artesanato em madeira, como as famosas árvores de Natal da Saxônia.
Esse contato cotidiano com a arte despertou, desde cedo, o interesse de Flieg.
Ainda no ginásio, ele dedicava especial atenção às aulas de desenho e obtinha bons
resultados. Desenhou uma cabeça composta por um amálgama de panelas de cozinha,
nos moldes dos “caprichos alegóricos” de Arcimboldo. Certa vez, Flieg chegou em casa
e mostrou orgulhoso o retrato do Führer que havia desenhado, mas obteve uma
recepção constrangida dos pais. Produziu uma linoleogravura de um desenho que fizera
do avô. No colégio, tirou primeiro lugar na confecção de um “vitral” em cartão preto de
papéis coloridos que integraria um presépio de Natal. A prática artística fazia parte do
cotidiano de Flieg na infância, talvez de maneira não tão sistemática, mas, sem dúvida,
freqüente.
Quanto à educação formal, ele freqüentava entre 1930 e 1934 o grupo escolar e,
nos três anos seguintes, o Realgymnasium24
. Em sua época no ginásio, Flieg recorda que
começou a sentir, de forma mais direta, as manifestações de anti-semitismo dentro da
escola, tornando muito restrito seu contato social com os colegas25
. Nos feriados
nacionais, por exemplo, era obrigatória a presença dos alunos. Nestas ocasiões, os
estudantes não-judeus deveriam comparecer com uniforme da Juventude Hitlerista e os
professores com fardas da SA ou da SS, já os judeus deveriam ir à paisana, marcando
bem a segregação.
É claro que num ambiente deste, mesmo por razões particulares, ninguém
ousaria entrar numa casa de um colega não-judeu ou pela possibilidade de
receber alguma palavra menos amiga ou, se for um amigo, para não colocá-lo
23
Idem.
24
Ginásio humanístico. 25
“Até 1933, indiscutivelmente, chegava em aniversários, alguma coisa, colegas de classe vinham em
casa, me lembro de uma festa... tinha convite de colegas de classe. Mas, depois de 1933, nem pensar!”
- Entrevista de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico
Brasileiro, São Paulo, 1993.
35
em risco, porque o contato com o judeu, (...) podia significar uma denúncia,
um risco real. Então era necessário procurar contato entre si, então se forma o
começo de uma estrutura...26
Flieg recebia formação religiosa, duas vezes por semana nas aulas em hebraico
com o rabino de Chemnitz, além da freqüência à sinagoga. Ele passou a circular quase
que exclusivamente entre judeus. Para criar um espaço de inserção aos jovens judeus,
examinou-se a proliferação de associações e grupos organizados que reunia a juventude
judaica em torno de algum interesse comum. Existiam grupos eminentemente políticos,
com propostas de integração ou sionistas e outros que se fundavam ao redor de
interesses diversos. Além de ser uma forma de inserção dos jovens que estavam “à
margem” da Juventude Hitlerista, existe uma certa tradição dos alemães, principalmente
jovens27
, de se associar em grupos de algum interesse comum, de esporte ou jardinagem
à política ou literatura. Flieg fez parte da Juventude Judaica Alemã (Bund Deutsch
Jüdisch Jugend – BDJJ), uma associação de filhos de ex-combatentes da Primeira
Guerra que tinha práticas escotistas, como excursões de bicicleta às montanhas,
acampamentos etc. Como observa o próprio Flieg: “(...) a vida era uma vida tão normal
quanto possível, mas separada e era, eu diria, do ponto de vista da população, pacífica,
pacífica com exceção da interferência do partido, do governo, na medida em que as
coisas pioravam.”28
Além dessas atividades, Flieg costumava freqüentar, com o irmão, a piscina
pública de Chemnitz, instalada em um prédio moderno construído especialmente para
este fim. Nos lazeres em família, havia as festas religiosas, como Pessach e Rosh
Hashaná, que geralmente reuniam um núcleo familiar mais amplo. A família de Flieg
possuía um pequeno jardim em uma colônia próxima ao bairro onde viviam,
freqüentavam muito o local nos finais de tarde ou fins-de-semana. Nestas
oportunidades, costumavam encontrar outros parentes que também tinham um jardim na
colônia.
26
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
27
“Para os jovens, além dos agrupamentos diretamente políticos ou religiosos, as organizações eram
inúmeras! Naturalistas, místicas, românticas, idealistas, todas possuíam periódico e boletins. Longe de
convenções mundanas e familiares, a camaradagem estava na origem dessas associações que eram
herança do Movimento de Juventude nascido no final do século XIX.” – RICHARD, Lionel. Op. cit. p.
149. 28
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
36
As viagens da família eram mais freqüentes antes do nazismo, destas, Flieg se
recorda de visitas à ilha de Rügen e a Kollsberg, ambas na região do Báltico. Depois de
1933, destacam-se as viagens às estações balneárias na Tchecoslováquia e às montanhas
na Silésia, Riesengebirge e Erzagebirge, onde passaram várias férias de verão e de
inverno. Estas temporadas nas montanhas, bem como às visitas ao jardim da família,
foram registrados nos primeiros exercícios fotográficos de Flieg.
Em 1932, Arthur Schafer, irmão de Eva que após a Guerra formou-se médico e
foi clinicar num vilarejo nas montanhas da Silésia, presenteou Flieg com sua primeira
câmera fotográfica, uma Box Tengor, da Zeiss. Com esta máquina, Flieg fotografou de
1932 a 1939 as férias de sua família. Em formato 3 x 4 cm, estas imagens foram sendo
reunidas em um pequeno álbum existente ainda hoje.
Apesar de uma vida familiar harmônica, as dificuldades de convívio no ginásio
forçaram Flieg a deixar Chemnitz em 1937 para ir estudar em Berlim. A mudança se
deu num momento muito simbólico da vida de um garoto judeu, a época de seu bar
mitzva, ritual que marca a entrada do jovem na vida adulta e da comunidade. Flieg
estava na idade de treze para quatorze anos, assim, fez a preparação em Berlim e a
cerimônia aconteceu em Chemnitz, seguida por uma grande festa com a presença de boa
parte dos parentes.
Em Berlim, foi morar num apartamento na avenida Hasenheide esquina com a
praça Kaiser Friedrich, no distrito de Neukölln ao sul da capital, com duas tias, irmãs de
Karl Flieg, e suas respectivas famílias29
. O distrito residencial de Neukölln, criado em
1919, tinha população de origem operária ou de classe média.
A expansão de Neukölln e sua transformação em zona
residencial se efetuaram essencialmente durante os dez anos
que precedeu a Primeira Guerra Mundial: de 1900 a 1910, sua
população passou de 90.442 para 237.289 almas, ou seja, um
aumento de cerca de 15.000 habitantes por ano! Um
crescimento que se explicava menos afluxo de emigrantes (sic)
vindos de longe do que pelo deslocamento para os subúrbios
da população berlinense. Na realidade, a maioria dos
habitantes de Neukölln era de ex-moradores de Berlim.30
29
Linka Jonas, o marido Max Jonas e o filho, Alfred Jonas; e Alice Rosemberg, o marido Max
Rosemberg e os filhos, Rudof e Stefania. 30
BRUNN, Gerhard; DETLEF, Briesen. Um arquipélago hierarquizado. In: RICHARD, Lionel. Berlim,
1919-1933: A encarnação extrema da modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. p. 42.
37
Assim, Neukölln caracteriza-se como uma cidade-dormitório, pois a região
oferecia poucos empregos e seus habitantes se empenhavam em longos percursos
diários ao centro ou às zonas industriais de Berlim, ao norte e a sudoeste. A vida em
Neukölln é descrita como provinciana se comparada à efervescência de Berlim. Na
época da mudança de Flieg, a capital já havia ultrapassado os quatro milhões de
habitantes.
Eu me lembro muito bem, eu me lembro, uma cidade
enorme, uma cidade de... não sei se já tinha 4 milhões de
habitantes (...) e Chemnitz, 50 mil. Eu só sei que era muito
homem. Aos 16 anos... que 16 anos, (...) eu estava com 13 (...).
Minha mãe tinha estado em Berlim, (...), eu vejo nós dois
atravessarmos a rua e eu dizer (...) “mãe, a mão” e nós fomos
atravessar a rua com carro.31
Porém, esta cidade aonde Flieg chegou havia perdido parte de seu brilho e sua
modernidade resplandecente depois que os nazistas assumiram o governo.
Com exceção das cervejarias, das lojas, do
artesanato, dos pequenos ofícios, o que resta da Berlim de
antes de 1933? Os espetáculos são censurados, assim como os
jornais, e o rádio onipresente efetua uma verdadeira lavagem
cerebral. A Alemanha tradicional tende a desaparecer
rapidamente. A caricatura, assim como o cinema, artes
eminentes do século XX, são impregnados de grosseria e de
simplificações exageradas. Em 1938, num só lustro, os
berlinenses passaram de uma extrema independência de
espírito a um conformismo pesado.32
Flieg foi estudar na Jüdisch Privatschule Dr. Leonore Goldschmidt, em Berlim-
Dahlem, que, além de ser uma escola judaica, era um centro de preparação para exames
para a Universidade de Cambrigde. Nesta época, a família de Flieg já vislumbrava a
possibilidade de emigrar, assim, um bom curso de inglês seria importante. Muitos
judeus já haviam deixado a Alemanha, principalmente os mais ricos, bem como, artistas
e intelectuais com algum relevo que tiveram seus trabalhos sob a mira da censura.
Entre 1935 e 1938, a pressão sobre os judeus aumentara: deveriam usar a estrela
amarela; casamentos entre judeus e não-judeus estavam proibidos e os já celebrados
foram anulados; ficava vetado aos semitas o exercício de profissões liberais (advogados,
médicos, economistas etc.) e foram expulsos do funcionalismo público, da Bolsa de
31
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002. 32
MARABINI, Jean. Berlim no tempo de Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 62.
38
Valores e dos bancos; não era permitida a contração de criados judeus em casa de
alemães; foram tomadas 500 mil cartas de motoristas de judeus; não podiam ser
registrados em hotéis; apartamentos foram confiscados; suas lojas foram marcadas;
músicas judaicas estavam banidas; obras de autores judeus não podiam ser publicadas;
não podiam freqüentar cinemas e teatros; entre outras medidas e proibições.
Assim, a vida de Flieg em Berlim ficou um tanto circunscrita, seu círculo
resumia-se basicamente aos parentes e colegas de escola. Participava pouco da vida
cultural da cidade, devido às restrições de acesso aos judeus, bem como a situação
financeira, o momento exigia que os recursos da família fossem destinados a preparar
uma possível emigração, a cada dia mais iminente. Flieg chegou a assistir a algumas
apresentações teatrais, promovidas pela Associação Judaica Cultural (Jüdische Kultur
Bund). Eram espetáculos de boa qualidade que representavam uma certa resistência
cultural dos judeus que, privados dos circuitos principais, se voltavam à produção
dentro da própria comunidade. Além disso, Flieg recorda-se de eventuais passeios com
os parentes ou colegas de escola, como visitas ao zoológico, ao Palácio de Sanssouci,
em Potsdam, excursão a um lago nas redondezas da cidade e a uma partida de futebol
no estádio de Berlim.
Em novembro de 1938, os nazistas, principalmente na figura de Goebbels,
empreendem um golpe mais duro no intuito de forçar os judeus a deixarem a Alemanha.
Na noite do dia 9 para o 10, vitrines de lojas judias foram quebradas e sinagogas
incendiadas. Em Berlim, 20 mil judeus foram presos e 36, assassinados. Estas cenas se
repetiram por toda a Alemanha e o episódio ficou conhecido como a “noite de cristal”
(Reichkristallnacht), devido à quantidade de vidros quebrados. A sinagoga de Chemnitz
foi incendiada e um grupo de judeus, entre eles parentes e conhecidos de Flieg, foi
colocado em um caminhão e obrigado a assistir às chamas consumirem seu templo.
Flieg ficou sabendo dos acontecimentos da noite no dia 10 ao chegar à escola. O
impacto foi muito forte por toda a Alemanha, em Berlim, o clima era tenso. Nos vidros
das lojas que iam sendo trocados, deveria vir a inscrição “Jude” (judeu). As dívidas
advindas dos prejuízos gerados pelos acontecimentos da “noite de cristal” recaíram
sobre as vítimas das agressões. A noite de 10 de novembro foi um marco, pois a partir
daí parecia se confirmar que, aos judeus, não seria mais possível continuar na
Alemanha.
39
O tempo disponível para providenciar a emigração
ficava cada vez mais restrito. Desesperados, muitos corriam
atrás de vistos que pudessem “comprar”. Circulava a
informação que em Paris se poderia conseguir um visto de
turista para o Brasil. Porém, tudo estava muito confuso dadas
as condições e as formas como chegavam as informações dos
bastidores.33
Karl Flieg tentava em três frentes obter vistos para sua família, através de
amigos e parentes que já haviam partido para Estados Unidos, África do Sul e Brasil.
Mas, enquanto isso, começou a tentar se precaver, buscando meios de sobrevivência no
exterior, em qualquer que fosse o destino. Karl Flieg era fotógrafo amador, conhecia um
pouco sobre equipamentos e pensou que daí teria uma possibilidade. Se ele adquirisse
algumas câmeras e acessórios, sob a alegação de que serviriam como meio de
sobrevivência ao filho mais velho no estrangeiro, ele talvez conseguisse autorização
para levar o equipamento. Perguntou a Flieg se ele estaria disposto. Com a resposta
afirmativa do filho, sugeriu que buscasse alguma formação na área. A idéia era que a
fotografia poderia efetivamente se configurar como uma profissão para o rapaz. E, caso
não desse certo, teriam, ao menos, o equipamento que poderia ser vendido no exterior.
De fato, Karl Flieg foi muito sensível e perspicaz ao imaginar essa possibilidade.
No curto período de tempo, que provavelmente o filho teria para obter instrução, a
fotografia era uma área em que Flieg, de alguma forma, já possuía algum conhecimento,
pois tinha uma boa noção de desenho e possuía uma máquina que operava já há alguns
anos, além de uma possível ajuda que o pai, como fotógrafo amador, poderia lhe dar,
pelo menos, no começo. Além disso, o ofício do fotógrafo tem uma grande vantagem
em relação a outras profissões, num contexto de imigração. A fotografia, primeiro,
vence a barreira do idioma, podendo ser desempenhada pelo imigrante desde o
momento de sua chegada na terra estrangeira. Além disso, é uma atividade que não
exige um investimento inicial tão pesado e o momento era muito propício à profissão,
com o crescimento da comunicação de massa e o desenvolvimento técnico, era uma
atividade requisitada, em franca expansão.
Muitos imigrantes, realmente, buscaram na fotografia uma forma de
sobrevivência no exterior. Um exemplo é o da fotógrafa Hildegard Rosenthal que havia
estudado fotografia em Frankfurt, sua cidade de origem, mas não tinha experiência
33
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. São Paulo: Estação Liberdade,
1996. p. 45.
40
profissional na área. Quando ela estava aguardando seu visto para imigrar, seu marido,
que já estava no Brasil, aconselhou-a a investir na carreira: “Meu marido sempre
escrevia: ‘estuda fotografia, porque (...) aqui você pode ser [no máximo] governanta de
uma família rica, nada mais”34
.
Em Berlim, a fotógrafa do Museu Judaico, Grete Karplus35
, começou a oferecer,
em seu apartamento, cursos de fotografia para jovens judeus que pretendiam emigrar e
que precisavam de alguma instrução profissional. Flieg freqüentou o curso da fotógrafa
entre maio e julho de 1939. Ele ganhou uma câmera Leica do pai, que também havia
comprado uma Linhof para levar para o exterior.
Flieg estreou sua Leica em um passeio aos jardins do Palácio de Sanssouci, em
Potsdam, cidade da região metropolitana de Berlim. Ao fotografar, teve dificuldades no
manejo do diafragma, porque não tinha lido as instruções no manual e todas as fotos
saíram fora de foco. Dias depois, Flieg retornou ao palácio e refez as fotos, na saída do
jardim percebeu uma placa, que não notara antes, indicando que o local era vetado aos
judeus.36
Fig. 1.1.1 Fig. 1.1.2 Fig. 1.1.3
Trabalhos realizados por Flieg para o curso de Karplus: balas Kanold, molho de tomate e retrato de Grete Karplus.
Berlim, 1939.
34
Depoimento de Hildergard Rosenthal a Boris Kossoy, Hans Gunter Flieg, Moracy de Oliveira e
Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 35
As informações que apresento sobre Grete Karplus têm como fonte exclusiva os depoimentos de Hans
Gunter Flieg. Não encontrei referência ao nome da fotógrafa nos registros sobre fotografia alemã ou
sobre a comunidade judaica de Berlim na época. Foram solicitadas informações junto ao Museu
Judaico de Berlim e à Berliniche Galerie, que é um dos mais importantes centros de documentação em
arte moderna de Berlim, bem como, a uma associação que pesquisa a genealogia da família Karplus
nos Estados Unidos. Todas as respostas foram negativas. 36
Desde a “noite de cristal”, os judeus haviam sido “expulsos de todos os lugares da vida urbana, não
podem passear nos jardins públicos ou na floresta berlinense sem serem humilhados por slogans anti-
semitas grosseiros: ‘Proibidos aos judeus’, ‘o ar puro da floresta não suporta o cheiro de judeus’”.
MARABINI, Jean. Op. cit. p. 65.
41
Para o curso de Grete Karplus, Flieg produziu um material, ainda hoje existente,
utilizando a Leica e também uma câmera de chassis 9 x 12 cm, Cuntesser-Netter com
filmpack (filme rígido). Fez muitas fotos de objetos – vasos, flores, caixas de cigarro,
frutas, balas, balança para cartas, esculturas, quadros – exercícios bastante interessantes,
em que é possível notar um tratamento que ia ao encontro das propostas ditas
“modernas” do período imediatamente anterior. Percebe-se que há uma tentativa de
mostrar os objetos em seu despojamento, de criar imagens limpas e centradas no
motivo. Há algumas quebras de proporção, como também arranjos curiosos, como uma
letra “k” formada por balas da marca “Kanold” (fig. 1.1.1) ou das latas de molho de
tomates com uma pequena pilha de tomates (fig. 1.1.2). Era já um treino para a
fotografia com proposta publicitária. Vale notar a apresentação, estas fotos estão
montadas sobre cartão, sem borda branca, com a imagem “sangrada”. Também foram
feitas algumas montagens, que consistiam em recortar o fundo e colar a imagem sobre o
cartão e, depois, fazer alguns retoques. Fez esse exercício com uma foto de uma mão,
escrevendo uma carta37
. Realizou alguns retratos, com a preocupação de captar
expressões diferentes e de variar a iluminação (fig. 1.1.3).
Fig. 1.1.4 Fig. 1.1.5
Em algumas das primeiras fotos com a Leica, a preocupação com a composição: Arcos próximos à Orangerie de
Sanssouci. Postsdam, 1939/ Detalhe da Quadriga no alto do Portão de Brandemburgo. Berlim, 1939.
37
Ele usou como modelo da mão a própria Grete Karplus, que simulava escrever uma carta a bordo de
um navio em setembro de 1939, data que, talvez, a fotógrafa pretendesse migrar para os Estados
Unidos.
42
Fig. 1.1.6
A carruagem e o automóvel: as relações de convivência entre o antigo e o novo, que irão permear muitos dos
trabalhos de Flieg, já aparecem nesta fotografia. Berlim, 1939.
Com a Leica, Flieg fez algumas saídas por Berlim para fotografar a cidade, além
de Sansouci (fig. 1.1.4), tem imagens do Portão de Brandemburgo (fig. 1.1.5) e da
Coluna da Vitória, além de cenas das ruas, como uma em que enquadra um automóvel e
uma carruagem (fig. 1.1.6), fazendo um jogo com a idéia de velocidade.
Além do curso de Grete Karplus, Flieg também teve, no seu período em Berlim,
aulas de datilografia, além de aprender espanhol com o tio, Max Rosemberg, que havia
morado na Argentina. Em julho, Flieg retornou a Chemnitz e, neste período, arrumou
uma ocupação: organizar a coleção de selos de um senhor da cidade.
Em setembro, estourou a Guerra e, neste mesmo mês, Flieg recebeu uma
convocação da Gestapo, feita através da Congregação Israelita.
Eu estava com 16 anos, tinha altura suficiente para
18, os alemães estavam convocados para o exército, para a
campanha na Polônia e um rapaz em trajes civis na rua não
seria muito bem visto. Então, havia uma chance, uma chance
que havia praticamente todos os anos, só era atendido
normalmente pela Juventude Hitlerista, a colheita. Estava se
precisando de elementos que ajudassem na colheita na
província de Brandemburg (...) lá na região de Frankfurt-an-
der-Oder. Então, eu fui junto com mais quatro rapazes de
Chemnitz e saí, me parece, em 5-6 de novembro. Eu devo ter
ido em fins de setembro e fiquei todo outubro e início de
novembro (...) trabalhei por lá, como auxiliar de colheita.38
Flieg foi levado a uma aldeia que era, na verdade, uma espécie de colônia
agrícola chamada Mallnow. A atividade fazia parte de um movimento de preparação de
38
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
43
jovens para o trabalho na lavoura (Harshará), com o intuito de migrar para a Palestina.
Neste momento, havia, pelo menos aparentemente, uma certa aceitação das autoridades
alemãs, pois era um programa que lhes servia duplamente, suprindo mão-de-obra na
agricultura, defasada com o início da Guerra39
, e como uma forma de estimular a partida
de judeus. No começo de novembro, os vistos para o Brasil ficaram prontos e Karl Flieg
conseguiu autorização para que seu filho deixasse a fazenda.
(...) eu saí de lá, fui chamado por telegrama, tenho os
dois telegramas escritos à mão, isto veio por telefone de Berlim
para o prefeito, que veio o prefeito, (...) era chefe dos correios,
era o entregador dos telegramas por bicicleta para o campo,
onde estávamos trabalhando e tinha sua propriedade e era
atendido pelos rapazes lá também (...). Ao sair de lá, esses
rapazes de Chemnitz me deram esse cartão-postal, assinado
por eles (...). Isto pode ser eventualmente o último documento
dessas quatro pessoas, é mais do que duvidoso que tenham
voltado de lá, porque se sabia que havia a intenção (...) de
transferir esse pessoal para um trabalho de lenhadores nas
florestas da Polônia, eu acho possível que tenha sido ainda a
intenção de faze-los trabalhar lá, o que naturalmente não deve
ter durado muito...40
Ao sair de Mallnow, Flieg partiu para Berlim, onde encontraria seu pai. Na
capital, retiraram os vistos que os amigos no Brasil conseguiram agilizar, depois foram
visitar uma tia, irmã de Karl, onde pernoitaram. A Guerra mudara a feição da cidade,
Flieg se recorda: (...) vi Berlim no início da Guerra e aí sim, eu me lembro da cidade
muito diferente, muito escura, muito cinza, pouca iluminação pública, que quando
escurece não estava ligada.”41
Ele teve a oportunidade de fazer uma foto da janela do
quarto que estavam, em que se pode ver as sarjetas pintadas de branco, por causa dos
blecautes.
No dia 9 de novembro, chegaram em Chemnitz. Durante o período em que Flieg
esteve na colônia agrícola, seus pais foram obrigados a abandonar o apartamento em
que viviam e se mudaram para um alojamento coletivo. Neste local, Flieg e seu pai
passaram a noite. Na manhã do dia 10, uma tia de Flieg que também estava morando no
mesmo alojamento chegou da rua alarmada, gritando que estavam novamente pegando
39
O governo alemão costumava enviar membros da Juventude Hitlerista para realizar trabalhos de
colheita em áreas rurais. Flieg se recorda da chegada de seu grupo a Mallnow: “Quem nós
encontramos lá, trabalhando, já carregando feno há algum tempo nisso? Um grupo de menininhas
alemãs belíssimas da Juventude Hitlerista, não sei se com uniforme...” -- Entrevista de Hans Gunter
Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim – Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo, 1993. 40
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002. 41
Idem.
44
os judeus, em referência à “noite de cristal”, que estava completando um ano. Assim,
Flieg e seu pai voltaram à estação de trem e rumaram para Berlim. Lá, pernoitaram na
pensão em que vivia uma tia-avó de Flieg. Constatada que a situação estava, levando em
conta as circunstâncias, “tranqüila”, no dia seguinte, retornaram mais uma vez a
Chemnitz.
Flieg e seu irmão permaneceram em Chemnitz tocando os preparativos para
viagem, arrumando malas etc. Enquanto isso, seus pais partiram para Dresden para que
Eva tivesse um treinamento na operação da máquina de bordado que tinham adquirido
para levar ao exterior. O pai de Flieg, depois de vender a empresa, conseguiu com as
autoridades de Chemnitz uma autorização para levar equipamentos que serviriam ao
sustento da família no exílio – as máquinas têxteis e o equipamento fotográfico –,
mediante o pagamento de uma taxa no valor de todos os bens que seriam levados.
De Dresden, Karl foi a Berlim para mais despedidas e Eva seguiu para Görlitz,
com o mesmo intuito. De Chemnitz, Flieg foi para a Silésia encontrar a mãe. Em
Görlitz, visitaram amigos e um advogado que cuidaria dos assuntos da família na
cidade. No dia seguinte, partiram, Eva, mais uma vez, foi a Dresden onde encontrou
Karl para mais aulas sobre a máquina de bordados. Flieg continuou até Chemnitz para
passar a noite com o irmão. No dia 21 de novembro, então, ele e o irmão foram levados
à estação pela tia e embarcaram no mesmo trem em que os pais vinham de Dresden.
Munique, Milão e, enfim, chegaram a Gênova. Lá, descobriram que o preço da
passagem de navio, que já haviam pago quando estavam na Alemanha, tinha subido e
que só poderiam embarcar após o pagamento da diferença. O governo alemão permitia
que os judeus saíssem com apenas dez marcos cada um, assim, Karl teve de entrar em
contato por telégrafo com o irmão que estava vivendo em Londres. Providenciado o
dinheiro, na noite do dia 23, puderam embarcar no navio Neptunia. Foram alojados no
porão, onde em meio a um forte cheiro de gado, havia um grande número de beliches,
com aposentos separados para homens e mulheres.
Partiram, mas a viagem ainda teria mais um percalço. Na costa francesa, o navio
italiano foi detido por um cruzador francês que o conduziu até o porto de Marselha. O
governo da França tivera a informação de que os alemães estavam contrabandeando
agentes para a América do Sul, utilizando passaportes judeus falsos. Assim, exigiam
que todos os homens a bordo do navio, vindos da Alemanha, desembarcassem para
averiguação. Eva Flieg, falando francês, conseguiu conversar com um oficial e, explicar
45
a situação da família, conseguindo, assim, a liberação de Karl. Flieg se recorda que
apenas o pai e um outro senhor foram liberados, os demais tiveram de desembarcar e,
somente após a checagem, puderam partir em outro navio.
Entre ilustres e desconhecidos, milhares de alemães foram obrigados a cruzar as
fronteiras de seu país na década de 1930. A família Flieg foi parte deste grupo.
Espalhados pelos Estados Unidos, Inglaterra e Brasil, buscaram sobreviver, mas nem
todos conseguiram. Alguns se tornaram muito ilustres, como o primo escritor Stefan
Heym42
. Outros não agüentaram a dor do exílio. Muitos reconstruíram suas vidas no
exterior. O que todos eles queriam era apenas reconquistar a dignidade em suas vidas.
1.2. Destino: Brasil
Era 8 de dezembro, feriado de Nossa Senhora da Conceição, quando o Neptunia
aportou em Santos, os amigos da família Flieg já os esperavam no porto para levá-los a
São Paulo.
Em 1939, entraram no Brasil 22.668 estrangeiros com vistos para imigração,
destes, 4.601 de origem judaica, sendo 2.899, provenientes da Alemanha. No ano
anterior, em 1938, o Brasil recebera apenas 530 imigrantes judeus (destes 445 vindos da
Alemanha), um dos contigentes mais baixos em muitos anos43
. O governo Vargas
executou várias políticas de orientação anti-semita. “Em 7 de junho de 1937, após dois
anos de restrição informal e cinco meses antes do estabelecimento do Estado Novo, de
inspiração fascista, o Itamaraty emitiu uma circular secreta que proibia a concessão de
vistos para todas as pessoas de ‘origem semítica’”.44
Pouco tempo depois, em
setembro, veio a público o “Plano Cohen”, uma farsa montada pelo militar integralista
Olympio Mourão Filho e divulgada amplamente pela imprensa como verdadeira. Esse
plano consistia na denúncia de uma suposta conspiração comunista para derrubada do
governo brasileiro, os planos seriam de autoria de um “Cohen inexistente,
42
Nascido Helmut Flieg, filho de uma irmã de Karl, Heym foi exilado em 1933, viveu nos Estados
Unidos, atuando na resistência ao nazismo. Mais tarde, foi enquadro pelo macartismo, por sua atuação
próxima a movimentos operários. Voltou ao seu país natal e tornou-se um dos mais importantes
escritores da Alemanha Oriental. Depois da reunificação, foi eleito senador e presidente do Senado
alemão, vindo a falecer no ano de 2001. 43
Dados retirados de: LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica: imigração, diplomacia e
preconceito. Rio de Janeiro: Imago, 1995. 44
Ibid. pp. 21-22.
46
presumivelmente um judeu”.45
Este embute foi pretexto para o Congresso aprovar a
suspensão de direitos constitucionais.46
A partir de 1938, houve pressão internacional, principalmente do governo norte-
americano para que o Brasil liberasse vistos aos judeus da Europa Central. Estava se
sedimentando a idéia de que o país era regido por uma ditadura fascista, o que chegou a
abalar as relações com os Estados Unidos. Assim, a partir desta data, começou-se a
haver uma mudança de tratamento:
A razão mais importante para que as imagens sobre
os judeus começassem a mudar estava relacionada com a
maneira pela qual os estereótipos anti-semitas brasileiros
eram concebidos e discutidos. Ao conservar as imagens
tradicionais e simplesmente modificar sua interpretação, as
organizações internacionais de ajuda puderam utilizar esses
estereótipos reconhecidos em benefício dos refugiados. Uma
das imagens sobre os judeus, por exemplo, dizia respeito a
dinheiro e sucesso econômico. Os judeus ricos podiam, assim,
ser vistos como fazendo parte de uma conspiração
internacional para forçar a riqueza nacional em direção ao
exterior, ou glorificados por sua capacidade de contribuir
para o desenvolvimento industrial nacional ao injetar capital
no Brasil.47
De início, a família Flieg foi viver na casa de amigos, conhecidos de Chemnitz,
que moravam na rua Pamplona, os mesmo que conseguiram agilizar os vistos e os
buscaram no porto. Então, era o momento de reordenar as idéias, afrouxar as amarras do
passado para buscar vislumbrar um futuro. Flieg tem a recordação de que, aos seus pais,
no princípio, não havia a idéia de uma cisão completa com a Alemanha, acreditavam
que provavelmente a situação era transitória: “Meus pais não estavam convencidos de
que isso seria algo para sempre”48
.
Mas, mesmo assim, era necessário aprender a conviver com as perdas. Como
ressalta Maria Luiza Tucci Carneiro, o imigrante sofre, além da perda material, dos
objetos, de dinheiro, a perda um modo de vida, ou seja, da própria identidade, pois teve
45
Ibid. p. 176. 46
“Por trás de um nacionalismo exacerbado, os homens do poder forjaram a luta entre o bem e o mal,
descobrindo por todos os poros planos secretos, tramas políticas e forças ocultas. O ano de 1937
deve ser considerado como um marco de triunfo do nacionalismo simbolizado pela instauração do
Estado Novo. Deve ser visto, também, como início de uma fase de revigoramento do anti-semitismo no
Brasil, sustentado pelos ‘diplomatas’ do Itamarati num autêntico cerimonial de bastidores.” -
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na Era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-
1945). São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 501.
47
LESSER, Jeffrey. Op. cit. pp. 220-221.
47
caçado o seu “direito de ‘ser cidadão’”.49 Julia Kristeva, em seu trabalho sobre a
condição do estrangeiro, diz que o imigrante vive uma grande melancolia com a perda,
que é travestida de indiferença com o que deixou:
A dura indiferença talvez seja somente a face
confessável da nostalgia. Conhecemos o estrangeiro que chora
eternamente o seu país perdido. Enamorado melancólico de
um espaço perdido, na verdade, ele não se consola é por ter
abandonado uma época de sua vida. O paraíso perdido é uma
miragem do passado que jamais poderá ser reencontrada. Ele
sabe disso, com saber desolado dos que desviam a raiva dos
outros (...) contra si mesmo (...).50
Nesse processo de se voltar para si, Flieg, nos primeiros meses de Brasil, sofreu
uma grave doença dermatológica, que ele acredita ter sido de natureza psicossomática.
A enfermidade o impediu, durante oito meses, de circular socialmente e de trabalhar. No
início de 1940, Flieg já havia arrumado um trabalho com Peter Scheier, imigrante
alemão, no Brasil desde 1937, que na época começava a se estabelecer como repórter
fotográfico e fotógrafo de indústria. Flieg trabalhou como assistente no estúdio de
Scheier, primeiro, no apartamento da rua do Arouche, depois em uma casa na rua Bento
Freitas51
. Mas, durou pouco, porque, devido à doença, Flieg teve de largar o emprego.
Nos oito meses de “imersão” para se recuperar, Flieg não teve quase contatos e
apenas fotografou no âmbito familiar ou produziu alguns registros pessoais de São
Paulo. As leituras tiveram papel importante, pois era um meio de tentar decifrar a nova
terra, da qual tinha referências muito vagas, como a possível leitura de Hans Staden no
tempo de ginásio e, já no período de preparação para exílio, de publicações sobre o
Brasil destinadas justamente a judeus prestes a migrar52
. Em 1938, Wolfgang
Hoffmann-Harnisch publicou na Alemanha as memórias de sua viagem que fizera ao
Brasil em 193753
. Flieg considera uma leitura muito importante, pois, na época, não se
48
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 49
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 36. 50
KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 17. 51
Flieg se recorda de ter acompanhado Scheier, além de várias coberturas para indústria, num trabalho no
ateliê de Ernesto de Fiori. 52
“A partir de 1936 começou a circular na Alemanha um sedutor material de propaganda sobre o Brasil
como o objetivo de orientar aqueles que pretendiam emigrar. Por outro lado, estes panfletos (ou
brochuras) também se prestavam à venda de terras em áreas programadas de colonização como, por
exemplo, Rolândia.”. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Op. cit. p. 80. 53
HOFFMANN-HARNISCH, Wolfgang. Bresilien: Bildnis eines tropischen Grossreichs. Hamburg:
Hanseatische Verlagsanstalt, 1938.
48
tinha em língua alemã relatos atualizados sobre a América do Sul e com tantas fotos54
.
Já no Brasil, os livros também cumpriram este papel de uma “primeira janela” para os
imigrantes. Flieg destaca a importância que os livros do escritor Richard Katz tiveram,
não só para ele e sua família, mas como para muitos estrangeiros refugiados aqui. Katz,
judeu nascido em Praga, rodava o mundo para escrever livros de viagem e, no Brasil,
produziu vários relatos55
. Flieg também leu muita literatura alemã no Brasil, os clássicos
e autores modernos importantes, “mais do que tinha lido na Alemanha”.
Passada a doença, Flieg sentiu a necessidade de conhecer e de ter contato com
pessoas. Assim, começou a participar do grupo de jovens da Congregação Israelita
Paulista. O casal Speyer, ambos pedagogos, ficou responsável pela organização das
atividades do grupo. O programa que seguiam tinha um amplo campo de cobertura, pois
a idéia era dar uma instrução em várias áreas do conhecimento, notadamente os assuntos
relacionados à Alemanha e ao judaísmo. Flieg se recorda dos cursos de literatura alemã,
que o deram uma grande bagagem cultural. Em 1942, a juventude da CIP se uniu a um
grupo de inspiração escotista, que existia desde 1938, o Avanhandava. Os jovens da CIP
e do Avanhandava passaram a realizar atividades em conjunto, como a encenação de
peças de teatros – Flieg chegou a atuar em uma delas – e isso reforçou a identidade de
grupo para aqueles jovens, além de ampliar o círculo de amizades.
Isto, de uma certa forma, foi importante, porque
reintegrou a gente num grupo, num grupo social. O contato
com brasileiros não era fácil, em parte por questão de língua.
Onde a gente tinha contato era nas firmas onde trabalhava,
entre os vizinhos (...).56
A língua é de fato um dos aspectos mais importantes na vida do imigrante, que
se ora se apresentava como “um poderoso veículo de comunicação”, em outros
momentos, representava “um obstáculo aos contatos pessoais”57
, já que, como salienta
Kristeva, “entre duas línguas, o seu elemento é o silêncio”58
. Flieg recorda-se que a
54
Flieg recorda-se que, posteriormente, o filho de Hoffmann-Harnisch, Sasha Harnisch, tornou-se
fotógrafo e, provavelmente, fez trabalhos para o Museu de Arte de São Paulo. 55
Richard Katz publicou obras como Begegnungen in Rio (Zurich: Schweizer Verlagshaus, 195-) e Auf
dem Amazonas (Zurich: Eugen Rentsch, 1951). 56
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 57
FAUSTO, Boris. Imigração: cortes e continuidades. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). História da
vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 51. 58
KRISTEVA, Julia. Op. cit. p. 23.
49
mãe tinha uma grande preocupação com a possibilidade dos filhos perderem a língua de
origem.
Ela dizia com muita razão: “português, vocês
aprendem, sem dúvida, estando e vivendo aqui no país”. (...)
Fazia questão de falar um alemão decente, de manter um
alemão decente em casa: ‘isto vocês sabem, é só questão de
disciplina para manter isso em ordem, para o futuro é sempre
uma ferramenta”. 59
Assim, na família, no ambiente familiar60
, sempre mantiveram o alemão como
língua. O português era assim de uso social, Flieg não fez cursos específicos do idioma,
mas procurou se formar como foi possível, principalmente com muita leitura. Chegou a
ter uma ou duas aulas com uma senhora alemã, estabelecida há mais tempo no Brasil,
para aprender alguns termos da área fotográfica; ela fez uma pesquisa e montou para ele
uma espécie de glossário com palavras e expressões técnicas da fotografia. No mais,
tinha um inglês razoável e passou a entender um pouco de francês, de espanhol e de
italiano.
Em São Paulo, haviam se configurado os chamados “bairros étnicos”, comuns
nas cidades com contingente significativo de estrangeiros residentes. Nestes espaços, o
imigrante encontrava constantes referências à sua cultura de origem, como o freqüente
uso da língua, e podia circular “sem ser molestado ou sem provocar estranheza,
alimentar-se com comida tida como exótica, abrir açougues onde os fregueses
encontravam carne casher, realizar festas religiosas”61
, entre outras atividades. Boa
parte dos japoneses estava concentrada na Liberdade, enquanto os italianos no Bexiga,
Brás e Moóca e os judeus, no Bom Retiro. Mesmo que não habitasse no bairro, o
imigrante tinha nestes locais suas referências, lá podia comprar produtos que costumava
consumir antes de migrar, participar de festas e tudo isso podia tornar mais suave o
processo de adaptação.
Existia por todo o mundo, uma ampla rede de entidades e indivíduos que
objetivavam ajudar os perseguidos pelo nazismo. Em São Paulo, através principalmente
da CIP, esta rede de solidariedade estava presente para auxiliar os judeus em várias
questões. Em 1943, Flieg se recorda de ter participado de um evento promovido por
59
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 60
Depois do Brasil romper as relações com os países do Eixo, em 1942, até o fim da Guerra pelo menos,
os imigrantes com estas origens foram classificados como “súditos do Eixo” e o uso em público dos
idiomas alemão, italiano e japonês foi proibido. Assim, o “exercício” da língua nativa pelos Flieg teve
de ser restrito ao espaço íntimo. 61
FAUSTO, Boris. Op. cit. p. 31.
50
uma destas entidades no Teatro Santana. Na ocasião, com o teatro cheio, apresentaram-
se vários indivíduos vindos da Europa muito bem informados da situação por lá. Num
determinado momento dos relatos, trouxeram ao palco uma barra de sabão e um dos
participantes disse: “Isso são os seus irmãos!”. A apresentação teve um impacto
tremendo na comunidade e Flieg diz que, a partir deste momento, ficou claro, pelos
menos a ele e sua família, do que se tratava. Desde então, a certeza de que dificilmente
haveria retorno.
Uma das características mais marcantes dos imigrantes de forma geral é o seu
apego ao trabalho. Sua força é uma das poucas coisas que se pode trazer integralmente
para o exílio, assim, é comum que dediquem ao labor toda sua energia.
(...) você reconhecerá o estrangeiro pelo fato de que
ele ainda considera o trabalho como um valor. Certamente
uma necessidade vital, o único meio da sua sobrevivência, que
ele não coroa necessariamente de glória, mas reivindica
simplesmente como um direito básico, grau zero da dignidade.
(...) Já que ele não tem nada, já que não é nada, pode
sacrificar tudo. E o sacrifício começa pelo trabalho: único bem
exportável, sem alfândega. Valor, refúgio universal em estado
errante.62
Então, era tocar a vida e trabalhar. Em março de 1940, a máquina de bordados
que Karl Flieg comprou na Alemanha, havia chegado. Com isso, a família alugou uma
casa na rua Pedro Taques, região da Consolação, onde no quarto dos fundos montaram a
pequena oficina e puderam assim começar a trabalhar. Após ter se instalado em sua
própria casa, o processo de adaptação ganhou nova dinâmica, pois já se tinha algum
local para tentar plantar suas raízes, mesmo que ainda não se tivesse convicção de que
seria de forma definitiva.
Já assentado no Brasil, o imigrante busca amenizar o
corte materializando, de várias formas, a lembrança da terra
que deixou. Desse modo, o arranjo de sua casa tem
características próprias, evidenciadas nos chamados objetos
biográficos. Um retrato emoldurado de toda família, tirado
geralmente pouco antes da partida, uma imagem religiosa,
baixelas, tapetes, uma caixa de madrepérola, ou simples
talheres, são expostos como fragmentos de um mundo a que se
deseja voltar mas que se suspeita jamais ser possível rever ou,
talvez pior, ao revê-lo, não mais reconhecer seus traços
originais.63
62
KRISTEVA, Julia. Op.cit. pp. 25-26. 63
FAUSTO, Boris. Op.cit. p. 18.
51
Nesta época, Karl Flieg vendeu a Linhof que trouxera na bagagem, já que o
filho não a utilizaria tão cedo. O filho mais novo, Stefan, estava então com dez anos,
precisava continuar os estudos. A idéia de Karl era que Stefan se formasse para seguir
trabalhando com os pais. De fato, o irmão de Flieg, após o colégio, fez cursos técnicos
na área têxtil e continuou tocando a firma, que recebeu o nome Bordados Flieg. A
oficina ficou pouco tempo no quarto dos fundos, logo foi instalada em outra casa que
alugaram na própria rua Pedro Taques. Em 1952, mudou então para a rua da
Consolação, onde está instalada até hoje, sendo dirigida por Stefan Flieg.
Flieg conseguiu emprego no estúdio Foto Paramount, na rua Líbero Badaró, em
fins de 1940. O estúdio de retratos era de propriedade de Irene Lenthe, fotógrafa
húngara, formada em Munique. Os principais trabalhos do Paramount eram os retratos
de formatura, que consistiam em portraits dos formandos vestindo beca, montados em
molduras trabalhadas com enfeites de metal, num “Art Deco fajuto”.64
Pouco tempo depois, conseguiu uma colocação na Companhia Litográfica
Ypiranga e, assim, saiu do estúdio de Irene Lenthe. A Ypiranga, dirigida por Carlos
Reichenbach, era uma das mais importantes empresas gráficas do período. Flieg entrou
como aprendiz e recebia uma pequena remuneração. Teve experiência do trabalho na
pedra, com fotolito (separação de cores) e com um pouco de foto publicitária, onde pode
empregar o que aprendera em Berlim. Fez várias transposições de fotos de paisagens
para traços a nanquim, com vistas a produzir um clichê sem meios-tons.
Na paisagem, era necessário com um pequeno traço
recriar a imagem fotográfica. Com a colocação destes
pequenos traços mais juntos, maiores ou na mesma grossura e
em maior número nas sombras, deixando as luzes abertas, mas
isso tinha de ser muito bem pesado, de modo que os valores, as
intensidades de cor tinham de ser transpostas para a técnica
do desenho a nanquim (...) era algo muito próximo do trabalho
litográfico.65
Depois de dois anos, saiu da Ypiranga, em 1943, com a possibilidade de
emprego na Lintas Propaganda. No entanto, a contratação de Flieg acabou não
acontecendo e ele começou a procurar de um novo trabalho. Acabou chegando, então, à
64
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Paulo A. Nascimento, Eduardo
Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 65
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002.
52
Indústria Gráfica L. Niccolini, onde foi contratado. O chefe do estúdio era o sócio de
Luiz Niccolini, Kurt Eppenstein, gráfico alemão que teve sua formação provavelmente
em Leipzig. Flieg já tivera contato com um trabalho de Eppenstein quando trabalhava
com fotolitos na Ypiranga, “trabalho que ficou destacado pela concepção, (...) diria
uma modernidade que não se via normalmente naquela época”.66
Kurt Eppenstein foi uma figura muito importante na trajetória profissional de
Flieg e com ele aprendeu muito sobre artes gráficas. Eppenstein, que antes da Niccolini
havia trabalhado na agência Panam, foi um grande técnico, provavelmente o primeiro
do Brasil em off-set. Com uma sólida formação, ele desenhava, pintava e fotografava,
assim, entendia de todas as etapas do trabalho gráfico. Flieg recorda-se: “Eu vejo,
época de Guerra, dificuldades de off-set (...) e o Kurt fazendo experiências de silk-
screen em impressos de papel, de chapados, simplesmente, eliminava ponto. Eu não sei
se ele chegou ao ponto de usar como clichê batatas (...).”67
A Gráfica Niccolini tinha muitos clientes da área farmacêutica para a impressão
de catálogos, mata-borrões e outros materiais gráficos68
. Em 1945, ainda trabalhando na
Niccolini, Flieg começou a conseguir alguns trabalhos particulares. Kurt Eppenstein
permitiu que Flieg utilizasse o laboratório da gráfica nos finais de semana para estes
serviços. Os clientes, conseguia-os com indicações de conhecidos: “Os primeiros
trabalhos eram, em grande parte, trabalhos para conhecidos, para amigos, para
amigos de meus pais”69
. Um dos primeiros trabalhos foi a encomenda de Oscar
Landmann para realizar retratos de família. Foi sua primeira experiência profissional no
campo de retratos, fotografando, inclusive, o bebê, filho de Landmann. No mesmo ano
de 1945, Flieg saiu da Niccolini para abrir seu estúdio e começou a trabalhar por conta
própria, seguindo assim até 1988, quando decretou oficialmente sua “aposentadoria”.
Flieg permaneceu solteiro e sem filhos, assim, sua vivência familiar ficou
circunscrita aos pais e, depois, ao irmão, cunhada e sobrinhos. Karl Flieg faleceu no ano
de 1973 e Eva, em 1977. Stefan casou-se com Vera Haberkorn, filha de Werner
Haberkorn, fotógrafo e fundador da Fotolabor, uma das mais importantes editoras de
cartões-postais de São Paulo, e tiveram três filhos. Flieg vem tendo contatos eventuais
66
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Paulo A. Nascimento, Eduardo
Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 67
Idem. 68
Atendia aos laboratórios Fontoura, Laborterápica, Torres e Baldassari. 69
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002.
53
com o núcleo maior de sua família – tios e primos que vivem nos Estados Unidos, na
Inglaterra ou mesmo na Alemanha.
1.3. Panorama da fotografia no Brasil
O cenário que se configurava na fotografia brasileira na época em que Flieg
começa a atuar caracterizava-se, basicamente, por um desejo sincero dos profissionais
de modernizar a área, tanto do ponto de vista da tecnologia, quanto da linguagem e dos
usos.
A fotografia tem sua primeira menção em terras brasileiras, ainda na pré-história
da técnica, em 1833, com as pesquisas de Hercules Florence, na então Vila de São
Carlos, atual Campinas (SP)70
. A primeira imagem fixada no Brasil, e possivelmente na
América Latina, remonta a 17 de janeiro de 1840 com as demonstrações do abade Luois
Compte, no Paço da Cidade do Rio de Janeiro. Nas duas décadas seguintes a esta
primeira tomada, a daguerreotipia no Brasil teve uma expansão circunscrita aos grandes
centros urbanos e restrita a um “pequeno mercado ou clientela”.71
A partir de 1860, com o aperfeiçoamento do processo negativo-positivo e o
desenvolvimento de técnicas e formatos de produção de retratos em série, os estúdios se
proliferaram nos principais centros urbanos e observou-se a formação de um mercado
fotográfico mais amplo. Os negócios prosperavam e os estúdios passaram a oferecer não
apenas as imagens como estojos e álbuns com trabalhos e materiais diversos: “papier-
machê, madeira, marroquim lavrado ou veludo” e “incrustações de prata, cobre,
madrepérola, porcelana, esmalte e até mesmo ouro”72
. As “fotopinturas”, que consistia
na produção, a partir de fotografias, de retratos a óleo, aquarela ou pastel, também
foram muito apreciadas e consumidas no Brasil, durante a segunda metade do século
XIX.
Outro gênero muito importante na fotografia brasileira do século XIX foram as
vistas. Grandes tomadas de cidades e paisagens naturais começaram a ser
70
Sobre o assunto ver: KOSSOY, Boris. Hercules Florence: 1833, a descoberta isolada da fotografia no
Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1980; e ______. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São
Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002. 71
KOSSOY, Boris. Fotografia (1980). In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil, v. 2.
São Paulo: Instituto Moreira Salles/Djalma Guimarães, 1983. p. 875. ______. Origens e expansão da
fotografia no Brasil. Rio de janeiro: Funarte, 1980.
54
comercializadas avulsamente ou em álbuns. Em São Paulo, destaca-se o Álbum
Comparativo – 1862-1887, editado em 1887 pelo ateliê Carneiro e Smith, com fotos de
Militão Augusto de Azevedo que idealizam o progresso da cidade. “Na verdade, Militão
foi um dos primeiros fotógrafos a registrar, com intenção comercial, a cidade de São
Paulo”73
. Em outros centros como Rio de Janeiro, Salvador e Recife, fotógrafos
começaram a se estabelecer na produção das vistas regionais.
A partir das últimas décadas do século XIX, começaram a ser requisitados os
trabalhos de fotógrafos pelos poderes políticos locais ou nacional, bem como, para
expedições, presumidamente, de cunho científico. D. Pedro II em seu projeto de
construir a imagem de uma “civilização nos trópicos” arregimentou vários profissionais
principalmente europeus para a publicação do Album de vues du Brésil, editado pelo
Barão do Rio Branco para a exposição universal de 1899 em Paris. No álbum, há fotos
de autoria de, entre outros, Marc Ferrez, Lidemann, Duscasble, Joaquim Insley Pacheco
e Augusto Riedel74
.
No século início do século XX, os poderes locais começaram a se preocupar em
registrar paisagens urbanas, rurais, estradas de ferro, obras etc. para a produção de
álbuns com intuito promocional. Em São Paulo, há o exemplo do fotógrafo suíço
Guilherme Gaensly que recebeu várias encomendas do governo do Estado para produzir
material para as publicações das secretarias75
. Gaensly fotografou, além das cenas
urbanas da capital do Estado, fazendas de café, estradas de ferro e o porto de Santos. No
Rio de Janeiro, o alagoano Augusto Malta entrava para trabalhar para a prefeitura da
cidade, em 1903, como “o primeiro funcionário público com cargo de fotógrafo no Rio
de Janeiro e, possivelmente, o único naquela época em todo o país”76
. Malta tinha a
missão de registrar o processo de transformação da capital federal durante dezenove
administrações até 1936, ano em que se aposentou. Os dois exemplos mostram
fotógrafos contratados para empreitadas com finalidades promocionais de produzirem
imagens “oficiais”, mas que, ao unirem um apurado conhecimento técnico a uma grande
72
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983.
p.26. 73
LIMA, Solange Ferraz de. O circuito social da fotografia: estudo de caso – I. In: FABRIS, Annateresa.
Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1998. p. 67. 74
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. pp. 73-123. 75
______. São Paulo, 1900. São Paulo: CBPO/Kosmos, 1998. 76
OLIVEIRA JR., Antonio Ribeiro de. O visível e o invisível: um fotógrafo e o Rio de Janeiro no início
do século XX. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 77.
55
sensibilidade visual particular a cada um deles, produziram imagens emblemáticas e
fundamentais para a história das duas cidades.
Além dos álbuns, promocionais ou comerciais, a demanda por vistas aumenta no
início do século XX com o incremento do mercado de cartões-postais. As vistas
impressas em formato postal tinha a finalidade de servir como souvenir que o viajante
enviava a conhecidos ou guardava para si. A valorização do turismo somada a moda que
se seguiu das coleções (cartofilia) tornaram os postais um dos grandes produtos
culturais para consumo de massa do início do século e um dos principais sustentos de
muitos fotógrafos e estúdios.
Na outra ponta da fotografia comercial, no início do século XX, há uma
significativa produção com propósitos puramente “artísticos”, principalmente através
dos fotoclubes, entidades que promoviam a discussão, seja em reuniões ou publicações,
de questões técnicas e conceituais acerca da fotografia. A prática do fotoclube remete à
tendência pictorialista e teve seu auge na Europa e nos Estados Unidos na segunda
metade do século XIX. No Brasil, tem-se registros de atividades relacionadas à criação
de espaço para a “fotografia artística” em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro nos
anos da primeira década do século XX. O primeiro clube de fotografia mais organizado
e com expressão foi o Photo Club Brasileiro, no Rio de Janeiro, que começou a atuar em
1923. Na cola ainda do pictorialismo e com forte influência da pintura academicista,
principalmente através da Escola de Belas-Artes, o clube tinha um programa em que
eram ditados os principais preceitos do que seus membros consideravam uma boa
fotografia. Em 1939, surge em São Paulo, o Foto Cine Clube Bandeirante, que buscou
inspiração nas formas dos movimentos de arte moderna do século XX, mas com a
proposta de espaço para discussão e para circulação da “fotografia artística”, ainda nos
moldes de seus antecessores.77
Quanto ao inter-relacionamento da fotografia com movimentos artísticos mais
amplos no contexto brasileiro, até os anos de 1940, os exemplos praticamente
inexistem. A principal tendência no campo das artes brasileiras, a se configurar como
tal, no século XX, foi o Modernismo. Com produção significativa em pintura, escultura,
arquitetura, literatura e música, o Modernismo brasileiro não enxergou na fotografia um
meio potencial para seus propósitos.
77
Sobre os fotoclubes no Brasil ver: RODRIGUES, Renato; COSTA, Helouise. A fotografia moderna
no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/Funarte, 1995.
56
A “intelectualidade” paulistana, e, em especial, o
“agrupamento” que será conhecido como os modernistas, é
atraída por outra modalidade de imagem técnica. O cinema
rouba a cena, com sua presença crescente e “popular”,
especialmente com a penetração da produção americana nos
anos 20.78
No campo da pesquisa e desenvolvimento técnico da fotografia no Brasil, existe
uma experiência a destacar, a do estabelecimento de uma indústria de papel fotográfico
nos anos de 1920 em São Paulo, por Conrad Wessel. A indústria de Wessel conseguiu a
façanha de produzir um papel de qualidade aceitável, no Brasil dos anos 1920, ou seja,
“sem dispor de equipamentos e técnicas sofisticadas empregadas em centros
industrializados”79 e, efetivamente, teve condições de competir com o material
estrangeiro. A fábrica e marca Wessel foram compradas pela Kodak no início da década
de 1950.
Quanto à fotografia impressa, houve sempre uma marcha atrás do
desenvolvimento tecnológico na área que permitisse a reprodução, embora as condições
técnicas não fossem fator exclusivo para a utilização das imagens. O meio-tom,
processo que permitia a impressão de fotografias com certa agilidade e a um custo
razoável, foi inventado em 1880. A fotografia chega de forma tímida às chamadas
“revistas ilustradas” e almanaques, a imprensa diária ainda iria demorar algumas
décadas para ter condições viáveis de utilizar imagens. No século XIX, o uso de
fotografias na imprensa ainda era muito esporádica, evidenciando que a imagem
fotográfica ainda não havia sido assimilada pelas estruturas de funcionamento e
circulação jornalística. A partir do século XX, há um aumento gradual, que começa pelo
crescimento no volume de imagens publicadas para, posteriormente, se processar uma
melhora qualitativa, com a profissionalização dos repórteres fotográficos e a integração
da fotografia na construção da visualidade das páginas e nos conteúdos.
A revista O Cruzeiro, fundada em 1928, era fartamente ilustrada desde seus
primeiros números. No entanto, a partir da década de 1940, rodada em rotogravura,
passa a ter um projeto mais atualizado, com um uso bastante racional e criativo da
78
CAMARGO, Mônica J.; MENDES, R. Fotografia: cultura e fotografia paulistana no século XX. São
Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. p. 31. 79
KOSSOY, Boris. Fotografia (1980). p. 883.
57
imagem fotográfica, influenciada pelas propostas de revistas como a francesa Vu e a
norte-americana Life.
Na publicidade impressa, antes da década de 1940, o uso de fotografias, sem
retoque americano, era muito raro. Os jornais, que eram os grandes veículos, não tinham
qualidade técnica para reprodução de detalhes e, mesmo as revistas, ainda deixavam a
desejar, o que levava ao predomínio do uso de desenhos e gravuras nas peças de
propaganda. Além da precariedade na impressão, as estruturas no campo publicitário
ainda estavam em formação no Brasil, então, por um lado, não havia ainda a
incorporação da fotografia na prática da criação publicitária, e, por outro, existia uma
carência de profissionais com alguma especialização neste campo.
Os serviços técnicos, na área da fotografia, eram
inexistentes. E os próprios fotógrafos, todos retratistas,
resistiram a idéia de fazer fotografias publicitárias, sentindo-
se humilhados por serem dirigidos pelos diretores de arte das
agências.80
Os anos 1940 marcaram uma mudança profunda no campo da fotografia
brasileira. A implementação de estruturas mais complexas no campo da produção
cultural exigiu novas posturas dos fotógrafos e propostas mais antenadas ao que já se
produzia no exterior. Sem dúvida, influiu neste quadro a chegada de profissionais
estrangeiros, principalmente europeus, refugiados do nazismo e/ou da Guerra.
É fato importante de observar que os fotógrafos europeus que chegaram ao
Brasil no período não tiveram, de forma geral, grandes dificuldades em conseguir
empregos na área e, em poucos anos, boa parte deles já estava estabelecida com estúdios
e empresas próprias. O anteriormente citado Peter Scheier chegou no país em 1937 sem
experiência profissional. Como fotógrafo, teve alguns empregos variados, e, já em 1939,
era colaborador regular do Suplemento em Rotogravura do jornal O Estado de S. Paulo,
um dos mais importantes veículos de publicação de imagens dentro da imprensa
paulistana, e tinha estúdio próprio para trabalhos de indústria, principalmente. Scheier,
inclusive, importou equipamento e teve um dos primeiros laboratórios para
processamento de material colorido81
.
80
ALBUQUERQUE, Francisco (Chico). A fotografia publicitária. In: BRANCO, Renato Castelo;
MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (coord.). História da propaganda no Brasil. São
Paulo: T.A.Queiroz, 1990. p. 168. 81
Depoimento de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Isola. Museu da Imagem e do
Som, São Paulo, 1984.
58
Curt Schulze chegou ao Brasil em 1940 e, no início do ano seguinte, já tinha seu
estúdio e loja, o Foto Curt, funcionando na avenida São João. Em 1948, já vendia e
processava material colorido e, com o tempo, sua empresa cresceu e se transformou
numa das maiores e mais modernas redes de laboratório fotográfico do Brasil. O próprio
Curt se recordou, em depoimento prestado, de algumas dificuldades na época de sua
chegada:
a gente chegou aqui no começo da Guerra,
naturalmente, a aquisição de material era tremendamente
difícil e quase todos os fotógrafos não conseguia, vamos dizer,
‘se alimentar’. Na época, era o uso de fazer as fotografias 3x4
com chapas 9 x 12, então, eles fizeram máscaras de papelão,
dividindo a chapa em seis e só podia revelar depois de acabar
a sexta fotografia, se não, eles não revelavam porque material
era raro ou, então, o freguês pagava as seis. Então, eu
descobri num destes negociantes de material velho, descobri
uma máquina estéreo e tive uma pequena idéia. Eu comprei
uma lâmpada (...) e adaptei a ela um visor com um pequeno
vidro de enxergar o quadro e, no outro lado, chassis pequenos
de tamanho 3 x 4 e 4 x 4, que eram os tamanhos usados na
época, e consegui cortar com diamantes as chapas e consegui
usar filmes que se vendiam e que não tinha nem mais máquina,
como 116 e estes formatos, e consegui usar até último restinho
e consegui com isso entregar fotografia rápido e consegui com
isso formar uma freguesia (...)” 82
Hildegard Rosenthal chegou ao Brasil em 1937 e, em 1938, já era fotógrafa e
diretora de uma agência que enviava material jornalístico sobre o Brasil para o exterior,
a Press Information. Outros com maior experiência anterior, como os franceses Jean
Manzon e Marcel Gautherot83
foram logo chamados para empreitadas “oficiais”.
Manzon, que chegou no Brasil em 1940, foi no mesmo ano encarregado de organizar o
Setor de Fotografia do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do governo
federal. Gautherot, que se fixou no Rio de Janeiro também em 1940, é contratado pelo
recém-criado Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) para
fotografar e colaborar na montagem do Museu das Missões no Rio Grande do Sul84
.
82
Depoimento de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Ísola – Museu da Imagem e do
Som, São Paulo, 1984. 83
Manzon já havia trabalhado para importantes órgãos da imprensa francesa como as revistas Vu e Paris
Match, além do vespertino Paris Soir. Gautherot, com formação como arquiteto, tinha colaborado na
criação do Museu do Homem, em Paris, e com a missão de catalogar as peças do acervo começa a
praticar fotografia e vai ao México onde realiza uma reportagem fotográfica sobre arte pré-colombiana. 84
Sobre Jean Manzon: ______. Um olho que pensa: estética moderna e fotojornalismo, 1998. Tese
(Doutorado em Artes) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.
59
Nos anos 1940, aparece um grande número de estúdios de retratos montados por
imigrantes nos principais centros urbanos do país. Neste campo, muitos fotógrafos
atuaram e trouxeram inovações e grande parte deles permanece praticamente esquecida.
Nomes como Heinrich Joseph, conhecido como Hejo, alemão que chegou ao Brasil em
1939 e, em 1942, fundou o Foto Studio Hejo, na rua Augusta em São Paulo, que foi um
dos mais importantes estúdios de retratos da cidade nos anos 1950 e 196085
. Hans
Gunter Flieg recorda-se de Edith Hoffmann, imigrante de Praga, que por muitos anos se
dedicou ao retrato de crianças:
À senhora Hoffmann, deve ter acontecido o que
acontecia a maioria das donas de casa judias da meia ou alta
burguesia, provavelmente, era dona de casa e talvez tenha feito
um curso profissionalizante para imigrante, coisa muito
comum. O que é que ela fazia? Ela fotografa crianças. O que
ela inovava? Se até lá as crianças eram fotografadas em
estúdio, se a oportunidade de fotografar a criança era
primeira comunhão ou a foto do bebê, ou qualquer coisa
assim, para bem dizer, a foto do bebê falecido, que se
fotografava muito. Essa mulher deve ter sido uma das
primeiras a fazer o que na Europa já se fazia bastante, ela ia ir
às casas dos clientes e fotografava a criança no seu ambiente.
Isto era novo, completamente novo, isto não era mais aquele
ato de ir ao fotógrafo depois de ter passado pelo cabeleireiro,
depois de ter vestido o terninho novo, mas era a criança dentro
da sua vivência, criança pequena brincando, essas coisas, eu
mesmo fiz isso, mais tarde. Mas... isto era um fato que me dava
a impressão de algo novo e inovador, simplesmente pela
necessidade, por quê? A necessidade dela de se preparar para
uma profissão a ser exercida no exterior, para imigração, a
necessidade de exercer a profissão com crianças, talvez ela
gostasse, tinha jeito com criança, não sei, mas não tinha lugar
em casa, era uma casinha pequena, então o óbvio era
fotografar na casa do cliente.86
A fotografia apresentou-se como um campo de possibilidades para imigrantes
com ou sem formação e experiência específica. Outros nomes que podem ser citados:
Sjoerd De Boer – holandês, trabalhou para Shell e para Henker; Leon Libermann –
fotógrafo de arquitetura, Henri Ballot – francês atuou no fotojornalismo brasileiro, Ernst
Mandowsky – fotografou indústria; Ernst Schauder – austríaco, fotógrafo de
publicidade; Frederico Kikóler – atuou também na área publicitária, entre tantos mais. É
uma atividade que serviu como ganha-pão de muitos e, que através dela, acabaram
Sobre Marcel Gautherot: INSTITUTO MOREIRA SALLES. O Brasil de Marcel Gautherot:
catálogo. São Paulo, 2001. 85
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 172. 86
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 14 fev. 2002.
60
produzindo um rico referencial cultural do Brasil do século XX. Ainda, recorro mais
uma vez às memórias de Flieg:
eu me lembro de uma fotógrafa que eu conheci que
trabalhou por pouco tempo que veio da Inglaterra (...) era
Gerda Pasternak, Pasternak ou Pastornak, não estou bem
certo. Eu trabalhei durante alguns anos na região da rua
Augusta, não sei o que aconteceu com ela, ela estava ligada,
isso depois da guerra, ela estava ligada a um casal, ele era um
advogado polonês, judeu, que também trabalhou algum tempo
como fotógrafo, também os perdi de vista, não devem estar
mais aqui. Havia mais um senhor de certa idade, na rua
Batatais, se não me engano, que trabalhava mais em fotografia
de publicidade, alguém que era notável, o esforço enorme de
começar, também não sei por quanto tempo viveu. Havia
fotógrafos judeus imigrantes, havia muitos.(...) Por que estou
citando (...)? Para lhe dizer que é uma leva de pessoas que
veio e a fotografia teve para o imigrante a vantagem de
relativamente pouca bagagem. Todo mundo pensava que de
médico, de farmacêutico e de fotógrafo todo mundo tem um
pouco...e de louco.87
1.4. Flieg, fotógrafo
Ao sair da Niccolini em 1945, Flieg, primeiro, instalou-se em um pequeno
quarto na casa da Pedro Taques, depois conseguiu alugar o porão do sobrado do maestro
Hermann Frischler, na avenida Angélica. Frischler era ex-diretor da ópera popular de
Viena e, em sua casa no Brasil, dava aulas de canto e Flieg chegou a fotografar
apresentações do maestro e seus alunos. Sobre este período que ocupou este porão,
Flieg se recorda: “tive, durante um ano, bel-canto acompanhando meu trabalho de
fotógrafo”.88
O momento era propício às atividades ligadas ao mercado de bens culturais. Foi
na década de 1940, segundo Renato Ortiz89
, que começou a se constituir uma sociedade
de massa no Brasil. Abria-se um campo para a atuação de profissionais ligados ao meio
gráfico. O mercado de publicações cresceu consideravelmente, além do aumento no
número de jornais e revistas, as tiragens atingem números inéditos, como a revista O
Cruzeiro que chegou a 300 mil exemplares em 1948 e 550 mil em 1952. No caso dos
livros, houve um crescimento de 46,6 %, entre 1936 e 1944, e de 31% entre 1944 e
87
Idem. 88
Idem. 89
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1991.
61
1948, o volume de título aumenta em 300%, entre 1938 e 1950, e as casas editoras
duplicam em número, entre 1936 e 1948. As agências de publicidade multinacionais,
que começaram a se instalar no Brasil na década de 1930, consolidaram-se nos anos
1940 e 1950, com a implementação do comércio lojista. Ainda era, sem dúvida, um
cenário incipiente do ponto de vista das grandes estruturas de mídias que já vinham se
formando no hemisfério norte. Mas, de qualquer forma, existia um forte desejo de
modernização, que só se efetivaria mais sistematicamente a partir da década de 1960.
Com a configuração deste quadro, os refugiados do nazismo e da Guerra, que
chegaram com alguma experiência na área encontraram um ambiente favorável, pois
havia uma deficiência de mão-de-obra com formação técnica e profissional. Além disso,
os técnicos e artistas europeus, de forma geral, já haviam experimentado uma
modernidade, do ponto de vista tecnológico, estético e de relações de trabalho, que
ainda buscava se imaginar no Brasil. No caso de Flieg, se tomarmos como exemplo
alguns dos trabalhos que realizou como aprendiz de Grete Karplus, mesmo sem um
rigor técnico absoluto, pode-se identificar uma proposta visual ainda pouco usual na
publicidade e na fotografia brasileiras, de modo geral, até os anos 40 e, no entanto, já
praticada e ensinada em cursos livres na Europa.
Atuando autonomamente, Flieg começou a formar uma clientela de empresas
como a Ventiladores Zauli, a Metalúrgica Aliança, além de clientes da Niccolini que
continuou a atender como a Laborterápica e o Laboratório Torres. Nesta época, o único
equipamento que tinha era a Leica III C, que o acompanharia até o fim de sua carreira
nos anos 1980. Depois, comprou uma câmera austríaca com chassis de madeira, a
Lechner, que utilizou até adquirir uma Linhof que usou até a década de 1960, quando a
substitui por outra Linhof mais moderna com qual trabalhou até o final de suas
atividades profissionais.
No primeiro catálogo que fez para a Metalúrgica Aliança, só possuía ainda a
Leica e, com ela, fotografou cada peça com uma teleobjetiva e teve um resultado
adequado, já que na época o uso do retoque americano ainda era imperativo. Para este
tipo de retoque, eram confeccionadas máscaras de celulóide para serem colocadas sobre
a imagem e, então, se aplicava tinta através de uma pistola a combustão. Com isso,
eliminava-se o fundo ou era usado para destacar ou definir formas, colocava luzes e
sombras. O resultado final assemelha-se mais a uma ilustração por traço que a uma
fotografia, por isso considerado muito “artificial”, mas era uma técnica que viabilizava a
62
impressão de detalhes técnicos, principalmente em jornal, que ainda reproduziam as
imagens de forma muito reticuladas, perdendo grande parte dos meios-tons (fig. 1.4.1).
Com uma clientela já formada, em 1946, Flieg alugou uma casa na rua Maria
Antonia, ocupou a parte superior e sublocou a parte térrea. Ficou nesta casa até 1952,
quando mudou-se para o primeiro andar de um prédio na avenida Prestes Maia, num
espaço de 72 m2, ali instalou um laboratório bem mais sofisticado que os anteriores.
Alguns anos depois, alugou mais uma sala no mesmo andar, aumentando a área do
estúdio para 100 m2. Neste local, ficou até encerrar suas atividades profissionais em
1988.
Fig. 1.4.1
Exemplo de emprego de retoque americano sobre foto de equipamentos da empresa Siam-Util. São Paulo, s/d.
Quando começou a trabalhar como autônomo, o maior volume de encomendas
que recebia eram os retratos de particulares. A partir do final da década de 1950, a
clientela da área técnica, industrial e de publicidade, já estava muito consolidada e estes
se tornam seus principais campos de atuação. Atendia com regularidade a Brown
Boveri, inclusive na produção de calendários, a Companhia Brasileira de Alumínio, fez
trabalho para a Willys Overland, Pirelli, Duchen-Peixe, G.I.E, Cristais Prado, entre
tantas outras empresas. Era muito requisitado por várias agências de propaganda como a
Standard, McCann-Erickson, P. A. Nascimento, Alcântara Machado, Lintas, Orion e
muito mais.
Paralelamente a essas grandes áreas comerciais, Flieg também desenvolveu
alguns trabalhos, talvez não tão rentáveis, mas que lhe interessavam particularmente.
Um desses é o campo da fotografia para reprodução de obras de arte. Trabalhou com
63
Bruno Giorgi, Felícia Leirner, Tarsila do Amaral, Lina Bo Bardi -- em encomendas
pessoais e para o MASP (fig. 1.4.2) --, Nelson Leirner, foi fotógrafo oficial da I Bienal
de Artes de São Paulo (fig. 1.4.3), em 1951, além de trabalhos esporádicos para outros
clientes. Com os artistas, mantinha uma prática comercial muito comum, o escambo de
trabalhos – fotos por desenhos ou esculturas -- já que, nestes casos, muitas vezes quem
encomendava não teria como pagar o serviço.
Fig. 1.4.2 Fig. 1.4.3
Cena no Museu de Arte de São Paulo com quadro A amazonas, de Manet. São Paulo, s/d. Unidade
Tripartite, de Max Bill,. Primeiro colocado na categoria escultura na I Bienal de Artes. São Paulo, 1951.
Flieg tinha muito prazer em fotografar arte, pois estava muito ligado a este
universo. Este gênero de fotografia, muitas vezes, visto como um trabalho meramente
técnico, envolve grande sensibilidade, é preciso conhecer um pouco do assunto, saber
apreciar e, sobretudo, interpretar uma boa peça, porque é esta interpretação que será
registrada na imagem.
Se a fotografia exerceu uma influência profunda na
visão do artista, ela mudou também a visão que o homem tem
da arte. A maneira de fotografar uma escultura ou uma pintura
depende daquele que se encontra por detrás da máquina. O
enquadramento e a iluminação, a ênfase que o fotógrafo
atribui aos detalhes de um objecto, podem modificar
completamente a sua aparência.90
Outra área em que Flieg realizou alguns trabalhos foi a do restauro fotográfico,
movido pela curiosidade e vontade em desenvolver experiências neste campo,
64
aprimorando, assim, a prática do retoque. Recebia eventualmente algumas encomendas,
que lhe serviam de laboratório. Flieg nunca trabalhava diretamente na cópia fornecida
pelo cliente, sempre em reproduções.
Certa vez, alguém da família Hering, de Blumenau, trouxera-lhe um retrato
esmaecido de uma matriarca quando jovem, Selma Wagner Renaux. A imagem, além de
estar muito clara, tinha rabiscos a grafite em torno do cabelo e entre os dois lados da
gola branca (fig. 1.4.4).
Fig. 1.4.4 Fig. 1.4.5 Fig. 1.4.6 Fig. 1.4.7
Delicadamente, com uma borracha, Flieg apagou o lápis e apareceu o decote
com um colar de medalhão. Flieg acredita que os “retoques” com grafite podem ter sido
feitos para publicação e tinham a função de melhorar o contraste da gola com a pele e
do cabelo com o fundo. Mas, ele também aventa a possibilidade de que os rabiscos no
decote tinham a intenção de esconder o detalhe do medalhão torto, que “deveria
incomodar muito uma alemã da virada do século ser retratada assim”91
. Então, fez uma
reprodução do retrato sem o grafite, carregando no contraste, para tentar resgatar os tons
originais, esta seria a cópia de trabalho (fig. 1.4.5), que era uma vez e meia do tamanho
da imagem final. Assim, trabalha-se na cópia maior, que, além de permitir melhor
visualização de detalhes, faz que algumas imprecisões de retoque desapareçam, quando
for reduzida.
Depois, com uma lâmina de barbear, raspou as manchas em tons mais escuros e,
com tinta, cobriu as mais claras. Flieg retocou a parte da imagem da mulher e um de
seus auxiliares, o fundo do retrato, trabalho que segundo o rapaz tomou-lhe cerca de
cem horas! Não usava retoque americano nem para o fundo neutro, porque sempre há
90
FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Veja, 1995. p. 99. 91
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 9 mai. 2002.
65
um pouco de textura que seria perdida. Reproduziu a fotografia com uma luz que deixa
as áreas raspadas em tonalidades mais escuras para guardar um registro desta etapa de
trabalho (fig. 1.4.6). A etapa seguinte era uma nova reprodução do exemplar de trabalho
para confecção da foto final, no tamanho solicitado, com viragem sépia (fig. 1.4.7).
Outro campo de atuação de Flieg que merece ser mencionado é o da reprodução
de documentos históricos. Movido principalmente pelo interesse pessoal no assunto, ele
realizou diversos trabalhos junto a coleções como a das fotos de Dana Merril, sobre a
construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, e de Otto Hees. Uma de suas
principais incursões nesta área foi junto ao arquivo de Hercules Florence, para a
pesquisa de Boris Kossoy.
Flieg também fotografou muitas atividades da comunidade judaica em São
Paulo, principalmente ligadas à Congregação Israelita Paulista. Como observa Maria
Luiza Tucci Carneiro, estas imagens são o registro do “processo de reorganização
sociocultural marcado por uma rede de significados: os laços de solidariedade, o
murmúrio das rezas, o ideal dos escoteiros, a força do teatro ídiche”.92
Nos cerca de 44 anos que Flieg manteve seu estúdio em atividade, empregou
vários técnicos, que chegavam a ele com ou sem formação específica na área. Seu
primeiro assistente foi o alemão Gert Kornblum. Em 1948, Flieg o conheceu numa
festa, em que Kornblum era o cozinheiro. Ele havia se formado no preparo de comida
dietética, em Berlim. No Brasil, trabalhou na cozinha do Hotel Esplanada e do
Automóvel Clube, mas confessou a Flieg que estava infeliz na profissão. Então, o
fotógrafo o convidou para ser seu assistente. Depois de certa resistência, Kornblum
aceitou e teve uma carreira como laboratorista, trabalhando posteriormente no Stúdio
Tati e no Foto Curt.
Outro funcionário, que foi indicado pelo marceneiro de Flieg, era Carmo Franco.
O rapaz, filho de policial, aprendeu o trabalho de fotógrafo, foi para o Fotolabor,
retornou ao estúdio de Flieg e, depois, conseguiu se estabelecer como autônomo,
atuando na área industrial. Em 1952, Flieg contratou Jorge David, office-boy da
Standard, que um dia chegou ao fotógrafo: “Seu Flieg, vou trabalhar com o senhor...”.
David ficou no estúdio até 1961, depois Flieg não teve mais notícias, mas é possível que
tenha se mantido na área. Entre 1954 e 1958, teve como aprendiz Rámon Chust, catalão,
92
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Brasil, um refúgio nos trópicos. p. 172.
66
cujo irmão, Alberto Chust, era publicitário da Standard, conhecido de Flieg e que pedira
ao fotógrafo para contratar o irmão mais novo. Posteriormente, Rámon Chust montou
estúdio próprio e se tornou um profissional bastante requisitado.
Certa vez, o pedreiro Pedro Pinto de Souza foi realizar um serviço no estúdio e
pergunta a Flieg se ele não podia ficar lá e aprender aquele ofício. Ficou como auxiliar
entre 1962 e 1964 e, depois, se estabeleceu como fotógrafo. Por indicação da secretária
do estúdio, Flieg contratou em 1961 o ex-office-boy Celso de Oliveira com quem
trabalhou até 1981. Oliveira tinha grande habilidade para fazer serviços de acabamento,
como retoques e esmaltagens. Anos depois que saiu do estúdio, telefonou a Flieg para
dizer que estava trabalhando em uma tipografia e o aprendizado que tivera com o
fotógrafo estava lhe sendo essencial. O laboratorista Walney Rozemberg Alves foi
trabalhar com Flieg em 1954, tendo passado antes pelo Foto Curt, aposentou-se no
estúdio em 1981, mas continua até hoje com Flieg, cuidando do arquivo e de eventuais
trabalhos de laboratório que o fotógrafo solicite.
Teve um momento, logo após a Guerra, que Flieg resolveu dar emprego a
estrangeiros, imigrantes europeus que precisavam de uma colocação no Brasil. Assim,
colocou um anúncio no jornal, vieram algumas pessoas, mas não deu certo. Aí, veio
Otakar Svoboda que falava apenas sua língua materna, tcheco, e um arranhado alemão.
Ele já tinha experiência profissional em fotografia, teria feito a cobertura para a agência
United Press da liberação de Praga pelos russos ao final da Guerra. Svoboda trabalhou
com Flieg por alguns anos, chegou a pegar alguns serviços “por fora”. Em 1950, casado
como uma teuto-brasileira mudou-se para São Francisco, nos Estados Unidos, onde
abriu um estúdio que funciona ainda hoje sob responsabilidade dos filhos de Svoboda.
Em 1955, contratou o holandês Cornelis van der Steur, recém-chegado da
Europa, recomendado por Sjoerd De Boer. Steur também tinha uma boa experiência
anterior, como fotógrafo da Phillips. Trabalhou com Flieg por cerca de um ano e meio.
Outros estrangeiros que vieram sem experiência anterior em fotografia foram o Dr.
Zoltan Seide, advogado húngaro, que trabalhou com Flieg entre 1951 e 1952, cuidando
da parte administrativa e arquivo, chegou também a fazer retoques. O major do exército
polonês Stanislaw Muczinovsck que lutara na Inglaterra atuou por um curto período no
laboratório. Existem outros nomes de auxiliares e aprendizes que passaram pelo estúdio
e que podem ter continuado na profissão: Minoru Yoshida, Sylvio Nunes da Silva,
67
Sérgio Garcia, Serge Kandauroff, Fernando Greenhalgh e outros que não sobraram
registros.
Em 1947, Flieg filia-se ao recém-criado Sindicato das Empresas de Artes
Fotográficas de São Paulo (SEAFESP). O núcleo inicial do sindicato patronal era
formado basicamente por proprietários de pequenos estúdios de retratos. Com o tempo,
atraiu profissionais de outras áreas. O SEAFESP criou algum espaço para o debate
sobre a fotografia, principalmente, através da revista Objetiva. Por iniciativa do
advogado Cecílio Coimbra de Araújo, ofereceu cursos de aprimoramento profissional.
Flieg recorda-se de ter participado de aulas de oratória que ele acredita terem lhe
ajudado muito não só a falar em público, mas a se articular em conversas e negociações
com clientes, por exemplo. Também havia salões de fotografia, onde eram expostos
trabalhos dos associados. Flieg participou algumas vezes e chegou a receber premiação.
Em 1972, ao levar um equipamento para consertar na oficina do Trevisan, este
lhe disse que haveria uma reunião na casa de Madalena Schwartz sobre a fundação de
uma entidade. Flieg recebeu o convite e foi ao encontro no apartamento da fotógrafa.
Daí iniciou-se um movimento que reunia fotógrafos de diversos estilos e atuações, no
Rio de Janeiro e em São Paulo, a Photogaleria. O empreendimento tinha como objetivo
criar um ambiente e uma estrutura para possibilitar de divulgação da fotografia. O
primeiro presidente do grupo foi George Racz, no Rio de Janeiro, e a vice-presidência
ficou com Boris Kossoy, em São Paulo. Organizaram exposições que, em São Paulo,
aconteceram na Galeria Bonfiglioli, na rua Augusta. Havia a preocupação em inserir a
fotografia no mercado das artes, trabalhando na atribuição de valores e na discussão
sobre direito autoral. A Photogaleria sobreviveu por dois anos.
No campo das exposições, além da experiência com o SEAFESP e a
Photogaleria, Flieg teve uma mostra individual de seu trabalho, 40 Anos de
Fotografias, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, em 1981. Ele participou de
algumas exposições coletivas como a panorâmica sobre a fotografia brasileira dos anos
40 e 50 no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1984.
Integrou o panorama da década de 1950 ao lado de Alice Brill, Eduardo Salvatore,
Chico Albuquerque, José Medeiros e José Oiticica Filho93
. Em 1994, Flieg teve
trabalhos seus na mostra 170 Anos de Imigração dos Povos de Língua Alemã, na
93
BRIL , Stefania. Modestos panoramas da fotografia. O Estado de S.Paulo, São Paulo, 25 ago. 1984. p.
19.
68
Pinacoteca do Estado de São Paulo, painel de imagens – desenhos, pinturas e fotografias
– de artistas imigrantes alemães, austríacos e suíços sobre o Brasil. Também em 1994,
Flieg participou da exposição e de uma palestra dentro do evento Anos 50 Revisitados,
no Centro Cultural São Paulo.
Sem fotografar desde 1988, Flieg dedica-se atualmente a cuidar de seu arquivo
com estimadas 30 mil imagens em negativos (chapas e 35 mm), embora parte deste
material esteja em processo de deterioração de suporte. Quanto às cópias em papel não
foi feito um cálculo do volume total de imagens, mas se sabe que estão armazenadas em
cerca de 20 caixas e 30 álbuns, além de envelopes com imagens avulsas e caixas e
pastas com impressos. O fotógrafo atende mensalmente pesquisadores brasileiros e
estrangeiros, particulares ou vinculados a instituições, com finalidades acadêmicas,
editoriais, museológicas e outras, cobrindo uma gama de interesses variados –
industrialização no Brasil, estudo sobre as Bienais, imigração, pesquisas nas áreas de
arquitetura, artes plásticas, design de móveis e objetos, comunidade judaica, história da
publicidade brasileira, cidades históricas, entre tantos outros temas presentes na coleção
que Flieg montou ao longo de quase 50 anos.
69
Capítulo 2
O fotógrafo estrangeiro
A partir da varanda da casa dos Flieg, vista do jardim e da rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.
70
71
Nos meses que ficou em “imersão”, devido à sua enfermidade, Flieg pouco
fotografou. Um dos raros trabalhos que realizou foram algumas fotos da casa em que
vivia com a família na rua Pedro Taques e de seus arredores. Deste rolo, ele fez cópias
por contato, recortou-as e, uma a uma, colou sobre uma cartolina. Depois, anotou junto
a cada imagem algumas observações muito pessoais sobre o seu conteúdo. A colagem
seria o presente de aniversário para seu pai, naquele ano de 1940.
Eram cenas de rua como o vendedor de laranjas chegando ou a charrete da
prefeitura abarrotada com as podas das árvores. Ainda os flagrantes do cotidiano
familiar, como a mãe lavando roupa, o irmão sentado na mureta, vizinhos à janela ou
crianças na calçada. Um ramo de árvore que surpreendia por ostentar flor e fruto
simultaneamente. Tomadas da fachada e do interior do sobradinho. Da varanda da casa,
Flieg fez a imagem que abre este capítulo, o pequeno jardim com a rua se vislumbrando
ao fundo.
O jardim, mesmo com dimensões nada babilônicas, era algo de inusual nas
residências pequeno-burguesas da Europa de clima temperado. Remete aos jardins da
colônia de Chemnitz, às praças e parques da Alemanha. Lá tinham um caráter mais
coletivo, e aqui aquele jardinzinho adornava a entrada da casa particular.
Já disseram que o jardim é a domesticação da natureza, os ingleses o teriam
reinventado como parte de sua missão de se sentirem senhores do mundo. O jardim é,
na verdade, a representação da força do homem sobre a natureza, a ordenação da
selvageria, remete ao ideal de integração do homem à paisagem natural, tal como a
Arcádia94
perpetuada pela pintura.
Neste momento da biografia de Flieg, em que, tão jovem, ele se fecha em si para
começar um processo de digestão sobre sua própria condição, surge uma imagem tão
forte em significação. O jardim recupera toda uma tradição na iconografia estrangeira
sobre o Brasil, primada pela noção de pitoresco, que teve sua primeira manifestação na
ordenação dos jardins ingleses.95
O ponto de vista da foto é de dentro da casa para fora, é este olhar de quem
mostra alguma disposição em começar a se abrir. No primeiro plano, a hostilidade
94
Panofsky revela o alto grau de idealismo das imagens poéticas que se construíram sobre a Arcádia. A
“terra da beatitude pastoral perfeita” nada mais era, geofisicamente falando, que uma região
pedregosa, fria e “destituída de todas as amenidades da vida e quase incapaz de produzir alimento para
umas poucas cabras”. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva,
1979. p. 380. 95
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. v. 3. São Paulo: Metalivros, 1994. p. 18.
72
tropical já aparece domesticada conforme os códigos europeus. Depois da mureta e
grades que fazem a demarcação do interior com o exterior, vem a rua, a cidade e seus
personagens. Ao fundo, um senhor de pijamas na calçada e garotinhas negras,
elementos de uma nova realidade que, mais uma vez, distanciam a cena de um padrão
europeu de visualidade urbana.
Estas imagens de 1940 foram talvez o primeiro movimento de Flieg no
reconhecimento da nova terra, através delas o estrangeiro começava seu diálogo com o
Brasil, ouvindo e falando, observando e intervindo, através de sua fotografia.
2.1. Os europeus e a iconografia sobre o Brasil
As primeiras representações visuais sobre o continente americano, após a
chegada dos europeus, foram algumas xilogravuras que acompanharam as cartas de
Américo Vespúcio, publicadas em forma de folhetim em 1505.
Na carta atribuída a Vespucci conhecida como
Mundus Novus é relatada a experiência direta do navegador,
que se aventura no espaço aberto e contempla maravilhado
‘coisas jamais pensadas’. Nem Vespucci tinha idéias muito
claras a respeito das terras a que tinha chegado, nem os
geógrafos punham de acordo sobre a realidade geográfica dos
lugares. O que poderia então ensejar um mapa, ou mesmo uma
palavra!96
Da falta de um conhecimento constituído sobre o Novo Mundo, vai surgir um farto
repertório de imagens de conteúdo fantástico que começa com as gravuras veiculadas
nas edições das cartas do cosmógrafo florentino e se estende pelos séculos seguintes na
iconografia e nos relatos produzidos por viajantes que se aventuram a cruzar o Atlântico
pelo mais variados motivos. É curioso notar como estas imagens reverberam ainda no
século XX. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, ao narrar, em 1955, a viagem que
realizou ao Brasil em 1935, tenta resgatar suas sensações antes da viagem, ao receber o
convite:
O Brasil e a América do Sul não significavam muito
para mim. Entretanto, ainda revejo, com a maior nitidez, as
imagens que logo evocou essa proposta inesperada. Os países
exóticos apareciam-me como o oposto dos nossos, em meu
pensamento o termo antípodas adquiria um sentido mais rico e
96
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v. 1. p. 18.
73
mais ingênuo do que o seu conteúdo literal. Muito me
surpreenderia se me dissessem que uma espécie animal ou
vegetal podia ter o mesmo aspecto nos dois lados do globo.
Cada animal, cada árvore, cada fiapo de capim devia ser
radicalmente diferente, exibir já à primeira vista sua natureza
tropical.97
O imaginário europeu se desenvolveu proficuamente na produção de um vasto
repertório de representações sobre os indígenas brasileiros. Na pintura portuguesa, por
exemplo, o índio é transformado em personagem religioso, uma espécie de quarto Rei
Mago, no quadro Adoração dos Magos (c.1505), de autoria anônima, operando assim
uma “humanização” do selvagem por meio do cristianismo e uma conseqüente negação
da cultura indígena. Outro quadro de meados do século XVI, de autoria anônima
também, cria uma figuração d’ O Inferno, onde figuras diabólicas submetem os
pecadores aos mais virulentos tipos de torturas, sob o olhar do demônio-mor que usa um
cocar de penas na cabeça. A identificação do índio com o diabo expressa ao mesmo
tempo temor e condenação aos costumes dos nativos americanos. Nestes exemplos da
iconografia portuguesa sobre o Novo Mundo, “destaca-se o teor eminentemente
simbólico desses processos, uma vez que nem de longe se pretende uma nova versão
religiosa e sabe-se que os índios não figuram nos textos sagrados, e (...) os pintores
fazem ver por analogia imagens constituídas no seio do projeto missionário colonial”.98
Ainda no século XVI, o padre franciscano André Thevet e o pastor calvinista
Jean de Léry, que integraram a expedição colonizadora francesa liderada por
Villegaignon, produziram obras – texto e imagens -- de caráter enciclopédico sobre as
“singularidades da França Antártica”. Neste século ainda, os relatos do aventureiro
Hans Staden foram publicados com a inclusão de 53 xilogravuras produzidas sob a
orientação direta do viajante alemão. Estas imagens não têm caráter meramente
ilustrativo, como ressalta Ana Maria de Moraes Belluzzo, elas trabalham com ângulos e
desdobramentos diferentes do texto. Um exemplo está na cartografia utilizada carregada
de simbologia religiosa, “a linha do litoral brasileiro, estabelecida pelo mapa de
Staden, é, no fundo, desenho de Deus, que, segundo a concepção religiosa da criação
do mundo, separou as águas e as terras”.99
Os interesses coloniais das grandes potências no século XVII voltam-se para o
Novo Mundo e as representações visuais começam a expressar o desejo e a cobiça dos
97
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 45. 98
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 24.
74
europeus. Albert Eckout, que integrou a missão artística de Maurício de Nassau durante
a ocupação holandesa no nordeste brasileiro, pintou, entre 1641 e 1643, oito painéis de
2,60 metros de altura retratando quatro casais de tipos étnicos do Brasil. Os grandes
retratos constroem a idéia de “quatro estados civilizatórios” com certa alusão alegórica
ao quatro continentes. Assim, os painéis, mais do que representações etnológicas do
Brasil, carregam um projeto mais universalizante da Holanda. “Os grandes conjuntos
artísticos de concepção holandesa fixam a perspectiva do domínio holandês e não o
Brasil, com contorno unitário, desejado e imaginado a partir de um ponto de vista
autodefinidor”.100
Para uma conquista efetiva do novo território, fazia-se necessário conhecê-lo.
Assim, os holandeses começam a apresentar certa preocupação científica na construção
de representações sobre o Brasil expressa no detalhamento descritivo que aparece nos
retratos, paisagens e naturezas-mortas produzidas por artistas e amparadas por cientistas
da comitiva de Nassau. Deste legado holandês, se desenvolveu a partir do século XVII
uma cultura artística de motivação científica que tinha como objeto paisagens, fauna,
flora, habitantes nativos e mestiços, costumes e manifestações culturais brasileiros. Os
principais meios para a realização desta arte foram as inúmeras expedições científicas
patrocinadas por governos ou mecenas europeus.
Nos séculos XVII e XVIII, a exploração científica era exclusividade dos
portugueses que realizaram algumas incursões e produziram materiais, mas as
expedições mais estruturadas e cujos trabalhos terão maior repercussão datam na
primeira metade do XIX. Em 1808, com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, a
abertura para estrangeiros atraiu não apenas negociantes como também naturalistas,
artistas e viajantes aventureiros de diversas nacionalidades européias.
Em 1817, os naturalistas da Real Academia de Ciências de Munique, Johann
Baptist von Spix e Carl Friedrich Phillip von Martius, e membros da equipe do Museu
de História Natural de Viena, entre os quais o pintor Thomas Ender101
, chegaram ao
Brasil para uma viagem científica integrando a comitiva que acompanhou a
arquiduquesa austríaca Leopoldina, que se casaria com o príncipe herdeiro Pedro I.
99
Ibid. p. 45. 100
Ibid. p. 95. 101
Outros pintores participaram da comitiva austríaca: Joahann Buchberger, G. K. Frick e Franz Joseph
Frühbeck.
75
Spix e Martius produziram, além de ilustrações de espécimes animais e vegetais,
algumas vistas e paisagem e desenhos etnográficos de populações indígenas. Seguindo a
tradição de Humboldt, os naturalistas alemães valorizaram a arte no âmbito das
pesquisas científicas e não perderam o enfoque humanista em suas análises.
(...) Spix e Martius comungam com apreensão
romântica, referindo-se a uma natureza dos trópicos que na
alma humana estimula o prazer, o deleite, o encantamento, o
êxtase e o conforto. Ao mesmo tempo, esse processo de
identificação entre o contemplador e a natureza física permite
a subjetivação da descrição naturalista e a estetização do
mundo natural. Por meio da poética do pitoresco, representam
uma natureza afável, capaz de integrar o homem europeu ao
mundo natural dos trópicos.102
Thomas Ender produziu mais de 1.000 aquarelas e desenhos no período em que
permaneceu no Brasil. Estas imagens são basicamente vistas de cidades, paisagens
naturais e desenhos botânicos. Belluzzo destaca a noção de múltiplas posições do artista
frente ao cenário representado, criando a idéia de um “observador em movimento”, e de
“continuidade da paisagem e a vontade de abarcar o todo”103
. Nas cidades, Ender
enfoca vários elementos da vida urbana colonial, figuras humanas, atividades
comerciais nas ruas, arquitetura etc., colocando-se como uma “presença viva de um
observador invisível, que articula toda a obra”104
.
Em 1821, o barão Georg Heinrich von Langsdorff, que já estivera no Brasil
como cônsul da Rússia, retorna ao país patrocinado pelo governo russo acompanhado de
cientistas e do artista alemão Johann Moritz Rugendas. Langsdorff e o pintor chegaram
a realizar uma viagem por Minas Gerais em 1824, mas logo se desentenderam e
Rugendas seguiu sozinho. Um ano depois, o barão reiniciou sua expedição à qual
integrou os artistas franceses Adrien Aimé Taunay e Hercules Florence.
A incursão artístico-científica liderada por Langsdorff produziu uma rica iconografia
que registrou as visões dos três artistas em vistas paisagísticas que abarcam cenários
totalmente naturais ou já alterados pelo homem, desenhos botânicos e zoológicos,
retratos etnográficos de índios e mestiços, costumes e modo de vida indígenas. Taunay
imprimiu em seus trabalhos um tratamento mais afetivo, mostrando um envolvimento
102
LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem
pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 1997. p. 202. 103
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op.cit. v. 3. p. 34. 104
Ibid.
76
do artista com os retratados e com o ambiente. Já Florence buscava uma completa
objetividade utilizando e testando muitas técnicas que o permitissem uma reprodução
mais fiel da natureza, como o uso de câmera clara na produção de alguns de seus
desenhos.105
Rugendas produziu 67 vistas durante a viagem com Langsdorff que, mantendo
“afinidades com a concepção humboldtiana de paisagem” em que os elementos
humanos e os motivos arquitetônicos ficam subordinados à composição paisagística106
.
O pintor tem ainda uma grande produção desvinculada de Langsdorff, além da viagem
de 1824, ele também esteve no Brasil entre 1845 e 1846. Um dos aspectos mais notáveis
das imagens de Rugendas é sua inclinação pela totalidade em todos os seus detalhes:
Nos desenhos originais de Rugendas transparece o
grande gesto que sustenta a visão de conjunto, o modo como
primeiro desenha o todo e depois intensifica alguma parte.
Quantos aspectos da sociedade fluminense se conjugam na
Rua Direita, quantas plantas na floresta. O artista está
interessado na multiplicidade, e por isso faz de cada desenho
um microcosmo.107
A França enviou ao Brasil uma Missão Artística, da qual fez parte o pintor Jean
Baptiste Debret. Permanecendo no país de 1816 e 1831, Debret produziu um dos mais
importantes conjuntos iconográficos sobre o Brasil no século XIX, com representações
de caráter etnográfico de índios e objetos indígenas, paisagens naturais, principalmente
florestas, o espaço rural organizado pelo sistema de monocultura e o trabalho escravo,
aspectos da vida urbana com comércio, festas e costumes, acontecimentos políticos e
retratos de personalidades. “Debret trata de centrar a atenção no estado geral da
sociedade, buscando apreendê-la com base no entendimento da transformação da
natureza em cultura, do natural em civilizado”108
.
Tanto Rugendas como Debret publicaram seus trabalhos em formato de álbuns de
viagens, que se tornavam muito populares na Europa àquela altura. Estas publicações
surgem no bojo da onda colecionista européia, de acento humanista, que consistia na
aspiração em inventariar o mundo com cenários e povos diferentes do seu. Designados
de “álbuns pitorescos”, traziam um padrão de representação da paisagem natural que
unia uma estética romântica à preocupação científica, onde o olhar é detido por uma
105
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.2. pp. 124-137. 106
Ibid. p. 124. 107
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 77 108
Ibid. p. 83.
77
“espécie de encanto derramado sobre o objeto que deseja-se tornar pintura”109
. Muitos
pintores europeus, principalmente ingleses, franceses e alemães, profissionais e
amadores, vieram ao Brasil no século XIX imbuídos desta visão “pitoresca” sobre
mundo tropical, carregavam “imagens prévias criadas pela pintura”, que agiam “no
momento da percepção do mundo sensível”110
.
Um gênero de pintura muito utilizado por artistas oitocentistas que viajaram ao
Brasil foi a vista panorâmica. Estas pinturas buscavam abarcar espaços muito amplos
tentando chegar a visão do todo. Os panoramas eram, muitas vezes, exibidos em uma
espécie de rotunda, construída especialmente para este fim, onde o espectador ficava ao
centro com a imagem a circundá-lo. Para operar correções ópticas decorrentes da forma
curva do suporte da imagem, o espaço pictórico era organizado em vários pontos de
fuga. O pintor inglês Emeric Essex Vidal chegou a pintar marinhas no Rio de Janeiro
com 5 metros de comprimento, Maria Graham, artista amadora e escritora inglesa,
pintou, em 1825, uma vista da Baía de Guanabara, a partir do mar, com 3,52 metros.
A pintura de paisagem sobre o Brasil no século XIX evoca duas grandes tradições
pictóricas, segundo Belluzzo. Uma está relacionada à noção da natureza idílica, de veia
romântica, trabalha com o imaginário europeu sobre a Arcádia, sobre a harmonia
conciliadora do homem com a natureza. Nicolas Antoine Taunay, que veio ao Brasil
com a Missão Artística Francesa, pintou o quadro Cascatinha da Tijuca, em que coloca
um pintor trabalhando com fundo de mata exuberante e de queda d’água. Uma
atmosfera com muitas cores, as brumas e o efeito luminoso da água criam uma poética
em que os “estímulos da natureza são transformados simbolicamente em imagens da
origem da vida”. Outra tradição se desvincula do conceito de ideal e buscam uma
representação paisagem primada pelo naturalismo. Um dos filhos de Nicolas, Félix
Émile Taunay, pintou em 1828 duas vistas da Baía de Guanabara em que o contraste
entre os planos e a luminosidade límpida cria um conjunto que valoriza os detalhes.111
A fotografia no século XIX foi também praticada em sua maior parte por
estrangeiros que passaram ou se fixaram no Brasil imperial. É fato que a inclinação do
monarca Pedro II para a fotografia beneficiou o desenvolvimento da prática por aqui,
atraindo profissionais e diletantes de várias partes do mundo. O principal gênero de
fotografia oitocentista foi o retrato, que representava o sustento da maioria dos ateliês
109
STAROBINSKI, Jean. A invenção da liberdade: 1700-1789. São Paulo: Unesp, 1994. p. 193. 110
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Op. cit. v.3. p. 19. 111
Ibid. pp. 118-125.
78
que se espalhavam pelas principais cidades do país desde a segunda metade do século.
Como descreve Boris Kossoy, todas as referências materiais e simbólicas nestas
imagens remetiam à cultura européia – vestuário, mobiliário, decoração de fundos,
objetos de cena, poses etc.
(...) a experiência fotográfica brasileira como a latino-
americana de ateliê reproduz basicamente a experiência
européia, particularmente quando se trata da imagem da
burguesia ou da elite. Não há (...) qualquer preocupação em se
construir o nacional nos retratos antigos. Pelo contrário, a
intenção é a de se obter um produto estético com a melhor
aparência européia possível, seja por parte do retratista em
seu processo de criação/construção do signo, seja por parte do
retratado ao representar no teatro de ilusões que é palco o
fotográfico, conforme o modelo europeu, modelo no qual se
espelha. 112
No entanto, dentro do projeto imperial em construir uma imagem de uma
“civilização nos trópicos”, o português Joaquim Insley Pacheco fotografou o imperador
em meio a um cenário de vegetação nativa, em 1883.
Os indígenas brasileiros também foram objetos das imagens produzidas por
europeus. Em 1867, algumas imagens de índios nas cercanias de Manaus, realizadas
dois anos antes pelo fotografo alemão August Frisch, foram apresentadas na Exposição
Universal de Paris. Os nativos foram mostrados por Frisch em seu meio natural,
entrando em choque “com a ideologia civilizatória que o Império pretendia passar no
exterior”, mas que iam ao encontro da expectativa do público europeu, uma vez que
reforçavam “os estigmas perpetuando preconceitos de um país que queria se apresentar
como nação moderna”113
. Na década de 1860, Christiano Junior, nascido possivelmente
em Portugal, realizou uma série de retratos de escravos aos moldes dos registros
etnográficos, em voga na época, que davam tratamento de objetos de estudo e
curiosidades científicas aos retratados114
. Também alijados de seu contexto, índios e
negros foram fotografados em estúdio pelo filho de franceses, Marc Ferrez.
Continua o interesse ambíguo do europeu em consumir
imagens de etnias “inferiores” o que, se por um lado,
“ilustra” o exotismo das populações tropicais, por outro, vem
reforçar através do “testemunho” fotográfico a idéia de
112
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. pp.78-79. 113
Ibid. p. 86. 114
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris. O olhar europeu: o negro na iconografia
brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994.
79
“atraso”, prejudicial ao projeto nacional de edificação de uma
civilização nos trópicos.115
Na onda dos álbuns de viagens, o francês Victor Frond produziu uma série de
fotografias entre 1858 e 1859, das quais foram executadas litogravuras para a
publicação de Brazil Pittoresco, em 1861. Nas imagens de Frond, os elementos –
paisagem natural, arquitetura e trabalho escravo – são compostos de forma a constituir
um conjunto harmônico em que o aparente naturalismo é subordinado ao arranjo
estético e ideológico.
Não apenas nos álbuns pitorescos, mas também nas exposições universais as
imagens oitocentistas sobre o Brasil começaram a ganhar público na Europa. Foi, então,
produzido um grande repertório fotográfico calcado na noção do exotismo. Eram vistas
de paisagens naturais ou detalhes botânicos, de grandes cidades que ganhavam muito
corpo no século XIX e adentrando no início do XX, retratos burgueses de
personalidades locais ou de veia etnográfica para o registro das populações indígenas,
negra e mestiça. Quase todo este material foi produzido por europeus ou descendentes e
eram destinados ao mercado da Europa. Assim, eram imagens já de antemão
estigmatizadas, que buscavam responder a uma demanda e a um gosto específicos. Não
é raro inferir algum tratamento preconceituoso ou, no mínimo, ingênuo em relação a
muitos dos motivos fotografados, no entanto, é também correto afirmar que estas
imagens ajudaram a forjar uma identidade nacional elaborada em grande parte no
exterior, mas que também sofreu alterações em seus projetos iniciais a partir do contato
efetivo que os artistas e fotógrafos tratavavam com o Brasil.
A entrada no século XX marca a chegada ao país de grandes levas de imigrantes,
refugiados econômicos ou políticos de suas pátrias de origem. Novamente, muitos
destes exilados vão se dedicar a registrar visualmente ou em letras o novo espaço que
ocupam transitória ou definitivamente. Como relembra Edward Said, “a moderna
cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados”116
, o
autor cita inclusive a tese do crítico George Steiner de que a literatura produzida por
exilados e sobre exilados configurariam um gênero particular uma vez que é bastante
expressiva a produção ocidental extraterritorial do século XX117
. Um caráter
115
KOSSOY, Boris. Op. cit. p. 87. 116
SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
p.46.
117
Ibid. p. 47.
80
multinacional ou multicultural é comumente evocado nas obras de exilados, no entanto,
apesar das particularidades dos processos de imigração do último século, a presença de
múltiplas culturas é traço comum em boa parte da produção de viajantes e imigrantes
que cruzaram mares e fronteiras.
Assim, buscando inscrever as fotografias de Hans Gunter Flieg no extenso campo
de uma produção visual do Brasil por europeus118
, resguardando as particularidades
histórico-sociais e biográficas do fotógrafo e seu tempo, proponho um exame de três
temáticas muito contempladas por ele e que, ao mesmo tempo, remontam à tradição das
representações de viajantes e imigrantes em geral: o espaço construído (cidade de São
Paulo), a natureza e as manifestações histórico-culturais (viagens pelo Brasil) e a
população local (retratos).
2.2. São Paulo, a cidade-refúgio
Fig. 2.2.1
Viaduto e avenida 9 de Julho em obras e centro da cidade, vistos do belvedere do Trianon. São Paulo,
1940.
81
Ainda no começo do ano de 1940, o jovem Flieg, durante um passeio pela região
da avenida Paulista, fotografou, a partir do Trianon, a avenida Nove de Julho em obras
com centro da cidade ao fundo (fig. 2.2.1). Esta foi a primeira vista de São Paulo que
realizou e chama atenção o destaque dado ao espaço em construção, que ocupa o
primeiro plano e segue nos contornos da avenida, que penetra pelos morros do plano
intermediário da imagem. Ao fundo, a metrópole já delineada com densidade urbana e
altos edifícios, como o Martinelli e o Columbus. Nesta fotografia, a avenida Nove de
Julho em construção cumpre claramente o papel de uma ligação entre o primeiro e
último plano.
As obras na avenida Nove de Julho e abertura do túnel faziam parte do Plano de
Avenidas, projeto do prefeito e engenheiro Prestes Maia para a expansão do centro
antigo, configurando a região de grande adensamento urbano a partir da qual poderia se
“irradiar” gradualmente o crescimento em direção às periferias no modelo de anéis
sucessivos em torno do centro, de modo que abrisse a possibilidade de uma “expansão
permanente”. Para permitir esta “irradiação”, em termos viários, Maia montou uma
estrutura perimetral-radial que tinha como um de suas principais artérias o “sistema em
Y” que seria a junção das avenidas Anhangabaú (av. 9 de Julho) e Itororó (av. 23 de
Maio) no tronco da atual avenida Prestes Maia.
Neste esquema de radiais, as obras viárias se espalharam por toda parte119
, por
isso é comum encontrar a descrição de São Paulo como um grande canteiro de obras
neste período da administração Prestes Maia (1938-1945). Havia, de fato, no imaginário
118
O painel traçado no presente texto não é um panorama, não tem a intenção de dar conta de tudo ou de
eleger o mais expressivo dentro deste repertório visual sobre o Brasil. Foram apenas relacionados e
relatados alguns casos que exemplificassem certos aspectos marcantes desta produção. 119
“(...) seguindo a orientação do plano elaborado por Preste Maia, foram executadas as principais
obras: abertura das avenidas Ipiranga (...), São Luís, Duque de Caxias e Senador Queirós e da praça
da Consolação (atual praça Roosevelt), da rua atrás da antiga Escola Normal (...) e da rua Riskalah
Jorge; estava em andamento a implantação da avenida Rio Branco; prolongamento da avenida
Pacaembu, da antiga avenida Anhangabaú (atual avenida Nove de Julho), rua Major Sertório, rua
dos Andradas (....), rua Augusta (...), rua Bráulio Gomes (...); construção dos viadutos Major
Quedinho, Nove de Julho, Jacareí, Dona Paulina e Pacaembu e da praça em frente à antiga Estação
Sorocabana (...); remodelação da praça João Mendes (...), do Anhangabaú inferior (atual avenida
Tirandentes), do vale do Anhangabaú (...), praça Ramos de Azevedo (...), praça do Patriarca (...), do
antigo largo do Piques (atual praça das Bandeira (...), do largo do Arouche (...); alargamento da
antiga praça do Carmo (atual Clóvis Bevilácqua (...), da rua Anita Garibaldi, da ladeira do Carmo,
avenida Senador Queirós, avenida São João, rua Vieira de Carvalho (com a demolição de algumas
construções para fazer a ligação com a avenida São João), avenida Liberdade (...), rua Tabatingüera,
avenida Rebouças, rua Couto de Magalhães (...), avenida Conceição (atual avenida Cásper Líbero),
rua Xavier de Toledo, rua Venceslau Brás, rua Benjamin Constant e parte do largo São Francisco; e
início do projeto de retificação do rio Tietê”. DIÊGOLI, Leila Regina. Estado Novo – Nova
Arquitetura em São Paulo, 1996. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo. pp. 35-36.
82
urbano da época um certo orgulho nesta idéia dos canteiros, pois deles brotariam o novo
centro, a nova cidade, concretizando nos trópicos o ideal moderno da cidade americana.
Orgulho do gigantismo que já vinha há alguns anos estampado nos bondes: “São Paulo
é o maior centro industrial da América Latina”, justo nos bondes, os primeiros
ameaçados no plano de crescimento permanente através das grandes avenidas que
abriam caminho de honra para o símbolo da nova era, o automóvel.
Voltando à foto, examinemos as circunstâncias de sua produção. Flieg, recém-
chegado ao Brasil (ainda vivia na casa dos amigos na rua Pamplona), com pouco
dinheiro, muitas incertezas e um resto de filme na câmera. Material fotográfico e os
serviços de revelação, tinham um custo relativamente elevado. Não era realmente o caso
de o rapaz sair por aí disparando sua câmera como um turista deslumbrado que não
consegue se fixar mais que dois segundos em uma cena. Nestas condições, esta visão da
metrópole emergindo deve ter despertado a atenção do fotógrafo iniciante. Algo
provavelmente tocou sua sensibilidade. E o que seria?
O que despertaria a atenção, de maneira especial, em um estrangeiro europeu
numa grande cidade sul-americana? Lévi-Strauss resume a natureza de sua relação com
metrópole brasileira:
Ao contrário desses turistas europeus que torcem o
nariz porque não podem acrescentar a seus troféus de caça
mais uma catedral do século XIII, alegro-me em me adaptar a
um sistema sem dimensão temporal, para interpretar uma
forma diferente de civilização. Mas é o erro contrário que
caio: já que as cidades são novas e tiram dessa novidade sua
essência e justificação, custo a perdoá-las por não
continuarem a sê-lo.120
O processo de crescimento da cidade dependia da sua própria capacidade de atrair
forasteiros, vindos de outros Estados brasileiros ou de continentes além-mar. Eram os
braços que ergueriam o cimento dos sonhos paulistanos de modernidade ou as mentes
que representavam a promessa de se abrir caminho a um iluminismo tropical. Já em
1935, um grupo de acadêmicos franceses veio a São Paulo para lançar as bases de uma
universidade local, entre eles Lévi-Strauss. Europeus, asiáticos ou migrantes internos,
todos, de uma certa forma, haviam sido atraídos pela onda fresca da novidade que a
120
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 91.
83
metrópole prometia. Assim, muitos dos olhares que miravam São Paulo estavam
cobrando a promessa e, ao mesmo tempo, questionando o desafio da eterna juventude.
Lévi-Strauss se referiu a “um sistema sem dimensão temporal”, São Paulo era
uma cidade americana, como Nova York ou Chicago, em que se passava da “barbárie à
decadência sem conhecer a civilização”121
, pois ao perder seu ar de novidade já
automaticamente entrava no estágio de decrepitude. Como observa Annateresa Fabris,
ao analisar as fotografias produzidas pelo antropólogo em São Paulo122
, prevalece nestes
trabalhos uma imagem provinciana da cidade pontilhada por alguns índices modernos
em que o jogo de contrastes – “natureza exuberante/cimento armado; festas
populares/cinematógrafo; modernos meios de transporte/tração animal; espacialidade
contemporânea/resquícios do passado” – correspondem à dicotomia
frescor/decrepitude que definiria as cidades americanas na concepção do autor123
.
Na foto de Flieg, a cidade moderna é avistada ao fundo, no último plano, distante
do observador. Mas há uma ligação entre os dois que é justamente a avenida em
construção e as obras sobre o túnel. Este caminho em construção liga a cidade a quem a
observa, que se transforma em personagem da imagem. Cria-se um contracampo com o
próprio espectador, ou melhor, com o fotógrafo, já que as duas figuras se sobrepõe,
ainda mais em um caso destes, de uma fotografia produzida como um registro de
âmbito particular, de uma lembrança pessoal, sem a intenção de circular socialmente.
Da mesma forma que as radiais, que abririam caminho para a metrópole latino-
americana deslanchar, estavam em construção, o elo que ligaria o fotógrafo estrangeiro
à cidade estava ainda por se formar. Na imagem, convivem ao mesmo tempo, a
modernidade, ao fundo; o estágio intermediário, que é o espaço da transformação, da
construção, e a reminiscência do passado expressa pelos morros ainda verdejantes a
ladear a avenida em obras e no detalhe do pequeno trecho da balaustrada com luminária
do belvedere, no canto inferior esquerdo da imagem. Era esta cidade de múltiplos
tempos que começava a transparecer no horizonte do jovem fotógrafo.
121
LÉVI-STRAUSS, Claude. Op. cit. p. 91 122
As fotografias foram publicadas no livro: LÉVI-STRAUSS, Claude. Saudades de São Paulo. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996. 123
FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000.
p. 89.
84
O tempo da modernidade
As cidades modernas, que têm sua expressão máxima nos grandes centros norte-
americanos, caracterizam-se pelo constante movimento de renovação de sua feição e de
seu funcionamento. O ideal de uma cidade moderna é a eterna juventude de suas formas
e de sua dinâmica, almeja exalar frescor em moto-contínuo. A lógica que a rege é a de
erguer e depois demolir para novamente construir. O engenheiro norte-americano
Robert Moses que projetou e defendeu o esquema das vias expressas em Nova York,
disse: “Quando você atua em uma metrópole superedificada, tem de abrir seu caminho
a golpes de cutelo. Eu vou simplesmente continuar construindo. Vocês façam o que
puderem para impedi-lo”124
. Para os novos ideólogos e defensores deste modelo de
megalópole, construir e erguer apresentam-se como uma missão perpétua que responde
ao insaciável apetite capitalista em mercantilizar o espaço urbano.
Como ressalta o urbanista Cândido Malta Campos, modelos urbanísticos
coexistem numa mesma cidade e, se pensarmos nas cidades brasileiras, é bastante claro
que projetos distintos se impõem para os bairros operários, para os centros mercantis e
para as áreas residenciais chiques. Ações modernizadoras como ocorreram em cidades
européias exigiram rupturas profundas na estrutura social, a implementação de
mudanças semelhantes no Brasil não passariam pela pauta do poder local. Além disso, a
idéia de modernidade no Brasil tocaria em cheio na ferida do atraso nacional, o que
causaria um paradoxo, pois se modernizar é sair da posição de dependência, romper
com a lógica internacional de poder seria cortar o acesso do Brasil ao mundo moderno,
ou seja, aos próprios modelos de modernidade.
Assim, a coerência e o alcance das propostas
urbanísticas desenvolvidas para as cidades brasileiras eram
limitados, não apenas pelas contradições estruturais e
conflitos que marcam o espaço urbano em geral, mas também
pelos impasses da modernização periférica – a qual nos
condenaria a perseguir o moderno sem nunca atingir a
modernidade.125
124
Máximas de Robert Moses apud BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 274. 125
CAMPOS, Cândido Malta. Os rumos da cidade: urbanismo e modernização em São Paulo. São
Paulo: Senac, 2002. p. 21.
85
Esta “perseguição” ao modelo moderno, em termos urbanísticos, na cidade de
São Paulo se inicia com a virada do século XX, mas a dinâmica de crescimento da
cidade foi dada no século XIX. Em 1867, a inauguração da São Paulo Railway, ligando
o interior produtor de café a Santos, colocou São Paulo no entroncamento das linhas de
trem o que impulsionou o crescimento da cidade. Se nesta época, a população estava em
torno de 26 mil habitantes, em 1890, passou para 65 mil, em 1893, ultrapassou os 120
mil (sendo cerca de 70 mil estrangeiros), chegando a 240 mil em 1900.126
O café, que transformou a antiga vila em centro econômico, financiara a infra-
estrutura do pólo industrial que já começava a se articular na virada do século. Como
afirma Richard Morse, o processo de urbanização das cidades latino-americanas foi
anterior à industrialização, enquanto no resto do mundo ocidental eles ocorreram quase
que simultaneamente127
. Assim, no final do século XIX, a cidade já começa a mudar
suas feições conforme o gosto da aristocracia cafeeira que se transfere em peso para a
capital.
Na primeira década do século XX, várias obras foram realizadas para a
remodelação da cidade, principalmente na região central, com vistas a reafirmar o
espaço segundo “os requisitos do modelo agroexportador, que exigia, em primeiro
lugar, um centro de negócios adequadamente agenciado para que a ‘capital do café’
cumprisse seu papel”128
. Entre estas obras, estão o Teatro Municipal – “elemento
considerado indispensável à afirmação da cultura européia pela qual se legitimava a
elite paulistana”129
– alargamento da rua XV de Novembro e demolição da igreja de
Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos para a construção no local do prédio
Martinico, o “arranha-céu” mais alto da cidade com cinco andares.
O desenho urbano de São Paulo vinha, então, sendo delineado desde os
primeiros anos do século XX, segundo os modelos das cidades européias, mas em
conformidade com os interesses especulativos do mercado imobiliário. A grande
explosão no processo de metropolização aconteceu na década de 1920. Muitos
126
ACKEL, Luiz; CAMPOS, Cândido Malta. “Antecedentes: a modernização de São Paulo”. In:
CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH, Nadia (orgs.). In: CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH
(orgs.). A cidade que não pode parar: planos urbanísticos de São Paulo no século XX. São Paulo:
Mackpesquisa, 2002. p. 15. 127
MORSE, Richard M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1970. p. 274. 128
ACKEL, Luiz; CAMPOS, Cândido Malta. Op. cit. p. 24. 129
Ibid. p. 25.
86
engenheiros e arquitetos europeus deixaram suas marcas em São Paulo, o que dava à
cidade “um arzinho de exposição internacional”130
:
(...) a colina central ficava circundada de uma
ornamentação paisagística européia, atravessada pelas
impressionantes estruturas metálicas dos viadutos do Chá e de
Santa Ifigênia importadas direto da Alemanha, e cingida pela
arquitetura neo-renascença do Teatro Municipal, êmulo
fáustico do Ópera de Paris, a assinalar uma súbita
reformulação do panorama refletindo mudança radical da
identidade da capital. Nos limites deste complexo paisagístico
figuravam, ao norte, a Estação da Luz, totalmente importada
da Inglaterra até os últimos tijolos e os menores parafusos,
segundo os modelos da Estação de Paddington e da torre do
Big Ben. Ao sul, ia se definindo o desenho da catedral da Sé,
talhada sob o figurino da matriz medieval de Colônia. A oeste,
dominando a Praça da República, se destacava a imponente
Escola Normal, de feitio eclético, recaindo sobre o
neoclássico do Segundo Império francês. A leste, mais para o
final da década, se ergueria no topo da colina histórica o
colossal prédio do arquiteto italiano Giuseppe Martinelli...131
A década de 1930 marca a substituição do modelo urbano europeu pelo
americano. O plano de Prestes Maia é o coroamento da idéia que vincula o progresso
ao gigantismo urbano e à racionalização do capital, estas transformações eram resposta
à necessidade de modernizar a cidade para alavancar a indústria. Neste contexto, Prestes
Maia defendia que “o crescimento é um aspecto essencial da realidade paulistana, a
ser organizado e articulado, e não um problema a ser contido (...)”132
e que “São
Paulo, como diversas cidades brasileiras, deveria ser a cidade da modernidade, aquela
que o Estado Novo projetava para uma nova sociedade moderna”133
.
A cidade que crescia em movimento frenético tanto vertical como
horizontalmente é o cenário preferencial das imagens de Hans Gunter Flieg. Um dos
gêneros mais recorrentes na coleção do fotógrafo são as vistas de São Paulo, produzidas
a pedido de clientes ou por motivação pessoal, enquadrando principalmente a região
central. O Vale do Anhangabaú, nas proximidades dos viadutos do Chá e Santa Ifigênia,
130
António de Alcântara Machado, Prosa preparatória & Cavaquinho e saxofone. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1983. Apud SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo,
sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 119. 131
SEVCENKO, Nicolau. Op. cit. p. 116 132
CAMPOS, Cândido Malta; SOMEKH, Nadia. “Plano de Avenidas: o diagrama que se impôs”. In:
______ (orgs.). Op.cit. p. 64. 133
DIÊGOLI, Leila Regina. Op. cit. p. 34.
87
é a área mais recorrente nestas vistas. Quanto ao posicionamento do fotógrafo, a maior
parte das imagens é tomada do alto de prédios.
Em 1950, Flieg captou uma bela vista da cidade a pedido da indústria de
colchões Probel (fig. 2.2.2) para a produção de um calendário, em que esta imagem
apareceria colorida a mão. Flieg se colocou reclinado sobre o parapeito do alto do
edifício do Banco do Estado, com seu assistente segurando-lhe pelas pernas, e apoiou o
tripé com pesada câmera de madeira, a Lechner, sobre a cornija do prédio, fez todos os
ajustes, utilizando inclusive um fotômetro manual, e compôs a vista da cidade através
do visor em vidro fosco que mostrava a imagem invertida e de ponta-cabeça.
Fig. 2.2.2
Panorâmica de São Paulo a partir do prédio do Banco do Estado. Encomenda da Probel. São Paulo, 1950.
Usando lente grande-angular, fez uma vista em que aparece um pouco das
construções da margem direita do Vale do Anhangabaú, o topo do Martinelli, a Praça do
Patriarca e o edifício Matarazzo; na seqüência, o Anhangabaú e o Viaduto do Chá
cortam a foto numa leve diagonal; na outra margem, os prédios da Light, Mappin, CBI-
Esplanada, praça Ramos de Azevedo, Teatro Municipal, seguidos do mar de edifícios
que vem logo atrás, na área da Praça da República, subindo em direção á avenida
88
Paulista e segue no sentido da região sudoeste da cidade, em que a densidade urbana vai
diminuindo gradualmente até a dissolução no horizonte.
Em 1958, um tio de Flieg que vivia na Inglaterra veio ao Brasil visitar a família.
Quando Karl Flieg convidara o irmão, em princípio, este relutou, pois o Brasil era
alguma coisa muito distante de seu horizonte. Acabou aceitando e finalmente aportou
em Santos. Stefan Flieg e os pais desceram a serra para buscar o visitante. Durante a
viagem, as paisagens encantaram o recém-chegado, embora não o tenham espantando
tanto, pois correspondia de certa formas às suas expectativas. Na estrada ainda, quando
via alguma pequena concentração de construções já logo imaginava ser São Paulo.
Então, Stefan propositadamente mudou o caminho para entrar na cidade, de modo que
eles passassem pelo meio do Vale do Anhangabaú. Ao se deparar com aquele cenário,
suspirou. Aquilo sim, o teria surpreendido.134
Fig. 2.2.3
Vale do Anhangabaú a partir do topo do edifício do Banco do Brasil. São Paulo, 1958.
Durante esta visita, Flieg produziu um álbum com imagens dos passeios que
fizeram e com algumas vistas de São Paulo, para servir de souvenir de viagem para o
tio. Neste álbum, existe uma foto (fig. 2.2.3), tirada do topo do edifício do Banco de
Brasil, na avenida São João, mostrando uma composição muito similar ao da imagem
134
Baseado nas informações fornecidas por Hans Gunter Flieg em seu depoimento à autora. São Paulo,
fev. 2002.
89
do calendário da Probel. A câmera aponta no mesmo sentido – sudoeste da cidade --
mas desta vez como o vale mais aproximado, trabalhando com ângulo e profundidade
menores. Também no primeiro plano uma faixa diagonal com construções da margem
direita do Anhangabaú, mas, desta vez, o edifício Conde de Prates, que ainda não havia
sido erguido na época da foto anterior, domina a esta parte da imagem. A tomada a
partir do Banco do Brasil deixou o vale mais próximo, na mesma inclinação diagonal e
passando por ele, na diagonal oposta, o Viaduto do Chá. Na seqüência, aparecem o
núcleo da praça Ramos com os quatro prédios que a cercam (Light, Mappin, Teatro
Municipal e CBI-Esplanada), seguido pelo emaranhado de prédios.
As duas imagens funcionam como registros da velocidade acelerada do processo
de verticalização do centro de São Paulo na década de 1950. A presença imponente do
edifício Conde de Prates e a massa de construções no último plano da foto de 1958
marcam um contraste com a vista de 1950. As imagens partem de pontos de vista
similares, os dois edifícios, Banco do Estado e Banco do Brasil, estão posicionados bem
próximos da praça Antônio Prado, o primeiro na rua João Brícola e o outro no começo
da avenida São João, ou seja, estão em pleno coração do triângulo, o centro antigo de
São Paulo. Assim, trazem uma visão de quem está olhando da origem do núcleo urbano
para o centro novo e, no caso da foto de 1950, estende-se a regiões mais periféricas da
cidade.
As fotos trazem um olhar de certo encantamento com o processo de
metropolização da cidade. Na imagem mais antiga, a modernidade aparece como uma
promessa em vias de efetivação, é um olhar para a potencialidade de crescimento da
metrópole, trabalha com horizonte, com a idéia de futuro. O horizonte com a faixa de
céu também dilui o ponto de fuga, não afunila o fundo da imagem, mas, pelo contrário,
amplia o ângulo de visão da panorâmica, o que, ao mesmo tempo em que denuncia o
fim do perímetro urbano, abre em leque as possibilidades de ampliação da cidade. Há,
também, um elemento a chamar atenção nesta foto, a publicidade da Coca-Cola sobre o
edifício Martinelli que ganha certo destaque na composição. É a única alusão direta,
visualmente eloqüente, à mercantilização do espaço, estabelece a relação entre ocupação
urbana e comércio e alude ao caráter periférico da modernização brasileira ao expor a
dependência econômica. A presença de uma referência à Coca-Cola na imagem pode
também ser lida como apenas uma menção sobre o modelo que a cidade está perseguir
(o das cidades americanas), representado por um dos mais populares símbolos da
90
cultura norte-americana – a marca do refrigerante – a pairar sobre a grande cidade
latino-americana, o cenário panorâmico que mostra a potencialidade local para
concretizar o projeto de modernidade e o questionamento se realmente este ideal se
efetivará.
Quanto à fotografia de 1958, o horizonte desaparece, a imagem se fecha ao fundo
numa massa quase disforme de prédios que se sobrepõem e cria-se um ponto de fuga em
um dos edifícios que consegue se destacar um pouco deste conjunto, com contraste de
cores que define melhor os seus contornos. Esta ausência de horizonte reforça a idéia de
adensamento urbano, pois o corte ao meio dos edifícios mais ao fundo dá a noção de
continuidade daquele conjunto, ou seja, tem-se a impressão de que a selva de prédios
“não tem fim”. Nesta imagem, a verticalidade é brindada, pois representa a própria
concretização da modernidade. Esta foto seria levada para Inglaterra como uma
recordação de viagem, então, a imagem deveria circular entre familiares e conhecidos
do tio. Estes olhares europeus provavelmente deveriam guardar referências latentes
sobre natureza e índios das terras tropicais. Assim, aquela imagem deveria surpreendê-
los, da mesma forma que Flieg e seu tio foram surpreendidos no contato inicial com
Brasil, ao reconhecerem aqui aspectos de uma urbanidade ocidental do “mundo
civilizado”.
Outra fotografia do fim da década de 1950 (fig. 2.2.4) cria uma nova perspectiva a
partir do mesmo ponto de vista, o alto do edifício do Banco do Brasil. O vale não
aparece na imagem, assim o primeiro plano é ocupado pelo o jardim da praça Ramos de
Azevedo, cercado à esquerda de um pequeno trecho do edifício da Light, à direita, o
CBI-Esplanada também fracionado e, atrás, o Mappin e o Teatro Municipal bastante
valorizados.
Na seqüência, também bem definidas, algumas construções da rua Conselheiro
Crispiniano e, a partir daí, começa o mar de prédios que se estende ao infinito. Ao fundo
uma faixa de céu que não dispersa o ponto de fuga, pois, a posição vertical da
composição quebra com a idéia de vista panorâmica, colaborando com que a imagem
convirja para o edifício mais alto e escuro que, por volume e cor, se destaca no último
plano. Um elemento ganha destaque, a praça Ramos de Azevedo no primeiro plano,
ocupando uma grande área da imagem.
91
Fig. 2.2.4
Praça Ramos de Azevedo e a “selva” de arranha-céus. São Paulo, s/d [final
da década de 1950].
A opção pelo posicionamento vertical da câmera dá uma idéia de estreitamento do
ângulo de visão que cria um espaço comprimido, os edifícios parecem bem juntos e as
formas ficam mais longilíneas. Novamente, há uma exaltação da modernidade
representada na proliferação dos arranha-céus, que se concentram em maior quantidade
num menor espaço. O jardim colocado no primeiro plano, em termos de composição, dá
um respiro, não deixando claustrofóbica a visão do conjunto de prédios. E não por acaso
que o elemento organizador do espaço da imagem é um jardim, que como já disse antes
funciona como símbolo do processo civilizatório, da ação do homem sobre o ambiente
hostil. As palmeiras plantadas na praça denunciam que se trata de uma paisagem
tropical. Cria-se um contraste do jardim com a “selva” de prédios ao fundo que, na
verdade, serve para amenizar o caráter ameaçador desta verticalização, apresentada
como indissociável do movimento modernizador da cidade. Há embutido aí uma noção
de civilização, calcada no equilíbrio e na razão, muito mais ligado ao ideal europeu de
cidade, que valoriza espaços públicos, como as praças. A idéia por trás desta imagem é
de que não seria contraditório racionalizar o modelo americano de metrópole, sem ser
pela lógica exclusiva do consumo, indicando assim que poderia haver uma “pitada” de
humanismo no projeto de modernização da cidade brasileira.
92
A partir do Teatro Municipal, há uma bela tomada do Anhangabaú do início da
década de 1960 (fig. 2.2.5). Composta de vários planos: ponto de ônibus na lateral do
teatro, palmeiras, vale com tráfego de automóveis e Viaduto do Chá, cortando à direita
da foto, os edifícios Conde de Prates e Matarazzo e mais alguns prédios ao fundo. De
novo,as palmeiras identificam a condição tropical.
Estas seqüências de planos e a composição muito equilibrada da foto ordenam o
dinamismo da cidade fotografada, numa idéia de uma “agitação” organizada. Como na
fotografia anterior, projeta um ideal de cidade moderna, racional e humana, na América
do Sul.
Fig. 2.2.5
Vale do Anhangabaú a partir do Teatro Municipal. São Paulo, s/d [final da década de
1950 ou início da década de 1960].
A verticalidade da cidade é um dos aspectos mais presentes nos trabalhos de
Flieg que tinham como tema a cidade. Muitas soluções formais foram dadas para
construir estas imagens. Na foto da avenida Ipiranga de 1963 (foto 2.2.6), por exemplo,
publicada no calendário da Brown Boveri de 1964, Flieg utiliza a tomada de baixo para
cima para valorizar a altura dos edifícios São Tomás e Copan.
93
Fig. 2.2.6
Avenida Ipiranga com os edifícios São Tomás, Copan e Itália (em construção). Foto do
calendário da Brown Boveri para 1964. São Paulo, 1963.
Os calendários da multinacional seriam distribuídos em vários países e, entre as
imagens que queriam passar sobre o país, sem dúvida, a questão da modernidade,
encarnada por São Paulo, era pauta obrigatória135
. O crescimento é mostrado nesta
imagem também de maneira oxigenada, com a valorização do céu e com a presença de
pouca vegetação. Flieg usou uma grande-angular de 90° para enquadrar uma área
relativamente ampla de um ponto de vista muito próximo, assim os três edifícios são
mostrados com muito volume e as distâncias entre eles são valorizadas. Mais uma vez, a
imagem de uma modernização ordenada, onde um espigão residencial convencional
convive de maneira harmoniosa com o canteiro de obras do edifício Itália e com as
inovadoras formas curvas e a proposta comunitária do arranha-céu Copan, ou seja, o
supra-sumo de uma modernidade utópica.
135
A produção dos calendários da Brown Boveri será tratada no item 2.3.
94
Fig. 2.2.7 Fig. 2.2.8
Jovens suíços posando com edifício do Banco
do Estado ao fundo. São Paulo, 1949.
Tio de Flieg em visita à cidade posando com
edifício do Banco do Estado ao fundo. São
Paulo, 1958.
Muitas vezes, Flieg enquadrou um único edifício para sintetizar o processo de
verticalização. O arranha-céu do Banco do Estado, por exemplo, foi utilizado por Flieg,
em pelo menos duas ocasiões, criando composições similares: em 1949 (fig. 2.2.7),
numa foto encomendada para uma reportagem do jornal Schweizer Illustrierte Zeitung
sobre jovens suíços em São Paulo e, em 1958, durante a visita de seu tio ao Brasil (fig.
2.2.8). Nos dois casos, segue o padrão de fotografar um edifício de baixo para cima,
quase isolado, deixando transparecer apenas um pouco das construções vizinhas. O
espigão ao fundo rasga as imagens em sentido vertical, impondo sua presença como um
totem. No primeiro plano das duas fotos, os personagens retratados, novamente num
jogo de escalas. Há, nas imagens, toda uma ambientação que dá um ritmo de grande
metrópole, o tio posando de perfil, olhando no sentido de três homens que caminham
em direção a quem observa a foto, um pouco atrás dos jovens suíços, também há
transeuntes em movimento. A matéria-prima da grande cidade são, assim, os edifícios e
as pessoas em sua eterna corrida no tempo. Há, inclusive, na foto dos suíços, uma
95
alusão mais direta à noção do tempo na modernidade, com o relógio de rua logo atrás
dos rapazes.
Em ambas as fotografias, os retratados são estrangeiros em estada na capital
paulista, o edifício desempenha nas imagens o papel de marco da cidade, remetem às
tradicionais fotos de viagens em que turistas posam com a Torre Eiffel ou as pirâmides
de Egito ao fundo. Flieg apresenta o arranha-céu moderno como imagem-síntese (ou
“cartão-postal”) da cidade, referência que aparecem em muitos trabalhos do fotógrafo
como um “ponto marcante”.136
Há uma remissão à iconografia moderna sobre Nova
York, que já circulava em larga escala pelo mundo principalmente através das revistas
ilustradas, imagens que celebravam a cidade norte-americana e seus arranha-céus como
a encarnação exemplar da cultura moderna. O tratamento majestoso ao edifício nas
imagens não remete apenas à idéia de “um Empire State tropical”, mas também busca
dar toda uma ambientação “nova-iorquina” à cena. Esta identificação de São Paulo com
Nova York, primeiro, busca estabelecer um diálogo com o potencial público destas
imagens – os colegas do tio na Inglaterra e os leitores do jornal suíço -- dando
referências de que já faziam parte do repertório do europeu médio na época. Em
segundo lugar, expõe este anseio, ainda hoje comum, de reconhecimento na cidade de
São Paulo, do “espírito” cosmopolita de Nova York.
Outro elemento comumente identificável nas cidades modernas é o movimento,
as pessoas caminham a passos rápidos, os veículos motorizados dão a dinâmica às
metrópoles. Com o grande plano de abertura de avenidas, São Paulo abre um grande
espaço ao tráfego dos automóveis particulares, privilegiando este meio de locomoção
em detrimento de soluções de transporte coletivo. Assim, a partir dos anos 1940, o
automóvel toma conta de espaços vitais da cidade como o Vale do Anhangabaú, que
além de funcionar como uma via de fluxo constante, era também um grande
estacionamento. Ao registrar a construção do edifício CBI-Esplanada (fig. 2.2.9), em
1949, Flieg fotografou as obras a partir do outro lado do Anhangabaú, aparecendo o
número elevado de automóveis estacionados na região. Esta “dobradinha” arranha-céu e
136
Kevin Lynch define “ponto marcante” como um elemento que se destaca no cenário urbano, servindo
como referência a quem observa. Estes “pontos” podem dominar o espaço de duas formas: “tornando
um elemento visível de muitos pontos (...) ou criando um contraste local com os elementos
circundantes, isto é, sendo uma variante em altura ou constituição”. LYNCH, Kevin. A imagem da
cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1982. p. 91.
96
automóvel é, sem dúvida, uma das mais emblemáticas imagens das cidades modernas, e
é muito recorrente nos trabalhos de Flieg.
Há uma foto dos anos 50 que mostra a avenida São João no sentido de quem
olha para a praça Antônio Prado (fig. 2.2.10). Flieg posicionou-se em uma ilha de modo
que aparecessem as duas pistas da avenida com automóveis nos dois sentidos. Paredes
de edifícios molduram a principal artéria do centro velho da cidade que se afunila até
desaparecer no conjunto de arranha-céus ao fundo. Criou, assim, um ponto de fuga no
edifício do Banco do Estado que se configura bem no fundo da imagem. Carros, ônibus
e bonde estão fracionados, muito distantes ou mostram apenas a parte traseira dos
veículos.
Nessas duas imagens, o automóvel aparece indissociável dos arranha-céus como
se os dois fossem os elementos vitais da alma moderna da cidade. O uso de velocidade
lenta de diafragma na foto da São João reforça a idéia de movimento. Os transeuntes
perdem substância e dão dinâmica à cena. A fila de carros parados do lado direito da
imagem mostra o paradoxal papel desempenhado pelo automóvel nos grandes centros
que, em sua presença maciça para dar movimento à vida urbana, acaba quebrando a
cadência da cidade com os congestionamentos.
Fig. 2.2.10
Avenida São João, sentido praça Antônio Prado. São Paulo, s/d [início da década de 1950].
Esta combinação de altos edifícios e efeitos de movimento para remeter à idéia
de modernidade chega a aparecer numa fotomontagem de 1972 (fig. 2.2.11) para o
material de divulgação do metrô de São Paulo que seria inaugurado em 1974. Na parte
97
superior da imagem, uma bonita vista da cidade a partir da zona norte, que
originalmente tinha o Anhembi e as pistas do Campo de Marte no primeiro plano, o mar
de prédios na seqüência e um enorme céu que ocupava dois terços da imagem. Para a
montagem, o primeiro plano foi todo cortado, como também foram eliminados parte das
laterais e sobrou apenas uma pequena faixa de céu. Assim, a vista da fotomontagem
ficou resumida a uma panorâmica do conjunto de prédios. Na parte inferior da imagem,
sobre um fundo neutro foi montada a foto dos vagões sobre trilhos, cruzando o
retângulo diagonalmente para dar efeito de movimento, chegando a invadir um pouco a
foto de cima. A composição do trem rasgando o “subterrâneo” da grande cidade chega
com ímpeto para coroar a modernização de São Paulo.
Fig. 2.2.11
Fotomontagem para a material de divulgação do metrô. São Paulo, 1972.
Espaço em construção
Em 1951, começaram as obras para a demolição do belvedere e da pérgola do
Trianon. No lugar, seria erguido o pavilhão que sediaria a Bienal de Artes a ser
inaugurada naquele ano, com a promessa de inserir as artes plásticas em grande estilo
no calendário cultural da cidade. Flieg foi contratado como fotógrafo oficial da I Bienal,
a convite de Arturo Profili, figura muito próxima a Francisco Matarazzo Sobrinho
(Cicillo Matarazzo).
98
Fig. 2.2.12
O trabalho de Flieg começaria antes mesmo da montagem da exposição, no
acompanhamento da derrubada do Trianon e da construção do prédio. Primeiro, uma
última olhada para o belvedere e a pérgola numa foto que enquadra a rua Plínio de
Figueiredo no sentido da avenida 9 de Julho (fig.2.2.12). A bonita composição com um
trecho da lateral do Trianon aparecendo em quina no lado direito da imagem, a rua em
declive para baixo com sua textura de paralelepípedos a ocupar um espaço privilegiado
da foto.
Um automóvel sobe a rampa da rua retratada e, ao fundo, surgem os edifícios da 9
de Julho e do centro da cidade. Sem a contextualização exata, ou seja, a da iminência da
demolição, a ênfase desta imagem estaria no contraste da São Paulo antiga do Trianon
com a modernidade dos espigões e da avenida que, sem aparecer claramente, impõe sua
presença. No entanto, quando se encaixa esta imagem no conjunto de fotos que
reportam à construção do pavilhão da Bienal, ela adquire conotação nostálgica. Aquela
ponta de Trianon a mirar a paisagem da cidade moderna, onde tudo é muito perecível,
constata que seu tempo já passou, agora é um novo ciclo. O antigo marco da avenida
Paulista é personificado nesta imagem que poeticamente poderíamos comparar à última
visão de um condenado.
99
Fig. 2.2.13
Outra foto da série mostra a partir da avenida Paulista a colocação dos tapumes
de madeiras para o início das obras (fig. 2.2.13). Da calçada oposta ao belvedere, Flieg
fotografou a avenida com carro e bonde passando e, no plano seguinte, as construções
do Trianon com o tapume sendo colocado. Duas presenças humanas na foto: o operário
montado numa escada para colocar as placas de madeira e um transeunte caminhando
no meio-fio em frente à obra. A cena é coberta por um céu expressivo, com um clarão
sobre a área ocupada pelo Trianon. O automóvel e o bonde movimentam-se da direita
para esquerda da imagem, tem ação, o carro está um pouco “tremido”, indicando
deslocamento, e o bonde está apenas com meio corpo dentro do quadro da foto, também
transmitindo a idéia de movimento. O carro está à frente, deixando o bonde para trás.
No mesmo sentido, da direita para a esquerda, os tapumes vêm cobrindo a antiga
construção. Estes deslocamentos na mesma direção vão fazendo uma varredura no
quadro da foto. É o processo de modernização chegando. O condenado já está no
corredor da morte.
Um monte de pedras que encobre a escadaria do Trianon (fig. 2.2.14) ocupa o
primeiro plano, ganhando grandes proporções. Mais ao fundo, aponta um edifício
moderno. A texturização do primeiro plano, com os pedregulhos e os quadriculados do
calçamento, estetiza a imagem. As pedras tomando a escada indicam que o processo de
supressão do antigo para a elevação do novo está começando. O condenado já está
amarrado à cadeira elétrica e os algozes estão a postos.
100
.
Fig. 2.2.14
As outras imagens que compõem a reportagem sobre o Trianon mostram cenas
um pouco similares a três descritas acima. São vistas do Trianon a partir da 9 de Julho,
tapumes cobrindo o complexo da pérgola e belvedere, materiais de construção
despejados sobre o local. Assim, o que aparece nestas fotos é o processo de preparação
da obra, não são mostradas cenas como operários com marreta em punho e ruínas do
antigo marco da cidade. Na metáfora do condenado, o momento da execução e o
cadáver não foram fotografados.
O conjunto completo de fotos encomendadas pela organização da Bienal é
composto ainda por imagens do pavilhão já concluído e das peças que participaram da
mostra, formando uma coleção provavelmente única sobre o assunto. A ausência de
referências diretas à demolição do Trianon, como também à construção do prédio da
Bienal, pode ser muito eloqüente. Imagens da destruição de um quase patrimônio da
cidade, como o Trianon, não combinavam com a idéia de civilidade que a grande mostra
de artes deveria representar. Assim, solicita-se que sejam fotografados o começo e o fim
do processo, mostrando construções que ainda ou já estão de pé. No entanto, a poética
das imagens do início das obras faz transparecer uma certa melancolia do fotógrafo com
relação à demolição que estava por vir. Não acredito que ele estava colocando em
dúvida a importância de tal iniciativa de valorização das artes na cidade, mas vejo
nestas fotos um olhar bastante europeu que não deixa de se comover frente à facilidade
101
com a qual a cidade americana consumia sua própria história. Por isso, Flieg ritualiza
em sua narrativa visual o fim de um espaço público.
Se este estágio intermediário, entre a cidade antiga e a moderna, que é o do
canteiro de obras, desaparece na reportagem sobre o Trianon, em outros trabalhos vai
aparecer com muito destaque. Os canteiros até hoje pontilham o cenário paulistano, são
como um atestado do empenho da cidade em se renovar conforme a lógica do capital.
Em 1949, Flieg executava um trabalho para a Sociedade Técnica de Instalações Gerais
(STIG), eram fotos de alguns edifícios, para os quais a empresa prestou serviço, que
seriam utilizadas em material de divulgação. A estrutura em madeira montada para
erguer o edifício CBI-Esplanada aparece retratada a partir de vários pontos de vista,
como a tomada a partir do Viaduto do Chá (fig. 2.2.9). Esta imagem tem uma idéia de
progresso expressa através da valorização do esqueleto de arranha-céu e dos automóveis
na cena. Estes elementos identificadores da modernidade parecem convivendo
harmoniosamente com o núcleo mais antigo da praça Ramos de Azevedo.
No entanto, em outra imagem, feita na mesma ocasião (fig. 2.2.15), o ponto de
vista muda, a partir do meio do vale, e o tratamento muda também. O edifício de
escritórios, projetado pelo arquiteto polonês Lukjan Korngold em 1946, tinha a maior
estrutura em concreto armado do país, nesta época137
. Assim, as grandes proporções da
obra podiam facilmente se chocar com as construções que já existiam em seu perímetro
mais próximo. A foto tirada do viaduto do Chá foi composta em uma perspectiva mais
tradicional que a da outra imagem, com a câmera a certa distância do motivo,
posicionada em um nível elevado do solo (altura do viaduto) e com maior amplitude de
enquadramento
137
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Edusp, 1999. p. 135.
102
Construção do edifício CBI-Esplanada. São Paulo, 1949.
Fig. 2.2.15
A segunda foto com a tomada de baixo para cima enfatiza a monumentalidade do
edifício em construção o que oprime os prédios vizinhos de proporção bastante
inferiores. Estas duas fotos que compõem o mesmo trabalho trazem concepções
diferentes quanto ao papel das novas construções no cenário urbano. A primeira me
parece uma imagem que iria mais de encontro às expectativas do cliente, ou seja, uma
empresa de instalações gerais em obras de engenharia que teria maior interesse em
estimular a cultura dos altos edifícios. A outra foto soa como uma visão mais particular
do fotógrafo sobre o processo, um olhar que sutilmente denuncia o esmagamento da
velha cidade pela nova.
É muito comum os habitantes das grandes cidade se relacionarem ambiguamente
com os canteiros de obra. Marshall Berman descreve seus sentimentos frente às obras de
construção da Via Expressa do Bronx que colocava a baixo uma região de charmosos
edifícios Art-deco – “era o que tínhamos de mais parecido com um bulevar parisiense
no bairro”. O conjunto de prédios era a expressão da modernidade de primeira-hora que
cativara os moradores do Bronx, mas, a própria lógica da modernização o ameaçava:
Enquanto via um dos mais graciosos desses edifícios vir
abaixo para dar passagem à estrada, senti um pesar que, hoje
posso ver, é endêmico à vida moderna. Com demasiada
freqüência, o preço da modernidade crescente e em constante
avanço é a destruição, não apenas das instituições e ambientes
103
“tradicionais” e “pré-modernos”, mas também – e aqui está a
verdadeira tragédia – de tudo o que há de mais vital e belo no
próprio mundo moderno. Aqui no Bronx, graças a Robert
Moses, a modernidade do bulevar urbano era condenada como
obsoleta e feita em pedaços pela modernidade da rodovia
interestadual. Sic transit! Ser moderno revelava-se muito mais
problemático, e mais arriscado, do que eu jamais pensara.138
Neste turbilhão, o moderno é sobreposto pelo mais moderno. A cidade vive numa
eterna transitoriedade, o que quebra qualquer possibilidade de vínculo dos habitantes
com o espaço, ou melhor, com certas qualidades do espaço, pois, estas estão em
constante transformação. Da mesma forma que os judeus do Bronx, “viveiro de todas as
formas de radicalismos”139
, viviam a contradição entre a necessidade de estabelecer
referências e a empolgação pela renovação, Flieg também mantinha uma relação
ambígua com a modernização de São Paulo. Esta dualidade, vivenciada de forma geral
pelos moradores dos grandes centros, é concretizada na figura dos canteiros de obras.
Elemento que denuncia a dinâmica moderna na cidade e que também se configura como
objeto de contemplação, pois estampa o sonho de progresso e a ameaça de
desenraizamento. Para um estrangeiro, formado na modernidade européia, na condição
de refugiado no país tropical, esta questão adquire proporções ainda maiores, uma vez
que, há um choque entre seu encantamento pelo novo e a sua necessidade de obter
referências para fixar raízes.
Em 1949, na já citada encomenda da STIG, Flieg fotografou o edifício do Banco
do Brasil sendo erguido (fig. 2.2.16). A partir da rua Líbero Badaró, ele enquadrou a
estrutura em madeira do arranha-céu no centro da imagem, aparecendo ao redor, as
construções mais antigas da avenida São João (à esquerda) e o Martinelli e o Banco do
Estado (à direita) fracionados. No primeiro plano, tapume de madeira coberto de
cartazes que anunciam o “Circo da Folia – Carnaval de 1949”.
Nesta imagem, convivem várias etapas do processo de modernização da cidade:
os altos edifícios já erguidos (Martinelli e Banco do Estado), o que estava sendo erguido
(Banco do Brasil), o que foi posto a baixo (tapumes) e os remanescentes (prédios na
avenida São João). No entanto, esta convivência não é mostrada de maneira
harmoniosa. Os espigões surgem por trás das construções mais antigas de maneira
descoordenada, o primeiro plano mostra uma área desolada, os prédios da São João
estão desfigurados por placas, letreiros e anúncios e uma fila de automóveis se forma.
138
BERMAN, Marshall. Op. cit. p. 280. 139
Ibid. p. 279.
104
Há uma deterioração da cidade mercantilizada – bancos e escritórios comerciais erguem
edifícios que não respeitam a organização anterior do espaço urbano, a publicidade se
espalha desordenadamente pelas ruas e fachadas e construtoras demolem e levantam
paredes ao vau da valsa do capital. Tudo na cidade é efêmero, como lembra a fachada
do prédio comercial que aparece do lado direito da foto, na frente do Martinelli. Marcas
de letreiros arrancados misturam-se a anúncios de acumuladores e armas para caça, o
toldo fechado exibe o nome da loja “A Feira da Nações” e no suporte para letreiros o
indício da publicidade arrancada apressadamente “Leia e anuncie no...”.
Fig. 2.2.16
Edifício do Banco do Brasil em construção. São Paulo, 1949
Flieg realizou alguns trabalhos, por intermédio da agência P.A. Nascimento
Publicidade, para a Companhia Esmeralda de Imóveis, empresa especializada na
construção e comercialização de edifícios residenciais. Nos anos 50, houve um boom
imobiliário em São Paulo, com uma população que pulou de 2 milhões de habitantes em
105
1950 para 3 milhões em 1957140
. Com a valorização excessiva dos terrenos aumentou a
procura por apartamentos de alto e médio padrão o que gerou uma grande
movimentação no mercado imobiliário. Grandes projetos arquitetônicos para prédios de
residência surgiram neste período, no centro e na valorizada região de Higienópolis,
com projetos saídos das pranchetas de arquitetos como Rino Levi e Vilanova Artigas. A
publicidade de venda de móveis se intensificou e se fez perceber na cidade, com a
proliferação de escritório de vendas, anúncios em outdoors, cartazes, material de
divulgação impresso etc.
Fig. 2.2.17
Divulgação do lançamento do Condomínio Vicente Amato Sobrinho, na Praça Carlos Gomes.
Encomenda da Cia. Esmeralda de Imóveis. São Paulo, 1954.
Em 1954, Flieg fez uma foto da fachada do canteiro de obras do Condomínio
Comendador Vicente Amato Sobrinho, na praça Carlos Gomes (fig. 2.2.17), coberta de
enormes placas de divulgação do empreendimento, com informação sobre os
apartamentos e contagem regressiva para o lançamento. Vale a pena notar certas pistas
que a foto fornece quanto à questão imobiliária em São Paulo na década de 1950, como
o fato do condomínio comportar apartamentos de 1, 2 e 3 dormitórios, numa proposta de
“democratização” dos conjuntos residenciais, tal qual o Copan de Oscar Niemayer, que
começou a ser erguido na mesma época. Também se destacava que o condomínio
oferecia “garagens individuais a parte” (sic), revelando a disseminação do automóvel
entre a classe média paulistana. O registro fotográfico da construção do prédio resume-
140
MORSE, Richard. Op. cit. p. 365.
106
se a enquadrar publicidade do empreendimento, sem resquícios das obras de engenharia
à mostra. Esta imagem dá a síntese da modernidade ao trabalhar, de maneira articulada,
com alguns de seus principais símbolos: o canteiro de obras (que mesmo não visível
está latente na foto), o edifício (também não presente, mas anunciado), o espaço de
concentração de várias pessoas (o edifício com apartamentos com vários tipos de
plantas), a referência ao automóvel (no anúncio do edifício, como também os veículos
estacionados na rua) e a presença ostensiva da publicidade a comercializar o espaço
urbano.
Fig. 2.2.18
Operários nas obras na cobertura do Condomínio Vitória Régia. Encomenda da Cia. Esmeralda de
Imóveis. São Paulo, 1956.
Outro trabalho para a Cia. Esmeralda de Imóveis foi o das obras na cobertura do
edifício Vitória Régia, na rua Marquês de Itu, em 1956 (fig. 2.2.18). Para uma das fotos
que seriam publicadas no folder de divulgação do empreendimento, Flieg colocou no
centro de composição os operários trabalhando. Foi publicado um dos fotogramas que
mostrava os trabalhadores com a cidade ao fundo. No entanto, neste filme há uma outra
imagem mais expressiva, em que os mesmos homens empurram carrinhos com material
de construção. O posicionamento dos operários é bastante orquestrado. Um caminha
perpendicularmente ao outro, estando um de costas para o fotógrafo e o outro de perfil.
Flieg os fotografa de um nível mais baixo, elevando os trabalhadores como um
monumento com céu ao fundo. O próprio fotógrafo declarou que fez esta foto por “não
ter resistido à cena” pois ela aludia diretamente a imagens soviéticas de elevação da
classe trabalhadora. A imagem é como um lembrete que a modernidade só se realiza
107
através do trabalho, a força potencial do laboro é que leva os homens às alturas de seus
arranha-céus, empilhando tijolos ou armando concreto. Como nas imagens de Lewis
Hine sobre a construção do Empire State Building (1930-1931), o homem é presença
fundamental no processo de modernização das cidades, não há máquina que substitua
sua força. A foto de Flieg é um elogio ao trabalho o que não implica num
posicionamento de crítica às relações de produção vigentes.
A rua e o ritmo da vida
Fig. 2.2.19
Visita do presidente norte-americano Dwight Eisenhower ao Brasil. São Paulo, fevereiro de 1960.
Flieg caracteriza-se por ser um fotógrafo de motivos estáticos e/ou arranjados. As
imagens que produziu sobre São Paulo, como é possível perceber pela amostra
apresentada até aqui, são em grande parte vistas da cidade e fotografias de arquitetura.
No entanto, existem alguns raros momentos em que ele experimenta uma fotografia
mais próxima da reportagem jornalística. Em fevereiro de 1960, o presidente norte-
americano Dwight Eisenhower visitou São Paulo. Flieg foi à avenida Paulista e
registrou o acontecimento em três imagens. Em uma delas, Eisenhower aparecem em
meio a militares, banda e a audiência popular que observam o estadista sob guarda-
chuvas pretos para proteger da garoa de São Paulo (fig. 2.2.19). Numa atitude típica de
108
um repórter fotográfico, Flieg se infiltra no meio da ação, produzindo imagens com
muitos elementos e em que o assunto literalmente envolve o espectador.
Além deste rápido exercício fotojornalístico, existem duas pequenas reportagens
realizadas em 120 mm que mostram um vigoroso cronista urbano, são imagens que
apresentam agilidade e muita espontaneidade.
Em 1948, recebeu emprestada uma câmera Flexarette 6 x 6 cm para fazer um teste
com o equipamento. Então, ele saiu pela região da rua Augusta fotografando livremente,
o que lhe permitiu uma experiência bastante nova, justamente pelo
descomprometimento profissional -- não havia uma pressão de outras pessoas quanto ao
resultado das imagens – e pela agilidade que sentiu com o equipamento de médio
formato, com o qual ele nunca efetivamente trabalhou. Deste “passeio fotográfico”, nos
arredores da casa onde Flieg morava, resultou um filme de doze poses (fig. 2.2.20).
Dois garotos tomam sorvete na calçada. Nada de automóveis, altos prédios e
multidões. Uma bicicleta estacionada no meio-fio, uns poucos passantes ao fundo e uma
construção com loja e sobreloja, em que funciona um bar ou armazém. No meio da rua,
um homem puxa uma corda que começa do lado de fora do quadro da imagem. Não
sabemos o que está sendo puxado, só nos resta imaginar. Em outra foto, vem a resposta.
O mesmo homem – um operário – puxa o cabo que deve levantar um componente de
rede elétrica até o alto de um poste. Para esta operação, teve de podar as árvores, há
ramos espalhados pelo chão. Muitas linhas – dos cabos, da escada, do meio-fio --
compõem a imagem e, para reforçar este jogo, o enquadramento em diagonal.
Pai e filho recolhem objetos velhos na carroça estacionada. Na porta da sapataria,
o trabalhador negro engraxa o sapato do senhor de terno, enquanto o rapaz branco de
calças curtas se recosta para esperar. No outro quadrado, avista-se a roda gigante por
cima do muro, de um ângulo inusual, enquadrada de um jeito que ela não aparece por
inteiro. Mas, é dia, a roda está parada, um técnico ajusta algum mecanismo para que à
noite ela possa funcionar. Um simpático sobrado, fracionado pelo enquadramento, tem
jardim e mureta. Deve ser bom morar lá.
Reforma-se qualquer colchão” lê-se na vitrine inclinada vista por um ângulo tão
incomum. No Cinema Paulista, tem sorveteria, confeitaria e bar. Passam por ali a
mulher que olha para trás e a outra que vai chegando, garotos que voltam da escola e o
homem que para um pouco, enquanto lê o jornal. No balcão da sorveteria, o homem de
avental branco trabalha. O outro fotograma mostra que ele está mexendo o sorvete de
109
creme ou chocolate. E uma tomada da rua Augusta, calminha, casas baixinhas, pequeno
comércio, mulheres conversam na calçada, crianças brincam, um único carro avança
pela via cheia de trilhos de bonde, iluminação pública e rede elétrica.
Fig. 2.2.20
Proximidades da rua Augusta. Cópia contato do filme produzido para testar a câmera Flexarette 6x6 cm. São Paulo,
1948.
110
“Nesta reportagem, Flieg mostra uma cidade muito distante daquela da região do
Parque do Anhangabaú. Existem elementos que remetem à modernidade, como a
eletricidade e as estruturas metálicas da roda gigante, mas o que estas imagens buscam é
a humanização da cidade, pondo em cena o lado provinciano de São Paulo. A rua pacata
é celebrada como palco de uma vida autêntica. Esta série descortina uma cidade que não
aparecia com freqüência nos meios de comunicação da época, nem era comumente
identificada como símbolo de uma cidade ideal. Estas imagens remetem à fotografia de
rua, que valoriza a presença humana na cidade, praticada por fotógrafos como Robert
Doisneau, Brassaï, Willys Ronis e Izis.
Vinte anos depois, Flieg repete esta experiência dos instantâneos de rua, desta vez,
com a câmera Rolleicord, também formato 6 x 6 cm, com que ele e o irmão
presentearam o pai em 1953. As doze poses de 1968 foram feitas na região do começo
da avenida Prestes Maia, próximo ao estúdio de Flieg (fig. 2.2.21). Há uma
identificação do espaço. Olhando para cima, ele via o arranha-céu, composto na foto em
forma piramidal. Para um lado, a larga avenida, com carros e edifícios, para o outro,
automóveis estacionados, estrutura de metal do viaduto, entre tantos mais elementos.
Na faixa de pedestres, um sujeito espera e um outro também, até que, com o
guarda em cena, todo mundo já atravessou. Os carros estacionados são tão brilhantes
que refletem as árvores, as estruturas do viaduto e o homem debruçado. Tem “pipócas”
(sic) pulando sem parar dentro da máquina. Um casal passa de braços dados por uma
barraca de frutas, onde mulheres pechincham o preço, alheias ao barulho dos carros e
ônibus que passam logo atrás e ao espigão que se ergue ao fundo. Embaixo do viaduto
Santa Ifigênia, duas amigas (conhecidas, vizinhas?) conversam, nem ligando que a rua
da cidade moderna seja lugar só de passagem. Nos jornais e revistas, todos preocupados
-- será que a Marta Rocha vai mesmo perder o título?
Nesta série de 1968, a cidade é mostrada com todos os seus elementos de
modernidade – automóvel, trânsito, arranha-céu, transeuntes, máquinas e mídia. Mas,
como no filme de 1948, a rua também é festejada. Há uma grande vida correndo nas
vias da metrópole, há no fundo um certo provincianismo – da conversa na calçada, da
pechincha na feira – que a modernidade não apaga. Assim, as imagens identificam esta
convivência do metropolitano com o provinciano como fonte da vitalidade da cidade.
111
Fig. 2.2.21
Proximidades da avenida Prestes Maia. Cópia contato do filme produzido com a câmera Rolleicord 6x6
cm. São Paulo, 1968.
As duas reportagens em 120 mm mostram um Flieg atípico do ponto de vista
formal. As cenas não são previamente preparadas em todos os detalhes, a câmera corre
solta em busca do flagrante. Há um grande naturalismo e, ao mesmo tempo, uma
visualidade muito renovada que abusa das composições diagonais e de ângulos não-
112
convencionais, decepa os objetos retratados e brinca com reflexos e distorções. No
entanto, estas imagens têm uma poética que não é única, que aparece, de maneiras
diversas, em outros trabalhos. As duas séries fazem parte de um conjunto muito mais
amplo de fotos que expressam a relação do fotógrafo com a cidade e que captam o que
ele considera como a verdadeira essência paulistana.
Reminiscências
Argan destaca em seu estudo sobre o relacionamento entre arte e cidade que os
traços mais antigos de um centro urbano são usualmente aceitos como a sua identidade
histórica, enquanto, o moderno seria identificado como “não-histórico” ou “anti-
histórico”. Assim, a cidade moderna depende em parte da antiga, pois, somente em
contrate com o “histórico” é que a sua modernidade se legitima.
(...) a cidade moderna contrapõe-se à antiga
exatamente na medida em que reflete o conceito de uma cidade
que, não tendo uma instituição carismática, pode continuar a
mudar sem uma ordem providencial e que, portanto,
exatamente a sua mudança contínua é representativa, de modo
que o que resta do antigo é interpretado, sim, como
pertencente à história, mas a um ciclo histórico já
encerrado.141
Estas reminiscências do passado de São Paulo aparecem nos trabalhos de Flieg
de maneira muito contundente, é possível dizer que havia uma busca por esses
elementos, pois, eles dariam sentido à cidade. Em 1971, a Brown Boveri encomendou
as fotos para o calendário do ano seguinte que seria comemorativo do sesquicentenário
da Independência do Brasil. Flieg, então, escolheu como tema o Monumento do
Ipiranga, pois ele sempre “pasmava ao ouvir da maioria das pessoas a quem (...)
perguntava, a resposta: Aquele monumento onde se passa no caminho para Santos?
Não, nunca o vi de perto”.142
O Monumento do Ipiranga foi inaugurado em 7 de setembro de 1922. De autoria
de Ettore Ximenez, o projeto venceu o concurso internacional, promovido pelo Governo
141
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte com história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.
75. 142
FLIEG, Hans Gunter. Texto introdutório. SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura.
Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas. Arquivo Fotográfico Hans Gunter Flieg. São Paulo,
1980.
113
do Estado de São Paulo em 1919. Circulou na época a versão de que Ximenez havia
recebido a encomenda para um monumento ao czar russo. No entanto, com os
acontecimentos revolucionários de 1917 na Rússia, o italiano literalmente perdeu o seu
cliente. “Assim, pois, seu enorme esfôrço no projeto da biga romana e os dois cavalos
encontrou aplicação aqui em S. Paulo no monumento à Independência...”143
. Além de
alegorias, as representações de “vultos”, como José Bonifácio, Gonçalves Ledo e
Regente Feijó, e de episódios relacionados do processo do independência do Brasil,
como Revolução Pernambucana, martírio de Tiradentes, Conjuração Baiana e, é claro, a
própria cena da proclamação. O espaço interno do monumento foi adaptado para uma
cripta onde, em 1954, foram depositados os despojos de D. Leopoldina e, em 1972, os
de D. Pedro I.
A maioria das fotos que compõem o calendário mostra o monumento em
tomadas gerais, centrado em algum dos estágios que compõem a obra ou em detalhes
menores. Numa época em que a ditadura militar evocava o ufanismo verde-amarelo, os
temas históricos com apelo a personalismos foram valorizados no âmbito da produção
cultural de massa. Em 1972, por exemplo, foi lançado o filme Independência ou Morte,
de Carlos Coimbra, que rendeu uma das maiores bilheterias do cinema nacional na
década de 1970. Neste contexto de uma certa “euforia” patriótica, verifica-se que
algumas das imagens do Monumento do Ipiranga carregam no verniz épico.
Fig. 2.2.22
Monumento triunfal da Nação Brasileira, Ipiranga. Foto do calendário da Brown Boveri 1972. São Paulo,
1971.
143
AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 67.
114
A foto que mostra a alegoria do “triunfo da Nação Brasileira” (fig. 2.2.22) em
silhueta com a pira acesa bem a frente vem bem neste “espírito” da época. O trabalho
com cores fortes bem contrastadas – azul do céu, amarelo do fogo e preto da silhueta – e
a tomada de baixo para cima dão força à composição e acentuam o tratamento
grandiloqüente. Estes expedientes se repetem em várias outras imagens que compõem o
calendário.
Outra imagem mostra este mesmo “grupo triunfal” durante as comemorações de
7 de setembro de 1971 (fig. 2.2.23), com os degraus da base do monumento tomados
pelo público. Com uma claridade natural distribuída por toda a imagem, a cena tem um
colorido vivo e alguns detalhes como os balões e bandeiras verde-amarelos no primeiro
plano ganham destaque. Na composição, o monumento acima do público ocupa cerca de
dois terços da imagem, reafirmando a imponência da construção. A pequena multidão
aos pés do conjunto de esculturas serve para revitalizar a imagem do marco histórico e
coloca a questão do monumento em interação no contexto urbano.
Fig. 2.2.23
Comemorações de 7 de setembro, Monumento do Ipiranga. Calendário da Brown Boveri 1972. São Paulo, 1971
115
Entre as imagens não publicadas no calendário, há uma foto que estabelece uma
relação do monumento com a vida da cidade – as festividades, visitantes, movimento de
veículo, comércio etc.--, não são mais os conjuntos escultóricos isolados
, estáticos e sem presença humana. Esta imagem é um exemplo de como “a
memória histórica e a trama visual das cidades modernas”144
, num processo em que o
marco urbano é enquadrado dentro de uma dinâmica, ganha assim novos sentidos.
Néstor Canclini ressalta que os monumentos estão constantemente adquirindo
significados no contexto da vida moderna. Se o processo de modernização buscou
organizar os elementos urbanos em lugares específicos e atribuir-lhes funções
particulares, a própria dinâmica citadina transgrediu esta ordem, uma vez que “no
movimento da cidade, os interesses mercantis cruzam-se com os históricos, estéticos e
comunicacionais”145
. Assim, a memória interage com a mudança e os monumentos em
espaço aberto estão em constante renovação, pois “mesmo que os escultores resistam a
abandonar as fórmulas do realismo clássico ao representar o passado, a fazer heróis
de manga curta, os monumentos se atualizam por meio das ‘irreverências’ dos
cidadãos”.146
Em São Paulo, esta carga de irreverência que os habitantes das cidades latino-
americanas destilam no confronto com a história chamou a atenção Lévi-Strauss durante
sua estada.
No meio de uma dessas ruas quase rurais, (...) a
colônia italiana mandara erguer uma estátua de Augusto. Era
uma reprodução de bronze, em tamanho natural, de um
mármore antigo, medíocre, para falar a verdade, mas que
merecia algum respeito numa cidade onde nada mais evocava
a história anterior ao século passado. Contudo, a população
de São Paulo decidiu que o braço levantado para a saudação
romana significava: “É aqui que mora Carlito”. Carlos
Pereira de Sousa, ex-ministro e político influente, possuía na
direção indicada pela mão imperial uma dessas vastas casas
térreas (...).147
É assim curioso observar que Flieg, no começo da década de 1970, ou seja,
vivendo há cerca de 40 anos no Brasil, incorpora parte deste “espírito irreverente” ao se
144
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Edusp, 1997. p. 300. 145
Ibid. p. 301. 146
Ibid.
147
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. p. 98.
116
deliciar em identificar nas esculturas do monumento um boi moldado com a
constituição física de uma vaca ou, na cena da aclamação popular a D. Pedro I, um
“trombadinha” em ação nos bolsos de entusiasmados compatriotas que saúdam o
imperador (fig. 2.2.24). Quanto à distribuição das figuras do “grupo triunfal”, sempre se
lembra do comentário sarcástico de um antigo conhecido “pra variar, deixaram o índio
para trás”.
Fig. 2.2.24
A cidade antiga pode deixar suas marcas na moderna não somente através de seus
marcos históricos, mas também através de certas dinâmicas que sobrevivem dentro de
certos espaços ou núcleos e que rompem com o ritmo da modernidade. Nos primeiros
registros de Flieg em São Paulo, em 1940, com os quais ele fez a colagem para
presentear o pai, há imagens que remetem a uma vida comunitária em que um vizinho
usa o telefone na casa do outro, as pessoas ficam à janela ou ao portão vestindo pijamas.
Este modo de vida, dos arredores da casa da rua Pedro Taques, rompiam, aos olhos de
Flieg, com aquela pulsão moderna à velocidade e à individualidade.
Nada poderia parecer mais anacrônico no contexto da modernidade do que um
vendedor de laranjas que ia de porta em porta com sua carroça (fig. 2.2.25). A laranja,
produto agrícola, remete ao campo que é o antagônico à cidade; de porta em porta não
segue a lógica do comércio de massa que começa a ser implantado no Brasil na década
de 1940 e a carroça, à tração animal, é a antítese do símbolo da velocidade, o
automóvel. Este lapso espacial onde remanesce um modo de vida que não segue a
dinâmica moderna também aparece na reportagem com equipamento 6 x 6 cm realizado
em 1948 (fig. 2.2.20).
Há também na nova cidade a permanência de elementos naturais. No centro da
cidade a presença das palmeiras imperiais na praça Ramos de Azevedo remetem ao
117
tropicalismo que permanece como elemento de identidade do espaço (figs. 2.2.4 e
2.2.5). Em 1940, Flieg fotografou os jardins do Museu do Ipiranga (Museu Paulista) a
partir de umas das sacadas do edifício do século XIX (fig. 2.2.26). Durante a visita do
tio que vivia na Inglaterra, em 1958, Flieg fotografou o passeio da família ao orquidário.
Na foto, aparecem os pais e o tio de Flieg observando espécimes da flor em um viveiro,
com uma área gramada e com árvores ao fundo (fig. 2.2.27). Outra foto que podemos
encaixar neste grupo é a dos filhotes de onça pintada no zoológico de São Paulo (fig.
2.2.28). Esta imagem, Flieg produziu em cores, em 1963, para no trabalho para o
calendário da Brown Boveri do ano de 1964.
Fig. 2.2.25 Vendedor de laranjas na rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.
Fig. 2.2.28
118
Fig. 2.2.26 Fig.2.2.27
Jardim do Museu Paulista, Ipiranga. São Paulo, 1940; Família Flieg em passeio ao orquidário. São Paulo, 1958;
Filhotes de onça pintada no zoológico. São Paulo, 1963.
Estas fotos mostram como que a natureza associada à cidade de São Paulo é
sempre mostrada por Flieg em sua forma domesticada. Mesmo quando se quer criar a
idéia de um ambiente selvagem como na foto das onças, não identificamos nos animais
retratados traços de hostilidade. São filhotes, ou seja, representam muito mais a
docilidade do que uma ameaça, eles não estão encarando a câmera -- sua potencial
vítima – mas olham tranqüilamente para a esquerda. Os filhotes estão posicionados em
tal harmonia que parecem em pose montada, o que também reforça a idéia de
dominação do homem sobre as feras. A imagem que circulou nos calendários da
multinacional teria a função de mostrar para um público internacional um elemento do
exotismo tropical (as onças) que sobrevive na modernidade brasileira dentro de certas
barreiras (o zoológico) e códigos (a pose) de forma que não ameace a civilidade.
Os jardins do Ipiranga148
, com inspiração nos jardins barrocos de Versalhes,
representam o ápice do modelo de espaço público ligado a um modelo anterior de
cidade, mas que também não ameaça o processo de modernização, pois, funciona como
área de lazer um pouco afastada do centro. As pessoas vão de automóvel até o parque
para passar o domingo, dia de descanso, existe, assim, uma interação entre a natureza
ordenada, conforme códigos do século XVIII e a dinâmica da vida moderna.
A outra foto do orquidário seria um souvenir de viagem para o tio e confronta os
europeus, dois estabelecidos na terra tropical e um turista recém-chegado, com a
exuberância da botânica local representada pelas orquídeas. As plantas estão em
148
O prédio do Museu, projeto de Tommaso Gaudenzio Bezzi, em estilo neo-renascentista, foi
inaugurado em 1895. Os jardins foram projetados mais tarde, em 1909, pelo paisagista Arsênio
Puttemans.
119
viveiros, a grama do fundo está bem aparada, as árvores são plantadas, mais uma vez a
natureza está absolutamente controlada pelo homem. Assim, qualquer pessoa não-nativa
poderia circular neste espaço e ter contato com a flora tropical em um ambiente muito
amistoso.
As reminiscências de alguma idéia de passado na cidade moderna das imagens
de Flieg expressam que a latência destes elementos sobrevive aos arranha-céus. A
convivência dos dois (ou mais) tempos não parece dilacerar o ideal de modernidade,
pelo contrário, daria até uma certa vitalidade fundamental ao “espírito renovador” da
modernização.
Muitos tempos
O trabalho que Flieg realizou em 1939 para a STIG consistia basicamente em
fotografia de arquitetura. Um dos prédios a ser fotografado era o edifício Mara, na rua
Brigadeiro Tobias, entre a Senador Queirós e a Beneficência Portuguesa. Flieg primeiro
o fotografou a partir da própria Brigadeiro Tobias, não havia espaço para o fotógrafo se
posicionar, então para evitar distorções acentuadas de grande-angulares, optou por
compor a imagem com linhas diagonais, o que seria uma solução adequada às formas
atualizadas do prédio. No entanto, Flieg não ficou satisfeito com o resultado e achou
que deveria compor uma imagem em uma perspectiva mais convencional. Então, ele se
dirigiu ao Vale do Anhangabaú e a partir de um terreno de propriedade da companhia
Antarctica, onde funcionava um depósito de gelo, fotografou o edifício no centro de um
contexto mais amplo.
A imagem (fig. 2.2.29) traz ao centro e ao fundo com destaque o edifício branco
de formas modernas, ao redor dele, levitam alguns casarões mais antigos, com seus
telhados escuros, paredes manchadas pelo tempo e que, sem dúvida, remetem ao caráter
histórico que a cidade não deixava apagar. No primeiro plano, transparece o terreno
ocupado por automóveis estacionados e também uma casa onde se vê o detalhe de uma
lira, remetendo possivelmente a um clube alemão de música. Esta idéia de contrastes, tal
qual aparece também nas imagens de Lévi-Strauss149
, de um símbolo moderno
emergindo de paisagem de outro(s) ciclo(s) histórico(s) é certamente constante nas
fotografias de Flieg.
149
Segundo a análise de Annateresa Fabris, nas imagens do antropólogo, a definição de uma cidade em
decrepitude pontilhada por ícones de modernidade. Por exemplo, o edifício Martinelli adquire uma
função totêmica em meio a uma cidade que se desfaz. FABRIS, Annateresa. Op. cit. pp. 81-95.
120
Fig. 2.2.29
Ainda hoje, Flieg diz gostar muito desta imagem por reunir uma certa diversidade
- “foto que parece unir várias épocas e vários interesses”– um possível clube alemão
de música, automóveis, palmeiras imperiais, paredes com pintura descascada, casarões,
edifício em obras, arranha-céus e arquitetura moderna. Esta confraternização entre
tempos e culturas parece ser a chave da visão de Flieg sobre a cidade.
Em 1968, Flieg faz uma vista da cidade a partir da zona norte (fig. 2.2.30). A foto
é composta em vários planos: primeiro, um casebre e um grupo de pessoas que assistem
a uma partida de futebol de várzea que acontece no plano seguinte, depois, as pistas de
pouso e aterrissagem do Campo de Marte, ao fundo, o mar de arranha-céus do centro
concentrados numa fina faixa, acima, o céu formando uma larga linha com a linha do
horizonte baixa. A imagem trabalha os planos como unidades com “luz própria e conta
uma história, traz uma realidade”150
. Além da luz, há um jogo de inversão de escalas –
o casebre adquire proporções enormes perto dos diminutos edifícios ao fundo.
150
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 23 mai. 2002.
121
Fig. 2.2.30
As várias histórias contadas em cada plano da foto remetem a tempos e a ritmos
diferentes. Na várzea, a vivência do presente, que na verdade é um passado expandido,
que, naquela área não-construída, de terra batida, encontrou espaço para sobreviver na
tranqüilidade de quem tira a tarde para ficar com os amigos ali, de pé, assistindo a uma
partida. O joguinho de várzea parece um universo à parte da grande cidade que, na
composição da imagem, fica resumida a uma estreita faixa de prédios, não apresentando
sua fisionomia dominadora. A cidade é quase uma miragem quando observada daquele
descampado.
Podemos fazer uma comparação com a panorâmica que Flieg produziu em 1950 a
partir do edifício do Banco do Estado (fig. 2.2.2). A partir do núcleo da cidade moderna
– inclusive de cima do edifício tratado em muitos trabalhos de Flieg como o principal
marco da modernidade paulistana – avista-se as áreas periféricas da cidade, sem
construções, que somem na estreita faixa de céu. Nesta imagem, cria-se uma linha de
tensão imaginária entre a nova cidade em expansão e a que ainda vive sob a égide do
passado – a falta de civilização – mas com uma perspectiva de futuro – virar uma
extensão da grande cidade.
Na vista a partir do campinho de várzea, olha-se no sentido inverso da periferia
para o centro da cidade, é o espaço remanescente indo no sentido do bloco de prédios,
novamente fica estabelecida uma linha de tensão. Observando estas duas panorâmicas,
podemos indagar quem está indo no sentido de quem, a cidade moderna “engole” a
122
periférica ou o modelo de vida que esta última representa se infiltra na grande cidade e
corrói o seu projeto de modernidade por dentro? Ou ainda é possível uma eterna
convivência harmônica?
Das tantas imagens que Flieg produziu tendo como tema a cidade de São Paulo, a
questão do resgate de tempos me parece fundamental. O rapaz europeu que chegou na
cidade de feições americanas buscou entender a lógica do espaço regida pelo processo
de modernização periférica. Sua própria adaptação à cidade dependia deste
entendimento. Flieg consumiu a modernidade paulistana, ora encantando-se com ela,
ora compadecendo-se de seu caráter destrutivo. E, acima de tudo, vislumbrou um ideal
de cidade que andaria no compasso da modernização, sem comprimir os outros muitos
tempos que davam à capital paulista uma vitalidade única.
2.3. As viagens em busca de um país
Em 1956, Flieg foi a uma região próxima à Cotia, cidade da Grande São Paulo,
para realizar algumas fotos para um anúncio publicitário da Wyllis-Overland. Uma
estrada barrenta em meio a uma mata seria um cenário ideal para mostrar um veículo
projetado para guerras que prometia rodar em qualquer tipo de terreno e nas condições
mais adversas. Feita a foto, era hora de levar o Jeep embora, mas o automóvel atolou no
barreiro. Depois de muitas tentativas, só houve uma solução: “manda vir o carro de
boi”. A cena insólita não passou desapercebida pelas lentes do nosso fotógrafo (fig.
2.3.1).
Esta imagem expõe o dilema da modernidade que metafórica e literalmente – o
automóvel indo a reboque do carro de boi – se impõe no cenário tropical às vistas de
Flieg. Talvez possa ser até apresentada como uma das imagens-síntese da visão que o
fotógrafo construiu do Brasil. Estes contrastes antigo/novo aguçam muito a percepção
de que o fotógrafo tem do mundo moderno, pois permeiam grande parte de sua obra e
aparecem, inclusive, na produção de Flieg nos tempos de aprendiz em Berlim, vide a
foto em que contrapõe a carruagem ao automóvel (fig. 1.1.6).
123
Fig. 2.3.1
Carro de boi rebocando Jeep atolado. Foto realizada por ocasião da produção de imagem para anúncio
publicitário da Wyllis-Overland. Cotia, 1956.
Assim, Flieg carrega uma profunda curiosidade histórica, a busca das origens do
objeto fotografado é uma função vital em seu trabalho. Isto provavelmente foi reforçado
pela condição de exilado, uma vez que o processo de adaptação passa pela vontade de
apreender o funcionamento da nova terra, o que obrigatoriamente pressupõe um olhar
histórico. Se na cidade de São Paulo, Flieg identificava as reminiscências do passado
urbano, foi nas viagens pelo país que ele pode mergulhar mais fundo nas origens do
Brasil.
Viajar, de forma geral, é um ato que remete a uma dimensão temporal. Como
afirma o filósofo Sérgio Cardoso, “as viagens, na verdade, nunca transladam o viajante
a um meio completamente estranho, nunca o atiram em plena e adversa exterioridade
(...); mas, marcadas pela interioridade do tempo, alteram e diferenciam seu próprio
mundo, tornam-no estranho para si mesmo”. A sensação de estranhamento e distância,
desta forma, abriria o seu mundo, na medida em que “experimenta a vertigem da
desestruturação (...) que lhe impõem as alterações do tempo”. Ele conclui que a
sensação de estranhamento das viagens não se relaciona com o outro, e sim ao próprio
viajante, pois a situação “afasta-o de si mesmo, deflagra-se sempre na extensão
circunscrita de sua frágil familiaridade, no interior dele próprio”151
. Assim, a viagem
abriria uma ponte para o entendimento do próprio sujeito e disto
151
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. p. 359.
surge toda uma mitologia em torno do ato de viajar, que é sem dúvida um dos grandes
temas das literatura, da pintura e do cinema ao longo da história ocidental.
124
Desde meados do século XIX, a fotografia transformou-se numa das práticas essenciais
no contexto das viagens, pois o próprio ato de “viajar torna-se estratégia para o
acúmulo de fotografias”152
. Muitos fotógrafos oitocentistas dedicaram-se a viajar pelo
mundo, produzindo imagens que não apenas serviam de souvenirs aos turistas de classe
média como também “traziam o mundo para as casas daqueles impossibilitados de
fazer tais viagens”153
. O principal meio de circulação eram os álbuns de vistas
pitorescas ou as imagens avulsas, em que as fotografias eram transpostas para gravuras,
já que a impressão direta só foi possível a partir de 1880, com o desenvolvimento do
processo do meio-tom. Depois, veio a onda dos cartões-postais, as revistas e seções
sobre turismo, material promocional e toda uma sorte de publicações e usos que
incrementaram a demanda por imagens de viagem ao longo do século XX.
É também de se ressaltar que boa parte dos fotógrafos que se destacaram ao longo
da história da fotografia foram grandes viajantes. Fotojornalistas, cronistas urbanos,
projetos de documentação de temas específicos e tantas outras categorias trabalhos em
fotografia, encomendados ou empreitada pessoal, propiciaram uma intensa
movimentação de fotógrafos pelo mundo. De posse de uma câmera, os indivíduos têm a
sensação de dominar o espaço estranho, Susan Sontag já disse que “a fotografia, ao
mesmo tempo em que nos atribui a posse imaginária de um passado irreal, ajuda-nos
também a dominar um espaço no qual nos sentimos inseguros”.154
As viagens de Flieg podem ser identificadas em três tipos: trabalho (geralmente
para produção de reportagens industriais ou calendários), férias ou lazer (nestas ocasiões
produzia fotos de família e dos locais em que visitava, mas descompromissadamente,
sem pauta ou qualquer planejamento prévio) e de motivação pessoal (não estavam
vinculadas a uma encomenda, eram realizadas por interesse próprio do fotógrafo, mas
tinham algum planejamento, no mínimo, alguma intenção previamente identificada).
Mas como ressalta o próprio Flieg, mesmo as viagens de trabalho “nunca eram
puramente de trabalho, sempre teve alguma extensão e, quase sempre, são as extensões
mais interessantes do que o próprio serviço”155
.
O principal meio de transporte usado por Flieg em suas viagens foi o automóvel,
que era o mais prático quando se tinha que carregar câmeras, tripé, objetivas,
152
SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Arbor, 1981. p. 10. 153
ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville, 1997. p. 95. 154
SONTAG, Susan. Op. cit. p. 11 155
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.
125
iluminação e toda uma gama de acessórios e materiais. Logo, as estradas fizeram parte
do universo das viagens do fotógrafo e mereceram registro. Em 1958, durante a visita de
um tio, a família Flieg fez um passeio ao litoral e um dos cenários que foram
fotografados para compor o álbum de recordação de viagem foi justamente uma grande
tomada da Serra do Mar com a rodovia dos Imigrantes. A imagem dá grande destaque
para a topografia da serra, coberta pelo manto de vegetação densa, as curvas sinuosas da
estrada acompanhando as encostas e, ao centro, com maior destaque, o imponente
viaduto. A foto destaca as dimensões da serra o que valoriza a grande obra de
engenharia, mais uma vez o homem dominando a natureza selvagem. E justamente é a
estrada que liga o litoral com o interior do país, permitindo o rápido acesso a quem
chega ao Brasil por mar para a capital paulista.
Em 1968, Flieg recebeu a encomenda de fotografar a recém-construída rodovia
Castelo Branco para material de divulgação (fig. 2.3.2). Uma bela tomada aérea em que
a perspectiva não é chapada, pelo contrário, ele trabalha com uma grande profundidade.
Então se cria o efeito da estrada cortando a foto que se afunila até se perder no infinito,
nas laterais pequenos morros em série que dão uma certa cadência à foto com a idéia de
repetição. Esta tomada em que a estrada se perde de vista reforça o gigantismo da obra
viária, abre o horizonte para o desbravamento do território pelo processo civilizatório. O
espaço apresentado na imagem é muito ordenado, a composição é toda equilibrada, no
enquadramento, na disposição dos elementos e no uso das cores, que dão um tom de
sobriedade, sem perder o colorido. A ordenação espacial, a ausência de automóveis, a
linhas diagonais com forte peso compositivo e a paisagem cadenciada criam um
cenário quase irreal, o que também acentua o caráter civilizador da obra, pois quanto
menos familiaridade o espectador tiver com o ambiente apresentado, maior será o
impacto do poder desbravador da engenharia moderna.
Se estes caminhos abertos pela modernidade conduziriam Flieg para a história do
Brasil, outras passagens mais arcaicas também permitiam o acesso a certo tesouros do
patrimônio nacional. Em 1967, Flieg fez companhia à artista Diana Danon, que iria
realizar desenhos arquitetônicos da Capela de Santo Antônio, em São Roque. A capela,
descoberta por Mário de Andrade, faz parte do sítio Santo Antônio de 1681, que fora
propriedade de Fernão Paes de Barros. Mário de Andrade comprou o sítio no final de
1944 e assinou um documento pelo qual a propriedade com capela e casa-grande
126
passaria ao Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo, após a sua morte, o que
aconteceu apenas alguns meses depois da compra.
Rodovia Castelo Branco, 1968.
Fig. 2.3.2
Flieg faz uma seqüência de quatro fotos da chegada ao sítio. Na primeira (fig.
2.3.3), aparece um trecho da estradinha de terra no primeiro plano, cercada por
vegetação arbustiva, mais atrás, num nível mais baixo que o da estrada, avista-se a
capela e a casa-grande pela lateral, ao fundo uma parede de montanhas e, ocupando
metade da imagem, um céu contrastado e com nuvens. Na imagem seguinte (fig. 2.3.4),
a câmera está mais próxima das construções e quase no mesmo nível, ainda tem estrada
no primeiro plano, montanhas ao fundo e céu com nuvens. Na terceira foto (fig. 2.3.5),
nova aproximação, com posicionamento horizontal de câmera – as anteriores são
verticais –, pois a maior proximidade com a capela e a casa exigem este formato para
uma melhor composição. O caminho de terra desaparece e fica em primeiro plano um
pouco da vegetação rasteira com arbustos, a cerca que fica bem visível, os prédios, as
montanhas ao fundo. Há céu, mas com a linha do horizonte bem mais alta. A última foto
da seqüência (fig. 2.3.6) é uma tomada lateral da capela em que transparece apenas um
pouco da montanha e do céu ao fundo.
127
Fig. 2.3.3 Fig. 2.3.4
Fig. 2.3.5 Fig. 2.3.6
Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967.
Esta pequena série trabalha a noção de movimento de maneira cinematográfica,
cada foto é composta quase como um fotograma de cinema. Enxergamos a
movimentação e temos a sensação de velocidade, ou seja, de tempo. A aproximação da
capela é um passeio, em que o visitante se desloca lentamente e vai parando no caminho
para contemplar a paisagem . É a recriação em imagens de um ritmo de vida que remete
ao campo e a outros tempos. Também vale ressaltar que, ao analisar cada imagem
individualmente e depois contrapô-las às demais, noto uma mudança de campo de
interesse conforme a distância e o enquadramento do objeto focado. Na primeira, o
elemento que mais se destaca é a topografia, na segunda, a vegetação, na terceira, a
ordenação do espaço rural e, na última, a arquitetura. Ou seja, envolve o
reconhecimento da geografia, da natureza, da ocupação humana e de aspectos culturais.
Pensando que esta seqüência está incluída dentro de uma série maior, que
podemos chamar de um ensaio, as quatro fotos iniciais não só assimilam a noção de
movimento do cinema, como um pouco da própria estrutura narrativa. Elas são como os
primeiros minutos de um filme, quando é feita a ambientação e apresentação do que vai
128
se desenvolver depois. As três primeiras fotos ambientam e a quarta imagem apresenta o
que vai ser efetivamente o foco das outras fotos do ensaio, a arquitetura.156
As estradas e caminhos têm um tratamento simbólico nos trabalhos de Flieg, são a
expressão da possibilidade de acesso a um novo universo, que deve ser contemplado,
dissecado, analisado e assimilado pelo fotógrafo. A simbologia da liberdade de
locomoção tem significado especial para um exilado pois é justamente o que lhe fora
amputado em sua terra natal. Vale lembrar ainda que nos primeiros anos de Flieg no
Brasil, durante a guerra, este direito não lhe tinha sido assegurado plenamente. Os
imigrantes alemães que viviam no Brasil na primeira metade da década de 1940 foram
classificados pelo governo de Vargas como “súditos do Eixo” e com isso estavam sob a
mira das autoridades policiais. Entre as restrições que sofriam, estavam a proibição de
usar o idioma alemão em espaços públicos e a necessidade de autorização especial para
se locomover dentro do território brasileiro.
Flieg teve de solicitar salvo-conduto para uma viagem realizada em 1943 ou 1944
para visitar a Fazenda Itaúna, de propriedade dos Niccolini, localizada entre Descalvado
e São Carlos do Pinhal. Esta viagem foi o primeiro contato de Flieg com o interior do
Brasil, o próprio fotógrafo a descreve como “uma grande experiência, foi uma coisa
completamente nova, era lavoura, eram tipos, caboclos e paisagens, é muito bonito
isso”157
. Os passeios pela fazenda, o cenário rural, o convívio com as personagens
locais, tudo isso teve um caráter de descoberta quanto aos costumes e modos de vida,
mas me parece que a relação de Flieg com este cenário se deu essencialmente em
termos estéticos.158
Em 1963, Flieg foi chamado por Paul Hubacher, diretor da Brown Boveri,
multinacional suíça que produzia equipamentos elétricos, que informou que os
calendários promocionais da empresa começariam a ser feitos no Brasil e convidou o
fotógrafo para realizar o trabalho. Flieg já atendia a Brown Boveri há cerca de oito anos
em fotografia técnica, mas o convite lhe surpreendeu.
Para mim foi uma chance incrível, foi uma coisa
completamente nova, porque seria um trabalho de escolha
minha, de uma liberdade muito grande minha e eu confesso
que, eu aceitei porque lógico que tinha de aceitar, mas não era
156
Outras imagens desta série sobre a capela do Sítio Santo Antônio são apresentadas e analisadas no
capítulo 3, no item que trata de fotografia de arquitetura. 157
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 19 fev. 2002. 158
Na terceira parte deste capítulo, serão mostrados alguns dos retratos de tipos que Flieg executou
durante a viagem à Fazenda Itaúna.
129
muito fácil, eu não tinha exercido essa liberdade. Meu
trabalho tinha sido, de uma certa forma, eu diria, um pouco
reprodutivo, quer dizer reproduzir um objeto ou uma pessoa...
no caso de portrait é um pouco diferente, é interpretativo, mas
não é uma escolha, se há uma pessoa, é essa pessoa que tem de
ser fotografada, você tem de fazer disso o que você consegue
fazer com seus conhecimentos, com a sua forma de tratar etc.
Fotos de propaganda vinham com layout em quase todos os
casos. Foto de escultura é interpretativo. Mas, a escolha do
objeto, a escolha do tema era algo completamente novo. Isso
foi uma aventura e uma abertura muito grande para mim.159
A fala de Flieg revela uma certa hesitação inicial quanto ao trabalho pela sua
natureza diversa de tudo o que ele havia realizado antes. Apesar de fazer referência ao
caráter “reprodutivo” ou “interpretativo” das imagens que produzia, o ponto principal
que distinguia esse projeto dos demais era a possibilidade de ele próprio se pautar.
Destas encomendas para a Brown Boveri, sairia um material muito rico e que
demonstram a constante busca de Flieg pelo entendimento do país.
A produção de calendários promocionais foi e ainda é muito usual, eles funcionam
como brinde de fim de ano com o qual as empresas presenteiam clientes e fornecedores,
ao mesmo tempo que reforçam a marca através de um material, geralmente, de alto
padrão gráfico. Desde a década de 1940, pelo menos, a fotografia se tornou a principal
linguagem empregada neste tipo de material e, assim, muitos grandes fotógrafos no
Brasil e no exterior se empenharam na criação de imagens para as folhinhas. Na
verdade, Flieg já havia feito um calendário para Pirelli, em 1949, este todo com
temática industrial160
. Mas, os trabalhos para a Brown Boveri tinham uma amplitude
maior do ponto de vista de um projeto pessoal de Flieg, que realmente viriam a abrir
seus horizontes de fotógrafo e de observador do mundo.
Para o calendário de 1964, ele propôs que as imagens fossem concentradas em
tomadas de São Paulo e arredores da cidade. O material era destinado a público
brasileiro e estrangeiro, então a proposta de Flieg era “mostrar um pouco esse lado
típico, exótico (...) aquilo, que ainda depois de 23 anos, achava típico”161
. Ele coloca
em pauta a questão do exotismo e o caracteriza como um elemento tipicamente
brasileiro aos olhos de um europeu. Um dia Flieg saiu do escritório da Brown Boveri
para começar a buscar motivos para fotografar. Foi em direção a Osasco e pegou uma
estradinha estreita, em certo momento, viu um eucalipto com folhas em várias
159
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 160
As imagens que compõem o calendário da Pirelli serão tratadas no capítulo 3, na parte sobre
fotografia industrial.
130
tonalidades contrastando com o céu azul do dia ensolarado. A cena despertou uma
percepção do fotógrafo por se colocar aos seus olhos como um pequeno espetáculo.
Então, fotografou as folhagens e esta imagem acabou sendo utilizada na capa do
calendário (fig. 2.3.7), pois, na visão de Flieg, a foto era uma indicação, um índice do
que viria nas outras páginas.
Fig. 2.3.7 Folhas de eucalipto. Foto da capa do calendário da Brown Boveri para 1964. Osasco, 1963.
Fotografou prédios na avenida Ipiranga, composição com objetos de artesanato de
várias partes do país, o rio Tietê com construções em Bom Jesus do Pirapora, espécime
de borboleta no Museu de Zoologia, casario colonial em Santana do Parnaíba, filhotes
de onça no zoológico, paisagem do rio Tietê com nascer do sol, pedra de ágata, caminho
de terra com passantes em Paraibuna, tapeçaria das Índias, paisagem com flores, lago e
cisne, hall da Fundação Armando Álvares Penteado com réplica de profeta de
Aleijadinho e vitrais modernos.
Todas estas imagens compunham um conjunto que funcionava como um
mostruário de assuntos ou interesses sobre o Brasil – natureza, história, modernidade,
arte -- em que a relação que se estabelece entre o espectador e o cenário retratado é uma
espécie de deleite visual. O elemento mais vibrantemente utilizado e que dá uma certa
unidade estética a este conjunto são as cores. O colorido tropical sempre foi uma das
fontes do fascínio visual aos olhares europeus. Na foto de Santana do Parnaíba (fig.
2.3.8), por exemplo, o casarão amarelo tem janelas e portas verdes, flores de um
161
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.
131
vermelho encarnado no primeiro plano, o céu bem azul e a mata verde que transparece
ao fundo.
Fig. 2.3.8
Casario colonial. Foto para o calendário da Brown Boveri para 1964. Santana do Parnaíba, 1963.
O próprio Flieg declarou sua intenção em fotografar o “exótico” para este
calendário e, no exotismo, o indivíduo não percebe a alteridade, apenas desfruta da
experiência estética que culturas e cenários diversos lhe propiciam. Flieg carregava
ainda esta visão bastante eurocêntrica sobre o país tropical, mas já modificada pela
convivência. No entanto, ao pensar as imagens para compor o calendário, ele
deliberadamente buscou seguir um padrão eurocentrista de visualidade para responder a
uma demanda específica. A Brown Boveri foi agraciada na categoria “turístico” com o
Prêmio Ampulheta, concurso promovido pela Biblioteca Municipal, que avaliava a
qualidade gráfica, propostas e tratamento estético de calendário impressos.
Rio de Janeiro
No ano seguinte, os diretores da Brown Boveri pediram que seguisse a mesma
linha do primeiro calendário, mas que cobrisse “arte moderna e mulher”. Assim, Flieg
incluiu duas obras de arte, uma pequena escultura que ganhara de Bruno Giorgi e que
levou até o Pico do Jaraguá para fotografar e o quadro Nossa Senhora Bonita, de
Cássio M’Boy. Fotografou um pé de mamonas na Serra da Cantareira e, num passeio
em um Jeep da Brown Boveri avistou um bonito campo todo florido próximo a Barueri
onde fotografou uma flor de ipê amarelo que foi publicada no calendário. Flieg conta
132
que próximo a este campo havia uma pequena floresta onde encontrou restos de um
ritual de umbanda -- alimentos, garrafa de cachaça, velas coloridas, árvores levemente
inclinadas com troncos queimados. Aquilo foi uma grande surpresa – “era algo
totalmente novo para mim” 162
– fez fotos do local, mas não foram utilizadas.
Para a realização das outras fotos, Flieg partiu para o Rio de Janeiro. Não era a
primeira vez que o fotógrafo viajava para a ex-capital federal. Em 1950, em férias,
esteve durante três semanas na cidade, quando fez fotos no Jardim Botânico, na praia e
de detalhes arquitetônicos, pois chamaram muita atenção os contrastes entre as
construções novas e antigas. Nas duas viagens nota-se a relação intensa de
contemplação que estabeleceu com a paisagem natural.
Na estada para a produção do calendário, saiu, certa vez, de madrugada do hotel
para fazer um nascer do sol a partir da Vista Chinesa. Quando chegou lá, olhou ao redor
e estava quase tudo coberto de nuvens, mas de uma determinada posição via o
Corcovado e fotografou com um céu bem alaranjado, silhuetas vegetação e uma bruma
espessa passando entre os morros (Fig. 2.3.9) . Flieg descreve este episódio na Vista
Chinesa como “um dos momentos mais pitorescos” que viveu e, sem dúvida, há uma
referência muito pictórica nesta imagem, suas brumas e céu em cores remetem à
visualidade da pintura romântica. Esta imagem foi publicada na capa do calendário de
1965.
Fig. 2.3.9 Fig. 2.3.10
Vistas do Corcovado ao nascer do sol, a partir da Vista Chinesa, com Pão de Açúcar, ao anoitecer, a partir
da Estrada do Sumaré. Fotos do calendário da Brown Boveri para 1965. Rio de Janeiro, 1964.
162
Idem.
133
A encomenda incluía alguma foto em que aparecesse mulher. Flieg, então,
fotografou uma modelo de biquíni na praia brincando com uma bola e outra posando em
meio a flores e plantas no jardim do Alto da Boa Vista. Também entraram no calendário
imagens do interior, em estilo barroco, da Catedral Metropolitana; uma baiana a caráter
vendendo quitutes no centro do Rio de Janeiro; uma vista do Corcovado e Pão de
Açúcar ao anoitecer (Fig. 2.3.10), a partir da estrada do Sumaré; um pássaro guará no
zoológico do Rio de Janeiro; detalhe da fachada no Museu Histórico Nacional com
portão entreaberto e bananeiras na Cascatinha da Tijuca.
Como no calendário anterior, são mostradas imagens que apresentam um rol de
interesses “turísticos” sobre a cidade do Rio de Janeiro e o Brasil. Há em quase todas as
imagens um recorte pitoresco. Além da foto de capa outro exemplo é a imagem do
Corcovado ao anoitecer em que o céu vai do azul ao roxo e há uma sobreposição de
planos, mantendo certa profundidade de campo na paisagem, atribuindo um caráter
sublime à representação. Novamente, o modelo é o romantismo.
Nos dois casos acima, é possível dizer que Flieg recorreu ao que Jacques Aumont
chama de “esquemas”. Aumont define esquema como uma “estrutura relativamente
simples, memorizável como tal além de suas diversas atualizações”163
, isso equivale
dizer que uma imagem é, na verdade, a combinação de outras imagens parciais, estas
“imagens parciais” são as “estruturas simples”, os esquemas. Segundo o autor, estes
esquemas visuais funcionam como instrumentos de rememoração, processo
fundamental para que o espectador possa se relacionar com a imagem. Nós, como
espectadores, aprendemos certas idéias ou noções que nos são transmitidos
historicamente. Então, o esquema tem uma função cognitiva, por isso, segundo Aumont,
os esquemas precisam apresentar estrutura simples, justamente, para facilitar a
rememoração.
Assim, quando alguém olha uma imagem, carrega já algumas expectativas que são
informadas exatamente pelo repertório de representações visuais que o indivíduo tem
acumulado pelo seu intelecto. Estes repertórios, construídos historicamente, direcionam
o olhar. Por isso, que ao utilizar imagens recorrentes na pintura, Flieg torna mais rápida
e eficaz a identificação e assimilação por parte do público que vai “consumir” os
calendários.
163
AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 2000. p. 84
134
Fig. 2.3.11
Cascatinha da Tijuca. Rio de Janeiro, 1964.
Gostaria também de destacar uma imagem que não foi incluída no calendário da
Brown Boveri, mas é muito representativa da visão do fotógrafo sobre a cidade. Na foto
feita na Cascatinha da Tijuca, aparece a queda d’água, vegetação e a bica (fig. 2.3.11).
Para a tomada original, foi utilizado diapositivo colorido 4’x 5’, do qual,
posteriormente, Flieg produziu um internegativo preto-e-branco que gerou a cópia aqui
reproduzida. A cena mostra um bonito arranjo de texturas e tonalidades, e a marcação
de linhas na mesma diagonal – da esquerda para direita, de cima para baixo -
desenhadas pela queda d’água, pelas folhagens ao pé do morro e pela bica com seu
esguicho de água. A imagem recupera toda uma tradição pictórica da representação de
natureza, traz à tona a idéia do “jardim poético” em que os elementos fundamentais –
árvore, água e rocha – compõem-se harmoniosamente, dando o estímulo visual, e a
presença humana – bica e escada – não é descartada, embora fique subjugada ao
desenho compositivo dos elementos naturais.
Parati
135
Em 1965, recebeu mais uma vez a incumbência de um novo calendário. Quando
Flieg viu uma exposição de pinturas de Takaoka, os quadros sobre Parati chamaram-lhe
atenção. Assim, partiu de carro com um assistente para a antiga vila colonial do litoral
do Rio de Janeiro. Ao chegar à cidade, ficou muito impressionado: “Parati rendeu
muito. Não era turístico como hoje. Era muito novo encontrar alguma coisa tão
velha”164
. Antes de fazer a viagem, procurou ler a respeito do lugar e da história.
Constatou que Parati, antigo escoadouro do ouro de Minas Gerais, permanecera
conservada porque “estava cortada do país”, como estava apartada da dinâmica
econômica nacional, ficou “parada no tempo”.
No caminho para Parati, fez uma foto que foi publicada no calendário, uma
paisagem natural entre São José dos Campos e Paraibuna. Já na cidade, fotografou os
solares coloniais, o mercado de peixes, o pátio da igreja Santa Rita de Cássia, uma vista
da cidade a partir de um barco, um homem raspando mandioca na Fazenda Corisco,
paisagem de praia na Ilha da Sapeca, mulher à janela num casarão colonial, festa pela
abertura da capela de Penhas, movimento de pedestres em rua da cidade, vista dos
telhados de algumas construções antigas e a pintora Djanira em sua residência com seus
quadros.
Na capa deste calendário, há uma vista da cidade com vários planos (fig. 2.3.12).
No primeiro, a areia da praia com um depósito de conchas, onde Flieg colocou um caco
de cerâmica decorada que havia comprado de um antiquário, a seguir, ainda sobre a
areia, cascas e galhos secos de árvores, depois, um braço de mar, logo atrás, uma faixa
de construções com um pouco de vegetação e, ao fundo, as montanhas. Segundo o
próprio fotógrafo, esta foto traria a síntese de Parati, o mar que é a porta de entrada por
onde chegavam os visitantes, também traz o antigo, a história, representada pelas
conchas e pelo caco. Nos outros planos, traz um pouco de tudo: mar – fonte de recursos,
antes com o porto, hoje com a pesca - natureza, arquitetura, religiosidade – há uma
igrejinha - e topografia.
164
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002.
136
Fig. 2.3.12
Vista de Parati. Foto da capa do calendário da Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.
Se os calendários anteriores foram marcados pelo pitoresco e pelo exótico, em
que o olhar do visitante marca uma posição de separação clara com o que está sendo
fotografado, neste de Parati, sinto um fotógrafo com olhos mais livres, que busca se
infiltrar no contexto social que está sendo retratado, para compreender e interagir. Um
índice disso é a maior presença humana neste calendário.
Só para recapitular, na primeira folhinha, de 1964, praticamente não aparecem
pessoas, a não ser no papel de figurantes na foto de Bom Jesus do Pirapora. No
calendário de 1965, há a foto da baiana e as de duas modelos, todas em poses
dissimuladas, o que não agrega sentido social às personagens fotografadas, mesmo à
“não-ficcional” – a vendedora de acarajé. Estes retratos são regidos pela tônica das
imagens turísticas em que a significação está mais na superfície estética, do arranjo da
pose e dos elementos do que propriamente na dimensão humana dos retratados.
Nas imagens de Parati, em oitos fotos há presença de pessoas e todas elas
apresentados com maior naturalismo. Na foto da inauguração da capela (fig. 2.3.13),
por exemplo, os instrumentos musicais, as bandeirolas e mesmo a igrejinha funcionam
quase como uma moldura ao grupo de pessoas – habitantes locais – que estão
concentradas no centro da imagem. Cada uma das pessoas que aparecem na foto tem
137
uma dimensão própria – tem gente olhando para trás, outras para frente, um
participando da banda, alguns conversando etc. – estas figuras têm existência própria e
suas poses e disposição na imagem não estão subjugados exclusivamente a uma
ordenação estética. Há muita vida ali, o que é reforçado pela existência de extracampos
– a cena não se encerra no quadro, ela vai continua para além do retângulo - pelas
bandeiras coloridas esvoaçantes – o que dá movimento – e a presença reluzente e
vibrante dos instrumentos musicais.
Fig.2.3.13 Fig. 2.3.14
Festa de abertura da capela de Penhas e claustro da igreja Santa Rita de Cássia. Fotos do calendário da Brown
Boveri para 1966. Parati, 1965.
A fotografia do claustro da igreja da igreja Santa Rita de Cássia (fig. 2.3.14) traz
um arranjo muito ordenado com a seqüência de colunas, certa simetria, as linhas que se
afunilam com a torre emergindo ao fundo. As cores pálidas da construção ganham um
onda de frescor com o verde do jardim central. A presença do religioso a observar as
plantas, apesar de diminuta em proporções, povoa o espaço, dando força vital à foto.
O casario colonial de Parati é representado numa linda foto (fig. 2.3.15) que
congrega, além das construções brancas com detalhes coloridos, um manto de mata bem
verdejante no primeiro plano, muro em ruínas, burro de carga na rua, pessoas habitando
e interagindo nos casarões e um pouco das montanhas ao fundo. O passado colonial – o
casario – é apresentado como um traço de história que sobrevive, mas não como um
objeto museológico, mas sim como um componente urbano que faz parte da dinâmica
da cidade. Claro que é um ritmo muito próprio, lento, que fica muito marcado inclusive
138
pela presença do burro. As pessoas vivem aquele espaço, seja conversando na calçada,
debruçadas nas sacadas ou apoiadas no batente da porta vendo a vida passar, cada uma
tem história particular, e , ao mesmo tempo, são partes da mesma história.
Fig. 2.3.15 Fig. 2.3.16
Fig. 2.3.15-16 Casario colonial e Djanira na varanda de sua casa com alguns quadros. Fotos do calendário da
Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.
A imagem que ilustra o mês de dezembro no calendário é um retrato de Djanira
posando com o cão, na varanda de sua casa, rodeada por algumas de suas telas e uma
pequena bancada com seus instrumentos de trabalho (fig. 2.3.16). A foto é muito
festiva, tem muitas cores – azul das portas e da janela do casarão, o colorido forte dos
quadros, a retratada sorri com muita espontaneidade erguendo seu cachorro no colo.
Djanira, que Flieg conheceu durante esta viagem, o impressionou bastante, era uma
mulher de muita sensibilidade e força, ele guarda boas lembranças do relacionamento
que teve com a pintora e com o marido dela. Além da empatia pessoal, Djanira também
ajudou a guiar um pouco o fotógrafo no conhecimento da cidade. Flieg foi no barco do
casal, e ciceroneado por eles, à Ilha da Sapeca, na Baía da Ilha Grande, que rendeu a
única paisagem natural de Parati que foi incluída no calendário. Foi também a pintora
que sugeriu a Flieg uma visita à Fazenda Corisco, onde funcionava uma casa de farinha.
O retrato de Djanira além de funcionar como uma espécie de tributo à figura que
despertou tanta admiração no fotógrafo, traz também um simpático panorama da cidade
através das pinturas que a cercam. Os quadros fazem referência ao caráter histórico do
local, expresso no quadro do casario colonial; à religiosidade, através da imagem da
santa; os peixes remetem ao mar e à pesca e ao trabalho, e a representação do camponês
vendendo frutas no mercado indica as atividades comerciais. Anos depois desta foto,
139
Flieg soube que alguns dos quadros fotografados haviam sido roubados da casa da
artista e a polícia usou uma cópia desta imagem, que o fotógrafo havia deixado com
Djanira, como referência nas investigações para identificar as telas que acabaram sendo
reencontradas.
Fig. 2.3.17
Raspagem de farinha, na Fazenda Corisco. Foto do calendário da Brown Boveri para 1966. Parati, 1965.
Na estada em Parati, Flieg foi um dia à casa de farinha da Fazenda Corisco,
conforme indicação de Djanira. Levou a Linhof com filme colorido e a Rolleiflex com
filme preto-e-branco. Dos diapositivos, saiu a imagem que entrou para o calendário, de
um homem raspando mandioca em uma construção com paredes de pau-a-pique (fig.
2.3.17). Como o interior da casa era muito escuro, Flieg colocou uma fonte de luz do
lado direito, para onde o retratado estava virado, simulando a iluminação de uma janela.
Bem à frente da cena passou um galo do qual se vê na foto apenas a cabeça com a crista
vermelha. A presença inesperada do animal no quadro da imagem colocou um ponto de
cor vibrante na homogeneidade de tons e deu a idéia de movimento a uma cena quase
estática. A ambientação da foto segue alguns modelos formais da pintura, no que tange
principalmente à iluminação e ao esquema de cores. Neste caso, a figura do galo acabou
por gerar uma quebra no padrão pictórico e tornou a cena mais “fotográfica”. Há ainda
uma concepção pitoresca no retrato, mostra um camponês em um cenário rústico o que
remete às choupanas do ideário romântico, imagens onde “os citadinos, cansados do
espetáculo da cidade, encontrarão (...) um delicioso repouso que os liberta do cuidado
140
com o útil e da preocupação com a camada social: é um mundo em que nada acontece
e onde as coisas são simplesmente oferecidas à contemplação”165
.
No entanto, esse caráter pitoresco não se efetiva plenamente, uma vez que o
retratado ganha muita expressão pessoal e com isso subjetividade. A própria presença
da cabeça do galo quebra um modelo de visualidade idealizada, herdeira da pintura
romântica. Assim, ganha peso na representação, a dimensão social do personagem e de
seu ambiente. Esta imagem insere no conjunto que compõe o calendário a referência ao
trabalho e ao trabalhador, o que nos outros não aparece. A simplicidade do ambiente e
dos instrumentos de trabalho não deixa de expor o pauperismo a que os camponeses da
região estão submetidos.
Fig. 2.3.18 Fig. 2.3.19
Casa de farinha e moeda na casa de farinha da Fazenda Corisco. Parati, 1965.
Com o filme preto-e-branco, Flieg fez um ensaio sobre a casa de farinha. Nestas
fotos, há um primoroso trabalho de composição com texturas e tons de cinza. Há uma
imagem que mostra todo o pequeno galpão pelo lado de fora, com um pouco do
ambiente ao redor da casa, trabalhadores e burros de carga (fig. 2.3.18). Há bancos e um
quadro, talvez de uma escola rural a céu aberto, algumas sombra e silhuetas no primeiro
plano, depois, várias padronagens que se combinam e harmonizam no conjunto – mato
do chão, sapê na cobertura do galpão, pau-a-pique e ripas de madeira paralelas na
estrutura das paredes, árvores ao fundo etc. Um cenário visualmente rico em que a casa
165
STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 194.
141
de farinha expressa o trabalho, marca emblemática do homem do campo, e os móveis
escolares marcam a inserção da educação formal no meio rural. Outra imagem mostra
em detalhes a moenda do trigo (fig. 2.3.19). Existem na foto superfícies muito marcadas
– a madeira, o metal, o vime – o que também valoriza os subtons e dá expressão às
marcas do tempo, à transformação dos materiais pelo homem e o desgaste pelo uso,
numa imagem poética, um índice do trabalho.
Minas Gerais
Finalizado o calendário de Parati, logo era tempo de pensar no seguinte. Na
Brown Boveri, definiram que o tema era ciclo do ouro em Minas Gerais. Esta proposta
acabou indo ao encontro do processo de busca pelas origens do país em que mergulhava
Flieg.
Os três calendários já têm elementos que ligam a um
assunto que sempre me interessou, que é a história. O primeiro
já tem um pouco do Brasil colonial, temos as tapeçarias. O
segundo tem arquitetura barroca no Rio de Janeiro. E esse
terceiro é todo ele patrimônio histórico e (...) isso me liga um
pouco à história de Minas.166
O funcionário responsável por supervisionar a produção do calendário, pediu
uma foto para capa da entrada de alguma igreja, com as portas entreabertas por onde se
avistaria o interior com altar todo iluminado, como uma alusão ao destino final do
trabalho da Brown Boveri, a produção de energia elétrica. Flieg partiu para Belo
Horizonte de carro, com o filho do publicitário Fritz Lessin, como auxiliar. Na capital
mineira tinham uma recomendação de Luiz Saia, do Patrimônio Histórico de São Paulo,
para procurar o diretor do Museu do Ouro de Sabará, Antônio Joaquim de Almeida, a
quem conheceu junto com a esposa Lúcia Machado de Almeida, com os quais manteve
boas relações por anos.
Quando chegou a Belo Horizonte, ainda não tinha lido muito sobre o assunto e
estava totalmente aberto a sugestões. Na cidade, fotografou a igreja da Pampulha com o
mural de Portinari. Também esteve em Lagoa Santa, onde fez fotos do sítio
142
arqueológico e ainda teve contato com um grupo de congada167
. O casal Antônio
Joaquim e Lúcia Machado de Almeida o convidou para ir a Sabará, Flieg foi e ficou
encantado com a cidade. Pensou que “no ano anterior Otto Stupakoff já tinha estado em
Ouro Preto e tinha fotografado Ouro Preto e para que novamente Ouro Preto? Sabará
ninguém conhecia, Sabará era algo novo, ia descobrir Sabará”168
. Assim, fez um
bonito trabalho em Sabará, com casario e ruas da cidade, tipos populares e muita coisa
do Museu do Ouro, que o casal Almeida abriu e deixou totalmente disponível ao
fotógrafo. Não foi a Ouro Preto, nem Mariana, nem Congonhas do Campos, nem
Tiradentes, simplesmente nada disso, somente Sabará.
Depois de três semanas de viagem, retornou a São Paulo, trazendo na bagagem
além das imagens que produziu, vários livros sobre a história de Minas Gerais. Levou o
material a Brown Boveri e recebeu uma “chamada” do responsável dentro da empresa
pela supervisão do calendário. “O que é que foi combinado, senhor Flieg? O cliente não
manda nada?”169
. Então, acabou sendo acertado que Flieg deveria voltar a Minas para
produzir um material sobre Ouro Preto e Congonhas que seria completado com o já
produzido em Sabará.
Flieg foi desta vez de avião a Belo Horizonte, onde encontrou Antônio Joaquim
e Lúcia Machado de Almeida na estação de trem, para entregar-lhe cópias das fotos do
Museu do Ouro para que levassem ao exterior onde buscavam financiamento. Da
capital, pegou um ônibus até Ouro Preto. Ao desembarcar na antiga Vila Rica, foi
cumprimentado na Praça da Inconfidência por uma figura muito popular da cidade, a
Olímpia, uma senhora que ganhava alguns trocados posando para fotos de turistas. “Ah,
vai tirar umas fotos de mim que nem o Otto Stupakoff] tirou no ano passado e eu vou
ganhar uns dolarzinhos”170
. Fotografou a mulher, pagou-lhe o “cachê” e foi conhecer a
cidade e fazer o trabalho. Dias depois da chegada, partiu para Congonhas do Campo,
onde aprendeu muito sobre Aleijadinho.
Depois de 11 dias, retornou a São Paulo e compôs o calendário para 1967 com
imagens de Ouro Preto, Congonhas do Campo e Sabará. A Brown Boveri mudou de
gráfica para a impressão do calendário, passando o trabalho para uma empresa que não
166
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 167
Material sobre a congada será apresentado no item 2.4. 168
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. 169
Idem. 170
Idem.
143
tinha experiência neste tipo de material, o resultado não agradou muito o fotógrafo, pois
as cores perderam intensidade.171
Na capa, foi usada uma foto dos profetas com a Basílica de Congonhas do
Campo ao fundo; um anjo de altar, fotografado no Museu do Ouro em Sabará; detalhe
no interior na Basílica em Congonhas do Campo; forro da igreja São Francisco de
Assis, de Ouro Preto, com pintura de Mestre Ataíde; púlpito da igreja Nossa Senhora do
Pilar, em Ouro Preto; imagem de Nossa Senhora da Conceição, fotografada no Museu
do Ouro, em Sabará; duas fotos da igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Sabará,
mostrando uma geral do interior com fiéis e outra do altar com a santa; detalhe da
Capela Padre Faria; detalhe da igreja Nossa Senhora do Pilar, de Ouro Preto, com
imagem da santa e outra com o trabalho de entalhe no sustentáculo das colunas; sacristia
em pedra sabão da igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto; vista geral do interior
da igreja Nossa Senhora do Pilar.
Neste calendário, como é possível perceber pela relação das imagens, prevaleceu
como tema a arte sacra barroca em todas as fotos, sem exceção. A edição das fotografias
para o calendário elegeu um único aspecto dos locais visitados, o que de certa forma não
deu conta da riqueza do que foi observado por Flieg. Optou-se claramente por imagens
de apelo turístico que exploram o atrativo histórico. Até mesmo o tema inicial proposto
pela Brown Boveri que era “ciclo do ouro” permitiria uma cobertura muito mais ampla.
Dentro deste espectro, o conjunto traz um bonito exercício de composição de fotos de
arquitetura e de objetos artísticos.
Existem muitas variações de ângulos, as imagens fogem dos enquadramentos
frontais e simétricos, como a foto da capa (fig. 2.3.20) em que a tomada do adro da
basílica de Congonhas do Campo, privilegia apenas dois dos profetas e a igreja ao fundo
aparece levemente diagonais e as agulhas das torres foram cortadas do quadro. Os
objetos artísticos e os detalhes arquitetônicos ganham expressividade com o uso da luz
que ora valoriza os coloridos, ora ajudam a compor a ambientação mais escura e
monocromática dos interiores. Há também um caso muito curioso que é uma foto no
interior da basílica de Congonhas do Campo que mostra em destaque um sustentáculo
de lustre da igreja em forma de uma serpente (fig. 2.3.21). A alegoria muito “chinesa”
171
Em fim de 1966, houve um incidente relacionado à produção deste calendário. Flieg encontrou à venda
cartões de Natal com fotos suas do trabalho de Minas Gerais, reproduzidas sem seu conhecimento e
creditadas ao fotógrafo contratado pela Brown Boveri para fazer os fotolitos do calendário de 1967.
144
para o ambiente setecentista brasileiro chamou atenção de Flieg, porque justamente toca
num dos temas mais apreciados por Flieg, o dos cruzamentos culturais.
Fig. 2.3.20 Fig. 2.3.21
Adro dos profetas e basílica e detalhe no interior da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Fotos do
calendário da Brown Boveri para 1967. Congonhas do Campo, 1966.
Fig. 2.3.22
Vista a partir do telhado da basílica do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos. Congonhas do Campo, 1966.
Das fotos que não entraram no calendário, há um material que mereceria
destaque como a vista panorâmica de Congonhas do Campo (fig. 2.3.22). Para realizar
esta foto, Flieg subiu no telhado da basílica e, com uma grande-angular de 90°,
fotografou um panorama da cidade, com adro, santuário e outras construções, a partir da
Depois, deparou-se com outras três fotos suas publicadas com o mesmo crédito. Flieg nunca moveu
145
igreja que não aparece na foto. Há assim, a inversão do ponto-de-vista tradicional, que
privilegiaria a fachada da basílica, nesta tomada é o ambiente geral da cidade que toma
a cena. Um pequeno detalhe, quase um ponto, de uma pessoa montada num burro no
vão à frente do adro, entre duas palmeiras, funciona como elemento que dá à foto o
ritmo do lugar, aludindo aos passos lentos do animal.
Durante o período que esteve em Ouro Preto, Lúcia Machado de Almeida o
convidaria para ilustrar o livro que estava escrevendo sobre a cidade. Ela era autora de
livros infantis e havia escrito uma espécie de guia turístico sobre Sabará (Passeio a
Sabará) em que as “visitas” a cada ponto da cidade eram embebidas em narrativa
histórica com tratamento literário e toques afetivos. O livro foi ilustrado com desenhos
de Guignard. Lúcia recebeu então a incumbência de escrever, no mesmo estilo do
anterior, um Passeio a Ouro Preto. Gostaria de ilustrar este guia com fotos, foi então
que veio o convite a Flieg. No entanto, no meio da correria do trabalho da Brown
Boveri e a preocupação com os compromissos que tinha em São Paulo, essa história
acabou ficando no ar e não se falaram mais sobre o assunto.
Em 1970, Flieg chamou Lúcia para fazer os textos do calendário de Sabará que
ele estava editando. Ela aceitou a proposta e veio a São Paulo. No estúdio do fotógrafo
viu uma das imagens de Ouro Preto, do Largo do Rosário, e se encantou. A ampliação
em questão foi produzida em alto contraste. Pouco antes, Flieg viu alguns trabalhos de
um fotógrafo suíço em que utilizava a técnica e aquilo havia lhe agradado muito, “era
muito sóbrio”. Então fez a experiência, passou alguns diapositivos 4’x 5’que produzira
em Minas Gerais para filmline, película em negativo preto-e-branco que trabalha com
uma pequena gama de tons de cinza. Fez as ampliações que chegou a expor numa das
mostras regulares do Sindicato das Empresas de Artes Fotográficas no Estado de São
Paulo (SEAFESP), do qual era membro ativo.
Lúcia então voltou à história do livro sobre Ouro Preto e disse que havia
contratado um fotógrafo de Belo Horizonte para o trabalho, que já estava na editora,
mas confessou que não estava totalmente satisfeita. As imagens em alto-contrastes
tocaram a escritora que viu ali uma expressividade muito grande. Perguntou se poderia
levar a cópia ao seu editor. Levou e ele adorou, mandou parar toda a produção.
Selecionaram as imagens dos diapositivos (4’x 5’ e 35mm) e as cópias de 33 fotos
foram confeccionadas e publicadas (fig. 2.3.23). Além do aspecto gráfico muito atraente
processo contra o referido fotógrafo.
146
que dá expressão a elementos arquitetônicos, o alto-contraste tem uma vantagem
destacada por Flieg quanto à impressão: “(...) nossa impressão em retícula, não é tão
rica em tons. (...) e preto é preto, branco é branco [papel], pode-se carregar que a
coisa será sempre visível”172
. Embora, vale destacar que, em seus trabalhos utilizando a
técnica, Flieg não ia até o máximo contraste, mantinha um pouco de cinza para que
alguns detalhes não desaparecessem.
Fig. 2.3.23
Largo do Rosário. Alto-contraste para o livro Passeio a Ouro Preto. Ouro Preto, 1966.
Quanto ao material de Sabará, Flieg não havia desistido de transformar em
calendário. Fez uma edição, montou um boneco, encomendou os textos a Lúcia
Machado de Almeida e ofereceu o projeto a várias empresas, entre elas a Belgo-
Mineira, que tem sede na cidade. Mas foi a própria Brown Boveri que acabou
comprando173
e o lançando para o ano de 1971. Na capa do calendário, há um detalhe da
fechadura e porta semi-aberta onde se entrevê o prédio do Museu do Ouro, dando a
idéia de um início, de uma porta que se abre para o descortinamento da história
brasileira.
A foto do mês de janeiro é uma ampla vista da cidade (fig. 2.3.24), que carrega
muitos elementos: a topografia, marcada pelo desenho do terreno onde está a cidade
com um grande declive e pelas montanhas ao fundo, a vegetação que aparece em alguns
pontos da imagem, área de mineração, casas e igreja coloniais e chaminés da Belgo-
Mineira. Esta foto é, talvez, de todas as imagens publicadas nos calendário, a que mais
172
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 5 mar. 2002. Por “nossa impressão”, Flieg
refere-se às condições técnicas no campo gráfico brasileiro por ocasião da produção do referido
material.
147
quebra com noção turística de sight-seeing, o que é mostrado não é um espaço de mera
contemplação, mas uma reflexão sobre o processo de transformação e permanência das
cidades coloniais brasileiras. A cena não tenta jogar com a noção temporal, como
usualmente as imagens de apelo turístico fazem, isolando um objeto do contexto,
despovoando etc., pelo contrário, apresenta uma simultaneidade de elementos que
expressam a atualidade da imagem.
Fig. 2.3.24 Fig. 2.3.25
Vista da cidade com chaminés da Belgo-Mineira ao fundo e Museu do Ouro. Foto do calendário da
Brown Boveri para 1971. Sabará, 1966.
As demais imagens do calendário mostram o púlpito de Aleijadinho na igreja da
Ordem do Carmo; o Museu do Ouro visto a partir do interior de um antiquário do outro
lado da rua; a fachada e detalhes da Matriz de Nossa Senhora da Conceição; detalhe de
uma gravura, do Museu do Ouro, sobre mineração em Diamantina; prensa e barra de
ouro; vista da cidade com montanhas ao fundo.
No Museu do Ouro, uma composição com modelo (fig. 2.3.25). A moça no
primeiro degrau da escada do prédio segura um pote. Há vários elementos que remetem
ao passado – calçamento em pedra, tufos de vegetação, a construção, as cerâmicas. Há
também uma composição muito rica, que trabalha com as linhas da vigas em madeira do
173
Os calendários da Brown Boveri de 1968 a 1970 não foram encomendados a Flieg.
148
casarão, com texturas, no calçamento e nas treliças. Além, disso há nesta foto a inserção
do componente ficcional, teatral, com a modelo carregando o pote.
Em frente a uma janela, Flieg fotografa uma vista com igreja e telhados (fig.
2.3.26). A cena é vista através dos vidros da janela colonial, com caixilho à mostra,
aparecem suas imperfeições. A imagem, que não entrou no calendário, tem assim uma
aparência de rugosidade, que causa um certo efeito pictórico. Flieg buscou aqui criar
uma poética ao assemelhar a representação fotográfica a uma pintura, utilizando para
isto um material que carrega as marcas do tempo – os vidros --, ou seja, que remete ao
tema central da foto e do ensaio.
Através de uma janela... Sabará, 1966.
Fig. 2.3.26
Outros pousos e paradas...
Numa descida ao litoral paulista, em 1966, Flieg fez algumas fotos da Serra do
Mar que depois foram aproveitadas num outro calendário para a uma indústria de
móveis de escritório, a RUF. A vegetação bem tropical em silhueta no primeiro plano
serve como uma moldura à paisagem litorânea que é descortinada ao fundo (fig. 2.3.27).
A foto carrega no azul que destaca o céu e o mar. Em 1975, foi ao vale do rio Juquiá
para fazer uma cobertura sobre as usinas hidroelétricas da Companhia Brasileira de
149
Alumínio. Na mesma viagem, fez várias fotos com motivos de natureza que lhe
chamaram atenção. Uma delas é um detalhe da vegetação da mata com samambaias e
outras folhagens (fig. 2.3.28). É um trabalho que valoriza as texturas e que o conjunto
forma uma linda estampa da vegetação nativa. Esta imagem foi utilizada como
ilustração de papel de carta da UNICEF dos anos de 1979 e 1980.
Fig. 2.3.27 Fig. 2.3.28
Paisagem tomada a partir da Serra do Mar. Foto do calendário da RUF. São Vicente, 1966; samambaias e
outras folhagens. Vale do rio Juquiá, 1975.
A natureza é um dos temas recorrente nos trabalhos do “Flieg viajante” e
aparece mesmo quando o interesse da viagem é outro, bastante distinto, como nas
coberturas industriais. As vistas, como as imagens da Serra do Mar e a do pôr do sol no
vale do Juquiá, é talvez o gênero mais recorrente. Como destaca Starobinski:
A vista será portanto o exercício do pintor em viagem
(...). O gênero está pois ligado à peregrinação, à descoberta,
ao espanto diante de um aspecto não habitual das coisas, à
comoção diante de um capricho ou de uma singularidade da
natureza quando esta parece oferecer ao contemplador uma
antecipação dos triunfos da arte.174
Pela tradição que se estende no mínimo desde o século XVIII, a natureza é
apresentada como espetáculo para os olhos, uma linda paisagem é uma paisagem que
corresponde a certos padrões construídos principalmente pelos cânones da pintura
174
STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 193.
150
romântica. Vem daí todo o repertório de imagens de apelo turístico usadas até hoje em
material de divulgação de viagens ou mesmo na publicidade em geral que associa um
produto a um cenário. Esta visualidade está tão arraigada no imaginário ocidental que se
chega à situação dos turistas que mal conseguem contemplar uma paisagem a olho nu,
só se relacionam esteticamente com aquele cenário através do visor de uma câmera.
Assim, a natureza que pontua o trabalho de Flieg segue estas noções, é um olhar
idealizador, mesmo quando visualmente renovado, que vê o sublime e as singularidades
pelo prisma de um ideal de integração entre o homem e o meio natural.
Fig. 2.3.29 Fig. 2.3.30
Fig. 2.3.31
Panos no varal ou anjos corneteiros. Acampamento de usina da Companhia Brasileira de Alumínio. Vale
do rio Juquiá, 1975; sinaleira de trem ou cavaleiro medieval. Piassaguera-Guarujá,s/d; par de túmulos ou
casal de noivos. Bagé, 1977.
No contexto das viagens, surgiram algumas imagens curiosas nas quais Flieg
trabalhou com associações visuais. Na viagem ao vale do rio Juquiá, deparou-se com o
151
varal da vila de funcionários de uma das usinas. Nele estava pendurada uma fileira de
panos, sendo que alguns deles estavam levantados (fig. 2.3.29). Assim, no efeito, Flieg
enxergou ali as figuras de três anjos corneteiros, que compôs com fundo verde da
vegetação e uma faixa de treliças no primeiro plano. Ao fotografar a construção da
Piassaguera-Guarujá, Flieg também não resistiu e fez algumas imagens de elementos da
antiga ferrovia que permaneciam no cenário. Fotografou uma sinaleira de trem, com
uma ponta de lança para cima que, para ele, lembraram um cavaleiro medieval (fig.
2.3.30). Numa viagem ao Rio Grande do Sul para fotografar usinas em 1977, foi a
Bagé, onde realizou uma grande série de fotos da arquitetura da cidade, do cemitério,
bem como, alguns retratos. Uma das imagens mostra dois túmulos adornados de flores,
um escuro mais alto e outro branco mais baixo (fig. 2.3.31). Para Flieg, era um casal de
noivos. Estas três imagens são um índice mais evidente do constante confronto que o
fotógrafo operava entre o novo e algum elemento que já fazia parte de seu repertório. A
visão do Brasil foi sempre construída a partir das referências que trazia e que,
obviamente, com o tempo, não eram mais exclusivamente alemãs ou européias, nem só
brasileiras, mas podendo-se dizer que multiculturais.
Fig. 2.3.32 Fig. 2.3.33
Placa de sinalização da antiga ferrovia. Piassaguera-Guarujá, s/d; ponte Rio Branco. Feira de Santana, 1978.
Na série de fotos sobre a Piassaguera, uma placa em ferro um tanto enferrujado
indicava que a “sahida” era no sentido para onde a mãozinha apontava (fig. 2.3.32). As
pessoas no fundo seguem no sentido oposto ao do indicador da plaquinha. A antiga
sinalização, com sua ferrugem e a grafia para aquém de algumas reformas ortográficas,
é um traço da história tão perseguida pelo fotógrafo. Em 1978, ele foi a um congresso a
152
convite do SEAFESP para ser jurado de uma exposição, em Feira de Santana, na Bahia.
Lá fez uma foto da antiga ponte Rio Branco, toda em ferro trabalhado. Como na placa
da Piassaguera, o metal da ponte carrega as marcas da passagem do tempo em suas
ferrugens que tem sua cor avermelhada contrastada com o céu bem azul (fig. 2.3.33).
O passado, a história, a origem, foram interesses centrais do fotógrafo, europeu
de nascimento e criação, que se fixou e foi se afeiçoando, se inserindo e se adaptando ao
Brasil. Mas esta adaptação nunca foi passiva, pois ele atuou na busca de um sentido
para esta terra. O olhar de Flieg se transformou, ao longo do tempo, mas traços da sua
própria origem nunca foram apagados. Nas viagens em busca de um país, ele talvez
tenha exercitado, mais do que em quaisquer outros momentos, o paradoxo de ser um
pouco alemão e um pouco brasileiro e, quem sabe assim, mais universal.
2.4. Ver o outro: galeria de retratos e tipos
Na rua Pedro Taques, bem próximo do sobrado onde vivia a família Flieg, havia
uma vila, de corredor fino e desnivelado, com um pequeno pátio ao fundo em torno do
qual havia várias casinhas. Ali moravam algumas famílias negras que formavam uma
comunidade. Flieg e Stefan, ainda chegados há menos de um ano ao Brasil, mantinham
uma certa estranheza e curiosidade em relação àquelas pessoas e suas festas que se
estendiam noite adentro e cuja música os irmãos escutavam do quarto de dormir. O
fotógrafo conta que no período em que estava em Berlim, recorda-se que, durante um
passeio ao Tiergarten, ficou muito impressionado ao ver passar um negro todo
aprumado em um terno - “Era algo totalmente novo”175
.
A própria situação geográfica da vila chamava atenção de Flieg. Era um enclave
negro em meio a uma região praticamente toda habitada por brancos. Não havia uma
integração entre os moradores da vila e os demais habitantes, apenas uma fria
tolerância. Flieg relata que, na verdade, existia um certo véu de mistério que envolvia a
pequena comunidade negra aos olhos dos demais. Assim, como os negros também,
provavelmente como instinto de autodefesa, não abriam seu espaço facilmente à
presença dos vizinhos. Mas, mesmo assim, Flieg travou um certo contato com a
175
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 20 jun. 2002.
153
comunidade da vila e foi até lá algumas vezes para fotografar. “Eu tinha uma posição
intermediária, não era negro, não era brasileiro, era fotógrafo”176
.
Numa destas ocasiões, em 1940, ele fotografou o grupo de convidados que
participavam de uma festa de casamento no pátio da vila (fig. 2.4.1). Como manda a
tradição, os retratados estão vestindo algumas de suas melhores roupas, “estão
produzidos para a foto”. Estas pessoas não se vestiram propriamente para o retrato, mas
para festa. De qualquer forma, mostram-se para câmera com segurança, porque o
vestuário está digno de registro. Não seria descabido especular que muitos destes
retratados deram uma rápida “ajeitada” no cabelo ou na roupa -- como fazemos ao
saber que seremos fotografados -- instantes antes de Flieg disparar sua máquina.
Fig. 2.4.1
Grupo de convidados de uma festa de casamento na vila da rua Pedro Taques. São Paulo, 1940.
Também seguindo a cartilha dos retratos tradicionais, está praticamente todo
mundo posando, há inclusive, a curiosa figura de uma garota em trajes de ballet nas
pontas dos pés e com os braços trançados bem à frente do grupo. A maior parte dos
retratados olha frontalmente para a câmera, embora alguns poucos ensaiem um meio-
perfil, ao não resistirem de desviar o olhar para a bailarina. Uns sorriem, levemente ou
mostrando os dentes, enquanto outros fixam seriamente e até encabuladamente a
câmera.
176
Idem.
154
Ao mesmo tempo em que o retrato apresenta uma codificação em relação a
vestimentas e poses, há um certo “naturalismo” na disposição um pouco caótica da
cena. Há muito desnível do solo, as pessoas do plano intermediário, mais ao centro,
quase desaparecem, enquanto os do fundo e das laterais aparecem em graus diferentes.
O enquadramento do espaço superpovoado também fraciona alguns corpos. Mesmo as
poses não seguem padrões muito rígidos, como a garota de vestido branco no primeiro
plano: a postura corporal sisuda, com braços cruzados e pernas separadas, não combina
com a expressão sorridente e suave de sua face. Há também o policial. Posando,
presença que visa “manter a ordem”. Não a ordem da imagem, mas a ordem do Estado.
O “homem da lei” aparece não como um elemento que garante equilíbrio da imagem –
afinal ela não está tão equilibrada assim –, mas funciona como uma caricatura da sua
própria presença naquele espaço, já que, apesar do destaque na foto, o grupo não parece
se relacionar com sua figura.
A composição irregular não acentua tanto a idéia de caos, mas, pelo contrário,
estabelece uma dinâmica entre os componentes do grupo retratado – com exceção do
policial, que é quase um decalque na imagem. Se alguns elementos vão no sentido de
uma construção mais formal do retrato, a disposição irregular dos retratados e a
variedade de expressões nos seus rostos dão vitalidade à imagem. O olhar que os mira
carrega uma dupla interação, ao mesmo tempo, que enxerga ali uma representação de
tipos “estranhos” ao seu repertório, busca também recuperar um pouco das histórias, das
subjetividades dos indivíduos.
A busca pela representação e perpetuação da auto-imagem através da arte vem
desde, pelo menos, a Antigüidade. No entanto, a noção de retrato, como gênero, tem sua
origem comumente identificada com a pintura a óleo, conjunto de técnicas que surge no
começo do século XV e se estabelece por volta de 1500. O retrato é historicamente uma
arte por encomenda. Francastel comenta que “na época de Van Eyck, em que se
trabalhava por encomenda, não se pintava pelo prazer de pintar. Tudo tinha uma
significação previamente determinada”177
.
Em 1952, Flieg tem uma encomenda para fotografar um grupo de artistas para
uma campanha da Kolynos. Chegam ao seu estúdio Hebe Camargo, Isaura Garcia, Vera
Nunes e Homero Silva. Ao fotografar uma das moças, que Flieg não se recorda
177
FRANCATEL, Pierre; FRANCASTEL, Galienne. El retrato. Madrid: Cátedra, 1995. p. 77. Apud
EGUIZÁBAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Cátedra, 2001.
155
claramente se Hebe Camargo ou Vera Nunes, ele estava com sua Leica apontada,
conversando com a modelo, observando e disparando a máquina e “ela como se fosse
um peixe chegando até a isca, chegando, chegando, se abrindo”. Num determinado
momento, ao que se ouviu o clic e moça o encara desarmada: “Você, hein?”178
.
O retrato é um campo da confrontação da qual participam, no mínimo, o
retratado e o fotógrafo179
. Flieg declara sua posição de “ataque” ao descrever um
episódio de família que foi fotografar: “eu estou lá com a máquina na mão, caçando o
momento, caçando um sorriso, caçando um gesto típico de um, de outro e
indiscutivelmente conseguindo o momento”180
. Susan Sontag, ao analisar a obra de
Diane Arbus, usa a comparação que a fotógrafa faz entre a guerra e o exercício de
fotografar pessoas: “‘Estou certa de que há vítimas’, escreveu Arbus. ‘Só Deus sabe,
mas quando as tropas começam a avançar em cima da gente, tem-se a sensação de que
se está acuado e de que se pode morrer a qualquer momento’”181
. Tradicionalmente, a
pintura e fotografia criaram técnicas e expedientes para compor retratos e, com isso
constituíram um código e um repertório que visavam abrandar o combate.
Starobinski, ao comentar os retratos setecentistas de Quentin de La Tour,
adverte: “O rosto visível, o que se oferece à imitação, está maculado de artifício.
Copiá-lo fielmente significa deixar-se prender na armadilha da mentira”182
. Pierre
Bordieu ressalta sobre os retratos fotográficos populares:
(...) essa estética identifica rigorosamente a norma estética e a
norma social, ou melhor, não reconhece, propriamente
falando, nada além das normas de convívio social e de boas
maneiras, o que não exclui, de maneira alguma, a experiência
e a expressão da beleza (...). As fotografias apresentam
geralmente os personagens de frente, no centro da imagem, de
pé, podemos dizer que a uma distância respeitável, imóveis em
uma atitude digna. De fato, colocar-se em pose é submeter-se à
apreciação em uma postura que não é e nem é percebida como
“natural”. Com a preocupação de corrigir a atitude, vestem
suas melhores roupas na recusa de se deixar surpreender em
trajes ordinários ou em uma ocupação cotidiana, é a mesma
178
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho . Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 179
A esta batalha pode ter mais que dois lados em disputa, quando, por exemplo, existe um contratante do
retrato que não é o retratado. Um exemplo são retratos publicitários. 180
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 181
SONTAG, Susan. Op. cit. p. 39. 182
STAROBINSKI, Jean. Op. cit. p. 154.
156
intenção que se manifesta. Colocar-se em pose é respeitar-se e
exigir respeito.183
O retrato é uma forma de legitimar publicamente uma auto-imagem que o
modelo tinha ou queria ter de si. Além de legitimar, o retrato também eterniza esta
ficção sobre o modelo. Associado primeiro à aristocracia, o retrato foi imediatamente
assimilado pela burguesia. Ter traços de sua fisionomia fixados em uma tela era um
índice de poder e prestígio.
A partir do século XIX, a fotografia assume o papel de dar forma aos retratos. O
entusiasmo inicial gerado pela fotografia vem, inclusive, do fato de permitir à burguesia
em ascensão ser eternizada em retrato. Os fotógrafos, cujos ateliês se proliferam nos
centros urbanos a partir de meados do século, tinham como missão “conseguir tornar
agradável, mediante alguns artifícios, mesmo a pessoa mais feia”184
. Os retratistas
oitocentistas lançaram mão de muitas técnicas para construir a imagem que os seus
clientes aspiram obter: retoques, tons difusos, iluminação dramática, cenários, adereços,
indumentárias e poses. Um dos empreendimentos mais notáveis, do ponto de vista
comercial, foi o francês André-Adolph-Eugène Disdéri, que, além de lançar em 1854 o
formato carte-de-visite185
que barateou consideravelmente o custo dos retratos, tornado-
os acessível à pequena-burguesia, fincou as bases de composição do portrait mais
comercialmente praticado no século XIX, principalmente através da padronização dos
adereços e da ambientação de cena.
Conforme se adentra no século XX, as poses e cenários estandardizados ainda
são praticados, mas principalmente após a década de 1920, há uma busca de maior
naturalismo na composição dos retratos, até chegar ao quase abandono dos estúdios para
a produção de retratos de família. Uma das encomendas mais corriqueiras que Flieg
recebia eram justamente os retratados particulares. Quando estava em fase de
estabelecer como autônomo por volta de 1945, esta era sua principal fonte de renda. Os
clientes vinham todos por indicação ou recomendação de familiares, amigos, vizinhos e
outros clientes. Flieg trabalhou com retratos particulares até, mais ou menos, fim da
183
BOURDIEU, Pierre. La définition sociale de la photographie. In: ______. Un art moyen: essai sur les
usages sociaux de la photographie. Paris: Minuit, 1965. pp. 116-117. 184
FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Veja, 1995.p. 72. 185
Retrato em papel colado sobre um cartão que media cerca de 10 x 7,5 cm. Usava negativo em chapa de
vidro, substituindo as de metal, e o pequeno formato permitiu a utilização de um sistema de máscaras
através do qual podia-se realizar até oito exposições em cada clichê. NEWHALL, Beaumont. Historia
de la fotografía. Barcelona: Gustavo Gili, 2002. pp. 64-65.
157
década de 1950, a partir daí, com uma clientela já muito bem formada no campo
industrial e publicitário, acabou abandonando este ramo de atuação profissional.
Flieg descreve a atividade de retratar como um ato de paciência e de busca,
envolve desenvoltura do fotógrafo para dar espaço de, ao mesmo tempo, envolver o
modelo de modo que este lhe permita o acesso, é quase uma relação de psicanalista com
paciente. Assim, em termos práticos, retratar é gastar filme. Flieg que sempre foi muito
conscencioso ao planejar seus trabalhos, o que não gerava muito material excedente
além do que se ia efetivamente utilizar. Nas reportagens industriais, por exemplo, não
chegava a atingir a média de duas imagens para cada uma encomendada. O primeiro
trabalho que teve profissionalmente já com estúdio próprio foi o de fotografar a família
de Oscar Ladmann, lembra-se que seu pai não se conformava por ele ter gasto um filme
de 36 poses quando a encomenda era de uma ou duas fotos.
(...) [meus retratos] eram fotos não muito
convencionais, eram fotos muito soltas, fotos muito vivas. Eu
diria que a minha forma de trabalhar em retrato tinha o
seguinte: se fotógrafos como Steichen, os clássicos, tiravam
com chapas 18 x 24, maiores, e tinham de fazer o portrait
muito bem estudado e muito calmo, muito bem iluminado,
muito expressivo. Talvez, eu já fui formado pela máquina de 35
mm que me permitia experimentar um pouco mais da
personalidade (...). Para mim sempre foi algo de fascinante ver
as possibilidades que um rosto poderia oferecer. Então, eu me
lembro que com menos do que 36 fotos eu não tiraria de um
retrato.186
Flieg utilizou, até o início da década de 1950, com muita freqüência para retratos
equipamento a Leica, acoplada em tripé, com teleobjetiva 135 mm, o que dava certa
distância do retratado e caixa Telyt, equipamento reflex que permite ao fotógrafo olhar
por cima da câmera, como em uma Rolleiflex, não encarando o modelo. A principal
tática que Flieg utilizava para fotografar era a deixar a “vítima” à vontade, quando
estivesse segura e descontraída, ela baixaria as guardas e o fotógrafo poderia “dar o
bote”.
Lembro do nosso alfaiate, Fredo, que muitos anos
mais tarde me dizia “olha, eu nunca tirei um retrato como o
que tirei com você”. O que eu fazia? Deixava a pessoa à
vontade. Uma cadeira, não de estúdio, pelo amor de Deus, eu
186
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.
158
não tinha nem estúdio (...) naquela casa, no andar superior187
,
eu usava o antigo dormitório com uma cadeira confortável,
luzes e uma mesinha com um copo de Cinzano, se fosse o caso,
uns cigarros e um papo. Acho que o papo era o mais
importante nisso tudo. O cara que tinha vindo com um certo
receio de fotógrafo, porque fotógrafo metia medo, acho que
ainda hoje mete medo.
(...) quando eu retratava pessoas, pessoas sentadas
confortavelmente numa poltrona, debaixo de luzes e lá
esperando para o momento que a pessoa se abrisse. Então,
isso é estar pronto para o momento. Aí é preciso a gente
ajudar e chegar a um instante de um sorriso, a um instante de
um movimento típico, a um instante da pessoa se dar. Isto
talvez seja um momento de amor.188
A sensibilidade para captar e compor estes “momentos de amor” pode ser
conferida em retratos como o de Agi Profili (fig. 2.4.2). De origem austríaca, nascida
Agathe von Aursperg, Agi era casada com Arturo Profili, redator do jornal Fanfulla,
com quem Flieg teve muito contato por ocasião da I Bienal de Artes. Este retrato é uma
representação visual para a expressão “mulher de fibra”.
Agi Profili. São Paulo, s/d.
Fig. 2.4.2
Agi é fotografada em uma pose frontal, levemente reclinada para frente e um
pouco descentralizada. O posicionamento frontal coloca o retrato encarando quem o
187
Flieg refere-se à casa da rua Maria Antônia onde manteve seu estúdio de 1946 a 1952. 188
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.
159
olha, é a pose de quem está totalmente à mostra, aparentemente sem artifícios. Agi
Profili está com o corpo um pouco reclinado sobre a mesa o que a coloca mais próxima
do observador, ela não o teme. O corpo reclinado apoiado sobre a mão também é uma
pose arquetípica do sujeito reflexivo, eternizada na escultura de Rodin. Assim, a
retratada mostra-se aberta, mas com uma introspecção que lhe garante a distinção. A
segurança indicada pela pose é reforçada pelos “acessórios” de cena, o cigarro e as
cartas de baralho. Não são objetos que fazem parte do universo de uma dona de casa ou
que se associe à noção de fragilidade. Pelo contrário, o cigarro e o baralho indicam uma
mulher de muita personalidade que não se deixa envolver por estereótipos tradicionais
de comportamento feminino. E há o olhar de Agi, que ganha força com a iluminação
suave, quase natural. É o elemento de maior expressividade no conjunto da imagem, a
ressonância do brio da mulher que parece contar uma história de sofrimento e
superação, reforçada pelo sorriso doce, mas não alegre.
Uma pose totalmente frontal também aparece em um outro grande retrato que
Flieg executou, em 1949, do médico russo Dr. Kandauroff. (fig. 2.4.3), pai de um
assistente de Flieg, Serge Kandauroff. O médico tinha feições que impressionavam o
fotógrafo, tanto que o enquadrou quase em close, de maneira bem central e frontal para
valorizar bastante as formas da cabeça e da face. O fundo neutro escuro ajuda a
delimitar os contornos da pela clara, cabelos grisalhos e roupa branca. A iluminação
divide o rosto ao meio em claro e escuro para conferir dramaticidade. O rosto fino traz
marcas que poderiam remeter a uma história de muitos feitos e provações. Os óculos em
formato circular completam um conjunto facial bastante expressivo, servindo como
moldura ao olhar que mesmo por detrás da pesada armação consegue encarar e penetrar
na câmera fotográfica. As vestes brancas transparecem certificando a profissão do
retratado.
Outra mulher, Dra. Margarida van der Reis, também médica, teve um retrato que
Flieg custou a solucionar (Fig. 2.4.4). O rosto muito redondo não dava um bom
resultado frontal ou mesmo em três quartos, então Flieg optou por um perfil. Com a face
voltada para uma janela, em um ambiente sem iluminação, o retrato tem uma superfície
toda escura e concentra a luminosidade suave na parte da frente do rosto e na faixa de
roupa branca. A pose e a iluminação, além de abrandar a feição grave, criam um
ambiente de mistério a envolver a retratada e dão a ela uma reserva, não a expõe
abertamente à apreciação. Ela contempla a luz, com aparência séria. Como nas outra
160
duas imagens, há um uma idéia de sofrimento, das marcas de um passado que não se
cicatrizaram totalmente.
Fig. 2.4.3 Fig. 2.4.4
Dr. Kandauroff. São Paulo, 1949; Margarida van der Reis. São Paulo, s/d.
Os três retratos enquadram três imigrantes que por caminhos vários chegaram ao
Brasil. Há assim uma identificação do fotógrafo com os retratados. Nos três, Flieg
valoriza os sinais de sofrimentos passados -- através da intensificação de algumas
marcas nos rostos e/ou com iluminação dramática -- mesclados à distinção de suas
figuras no presente da foto. O fotógrafo admira aquelas três personagens, talvez por
enxergar nelas um pouco de si. Assim, cria representações que poetizam suas histórias –
dos três retratados e do próprio retratista -- e atribuem valor ao fato de sobreviverem
íntegros ao desenraizamento.
Vida familiar
As encomendas de retratos particulares eram, na maior parte das vezes, pedidos
para fotografar famílias. Casais, esposas, crianças, animais, festas e acontecimentos
marcantes na trajetória familiar mereciam registro. Flieg costumava fotografar na casa
161
dos retratados, para assegurar maior naturalidade e integração entre modelo e cenário.
Apesar de nos anos 40 – período que Flieg começa a trabalhar como retratista – a
prática da fotografia amadora já estar razoavelmente disseminada, a figura do fotógrafo
profissional ainda era muito requisitada por famílias mais abastadas ou, no caso da
classe média, reservada a momentos ritualísticos da vida familiar.
Fig. 2.4.5 Fig. 2.4.6
Esposa e filha de Italo Eboli. São Paulo, 1947; Peter Bork. São Paulo, 1945.
Pierre Bourdieu revela que os retratos são a celebração da unidade familiar, pois
as fotografias eternizam certos sentimentos que as famílias e a sociedade constroem
como ideais. A imagem da mãe zelosa com os filhos é um destes ideais e talvez seja
uma das representações mais corriqueiras nos trabalhos de fotógrafos que tenham se
dedicado ao retrato particular, como na foto que Flieg fez da esposa do publicitário Italo
Eboli alimentando a filha (fig. 2.4.5). Um capítulo a parte são os retratos infantis, que
Flieg fez muito. Um dos expedientes que o fotógrafo utilizava e que ia ao encontro das
expectativas dos pais era colocar a criança em uma atividade que atribuía algum talento
ou vocação ao pequeno retratado, como o garoto Peter Bork que aparece em posição de
estudo, com caneta à mão e livro aberto sobre a mesa (fig. 2.4.6).
Em 1949, ao fotografar Babi, (fig. 2.4.7) filha de Arturo e Agi Profili, Flieg
explorou a delicadeza da menina, através da pose muito natural, do destaque que dá às
mãozinhas trançadas - movimento tipicamente infantil, que dá muita espontaneidade ao
162
retrato – e a colocação “singela” de duas pequenas margaridas entre os braços da
menina, que estão apoiados no sofá. Há, assim, uma identificação evidente entre a
retratada de aparência meiga e as florzinhas. Para realizar as fotos de uma outra garota,
Flieg escolheu como cenário a Praça Buenos Aires no bairro de Higienópolis. Deste
trabalho, existe uma série de três fotos que trazem uma poética como pouco se viu nos
retratos de crianças que Flieg realizou (fig. 2.4.8). Nestas fotos, trabalhou com foco na
menina e atrás desfocado, utilizado filtro suavizador que dá a aparência um pouco turva
à imagem, e com isso, o fundo adquire uma textura de pintura. Este efeito dá um ar de
certa irrealidade à foto, cria a idéia de uma visualidade onírica, etérea, que se descola do
modo “natural” de ver. As poses da garota reforçam uma imagem introspectiva, o que
não é uma característica tradicionalmente ressaltada nos retratos de crianças. A
introspecção não é associada à alegria, pelo contrário, carrega sempre um certo tom de
melancolia. A tristeza infantil é um tema nada palatável, então fica a interrogação de
porque Flieg retratou a menina de forma tão melancólica. São imagens belas e cheias de
lirismo, mas incomodam.
As festas e celebrações são os grandes momentos do retrato familiar. Sobre isso,
Bordieu comenta:
Se admitimos (...) que a festa tem por função
revitalizar e recriar o grupo, compreendemos que a fotografia
se encontra aí associada, já que ela fornece o meio de
solenizar estes momentos culminantes da vida social onde o
grupo reafirma solenemente sua unidade.189
As crianças eram -- e ainda são -- fotografadas na primeira comunhão (fig.
2.4.9), no caso católico, e no Bar Mitzva (fig. 2.4.10), para os judeus. Os dois
representam dentro das respectivas religiões os ritos de passagem da infância para a
adolescência, ou seja, é um dos “momentos culminantes” na vida dos futuros jovens e
registrá-los em imagem faz parte da solenização da própria vida social do retratado e da
família.
Uma das maiores instituições do retrato familiar é, sem dúvida, o casamento.
Flieg fotografou alguns casamentos, embora esta não tenha sido uma atividade muito
freqüente em sua carreira. No geral, estes trabalhos eram reservados a pedidos de
amigos e conhecidos. É curioso notar nos arquivos de provas de Flieg que, os poucos
casamentos que aparecem não são da burguesia que geralmente povoa os retratos
189
BOURDIEU, Pierre. Culte de l’unité et différences cultivées. In: _______. Op. cit. p. 41.
163
particulares do fotógrafo. Isto é um indício de que Flieg realmente realizava este tipo de
cobertura mais por questões de relacionamento pessoal com os envolvidos na festa, do
que por encomendas comerciais. Há, por exemplo, um casamento na vila da rua Pedro
Taques e outro de um conhecido de Flieg, apelidado de “Leão” (fig. 2.4.11). O retrato
do casamento inter-racial do italiano Leão com a esposa negra toca num dos aspectos
que Flieg mais exalta em sua visão sobre o Brasil que é a questão da miscigenação e do
multiculturalismo.
Fig. 2.4.7 Fig. 2.4.8
Babi Profili. São Paulo, 1949; garota fotografada na praça Buenos Aires. São Paulo, s/d.
Uma das maiores instituições do retrato familiar é, sem dúvida, o
casamento. Flieg fotografou alguns casamentos, embora esta não tenha sido uma
atividade muito freqüente em sua carreira. No geral, estes trabalhos eram reservados a
pedidos de amigos e conhecidos. É curioso notar nos arquivos de provas de Flieg que,
os poucos casamentos que aparecem não são da burguesia que geralmente povoa os
retratos particulares do fotógrafo. Isto é um indício de que Flieg realmente realizava este
tipo de cobertura mais por questões de relacionamento pessoal com os envolvidos na
festa, do que por encomendas comerciais. Há, por exemplo, um casamento na vila da
rua Pedro Taques e outro de um conhecido de Flieg, apelidado de “Leão” (fig. 2.4.11).
O retrato do casamento inter-racial do italiano Leão com a esposa negra toca num dos
164
aspectos que Flieg mais exalta em sua visão sobre o Brasil que é a questão da
miscigenação e do multiculturalismo.
Fig. 2.4.9 Fig. 2.4.10
Menina em dia de primeira comunhão. São Paulo, s/d; garoto vestido para Bar Mitzva. São Paulo, s/d.
Fig. 2.4.11 Fig. 2.4.12
Casamento do italiano “Leão”. São Paulo, s/d; Severo Niccolini e esposa durante comemorações das
bodas de ouro do casal. São Paulo, década de 1940.
Várias outras ocasiões culminantes da vida familiar foram retratadas por Flieg.
Há, por exemplo, as fotos que fez das bodas de ouro de Severo Niccolini, patriarca da
família dos patrões do fotógrafo na época (fig. 2.4.12). O casal, elegantemente trajado,
posa em um jardim, de modo que as flores e plantas lhe sirvam de moldura. A mulher
tem expressão um pouco dura, apesar da flor que tem nas mãos tentar suavizar-lhe a
165
figura. O homem posa como um típico burguês, em posição três quartos, o bigode
aparado, o terno bem cortado e o charuto no meio de seus dedos onde se vê um
portentoso anel de ouro.
Uma mulher pedira, certa vez, indicações sobre fotógrafo nas redondezas da rua
Pedro Taques. Foi a Flieg e pediu que fotografasse o filho falecido (fig. 2.4.13). Ele fez
um retrato mortuário valorizando os tons claros do terno do rapaz e do forro do caixão,
o que dava um ar de serenidade ao tema tão carregado.
Retrato mortuário. São Paulo, s/d.
Fig. 2.4.13
Na vila da rua Pedro Taques, certa vez, Flieg fez a fotografia de um outro rito de
passagem na vida social, que é a formatura (fig. 2.4.14). Havia lá o professor Ovídio
Pereira dos Santos que mantinha em sua pequena casa uma escola destinada à
comunidade. O empenho de Ovídio para manter o espaço de instrução para jovens e
crianças que provavelmente estavam à margem do sistema educacional da região central
da cidade, habitada pela elite branca, tocou muito o fotógrafo e despertou sua
admiração. Este é um caso curioso de uma fotografia de interesse da vida íntima de um
grupo, que adquire um sentido social muito amplo ao expor a exclusão, ou ainda, a
constituição de uma quase “cidade dentro da cidade” pela pequena comunidade negra e
pobre que se via alijada de serviços essenciais, como a educação, e do próprio convívio
com a vizinhança.
166
Grupo de formando da escola de Ovídio Pereira dos Santos, na vila da rua Pedro Taques. São Paulo,
s/d.
Fora dos momentos de festas e celebrações, era comum fotografar além das
crianças, as mulheres. Ricas esposas eram tradicionalmente mostradas como senhoras
do lar. Um recurso que Flieg utilizou algumas vezes para retratar mulheres foi a de
colocá-las de frente a um espelho, geralmente, sobre o toucador, como no retrato da
senhora Stahel-Moser, cujo marido era cônsul suíço em São Paulo (fig. 2.4.15). A
imagem além de permitir uma dupla visão da retratada – trabalhada com iluminação –
incorpora um estereótipo de feminilidade, associado à vaidade.
Fig. 2.4.15 Fig. 2.4.16
Esposa do cônsul suíço no Brasil, Stahel-Moser. São Paulo, s/d; contador da Gráfica Niccolini com seu
cão em terreno no bairro da Bela Vista. São Paulo, s/d.
167
Uma encomenda recorrente neste campo dos retratos particulares de família era
a de fotos de animais. Eram fotos do bicho apenas ou deste com o seu dono. Um dos
casos narrados refere-se a retratos encomendados pelo contador da Gráfica Niccolini,
dele e da esposa com os cães do casal. O cliente morava na Bela Vista, ou seja, na
região central de São Paulo. Próximo à residência do casal havia um terreno e foi lá que
Flieg fez várias fotos do contador com os cães. Numa delas, o homem sentado na relva
olha para o pastor alemão também sentado (fig. 2.4.16), com uma paisagem ao fundo. A
ambientação “campestre”, o cão pastor e pose do retratado sobre a grama simulam uma
ambientação montanhesca, típica do hemisfério norte. Segundo Flieg relata, ele tinha
referências claras dos cenários das montanhas da Silésia de sua infância, quando
realizou esta foto, que brinca com a ambientação e escancara a questão do artifício do
retrato.
No mundo do trabalho
Se as grandes “estrelas” do retrato familiar são as mulheres e as crianças, a
representação mais usual para os homens tem, desde a pintura a óleo, relação com o
universo do trabalho. Os retratados geralmente aparecem sentados à mesa de trabalho –
os trabalhadores braçais geralmente trabalham em pé, logo a pose aí delimita também
um status social. Sobre a mesa e eventualmente ao fundo objetos que remetem à
atividade profissional – papéis, livros, máquinas de escrever ou calcular, caneta,
telefone, mais recentemente computadores etc.
O médico Victor van der Reis. São Paulo, s/d.
168
Fig. 2.4.17
O médico Victor van der Reis foi fotografado por Flieg sentado à mesa de
trabalho onde se encontra um grosso livro aberto e alguns papéis (Fig. 2.4.17). Ele está
em pose três quartos e olha diretamente para a câmera que mantém uma certa distância
do modelo, apóia os braços sobre a mesa, sendo que em uma mão segura os óculos, que
supostamente teria retirado no momento da foto e a outra aponta o indicador para uma
das páginas do livro. Esta construção dá a idéia que o médico estava trabalhando em seu
gabinete, quando parou por um instante, tirou os óculos e fixou a câmera. Após o
disparo, o homem colocaria novamente os óculos e continuaria a leitura do livro a partir
de onde parou, conforme indica o dedo da mão direita. Com este artifício, a foto conta
uma história do que teria acontecido antes do disparo e permite antever que aconteceria
depois dele. Flieg fotografou na mesma ocasião a esposa de Victor van der Reis, no
entanto, enquanto o homem foi representado em situação de trabalho, a senhora
Margarida, também médica, teve um retrato que, apesar de não haver qualquer
identificação do cenário, a cena da mulher contemplando uma luz, provavelmente uma
janela, remete mais ao um ambiente íntimo, doméstico, do que ao espaço do trabalho.
Este retrato joga deliberadamente com as noções primordiais que regem os
retratos tradicionais, segundo Philippe Bruneau190
: a pausa e a pose. A pose transforma
o retratado em modelo, ou seja, opera no campo ficcional. A pausa refere-se à extração
do indivíduo fotografado do fluxo do tempo normal que encadeia a sua existência.
Assim, para Bruneau, a pauta dos retratos não é o sujeito, mas a pessoa, a representação
social do corpo através de uma série de artifícios.
Os ambientes de trabalho, com códigos muito rígidos, exigiram de Flieg um
tratamento mais esquemático do retrato. No entanto, oposto ao que acontecia com os
retratos familiares, quando o cliente estava no estúdio, conseguia resultados de maior
naturalidade, com o “método” poltrona-Cinzano-cigarro-papo. Certo dia, em 1952, José
Niccolini, que na época era vereador, telefonou a Flieg perguntando se ele “não
gostaria de fotografar o futuro pres... prefeito de São Paulo”191
. Proposta aceita,
Niccolini chega ao estúdio do fotógrafo com o também então vereador Jânio Quadros,
que deveria ser fotografado para a produção de um cartaz para as eleições municipais.
190
BRUNEAU, Philippe. Le portrait. Paris: R.A.M.A.G.E., 1982. 191
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho . Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.
169
Eu tive de dizer a ele na época que, como fotógrafo de
propaganda, eu sugeria que os produtos fossem fotografados
na melhor embalagem possível e talvez a idéia fosse marcar
um encontro para o dia seguinte. O que foi feito e foi feito com
bom resultado, eu diria, (...).192
Fig. 2.4.18 Fig. 2.4.19
Trecho de cópia contato com retratos de Jânio Quadros. São Paulo, 1952; Darcy Penteado 1) Darcy
Penteado e seus irmão posando com fantoches. São Paulo, 1945.
-Flieg acomodou o futuro prefeito na poltrona do estúdio. Jânio estava um pouco
“duro”, pensando na pose, então o fotógrafo disse-lhe que ficasse mais à vontade,
acendesse um cigarro – “Ah, pode fumar? Sim, pode fumar ”. Assim, enquanto o
candidato fumava e conversava com José Niccolini, Flieg fez uma série de retratos da
qual foi selecionada uma imagem, a de número 35 do filme, para a produção do cartaz
de campanha. Este é um bom exemplo da curiosidade do retratista em explorar “as
possibilidades que um rosto tem”, como é possível verificar no contato do filme com os
retratos de Jânio Quadros, Flieg trabalha com uma variedade de expressões que evocam
diferentes “estados de espírito”. Sem fazer modificações na iluminação e com
enquadramentos sem muita variação, ele registra sorrisos, olhares, fisionomias mais
introspectivas, movimentos de cabeça e posicionamento das mãos (fig. 2.4.18).
192
Idem.
170
Fig. 2.4.20
Apresentação de alunos do Estúdio Lírico, do maestro Hermann Frischler, no Clube Germânia. São Paulo, 1945/46.
O mundo do trabalho, embora comumente associado ao ambiente dos
escritórios, aparece representado nos retratos de Flieg em outros campos de atividade
profissional. Fotografou artistas de teatro, música, cinema, fotografia, dança, artes
plásticas em pose típicas que remetem aos respectivos trabalhos. Bruno Giorgi foi
retrato, em 1953, no ateliê do escultor, com instrumentos de trabalho em punho. Darcy
Penteado, amigo de Flieg, que confeccionava bonecos, foi retratado, de cachimbo na
boca, controlando um fantoche em cada mão, com seus dois irmãos mais novos abaixo a
segurar as figuras, criando um bonito desenho triangular para o retrato (fig. 2.4.19). Da
época em que Flieg ocupou o porão do maestro Hermann Frischler, na avenida
Angélica, entre 1945 e 1946, fotografou alguns alunos do Estúdio Lírico e uma
apresentação de ópera no Clube Germânia (fig. 2.4.20). Também fotografou as alunas
do curso de ballet de Liesel Frischler.
Rostos na multidão
Flieg fotografou pessoas fora do âmbito das encomendas de retratos particulares.
Existem alguns trabalhos que mostram rostos anônimos flagrados por Flieg e que
despertaram sua atenção. Sobre esta questão do flagrante, o artista gráfico Fred Jordan
comentou durante uma sessão de depoimento do fotógrafo no Museu da Imagem e do
Som de São Paulo que “têm muitos fotógrafos que andam com a câmera, que vivenciam
as coisas com a câmera na mão” e que o amigo Flieg, apesar de ser um “registrador”,
171
ele nunca tinha visto com a máquina na mão fora do estúdio. O fotógrafo responde que
isso ocorreu basicamente nas viagens:
“eu andava sim, não só com máquina, como com
equipamento e deixava me surpreender pelas coisas,
fotografava a coisa como ela vinha (...). Há necessidade da
gente estar completamente livre de preocupações, de
compromissos para poder estar completamente aberto para o
que acontece, para o que vem”.193
Assim, os registros destes rostos anônimos acontecem basicamente na ocasião
das viagens. Dificilmente, Flieg fotografava sem que o fotografado estivesse ciente da
existência da presença do fotógrafo.
Casal na praia. São Vicente, 1944.
Fig. 2.4.21
Um destes raros casos aconteceu em 1944, durante umas férias em São Vicente,
quando Flieg fotografou um casal que estava deitado sobre as rochas da praia (fig.
2.4.21). Nesta foto, não se vê suas faces, suas fisionomias, mas a disposição dos corpos
transmite um estado de tranqüilidade e alegria, é quase a narrativa de uma história de
amor. A moça aponta o dedo da outra mão num movimento que parece quem está
193
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981.
172
mostrando ao rapaz, pode ser uma aliança de casamento recém-colocada, seria aquilo
uma cena de lua-de-mel? Pode não existir a aliança, mas sim os planos... Há uma grande
valorização do cenário, no primeiro plano o colchão de pedra onde está o casal, depois
uma parede de rochas funciona como uma cerca com mar, que vem na seqüência, com
águas calmas, a areia da praia e, ao fundo, as construções e um automóvel. Há uma idéia
de isolamento, os dois amantes vivem um momento que não permite intrusos. O
fotógrafo que se infiltra neste território exclusivo, ao fotografar a cena, procura tornar
sua presença imperceptível na imagem, através da tomada por trás dos fotografados e da
ênfase no ambiente.
Fig. 2.4.22 Fig. 2.4.23
Moça no mercado. Jacareí, 1974; moça “flagrada” na sede da Escola de Samba Mocidade Alegre. São Paulo, 1970.
Outros dois casos que destaco aqui são as fotos de duas moças, uma num
mercado em Jacareí, em 1974 (fig. 2.4.22), outra na sede da Escola de Samba Mocidade
Alegre, em São Paulo, em 1970 (fig. 2.4.23). Em Jacareí, a moça em primeiro plano
apóia-se na banca vazia, logo atrás uma mureta de azulejos e, ao fundo, vislumbra-se
pessoas conversando, animais em gaiolas. Na escola de samba, o ambiente agitado de
festa, pessoas conversam, passam, observam e interagem entre si e com o cenário do
galpão com mesas com garrafas de cerveja. As duas moças são os focos das respectivas
imagens, são destacadas dos conjuntos que transmitem a idéia de movimento e barulho.
Ambas têm o olhar absorto, olham no sentido extracampo das fotos. A negra enxuga o
173
rosto, indicando a alta temperatura no ambiente. Flieg enxerga nestes dois casos,
também como na foto do casal na praia, momentos de isolamento. Há inúmeras
especulações que poderíamos fazer sobre as histórias destes olhares. No entanto, aqui o
que interessa é observar que Flieg se colocou na inusual posição de voyeur para
representar a idéia do isolamento, da existência de mundos individuais que convivem
em meio à vida moderna. É o espaço do indivíduo no qual o fotógrafo adentra e tenta
fazer sua presença não-notada, para, com isso, não aniquilar o sentido, pois, afinal, o
próprio ato de fotografar já não quebraria a idéia de mundo particular?
Em algum momento entre 1943 e 1944, Flieg viajou à Fazenda Itaúna, de
propriedade da família Niccolini, como já foi dito anteriormente. Este foi o primeiro
contato do fotógrafo com o interior do Brasil, além da paisagem, impressionaram-lhe
sobre tudo os tipos caboclos com que teve contato lá. O colono com arma, bolsa e um
cachorro prepara-se para caçar (fig. 2.4.24) e o garoto sorri para câmera ao posar junto a
um cacho de bananas e a bananeira (fig. 2.4.25). São retratos de muita plasticidade,
claros, que exploram as tonalidades de cinzas para registrar com detalhes texturas da
vegetação circundante.
Fig. 2.4.24 Fig. 2.4.25
Colono preparado para caça, e garoto com cacho de bananas, Fazenda Itaúna. Descalvado, 1943/44
Na viagem a Parati, em 1965, uma foto que não foi publicada no calendário da
Brown Boveri, mas posteriormente aproveitada no da RUF, mostra um agricultor
posando com uma pilha de abóboras expostas para venda em uma estrada de terra (fig.
2.4.26). A pose do homem indicaria que ele estava posicionado de costas para a câmera
174
e rotacionou com um movimento de cintura de modo que o rosto olha no sentido do
observador e o corpo em perfil com uma abóbora partida nas mãos. As pernas afastadas
formam um desenho triangular que acompanha um pouco o formato da pilha de frutas.
No fundo, cerca e uma área de cultivo e depois montanhas e vegetação.
Fig. 2.4.26 Fig. 2.4.27
Agricultor vendendo abóboras. Parati, 1965; Grupo de congada. Caminho entre Belo Horizonte e Lagoa Santa,
1966. (Fotos do calendário da RUF)
Na primeira viagem a Minas Gerais, estava a caminho de Lagoa Santa, quando
viu um grupo de congada. Parou e pediu para fotografar (fig. 2.4.27). Em
agradecimento, Flieg ofereceu aos músicos uma garrafa de cachaça e estes últimos em
retribuição convidaram Flieg para almoçar na casa de um deles. Como manda a tradição
local, os convidados deveriam comer primeiro. Ao final da refeição, que Flieg descreve
como uma “recepção bíblica”, pediram que o fotógrafo dissesse algo e ele então
agradeceu e declarou que nunca recebera em parte alguma, nem no país em que nasceu,
uma acolhida tão afetuosa e autêntica como aquela.
Em todos estes retratos da fazenda, de Parati e de Minas Gerais, há um olhar um
pouco etnográfico, de quem faz um registro meticuloso dos hábitos, características
físicas, vestuário, relação com o ambiente, práticas sociais e culturais. Assim, o que
permeia estas fotos não é uma busca pelos sujeitos, mas a identificação de tipos. Não há
um projeto unificador nestas fotos, logo não podemos falar em uma estética linear da
construção das imagens. Enquanto uns posam mais deliberadamente, olhando para a
câmera, como o colhedor de bananas e o vendedor de abóboras, dando a idéia de pausa
e pose, nos outros, transparece a noção do tempo em suspensão, de um instante extraído
175
do fluxo contínuo das atividades dos retratados. Em todos, há a preocupação em mostrar
o ambiente e objetos o que reforça esta idéia do registro cultural.
Fig. 2.4.28 Fig. 2.4.29
Família do motorista que acompanhou Flieg. Bagé, 1977.
Na viagem a Bagé, em 1977, o motorista que conduziu Flieg da usina até a
cidade, ao final convidou-o para almoçar em sua casa. Na casa simples em madeira, ele
fez dois retratos, um da família (fig. 2.4.28) – motorista, esposa e quatro filhas – e outro
de uma mulher idosa (fig. 2.4.29). Na foto da família, Flieg explora uma verticalidade
inusual em retratos de família, é composto em quatro linhas verticais paralelas: uma
formada pelas duas meninas à esquerda; no centro, pelo homem e a menina menor com
a boneca e as outras duas são a esposa e a filha mais velha que estão em pé. Esta
composição é valorizada pelos biotipos magros e alongados dos retratados. Do
ambiente, transparece apenas um pouco da parede e do piso em madeira, indicando um
tipo de construção muito comum na região Sul do país. O outro retrato traz a mulher no
primeiro plano sentada lateralmente em uma cadeira, ao fundo, um pouco desfocado,
uma mesa com utensílios de cozinha e as paredes de madeira da casinha. Nesta foto, há
176
um maior destaque do ambiente e objetos em relação à da família. A mulher está
sentada com as mãos cruzadas colocadas sobre as pernas, tendo um bonito contraste
com o vestido preto. Esta pose também muito tradicional, desde os retratos da pintura,
tipicamente feminina, atribui uma dignidade incrível à retratada. Há nesta foto também
um jogo de diagonais que dá muito equilíbrio ao retrato, do encosto da cadeira que faz
uma paralela com a parede ao fundo e a posição da mulher no sentido oposto.
Estas imagens mostram, sem dúvida, tipos brasileiros, são colonos do Sul, há
dados sobre suas residências, traços que indicam alguma ascendência européia, as
roupas, os objetos e os rostos marcados pelo trabalho mostram sua situação econômica.
No entanto, diferente dos retratos da fazenda, de Parati e Minas Gerais, referenciados
acima, estas fotos vão além do interesse cultural, Flieg coloca aqui, novamente, seus
personagens como sujeitos. No retrato da família, cada membro mostra um “estado de
espírito”, um interesse particular, há expressão nos olhares, nas poses, nas roupas. A
mulher em sua dignidade conta com seu olhar cansado, mas atento, muitas histórias para
quem estiver disposto a ouvi-las. Eles não foram flagrados por aí, o fotógrafo adentrou
na casa, conviveu um pouco com eles e depois os fotografou. Assim, os interesses que
moveram estes retratos e as fotos de tipos populares são diversos.
Nos trabalhos sob encomenda particular, Flieg conjuga uma necessidade de
atender aos interesses e desejos dos clientes e, ao mesmo tempo, impor um padrão de
qualidade estética. Como cometa Sergio Miceli, ao analisar os retratos encomendados
de Portinari:
O sucesso da fórmula portinaresca se deveu sobretudo
ao fato de o artista ter sabido atender às expectativas de
representação simbólica nutridas por setores de elite que
acabaram convertendo a encomenda dessas obras numa marca
excepcional de requinte e prestígio. O elemento de base dessa
linguagem plástica empregada nos retratos de Portinari
encontra-se ao mesmo tempo dentro e fora das telas
propriamente ditas.194
Isso, no entanto, não significa que o fotógrafo não se interessava pelos sujeitos
que retratava. Em grande parte de seus trabalhos sob encomenda, é notável a
aproximação que o olhar de Flieg estabelece com os retratados. Da mesma forma, nos
registros de rostos que ele destacou em meio à multidão, há uma vontade de inventariar
os dados sobre cultura do povo brasileiro, o que fica bastante evidente na fotografia de
194
MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia
das Letras, 1996. p. 118.
177
tipos. Mas, neste caso também, há momentos em que ele se propõe a adentrar no terreno
das subjetividades. Comumente se diz que ver o outro é olhar a si próprio. O que Flieg
talvez visse nos rostos, nos biotipos, nos olhares, nas expressões, nas roupas, ambientes
etc. era sua própria predisposição em descobrir o outro. Este era um dos caminhos para
que ele próprio, o exilado radicado no país, se situasse dentro deste amplo contexto.
178
179
Capítulo 3
Um olhar moderno
Coluna da Vitória. Berlim, 1939.
180
181
Karl Flieg ao olhar esta fotografia que abre o capítulo achou-a muito estranha.
Por que o filho teria feito uma fotografia em ângulo e enquadramento tão bizarros? A
coluna de 67 metros de altura – tema central da imagem – é avistada de baixo para cima,
quebrando a proporção, não está tão centralizada, nem parece tão reta assim. Outros
elementos, o trecho de um muro entra na cena e ocupa tanto espaço com suas linhas
oblíquas, um pouco de parede branca aparece do lado esquerdo.
O rapaz tirou esta foto em 1939, época em que cursava as aulas de Grete
Karplus. Esta imagem fazia parte de um exercício de rua, usando a sua Leica novinha
em folha. Já tinha fotografado os jardins do Palácio de Sanssouci e passeava pelas ruas
de Berlim atrás de motivos – o Portão de Brandemburgo, o movimento nas ruas,
esquilos no Tiergarten, telhados da Kantstrasse e outros mais. A Coluna da Vitória
(Siegessäule) é um dos principais símbolos urbanos de Berlim, foi erguida em 1873
como marco da vitória prussiana sobre os dinamarqueses, austríacos e franceses, com a
deusa dourada bem ao alto que aponta sua coroa de louros em direção a Paris.
Karl Flieg devia se perguntar como o filho fotografara com tamanha
“displicência” um símbolo de tanta imponência no imaginário alemão. O estranhamento
vem do fato da imagem quebrar com a organização do espaço visual tradicional que é
toda baseada no padrão de perspectiva clássica. Flieg exercitava nesta foto tendências
modernas que estavam em curso desde, pelo menos, a década de 1920 na Alemanha e
que tinham expressões variadas em outras partes da Europa e nos Estados Unidos. A
idéia era liberar o olhar e começar a buscar novos ângulos para fotografar, ângulos que
efetivamente faziam parte da nossa forma de enxergar o mundo, mas que a arte clássica
havia estandardizado em uma única visão, que se transformou no padrão de
representação do real.
Estes olhares surgidos no bojo das transformações culturais dos anos 20 ajudaram
a construir novas visualidades que serviram de modelos para as gerações de fotógrafos
posteriores, como o caso de Flieg. É, assim, por meio de um olhar moderno que ele mira
o país, ajudando a forjar a própria idéia de modernidade nos trópicos.
182
3.1. Modernidade e fotografia
A expressão fotografia moderna, comumente empregada, carece, acredito eu, de
algumas delimitações dentro do âmbito deste trabalho. A modernidade aparece como
um fenômeno fugidio no campo conceitual, pois tem sua existência vinculada ao que é
antagônico à sua natureza.
Marshall Berman195
identifica como fontes da modernidade as descobertas e os
avanços no campo científico; o emprego da tecnologia nos processos produtivos,
levando ao surto de industrialização; crescimento demográfico “descomunal”;
aceleração da urbanização; implementação de sistemas de comunicação de massa;
reafirmação do poder dos Estados nacionais; movimentos sociais de diversas naturezas
no seio dos grandes centros e expansão do mercado capitalista.
Quanto à datação do fenômeno, Berman o divide em três períodos: do início do
século XVI ao fim do XVIII, que se caracteriza por uma espécie de ensaio da vida
moderna, em que as pessoas não têm “idéia do que as atingiu”; depois, do final do
século XVIII ao XIX, estágio intermediário em que se vive a dicotomia da modernidade
que guarda reminiscências de um mundo anterior ainda não aniquilado, e, por fim, o
século XX, com a expansão “virtualmente planetária” do processo de modernização,
que acaba por fragmentar a experiência perdendo, assim, a consciência de sua gênese.
No segundo período, é que se toma noção da idéia da modernidade com
formulações acerca da natureza da experiência e o novo homem que daí surge. A
relação do homem moderno com a cidade é ontológica e a encarnação da metrópole
moderna oitocentista é Paris. O ritmo das cidades marca o passo da “aventura
moderna”, era um ritmo “marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e
desorientador do que as fases anteriores da cultura humana”196
, que afetaria para
sempre a percepção sensorial do novo homem.
A modernidade do século XIX, tem Paris como referência urbana e Charles
Baudelaire como principal porta-voz de seu projeto artístico. Baudelaire caracterizou o
moderno no artigo O pintor da vida moderna (1863), como o que marca a diferença
195
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986. 196
SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY,
Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac &
Naify, 2001. p. 116.
183
entre o presente, historicamente definido, e o passado, é a atitude diante da atual que
rivaliza e ao mesmo tempo se nutre do repertório histórico. Dentro do espectro da
produção artística, ele definiu: “por ‘modernidade’ entendo o transitório ou passageiro,
por um lado, e o eterno pelo outro – eram dois lados de uma dualidade”.197
Ou seja, a
obra de arte moderna mantém vivo um diálogo entre antigo e novo. Esta dualidade na
arte moderna também foi ressaltada por Perry Anderson:
Sem o adversário comum do academicismo oficial, o
grande arco das novas práticas estéticas tem pouca ou
nenhuma utilidade: sua tensão com os cânones estabelecidos
ou consagrados que encontram pela frente é constitutiva de
sua definição enquanto tal.198
Baudelaire também exalta as qualidades de uma arte moderna concatenada aos
avanços e transformações de sua época e que visa se “embrenhar nas multidões”, as
quais se referia como “um imenso reservatório de energia elétrica”. Berman destaca a
visão artística do poeta e ensaísta francês: “Energia elétrica, caleidoscópio, explosão:
a arte moderna deve recriar para si, as prodigiosas transformações de matéria e
energia que a ciência e a tecnologia modernas – física, óptica, química, engenharia –
haviam promovido”199
. No entanto, esta incorporação da tecnologia na arte é comedida,
pois estas técnicas, como a fotografia, deveriam sempre ocupar um lugar subalterno no
panteão artístico, onde a pintura reinava magnanimamente.
Conforme se adentra ao século XX, novas propostas de arte começam a exigir
uma experiência moderna mais radical. Não era criar uma nova forma de pintar, mas
gerar uma arte que rompesse de vez com a organização de mundo, com o modo de ver
que vigorava desde, pelo menos, a Renascença, uma arte que exigisse novas posturas
dos artistas e o meio para isso era a incorporação definitiva da tecnologia. Estes
movimentos, chamados de vanguardas históricas, desenvolveram-se principalmente na
Europa e nos EUA. Andreas Huyssen chamou o momento do surgimento destas novas
propostas de o “Grande Divisor”, marco da passagem da alta cultura, representada por
um modelo de modernismo oitocentista que pregava um descolamento total entre arte e
197
BAUDELAIRE, Charles Apud FRANSCINA, Francis et al. Modernidade e modernismo: A Pintura
francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 9. 198
ANDERSON, Perry. Modernidade e Revolução. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 14, pp. 2-
15, fev. 1986.p. 9. 199
BERMAN, Marshall. Op. cit. p. 141.
184
cultura de massa, para a tendência das vanguardas que buscavam uma arte infiltrada nas
tramas do tecido social, uma “cultura vernacular e popular, que se transformou cada
vez mais na moderna cultura de massa comercial”200
.
Para Huyssen, o principal elemento que influenciou as vanguardas foi a
tecnologia, fato que pode ser mais bem compreendido nas práticas como colagem,
montagem, fotomontagem, que acarretaram a valorização da fotografia e do cinema. A
experiência tecnológica na virada dos séculos XIX para XX gerou, segundo Huyssen,
duas posturas, uma de “estetização da técnica a partir do final do século XIX”,
representada pelas exposições industriais, novos modelos de cidades modernas
preconcebidas etc., e outra de horror à tecnologia, com forte inspiração nietzchiana. A
polarização quanto à questão técnica deu subsídios às formulações artísticas das
vanguardas que buscaram integrar a tecnologia e o fazer da arte.
Walter Benjamin chamou atenção para a mudança de estatuto da arte com a
incorporação tecnológica. O valor de culto tradicionalmente agregava valor aos objetos
artísticos, mas “à medida que as obras de arte se emanciparam do seu uso ritual,
aumentaram as ocasiões para que elas sejam expostas”201
. Assim, o valor de exposição
passou a ser almejado e a obra abandonou a existência única por uma existência serial.
Com esta mudança primordial, o fazer artístico precisaria ser pensado em novos termos.
“A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da
reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original”202
.
O temor tecnológico é ressaltado pelo historiador da arte alemão Wolfgang Born
em seu artigo “Uma concepção fotográfica do mundo”, publicado em 1929, afirma que
“a técnica até o presente destruiu mais possibilidades de felicidade do que ela jamais
criou com suas conquistas civilizatórias”.203
No entanto, continua Born, era necessário
recuperar a sensibilidade e os valores estéticos aniquilados pelo mundo mecanizado, o
que não seria mais possível nos moldes românticos. Era preciso buscar novas formas
que tivessem “o objetivo de espiritualizar a matéria”, tirando dos produtos técnicos a
matéria da obra de arte.
200
HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 11. 201
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935/1936). In: ______.
Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,
1993. (Obras Escolhidas, 1). p. 173. 202
Ibid. p. 180. 203
BORN, Wolfgang et al. Definitions de l’oeil moderne. In: LUGON, Oliver (org.). La Photographie
en Allemagne: Anthologie de textes (1919-1939). Nîmes: Jacqueline Chambon, 1997. p. 56.
185
Born identifica a fotografia como o meio por excelência da nova arte, pois tem
como missão descobrir a realidade, na verdade, a expressão da realidade, que não está
na aparência, mas nas estruturas. “Este novo realismo que encontra sua satisfação na
hiperprecisão do detalhe é a expressão de uma mentalidade racional atual”204
. A obra
de arte moderna exigiria transparência e precisão, qualidades oferecidas com bastante
eficiência pela fotografia. Em nosso redor, o mundo industrial, urbano oferece os
motivos, o artista faz uso de várias técnicas fotográficas para daí extrair a beleza. Born
afirma, assim, que “com este programa, a fotografia se insere nas correntes produtivas
da cultura contemporânea”205
.
O artigo de Wolfgang Born, apesar de muito ligado ao contexto particular
alemão, principalmente às propostas da Nova Objetividade, expressa um sentimento,
presente também no texto de Benjamin, mais ou menos geral dos artistas e teóricos
simpáticos às vanguardas, em relação à fotografia e aos meios técnicos de forma geral.
Era preciso romper definitivamente com a arte tradicional, o que significa neste caso,
tirar a fotografia da cola da pintura. A fotografia integrada ao projeto moderno das
vanguardas tem seu próprio caminho, condizente com a natureza da própria técnica.
Molly Nesbit organizou a história da fotografia das vanguardas a partir de dois
pontos: a necessidade de agrupamento de alguns fotógrafos e artistas plásticos para o
desenvolvimento de um campo experimental para a fotografia e a configuração de uma
modernização nos meios de representação visual através da incorporação e a atribuição
de significação estética à ciência e à indústria206
.
Aos futuristas italianos, juntaram-se os irmãos Anton Bruno e Arturo Bragaglia
em 1913, que trabalhavam com a cronofotografia, ou seja, incorporaram uma imagem
“oferecida pela ciência” na pesquisa, que já vinha sendo desenvolvida pelos pintores e
escultores do movimento, sobre a decomposição do movimento. “Era a primeira vez
que eles [fotógrafos, pintores e escultores], na qualidade de artistas, estudavam o
mesmo problema plástico, sobre as mesmas bases e em pé de igualdade”207
.
204
Ibid. p. 57. 205
Ibid. p. 60. 206
NESBIT, Molly. Photographie, art et modernité (1910-1930). In:
LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (org.). Histoire de la photographie.
Paris: Larousse/Bordas, 1998. pp. 104-123. 207
Ibid. p. 106.
186
Nos Estados Unidos, a vanguarda foi organizada em torno do fotógrafo e
agitador cultural Alfred Stieglitz. Oriundo do pictorialismo, Stieglitz tornou-se um dos
maiores incentivadores da “fotografia direta”, ou seja, sem manipulações óptico-
químicas e em que expedientes “puramente fotográficos”, como enquadramentos,
ângulos e close-ups, dão a substância estética e significativa. O lema do grupo que
renovou a fotografia norte-americana nas décadas de 1910-20 era, conforme, disse o
próprio Stieglitz “um máximo de detalhes com um máximo de simplificação”.208
Outros
fotógrafos fundamentais no desenvolvimento da vanguarda nos Estados Unidos foram
Paul Strand e Edward Weston.
Na França, o principal movimento a incorporar a fotografia em suas pesquisas
foi o Surrealismo. Susan Sontag chega a enxergar o triunfo do movimento na realização
fotográfica. Os fotógrafos próximos ao grupo tinham o objetivo de captar o acidental,
encontros visuais casuais, tal qual na frase do escritor Lautréamont que serviu de mote
aos surrealistas: “belo como o encontro fortuito, sobre uma mesa de dissecação, de
uma máquina de escrever e um guarda-chuva!”209
. Além disso, abusaram de
montagens, sobreposições, fotogramas, solarizações, distorções e outras técnicas que
para a configuração das “imagens oníricas”. O principal nome do grupo é Man Ray,
além de aproximações com os húngaros André Kertész e Brassaï.
Na União Soviética, a fotografia encontrou espaço no Construtivismo,
principalmente, com Aleksandr Rodchenko. O grande meio de circulação eram os
cartazes que serviam de propaganda do governo revolucionário.
A Alemanha foi um dos principais centros de desenvolvimento e irradiação da
fotografia moderna. O dadaísmo alemão teve destaque no campo fotográfico através,
principalmente, das fotomontagens que “visando a destruição revolucionária da cultura
burguesa” satirizam a linguagem da grande imprensa. Os dois principais nomes são
John Heartfield e Raoul Hausmann. No campo da Nova Objetividade, destaca-se o
trabalho de Albert Renger-Patzsch, que em 1928 lançou o livro O mundo é belo (Die
Welt ist schön) com imagens de animais, plantas, construções históricas ou industriais e
objetos industrializados fotografados de maneira direta, clara e com formas bem
definidas. Na Bauhaus, o principal nome a desenvolver pesquisas na área fotográfica foi
o pintor e gravurista Laszlo Moholy-Nagy. Ele “situa a fotografia da Bauhaus dentro
208
Ibid. p. 109. 209
ADES, Dawn. Op. cit. p. 19.
187
de uma problemática mais ampla, aquela do lugar da imagem na cultura industrial
moderna”210
. Moholy-Nagy foi um dos formuladores do conceito de Nova Visão, que
condensa as principais propostas de renovação visual através de uma fotografia direta e
que se transformou em uma tendência internacional no campo fotográfico a partir do
período do entreguerras.
No pós-Segunda Guerra, as “técnicas de choque das vanguardas” entraram em
obsolescência, pois sua produção não chegou a encontrar de fato um amplo espaço de
circulação social, desprovendo sua motivação básica de uma “arte da vida”, da arte
infiltrada no cotidiano. No entanto, suas propostas estéticas -- não políticas -- foram
prontamente absorvidas pela indústria cultural que arrastava seus tentáculos pelo mundo
à fora. A cultura midiatizada, bancada pela indústria e outras instituições relacionadas
ao grande capital, encontrou nos projetos da arte moderna do século XX o repositório
artístico necessário para o seu desenvolvimento.
Ironicamente, foi a tecnologia que propiciou à obra
de arte a sua ruptura radical com a tradição, porém
desprovendo-a de seu espaço vital necessário no cotidiano. Foi
a indústria cultural e não a vanguarda, que conseguiu
transformar o cotidiano do século XX. 211
No caso específico da fotografia, o visual cristalino apregoado pela Nova Visão e
a valorização de temas correlatos com a indústria e o ambiente urbano colocaram a
imagem fotográfica como elemento de ponta na constituição das novas linguagens do
jornalismo e da publicidade.
Na verdade, no próprio processo de constituição dos modelos estéticos, que
surgiram no bojo dos movimentos de vanguarda, já havia uma intensa integração entre
arte e indústria cultural. Vale citar alguns casos como o de Moholy-Nagy que utilizava
em suas aulas na Bauhaus anúncios de publicidade norte-americanos como exemplos de
composição. No sentido contrário, o brilhante exercício de André Kertesz, O garfo (La
fourchette), de 1928, foi utilizado posteriormente na publicidade de uma marca de
talheres. Man Ray, paralelamente às suas pesquisas junto aos dadaístas e surrealistas,
fez retratos de moda e atuou em propaganda, campo que rendeu alguns dos trabalhos
mais célebres do fotógrafo como a campanha para a Companhia Parisiense de
Distribuição de Eletricidade, em que empregou técnicas de fotograma e
210
NESBIT, Molly. Op. cit. p. 115. 211
HUYSSEN, Andreas. Op. cit. p. 37.
188
sobreposições212
. Nos Estados Unidos, Edward Steichen e Paul Outbridge levaram ao
campo publicitário as propostas de Stieglitz, Strand e Weston. Marchel Duchamp teve,
durante anos, pendurado em seu estúdio o anúncio com a célebre foto de um colarinho
de camisa de Outbridge.213
Também é de se mencionar a imprensa na Alemanha, responsável por uma grande
revolução no que se refere à utilização da fotografia nos periódicos. A imagem
fotográfica passou a funcionar, não mais como ilustração ao texto, mas adquiriu vida
própria dentro da publicação. A edição de fotografia passou a ter um papel crucial nas
revistas alemãs, a escolha das imagens e a disposição nas páginas deveriam compor um
conjunto harmonioso, as imagens precisariam se inter-relacionar. Outra marca do
fotojornalismo alemão deste período foi a experimentação com as montagens e
colagens. As técnicas desenvolvidas pelos artistas de vanguarda, principalmente
vinculados ao dadaísmo, encontraram nas publicações periódicas ligadas ao movimento
operário e às esquerdas um meio eficaz para dotar sua arte de uso revolucionário,
atingindo, assim, o objetivo dos movimentos artísticos de produzir arte para as pessoas
comuns214
.
A indústria, que foi tomada como um dos temas principais das vanguardas,
adquiriu fotogenia através das lentes dos fotógrafos modernos. “Fábricas, componentes
de máquinas, linhas de montagem, galpões e veículos mecanizados (...) atraíram
fotógrafos que acreditavam que a câmera era um meio eminentemente apropriado para
lidar com suas formas e texturas”215
. Albert Renger-Patzsch deu magnitude aos altos
fornos, guindastes navais e detalhes mecânicos. Paul Wolff propunha novos olhares ao
ambiente industrial através do uso da câmera de pequeno formato. Nos Estados Unidos,
Paul Strand explorou as formas e as sutilezas tonais e de brilho de um torno mecânico,
Charles Sheeler obteve formas surpreendentes ao fotografar a fábrica da Ford e
Margareth Bourke-White notabilizou-se com suas fotos da barragem de Fort Peck, que
lhe rendeu a capa do primeiro número da revista Life. Estas e várias outras experiências
estetizaram o espaço industrial o que atraiu a atenção de publicitários e executivos de
212
EGUIZÁBAL, Raúl. Fotografía publicitaria. Madrid: Catedra, 2001. pp. 14-15; 50-51. 213
SOBIESZEK, Robert. The art of persuasion: a history of advertising photography. New York: Harry
N. Abrams, Inc., 1988. p. 32. 214
WILLETT, John. Heartfield contre Hitler. Paris: Éditions Hazans, 1997; FABRIS, Annateresa. A
fotomontagem como visão política. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 out. 1987. Folhetim, pp. B3-B4. 215
ROSENBLUM, Naomi. A world history of photography. New York: Abbeville, 1997. p. 454.
189
grandes empresas, que prontamente absorveram este padrão de visualidade em sua
comunicação promocional.
Assim, falar em fotografia moderna é falar em uma linguagem integrada aos
meios da indústria cultural . No caso brasileiro, esta modernidade ligada ao mercado de
bens simbólicos só pode ser identificada a partir da década de 1940, mas ainda de forma
incipiente. Segundo Renato Ortiz, a sociedade de massa no Brasil se inicia nos anos 40
do século XX “porque se consolida neste momento o que os sociólogos denominaram
como sociedade urbano-industrial”216
. Ortiz afirma que estes primeiros passos da
cultura de massa perduram até início da década de 1960, quando se começa a firmar
uma indústria cultural mais estruturada e integrada no país.
No campo fotográfico brasileiro, é justamente a partir dos anos 1940 que se
verifica a constituição de uma fotografia moderna pós-vanguardas, pois foi o momento
de uma convergência de fatores: o processo de constituição de uma indústria cultural, a
vinda dos refugiados da Guerra e do nazismo, que trazem experiência técnica e/ou
repertório da modernidade européia e a necessidade econômica destes imigrantes que os
obriga a se integrar rapidamente ao mercado.
Flieg no campo da experimentação
Como já foi dito anteriormente, Flieg consumiu em sua infância e juventude a
modernidade artística européia. Mesmo quando chegou ao Brasil, continuou a se inteirar
do que acontecia no hemisfério norte. Tinha contato através de livros e, principalmente,
através de revistas especializadas e da Life. Ele assinou a revista norte-americana por
muitos anos, que lhe serviu de manancial sobre a fotografia moderna empregada no
jornalismo e na publicidade, que chegava a ocupar cerca de trinta por cento do espaço
da publicação.
Além dos trabalhos comerciais, que se destacam nos campos da arquitetura,
indústria e publicidade, como veremos a seguir, existem algumas experiências
concatenadas esteticamente às propostas das vanguardas que valeriam ser mostradas.
Em 1946, foi convidado a colaborar em vários números da revista humorística Bom
Humor, da qual participava Darcy Penteado. Ele ficou responsável por duas seções
fotográficas: As grandes mentiras e Surrealismo, em que assinava como PUM. Para a
216
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: Cultura Brasileira e Indústria Cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1991. p. 38.
190
primeira coluna produziu as fotos “Pão de trigo” (imagem de um pão fatiado)217
,
“Secretária” (fig. 3.1.1), “Jogo proibido” (foto de letreiro de uma casa lotérica) e
“Hora certa” (relógio de pulso). Na seção Surrealismo, foram publicadas “Discussão”
(imagem de um taxímetro), “Purê de batata” (fig. 3.1.2), “Esposa... Amante...” (num
quadro um tamanco e um escovão, no outro, jóias e cetim), “Esposa...” (pau de
macarrão), “Pecado original” (maçã mordida) e “Viúvo” (retrato de homem
sorridente). Vale notar como Flieg fez muito uso de composições com objetos
aproximando-se, assim, das propostas dos surrealistas nos “encontros casuais”, que têm
os componentes de humor reforçados pelo texto (título da foto).
Fig. 3.1.1 Fig.3.1.2
Secretária e Purê de Batata, fotos para a revista Bom Humor. São Paulo, 1946.
Com o amigo e artista gráfico Fred Jordan, Flieg fez uma experiência: num
quarto escuro, apontaram uma câmera para um farolete de mão que estava preso ao teto
com um fio de náilon, abriam o obturador da máquina e começaram a dar toques no
farolete de modo que este fizesse movimentos circulares, depois de algum tempo, o
obturador era fechado.
217
O contexto desta foto é logo após o fim da Segunda Guerra, as exportações de alguns produtos como a
farinha de trigo estavam seriamente comprometidos. Assim, houve a substituição do trigo por outros
ingredientes na produção dos chamados “pães de guerra”, que causaram uma certa comoção por
“aproximar” a Guerra do cotidiano popular. CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a
mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração/Edusp,
2000. pp.51-66.
191
Fig. 3.1.3
Desenho luminoso, realizado com Fred Jordan. São Paulo, s/d.
O resultado era o registro das impressões luminosas circulares sobre uma
superfície preta (fig. 3.1.3). Não há noção de profundidade, é uma imagem gráfica
chapada, contendo inclusive a idéia do padrão da curva de Moebius. Há, assim, um
aporte científico na experimentação. Esta técnica foi muito utilizada por Moholy-Nagy
para compor escrituras ou desenhos luminosos em suas pesquisas sobre formações
dinâmicas.
Fig. 3.1.4 Fig. 3.1.5
70 Extra, nu. São Paulo, s/d; macacos-aranha,fotomontagem. São Paulo, 1959.
Durante uma seção de fotos para uma campanha de lingerie, Flieg realizou um
nu, que posteriormente foi intitulado de 70 Extra (fig. 3.1.4). Trabalhou com o corpo
fracionado, um dos principais expedientes utilizados nos nus modernos, mas enquadrou
o torso e usou filtro suavizador para texturizar a imagem, o que remete à arte clássica, às
esculturas gregas em mármore.
190
No campo das montagens, fez algumas fotos de um casal de macacos-aranha do
Jardim Zoológico de São Paulo, durante um passeio em 1959, depois montou três destas
cenas sobre um fundo de superfície de um mar ou rio (fig. 3.1.5). Há assim uma
narrativa, o encontro e a separação dos dois macaquinhos, ou seja, existem vários
tempos na mesma imagem e um espaço irreal criado pela sobreposição. Esta quebra na
noção de tempo e espaço foi elemento fundamental nas propostas das colagens
realizadas por dadaístas e surrealistas.
Além disso, as experiências com novos ângulos e perspectivas, aparecem com
muita freqüência dentro de sua obra, tanto nos trabalhos encomendados, como nos
paralelos a eles. Por exemplo, durante a cobertura nas usinas do rio Juquiá, em 1975,
fotografou uma árvore bem por baixo, de modo que os ramos de folhagens nos galhos
assumem um desenho gráfico, sob o céu totalmente chapado em branco (fig. 3.1.6). É
impossível não compará-la com a foto Conífera, de 1926, de Rodchenko (fig. 3.1.7), em
que as perspectivas e os efeitos visuais são muito similares nas duas imagens. Talvez,
Flieg nem conhecesse esta imagem de Rodchenko, mas isso demonstra que havia
introjetado em seu trabalho os princípios da nova visão de décadas antes, que via na
fotografia, conforme o as palavras do próprio fotógrafo soviético, “o meio perfeito de
descobrir o mundo da ciência, o da técnica, assim como o ambiente material da
humanidade contemporânea”218
.
Fig. 3.1.6 Fig. 3.1.7
Árvore fotografada próximo à usina Fumaça. Vale do rio Juquiá, 1975; A. Rodchenko.Imagem da
seqüência fotográfica Floresta de Pouchkino, publicada na revista Novyi Lef, 1928.
218
Apud SARTORTI, Rosalind. La photograhie et L’Etat dans l’entre-deux-
guerres: L’Union Soviétique. In: LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.).
Op. Cit. p. 128.
191
3.2. Uma nova perspectiva na fotografia de arquitetura
Na visita à capela do Sítio Santo Antônio, em São Roque, em 1967, Flieg
acompanhava a artista Diana Danon, que fazia desenhos de arquitetura. Enquanto,
Danon desenhava, o fotógrafo ia também produzindo suas imagens com o foco voltado
para o registro dos detalhes arquitetônicos da capelinha seiscentista. Numa destas
imagens, a partir do púlpito, Flieg fotografou a parede de fundo do pequeno templo (fig.
3.2.1), toda em madeira, com superfícies vazadas -- treliças, ripas paralelas com espaço
entre elas e a balaustrada da galeria. As duas folhas da porta estavam totalmente abertas.
Como a foto é feita de dentro para fora, ou seja à contraluz, há muita claridade entrando,
carregando o contraste. Formou-se uma imagem muito gráfica, que lembra quase um
alto-contraste. Perdeu-se a consistência da madeira, não há marcas, nem rugosidade,
tudo liso. Não há referência de cores, não sabemos pela foto se a madeira é pintada, qual
é a tonalidade ou se há mais de uma.
Capela do Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967.
Fig. 3.2.1
Assim, a imagem valoriza as formas mais gerais, a estrutura do conjunto
representado, sem os detalhes mais táteis. Ou seja, Flieg selecionou um aspecto – o
estrutural – para enfocar. A foto destaca a simplicidade da solução dos elementos
vazados que permite a entrada de luz que deverá em momentos do dia refletir no altar,
tal qual as rosáceas góticas, criando a atmosfera de elevação espiritual que a arquitetura
de igrejas tradicionalmente visou.
192
A representação de estruturas arquitetônicas teve sua configuração mais precisa
a partir da pintura por volta do século XVI. Caracteriza-se pelo enfoque no arranjo
arquitetônico, em que “as figuras não se subordinam à arquitetura” de modo a
“acentuar a beleza e a forma das construções”219
. Na pintura holandesa, desenvolveu-se
nas vistas de cidades e nos interiores, principalmente, de igrejas. Chamadas também de
“perspectivas”, estas imagens tinham como objetivo principal fazer uma descrição o
mais completa possível de um edifício real ou imaginário, ou seja, buscavam abarcar o
todo, mostrando o máximo possível e com riqueza de detalhes. Nos interiores de igreja,
por exemplo, era comum aos artistas trabalharem com um ângulo de visão que cerca de
90°.
No século XIX, já nos primeiros tempos da fotografia, a arquitetura toma a cena.
Se, nos passos iniciais da técnica, os longos tempos de exposição limitavam a escolha
de motivos para se colocar perante à câmera, os edifícios e monumentos aliavam a
estaticidade ao interesse cultural que podiam expressar. Foram muito exploradas, em
princípio, dentro do âmbito das fotografias de “viagem”, publicadas em álbuns,
vendidas avulsamente e, mais tarde, na forma de postais. Logo, as administrações
públicas começaram a encomendar trabalhos de acompanhamento fotográfico do
andamento de obras, bem como, as tomadas de vistas e construções com finalidades
documentais e promocionais.
Em 1851, na França, a Comissão de Monumentos Históricos organizou a Missão
heliográfica com o intuito de produzir um censo visual do patrimônio arquitetônico
francês. Integraram o grupo os fotógrafos Edouard Denis Baldus, Hippolyte Bayard, Le
Gray, Henri Le Secq e O. Mestral. Embora a missão não tenha chegado a realizar um
inventário do patrimônio francês e as cerca de 300 imagens produzidas não tenham sido
publicadas, parte delas auxiliou nos trabalhos de recuperação e restauro de muitos bens
arquitetônicos coordenados pelo arquiteto Emmanuel Viollet-le-Duc220
. O inglês Henry
Delamotte acompanhou, semanalmente, entre 1851 e 1854, as obras de reconstrução do
Palácio de Cristal em Sydenham221
. A partir de 1864, os fotógrafos Louis-Emille
219
SLIVE, Seymour. Pintura holandesa 1600-1800. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 262. 220
ROSENBLUM, Naomi. Op. cit. pp. 99-100. 221
Ibid. p. 156.
193
Durandelle e Hyacinthe-César Delmaët foram incumbidos de acompanharam as etapas
da construção da Opéra de Paris, por cerca de dez anos222
.
De forma geral, a fotografia de arquitetura do século XIX privilegiou os
enquadramentos em perspectiva plana que “permitissem a compreensão mais global do
volume arquitetônico fotografado”223
, as escalas e proporções não deveriam ser
distorcidas, as fragmentações evitadas. No entanto, nos conjuntos de fotografias do
Palácio de Cristal e da Opéra, os fotógrafos buscaram o detalhe:
Essas fotografias de acompanhamento de obras, de
registro de detalhes, abandonaram, enquanto composição, a
pretensão de abarcar a obra inteira. São enquadramentos que
buscam o detalhe, o singular, o específico. Resultam
fotografias que prenunciam algumas composições abstratas do
século XX. Os detalhes das estruturas de ferro, o paralelismo
das vigas, os cortes, os jogos de luz e sombra, as
transparências, são efeitos visuais novos que o tema sugere ao
sistema de representação.224
No século XX, com a renovação no pensamento arquitetônico225
e as novas
propostas no campo fotográfico, a maneira de fotografar a arquitetura, obviamente,
também se modificou. O espaço construído passou a ser pensado não mais a partir de
um único ponto de vista, mas com a idéia de dinamismo. Walter Gropius recomendava
que “uma construção só irá suscitar efeito intenso depois de satisfeitas, para todas as
distâncias possíveis e todos os aspectos, todas as condições da escala humana”226
.
Nesta concepção, o relativismo e os efeitos ilusórios regem a visão. Gropius chega a
utilizar pesquisas sobre percepção realizadas por Earl C. Kelley, da Universidade de
Wayne (EUA), no campo oftalmologia para basear seu trabalho, do qual cita do
seguinte trecho:
222
ROUILLÉ, André. L’essor de la photographie (1851-1870). In: LEMAGNY,
Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Op. cit. p. 46. 223
CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Arquitetura e fotografia no
século XIX. In: FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo:
Edusp, 1998. p. 145. 224
Ibid. p. 155. 225
Argan identifica como os principais núcleos de irradiação das propostas da arquitetura moderna: na
França, encabeçado por Le Corbusier; na Alemanha, vinculado à Bauhaus, com Walter Gropius à frente;
na União Soviética, com o Construtivismo; na Holanda, com o Neoplasticismo, e nos países
escandinavos, com a figura central de A. Aalto. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. p. 264. 226
GROPIUS, Walter. Bauhaus: Novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 67.
194
Nossas impressões sensoriais não nos vêm das coisas
que nos cercam mas procedem de nós mesmos. Como não
provêm do meio-ambiente imediato e, obviamente, tampouco
do futuro, eles devem vir do passado. Mas se provêm do
passado, só podem estar baseadas em experiências
precedentes.227
Desta forma, a arquitetura deveria trabalhar com este dado. A fotografia, por seu
lado, passou a explorar possibilidades de ver o mundo sob vários ângulos. Assim, ao
fotografar motivos arquitetônicos, os fotógrafos abandonaram o ponto de vista mais
distante e começaram a se infiltrar nos edifícios, rotacionaram o olhar para todos os
lados, buscando sensações óticas e simbólicas que dessem nova dimensão à
representação espacial. Ver a arquitetura passa a ser vê-la em suas variantes de
distância, luz e ângulo/enquadramento, na evidência das relações de tempo e espaço, na
relatividade de proporções, cores e volumes.
Retornando à imagem inicial da capelinha em São Roque, não há nela uma
apresentação globalizante e descritiva da construção como havia nas pinturas
arquitetônicas e nas fotografias do século XIX. Há, como já foi dito, uma seleção do
aspecto estrutural que remete a uma sensação (a elevação espiritual) e a um referencial
histórico (a arquitetura de igrejas no geral e a da capela especificamente) concretizados
numa composição visual harmônica e gráfica.
Embora, Flieg não seja usualmente classificado como fotógrafo de arquitetura,
ele produziu, nesta área, um material, que não é dos mais volumosos dentro do seu
acervo de imagens, mas não deixa de ser bastante expressivo. Neste item não estou
considerando as vistas de cidades, mas as imagens onde o interesse central é
propriamente a arquitetura. A finalidade principal destas fotos era o uso promocional de
empreendimentos imobiliários – principalmente a partir do boom da década de 1950 --
fábricas, lojas e outros, ou seja, dentro do campo da propaganda, como também de
documentação promocional para as empresas. Flieg também atendeu alguns arquitetos,
principalmente, para fotografar desenhos e maquetes. Existem os trabalhos de interesse
histórico, como o da capela do Sítio Santo Antônio, que tinham motivações
exclusivamente pessoais, sem nenhuma aplicação comercial iminente.
Seja como for, a arquitetura sempre foi, sem dúvida, uma das áreas de muito
interesse do fotógrafo. Isto possivelmente se relaciona com a própria formação dentro
da família, com o cultivo pelo gosto a tudo que fosse relacionado às artes e ao
227
Ibid. p. 47.
195
artesanato, e do ambiente de Chemnitz que propiciavam um certo contato com vários
tipos de arquiteturas, de estilos medievais ao que de mais moderno se estava produzindo
na época. No Brasil, isto foi se consolidado através de leitura e da convivência dentro de
círculos de amizades, como a própria Diana Danon, em que a arquitetura,
provavelmente, foi tema constante de conversas. Assim, sua fotografia arquitetônica
apresenta um olhar atento, muita elaboração técnica e uma grande sensibilidade aos
aspectos primordiais dos espaços fotografados.
Maquetes e obras
A fotografia de arquitetura não se resume às construções acabadas, mas também
ao projeto, maquetes e acompanhamento de obras. Flieg realizou trabalhos, por
exemplo, para o arquiteto Benedito Calixto de Jesus Netto, especialista no projeto de
igrejas. Para ele, Flieg fotografou desenhos da Igreja Matriz de Andradina e projetos e a
maquete da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, de Aparecida do Norte.
Entre vários trabalhos neste campo, destaco dois. Primeiro, uma foto da maquete,
que ficava exposta na rodoviária de São Paulo, do planejamento da área da Marginal
Pinheiros (fig. 3.2.2). A outra é extraída de um trabalho em que Flieg fez algumas
fotografias da maquete da residência de Olívio Gomes, com projeto de Rino Levi,
construída em São José dos Campos (fig. 3.2.3).
Fig . 3.2.2 Fig. 3.2.3
Maquetes do planejamento da Marginal Pinheiros e da residência de Olívio Gomes. São Paulo, s/d.
Há uma clara preocupação em representar estes esboços tridimensionais de
projetos arquitetônicos de forma que o observador da imagem seja colocado na mesma
escala da maquete, ou seja, que a imagem produza a sensação de se estar olhando para
as construções já executadas. Assim, o ponto de vista assumido é primordial para
196
garantir este efeito. Na maquete da Marginal Pinheiros, que representa uma extensa área
urbana e não um edifício isolado, a foto foi feita de cima, obliquamente, dando a idéia
do conjunto e na perspectiva similar de uma “vista aérea” da região. A maquete da
residência de Olívio Gomes trabalha com a idéia do observador colocado dentro das
áreas construídas. Não há aí a preocupação em se registrar o conjunto todo, mas uma
visão relativizada por um ponto de vista. Flieg chegou, em alguns casos, como na foto
do projeto do Clube Atlético Paulistano a colocar sua Leica dentro da maquete para
conseguir o efeito, sem causar distorções.
Para a divulgação do edifício Verdemar em Santos, em 1954, foram fotografados
a maquete e o local onde o prédio seria erguido. Então, Flieg montou a imagem do
modelo sobre a paisagem (fig. 3.2.4). Para o projeto de Lina Bo Bardi do Museu na
Praia, Flieg ambientou a maquete da arquiteta num cenário beira-mar (fig. 3.2.5). Nos
dois casos, houve o cuidado de fotografar as maquetes na mesma perspectiva e com luz
similar aos das vistas dos terrenos. Na foto da maquete do edifício de Santos, observa-se
que ele criou o efeito de sombras incidindo sobre Verdemar e “produzidas por ele”,
sobre o edifício ao lado.
197
Fig. 3.2.4
Fig. 3.2.5
Fotomontagens: Sobreposição da imagem da maquete de edifício Verdemar ao terreno numa vista do
local. Encomenda da Monções Construtora Imobiliária, através da agência Fábio Teixeira de
Carvalho. Santos, 1954; imagem da maquete de projeto de museu de Lina Bo Bardi montada sobre
um cenário de praia. São Paulo, s/d.
A técnica da fotomontagem permite a aproximação de elementos distantes e
de escalas diferentes para um mesmo espaço. Como destaca Dawn Ades, “a
fotomontagem permite múltiplas estruturações de espaço, o que lhe confere
irracionalidade pela aproximação de objetos sem medidas comuns”228
. Nas imagens
de Flieg, as pequenas dimensões das maquetes são transportadas para ambientes de
grandes proporções e adulteram-se as escalas para permitir a convivência dos
elementos díspares. A “irracionalidade” destas montagens está no fato de elas, ao
mexerem com a noção de espaço, interferem na linha temporal. Duas imagens do
tempo presente – paisagem e maquete – sobrepostas geram uma representação do
futuro – do espaço ocupado pelas construções. Vale notar que, se nas imagens dos
dois edifícios residenciais, há uma preocupação em criar espaços ideais e plausíveis
para a publicidade imobiliária, a fotomontagem do museu adentra no campo do
fantástico.
228
ADES, Dawn,. Photomontage. Paris: Chêne, 1976. p. 21.
198
Quanto à fotografia de obras em construção, Flieg não chegou propriamente
a realizar um trabalho de acompanhamento, sendo o mais próximo disto, a
reportagem da I Bienal, em que ele fotografa a preparação para demolição e depois o
pavilhão já pronto (vide capítulo 2, no item sobre São Paulo). No entanto, ele
realizou muitas fotos isoladas da construção de prédios, como as para a encomenda
da STIG (Sociedade Técnica de Instalações Gerais), em 1949, com as obras dos
edifícios CBI-Esplanada (fig. 2.2.9-15), do Banco do Brasil (fig. 2.2.16), entre
outros. São, no geral, vistas externas dos esqueletos das obras, em tomadas mais
abrangentes.
Exteriores
Na viagem a Minas Gerais em 1966, Flieg também exercitou a fotografia de
arquitetura, no registro dos edifícios barrocos. Fez uma foto da fachada do Museu da
Inconfidência, em Ouro Preto (fig. 3.2.6), numa tomada frontal. O ponto de vista é
centralizado, a imagem simétrica, as proporções do edifício são mantidas na
representação. As vistas frontais, habituais na fotografia de arquitetura do século
XIX,
ressaltam, mais que a espacialidade
tridimensional dos edifícios, os planos de uma única face,
da fachada ao detalhe arquitetônico. Essas vistas
intencionavam proporcionar a leitura exata e cuidadosa
do que era retratado, induzindo ao reconhecimento do
caráter fidedigno e até científico da reprodução.229
Fachada do Museu da Inconfidência. Ouro Preto, 1966.
F Fig. 3.2.6
229
CARVALHO, Maria Cristina Wolff de; WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Op. cit. p. 144.
199
As duas pessoas sentadas, no canto inferior direito da imagem, funcionam
como escala. Ao mesmo tempo, elas quebram um pouco o caráter esquemático da
composição, porque, além de desequilibrar levemente a simetria, dão a noção de uso
do espaço, logo de temporalidade. A dimensão temporal também fica marcada pela
luz forte incidente e a produção de sombras, que ocultam alguns detalhes da
construção, mas evidenciam a idéia de um período do dia.
Estes dois elementos, a presença de figura humana e a luz natural, são
destacados por Walter Gropius como referenciais para relacionamento visual do
observador com as obras arquitetônicas. O arquiteto afirma que “nosso corpo é a
escala, que nos permite edificar um sistema tridimensional finito de relações dentro
do espaço finito”230
e que “o objeto, que vemos na variação viva da luz do dia,
oferece a toda hora outra impressão”231
. A idéia é a construção de um espaço, ou de
uma noção de espaço, que transmita dinamismo, assim, também a integração com as
áreas circundantes à construção também é fundamental, além de permitir a
apreciação dos volumes
Do trabalho com luz natural e sombras, valeria destacar uma foto, de 1953, do
prédio projetado por Oscar Niemeyer para a fábrica da Duchen-Peixe (fig. 3.2.7). A
alternância de áreas claras e escuras e o destaque das linhas curvas dão dinâmica ao
espaço e integra quase de forma orgânica as construções com o exterior.
Fig. 3.2.7 Fig. 3.2.8
230
GROPIUS, Walter. Op. cit. p. 65. 231
Ibid. p. 75.
200
Fábrica da Duchen-Peixe, projetada por Oscar Niemeyer. Encomendada pela Duche-Peixe, através
da agência Standard. Guarulhos, 1953;vista do edifício Verdemar. Encomenda da Monções
Construtura Imobiliária, através da agência Fábio Teixeira de Carvalho. Santos, 1954.
Quando foi fotografar o edifício Verdemar, em Santos, desta vez, já pronto
(fig. 3.2.8), Flieg novamente colocou a forma amebóide quase como uma moldura
na parte superior da imagem, o edifício está ao fundo, ladeado por outros prédios e,
no primeiro plano, o gramado com pessoas recostadas, sentadas no banco ou
caminhando. Como na imagem anterior, a forma curva funciona como elemento que
integra todo o espaço dando unidade orgânica. As figuras humanas – as moças em
destaque são modelos – não servem aí como escala, já que a distância que elas estão
do edifício causa distorções. Há, sim, a apresentação de um espaço com vida, com
interação entre as várias áreas e construções, o que garante à imagem de divulgação
imobiliária a idéia de um local aprazível para se viver.
Fig. 3.2.9
Pousada da Maioridade. Estrada d Santos. 1978.
Num outro passeio acompanhando Diana Danon, em 1978, Flieg foi à antiga
e abandonada Pousada da Maioridade, projetada por Victor Dubugras, na estrada
velha de Santos. Mais uma vez, Danon ficou desenhando enquanto o fotógrafo
disparava sua câmera, registrando detalhes da arquitetura do local. Destaco aqui a
foto em que a construção é mostrada por inteira (fig. 3.2.9), a partir de um ponto de
vista mais distante e a um nível mais baixo. Assim, olha-se o prédio de baixo para
cima, o que dá imponência, mas, mais do que isso, mostra uma vista geral, com
detalhes à mostra, como o uso de pedra, enfatiza o volume e a sua inserção
harmônica no espaço de serra e vegetação espessa.
Um dos trabalhos de arquitetura em que Flieg mais experimentou novos
ângulos e perspectivas foi a reportagem que fez do então novo prédio da sede das
201
Monções Pirelli, na década de 1950, na rua Barão de Piracicaba, em São Paulo. A
fachada principal, ele fotografa primeiro de baixo para cima (fig. 3.2.10) e, depois,
de cima para baixo (fig. 3.2.11). Ao olharmos muito para cima, tendemos a perder o
eixo, a desequilibrar. Assim, a primeira imagem trabalha com isso, há a quebra
acentuada de proporções em que o prédio parece se afunilar e a composição enfatiza
a configuração não simétrica da fachada. Na segunda foto, o ângulo deixa a
princípio o observador desnorteado, demoramos um pouco a situar o ponto de vista
no alto de uma janela do edifício. Quando entendemos o posicionamento, que deixa
a perspectiva levemente achatada e valoriza a estampa do calçamento, vem a
vertigem. Ou seja, é pura sensação!
Fig. 3.2.10 Fig. 3.2.11
Ângulos da fachada do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo, década
de 1950
Fig. 3.2.12
Tomada da face anterior do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo,
década de 1950.
202
Interiores e detalhes
Na mesma série da Pirelli, Flieg enfoca um puxador de uma porta de vidro no
interior do prédio (fig. 3.2.13). O que seria uma foto de um detalhe mostra, na
verdade um espaço de grande fruição. Aí o elemento principal é a transparência do
vidro que integra os espaços e transmite a idéia de movimento.
O movimento no espaço ou na ilusão de um
movimento no espaço pela magia do artista tornou-se um
fator influente nas obras de arte da moderna arquitetura,
escultura e pintura. Preferimos hoje na arquitetura uma
transparência que é alcançada por grandes superfícies de
vidro, por secções salientes e abertas na obra
arquitetônica. Essa transparência tenta produzir a
impressão de um contínuo espacial fluente. A construção
parece pairar no ar e o espaço parece fluir através dela.
(...) O próprio espaço parece movimentar-se.232
Fig. 3.2.13 Fig. 3.2.14
Puxador e hall do edifício das Monções Pirelli, na rua Barão de Piracicaba. São Paulo, década de
1950; lojas Kirsch. Foto encomendada pelo arquiteto Henri Maluf. São Paulo, s/d.
A transparência também é explorada na fotografia da Loja Kirsch de
persianas (fig. 3.2.14), fotografada para documentação do arquiteto Henri Maluf. A
partir de uma tomada realizada do lado de fora da loja, tem-se a visão de todo o
conjunto, porque novamente o que está em foco é a transparência, que permite não
só a visualização como transmite a idéia de espaços integrados.
232
GROPIUS, Walter. Op. cit. p. 76.
203
Fig. 3.2.15
Interior da loja da Eletro-Radiobraz, na rua Celso Garcia. São Paulo, início da década de 1950.
Ao adentrar nos edifícios de arquitetura moderna, esta integração espacial é o
eixo fundamental da fotografia de Flieg. Uma imagem (fig. 3.2.15) que compõe a
reportagem que o fotógrafo produziu da então recém-inaugurada loja da Eletro-
Radiobraz, na rua Celso Garcia, no início da década de 1950, é tomada de cima e
tem-se a noção dos níveis interligados, inclusive as rampas e a escada tem destaque
e função evidenciada na composição. Na foto, os espaços não são tratados como
unidades autônomas, mas contínuas.
Os detalhes arquitetônicos são o outro foco da fotografia de arquitetura. Esta
categoria de imagem busca mostrar elementos que se diluem nos conjuntos e, ao
ganharem representação particularizada, alguns de seus atributos estéticos ou
técnicos são ressaltados. Cito, como exemplo, a foto de um pequeno detalhe do
relevo em madeira (fig. 3.2.16), fotografado por Flieg durante a visita à capela do
Sítio Santo Antônio. Pela imagem, não conseguimos saber onde está localizado o
relevo, não há referência de escala, o que fica em evidência é a acuidade do trabalho
artesanal, ou seja, o foco do olhar de Flieg à capela é o humano e não o tecnológico.
Quando fotografou o Monumento do Ipiranga em 1971 para o calendário da
Brown Boveri, Flieg fez também várias imagens, que não foram publicadas, de
detalhes da construção. Posteriormente, ele produziu cópias em alto-contraste deste
material, novamente optando pelo efeito gráfico que destaca, como no caso da foto
da cornija de um pedestal (fig. 3.2.17), o desenho das molduras e a textura da pedra.
Da mesma forma que na foto anterior, não há referências da localização deste
204
detalhe dentro do conjunto escultórico, nem de escala. Aqui, o que fica em
evidência é o grafismo das formas esculpidas.
Fig. 3.2.16 Fig. 3.2.17
Entalhe em madeira na capela do Sítio Santo Antônio. São Roque, 1967; detalhe em alto-contraste do relevo na cornija de um
pedestal do Monumento do Ipiranga. São Paulo, 1971.
O trabalho de Flieg no campo da fotografia de arquitetura é nitidamente
pautado por uma visão moderna, ou seja, concatenada às novas propostas, tanto
arquitetônicas quanto fotográficas, que surgiram na Europa a partir dos anos de
1920. O fotógrafo utilizou expedientes e técnicas valorizadas no bojo dos
modernismos como montagem, angulações inusuais, distorções de perspectiva,
inversão de escalas, entre outros. No entanto, ele nunca tomou estes modelos como
um receituário, recorrendo também, quando necessário, a enquadramentos e outros
recursos de composição bastante tradicionais, tanto da fotografia do século XIX,
como da pintura, acrescentando talvez um pouco de vitalidade.
A maioria destes trabalhos de Flieg fazia parte de encomendas comerciais,
tinham desde sua concepção uma aplicação preestabelecida. Assim, o
experimentalismo não era o objetivo em si, o essencial era produzir uma
comunicação adequada, em cada caso, a uma finalidade. O fotógrafo pôs-se a
perpassar por estilos, modelos e concepções variados, conforme a necessidade de
cada serviço. Não consigo identificar fórmulas nestas imagens de arquitetura, há, me
parece, uma busca por “formas autênticas” a partir das condições dadas e não,
propriamente, ideais.
Os espaços retratados estão no domínio privado, seguem a lógica da
ocupação e comercialização imobiliária capitalista. A integração interna da
construção ou desta com o ambiente circundante, a visualidade renovada que, em
certos casos, quase chega à abstração (como no caso da Pirelli) ou ao irreal (como
nas maquetes e montagens) cumprem a função de inserir o edifício na dinâmica da
205
modernidade, para atribuir, assim, valor simbólico e/ou monetário. No caso dos
trabalhos com motivação “histórica”, que não foram produzidos com intuito
promocional, o destaque aos materiais e ao trabalho artesanal opera no sentido de
também valorizar estes monumentos simbolicamente, mas extraem a noção
mercantil.
3.3. A beleza da máquina: reportagens sobre indústria
Em outubro de 1954, Flieg trabalhava numa reportagem para a Willys-
Overland do Brasil, em São Bernardo do Campo. Da série de oitenta fotografias
resultantes, há uma que mostra os jipes saídos da linha de montagem enfileirados ao
lado de uma roseira (fig. 3.3.1). A imagem trabalha com o paralelismo entre a fila de
veículos e a de roseiras. As mudas do jardim funcionam como o indício das flores
que deverão vir e os jipes, o prelúdio de uma indústria automobilística moderna no
Brasil. Esta foto expressa, mais do que um aspecto da fábrica, um discurso e um
pouco do momento histórico brasileiro de então, do processo de industrialização e de
modernização, ou seja, ela extrapola o sentido estritamente técnico que a reportagem
industrial sempre se arvorou.
Fig. 3.3.1
Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954
Desde meados do século XIX, a indústria é motivo para a fotografia. A era da
mecanização precisava registrar seus feitos e a fotografia como produto também
deste processo seria o meio ideal. Desta forma, alguns fotógrafos oitocentistas
206
atuaram nesta área, produzindo imagens que serviriam como documentação às
indústrias. O principal interesse neste momento eram as obras de engenharia que
“tinham um apelo especial aos fotógrafos chamados a documentar a construção
de pontes e ferrovias”233
.
Edouard Denis Baldus, por exemplo, que havia integrado a Missão heliográfica,
foi contratado, em 1855, pelo barão James de Rothschild, proprietário da
Companhia de Estradas de Ferro do Norte, para acompanhar a implantação da
linha férrea entre Boulogne e Paris. Hyppolyte Auguste Collard trabalhou entre
1867 e 1868 para a Administração de Pontes e Calçamentos de Paris. Em 1857,
Robert Howllet realizou uma série sobre a construção do navio Great Eastern, na
Inglaterra, incluindo fotos de forjas com trabalhadores no local234
. Há vários
outros exemplos de trabalhos de acompanhamento fotográfico na área de
engenharia no século XIX, mas a autoria da maior parte destas imagens não foi
registrada, assim como os particulares sobre sua produção.
O principal destino destas imagens eram as exposições universais, mas também
havia a produção de álbuns de pequenas tiragens, como o que foi montado com
cinqüenta imagens de Baldus sobre a construção da ferrovia para presentear a
rainha Vitória. Eventualmente, eram publicadas na imprensa e também serviam
como base para ilustradores produzirem material gráfico para publicidade. Outro
uso da fotografia que começou a se disseminar na segunda metade do século foi
na ilustração dos álbuns e anuários comerciais. Nestas publicações, a partir da
década de 1870, começaram a ser mostradas imagens de produtos, como também
de algumas etapas de sua produção. Um dos principais produtores destes
materiais nos Estados Unidos foi Isaiah W. Taber, cujo View Album and
Business Guide, of San Francisco Illustrated, de cerca de 1884, “é um dos
primeiros exemplos de um trabalho de fotografia e publicidade que foi precursor
da fusão entre arte e comércio”235
. Taber, que detinha os direitos autorais dos
álbuns, assinava como fotógrafo e “presumivelmente como diretor de arte”.
Havia muitas inovações nas imagens de Taber, como ilustrar um anúncio de uma
fábrica de serrotes com
233
ROSENBLUM, Noemi. Op. cit. p. 158. 234
ROUILLÉ, André. Op. cit. p. 46. 235
SOBIESZEK, Robert. Op. cit. p. 17.
207
(...) uma inusual composição de lâminas circulares,
produtos de área de metalurgia para locomotivas, com uma
montagem de vistas no interior da fábrica (...) e os artigos
de uma gráfica, pela sobreposição de uma cópia
albuminada mostrando o interior da planta sobre um vista
litográfica da fachada. 236
-No Brasil, existe algum material avulso ou em pequenos álbuns de
fotografia de indústrias no século XIX, mas a maior parte encontra-se muito dispersa
e sem nenhuma informação de autoria e produção. Há uma fotografia, de cerca de
1865, do ateliê de Georges Leuzinger mostrando um dique na Ilha das Cobras, no
Rio de Janeiro, que valoriza os aspectos da engenharia da obra237
. Um álbum de
1893, da Repartição de Águas e Esgotos da Cidade de São Paulo, assinado pelo
fotógrafo P. Doumet, traz imagens da construção de represas na Serra da
Cantareira238
.
Algumas reportagens sobre indústria começaram a ser publicadas nas revistas
ilustradas, principalmente, a partir do final da primeira década do século XX. A
revista A Cigarra, que circulou a partir de 1914, por exemplo, publicava com
freqüência “extensas coberturas fotográficas de Exposições Industriais de São
Paulo, bem como, grandes reportagens com fotos e textos que traçavam a história
de muitas indústrias e casas comerciais, como a Companhia Melhoramentos,
Leiteria Silva, Casas Pernambucanas e Companhia Antarctica”239
. Estas coberturas
que aparecem em outras publicações, apesar de serem apresentadas como parte do
conteúdo editorial das revistas, não escondem seu caráter promocional. Estas
imagens geralmente mostram vistas externas das fábricas ou estabelecimentos
comerciais, algumas internas com funcionários em pose e, eventualmente,
solenidades como a de inauguração das novas instalações da Companhia
Melhoramentos.
Há, no número 6 da revista paulistana A Lua, de fevereiro de 1910, um
exemplo de uma cobertura fotográfica, de caráter igualmente promocional, da
236
Ibid. p. 18. 237
Foto que faz parte da Coleção do Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Reproduzida em
KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles,
2002. p. 205. 238
Exemplar deste álbum encontra-se no Arquivo do Estado de São Paulo. Segundo referência de
Boris Kossoy no Dicionário histórico-fotográfico brasileiro (p. 123), há trabalhos de Doumet no
Museu Paulista/USP, no Instituto Moreira Salles e na Coleção Livio Spiegler. 239
CRUZ, Heloisa de Faria (org.). São Paulo em revista: catálogo de publicações da imprensa
cultural e de variedades paulistana. São Paulo: Arquivo do Estado, 1997. p. 91.
208
Cervejaria Germania, em que é possível identificar uma maior estruturação
narrativa, com oito fotos que mostram a fachada e o interior, representado cada etapa
da produção em imagens das máquinas, tonéis, instalações gerais e, em algumas,
operários posando.
Foi no final da década de 1930 e início de 40 que começou a haver uma
especialização de alguns fotógrafos na cobertura industrial, a maior parte deles
composta de imigrantes recém-chegados. O trabalho destes profissionais começou a
trazer referências claras da valorização do ambiente e dos objetos industriais no
âmbito dos movimentos de vanguarda que aconteceu quase duas décadas antes,
principalmente, na Europa e nos Estados Unidos, conforme já descrito no primeiro
item deste capítulo. Na Alemanha em particular, a técnica foi um dos temas centrais
da Nova Objetividade. Este categoria de imagem que trabalha com motivos
industriais e de engenharia também é chamada de “fotografia técnica”, referência
tanto à natureza dos assuntos fotografados, quanto por estabelecer uma relação
supostamente “objetiva” com o referente.
A Alemanha, em geral, conhece ao curso dos anos
vinte um certo entusiasmo, econômico, mais do que
estético, pela máquina, euforia vinda com a onda de
americanismo, na qual o modelo americano e a
mecanização se confundiam. Mais que qualquer outra
arte, a fotografia vai evidentemente se beneficiar deste
interesse, o qual vai a permitir de transformar o antigo
desvio limitador em seu maior trunfo: a própria natureza
mecânica.240
Um exemplo desta euforia é o artigo de Oskar Schürer, intitulado
Industrialização e fotografia, publicado em 1926, na revista Der Satrap:
A fotografia é, por sua natureza específica, convocada a
reproduzir a dinâmica interior da estrutura industrial. Sua
objetividade imanente encontra correspondência na
objetividade que funda a indústria.241
Flieg começou a formar sua clientela industrial logo que saiu da Gráfica
Niccolini, em 1945, para se estabelecer como fotógrafo autônomo. Chegou a
fotografar algumas fábricas a pedido da Ventiladores Zauli que fornecia
240
LUGON, Olivier (org.). La Photographie en Allemagne: Anthologie de textes (1919-1939).
Nîmes: Jacqueline Chambon, 1997. p. 161. 241
SCHÜRER, Oskar. Industrialisation et photographie. In: LUGON, Olivier. Op. cit. p. 163.
209
equipamento de refrigeração para indústria. No começo de suas atividades, não tinha
equipamento de grande formato e fazia as reportagens com a Leica.
Em 1948, foi chamado pelo publicitário Fritz Lessin, da agência Standard,
para fazer o calendário da Pirelli para o ano de 1949. Lessin puxou o livro Arbeit
(Trabalho), de Paul Wolff e disse a Flieg que ali estava o “espírito” do que eles
estavam pretendendo. De Wolff, Flieg já conhecia o livro Meine Erfahrungen mit
der Leica (Minhas experiências com a Leica), espécie de manual de incentivo ao uso
das câmeras de pequeno formato, voltado a amadores e profissionais, no sentido de
obter imagens segundo os princípios estéticos da Nova Objetividade e de forte apelo
promocional.242
O livro Arbeit vai no mesmo sentido, mas volta-se exclusivamente a
fotografias que tenham como tema o trabalho com foco na área industrial.
Fig. 3.3.2 Fig. 3.3.3
Páginas do calendário da Pirelli para 1949. Guarulhos, 1948.
Assim, Flieg realizou um de seus trabalhos de indústria mais marcados pela
moderna fotografia industrial que vinha sendo praticada na Europa desde os anos de
1920. Era também uma proposta bastante nova para os termos do que vinha sendo
242
Tributário à Nova Objetividade, Wolff destacou-se como fotógrafo industrial na Alemanha, deu
cursos e escreveu livros. Foi defensor fervoroso dos pequenos formatos. Após 1933, tornou-se
fotógrafo oficial do Terceiro Reich, conseguindo que o Ministério da Propaganda nazista baixasse
um decreto em que “os repórteres fotográficos que não compreendem que a valorização e a
promoção da fotografia moderna de pequeno formato são um dever inerente à sua missão deviam
210
praticado no Brasil até então. Das doze fotos editadas para o calendário, apenas a do
mês de agosto não foi feita com a Leica (fig. 3.3.2), que é justamente a que carrega
uma visualidade mais distinta do conjunto. Há nela uma incrível gradação de cor,
com tonalidades suaves, é tão texturizada, que chega a ter um visual pictórico. A
perspectiva é mais tradicional, com as proporções mantidas. As outras fotos
trabalham com contrates maiores, superfícies lisas e contornos definidos. São
explorados ângulos, escalas, grandes profundidades, perspectivas variadas e
materiais. Há vidros, com brilhos, metálicas, transparências, incandescência etc. As
composições são muito variadas, a foto do mês de dezembro, por exemplo, quase
chega à abstração (fig. 3.3.3). É um espetáculo de formas, texturas e efeitos. Cada
imagem mostra seções e etapas de trabalhos diferentes, o que lhe garante um caráter
“documental”, de reportagem. É fotografia de nova visão no sentido mais puro da
expressão.
Grandes pequenas indústrias
Na década de 1950, Flieg consolidou sua clientela na área industrial. Este é o
momento da retomada da política industrialista iniciada na Era Vargas, com o
retorno de Getúlio ao governo em 1951, e do desenvolvimentismo de Juscelino
Kubitschek a partir de 1956243
. Durante o segundo governo de Vargas, em 1952, é
criado o primeiro banco público destinado a financiar o desenvolvimento industrial –
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – e a Petrobrás em
1953. Além da criação de novas estatais articuladas ao processo de industrialização,
foram estabelecidas metas para ampliar a produção de empresas públicas já
existentes. A Companhia Vale do Rio Doce – criada em 1942 – tinha como meta
duplicar sua capacidade de extração de ferro e a Companhia Siderúrgica Nacional
deveria ampliar em 50% a produção siderúrgica. Estas medidas deram condições
infraestruturais para a instalação das indústrias de bens duráveis durante o governo
JK. Sobre a participação do setor automobilístico no Plano de Metas afirma Sonia
Mendonça:
perder sua braçadeira de repórter fotográfico oficial”. Apud SACHSSE, Rolf. L’Allemagne: le IIIe
Reich. In: : LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLÉ, André (orgs.). Op. cit. p. 154. 243
As informações referentes à industrialização brasileira nos anos 50 foram obtidas em: DRAIBE,
Sônia. Rumos e metamorfoses: Estado e industrialização no Brasil: 1930/1960. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985; MENDONÇA, Sonia Ribeiro. Estado e economia no Brasil: opções de
desenvolvimento. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.
211
A produção interna de aço ou combustíveis, ainda
que originada de um esforço de investimento do Estado,
beneficiava, sobremaneira, o departamento de bens de
consumo duráveis, de propriedade do capital estrangeiro.
Empresas como a Volkswagen, Mercedes Benz ou General
Motors, por exemplo, foram responsáveis pela larga
margem de superação da meta prevista de 100 mil veículos
em 1960 para 321.150, sendo 90% de seus acessórios
produzidos no Brasil.244
Entre as empresas que Flieg atendeu neste período estavam a Mercedes Benz
(Daimler-Benz) e a Willys-Overland. Paulo A. Nascimento, durante o depoimento
de Flieg no MIS, contou que em 1954 foi chamado por um de seus clientes, a
Agromotor, para fotografar a Willys-Overland do Brasil, em São Bernardo do
Campo. A representação brasileira tinha a marca dos veículos norte-americanos no
país e uma linha de montagem com uma produção irrisória. Segundo o publicitário,
a fábrica chegou a funcionar com apenas catorze funcionários. Os norte-americanos
já haviam começado as negociações para instalação de sua indústria no país.
Solicitaram, assim, à agência P.A. Nascimento uma cobertura fotográfica das
instalações para mandar para os Estados Unidos. Fritz Lessin indicou Flieg a
Nascimento.
Lá foi o Flieg (...) eu me lembro que era ele e um auxiliar
para fazer a cobertura. Eu sei que eu fiquei irritadíssimo,
porque depois de uma semana eu telefonei “mas eu não
comecei, eu estou estudando o negócio”, uma semana, três
semanas, quatro semanas. (...) Em quatro semanas, ele me
entregou o trabalho e realmente foi uma coisa (...). O
homem viu o que ninguém viu. Era simplesmente
maravilhoso. E não era uma mentira, era aquela fábrica.
(...) Tem uma produção de 4 mil veículos? Não é verdade,
tinha vinte e tantos. Não tinha uma ponte rolante, tinha uma
monovia feita pelo Villares, aquela que era uma gruazinha,
(...) mas aquela monovia era igualzinha a uma indústria
automobilística em Detroit! (...) A qualidade, a precisão, o
índice de tolerância não existia (...). O que este homem deve
ter feito sozinho para preparar essas fotos, eu não posso
entender. Se demorasse doze meses era pouco tempo. O que
(...) deve ter varrido, pintado, costurado, mexido, quebrado,
não era possível, era uma fábrica perfeita. Ele construiu a
fábrica para fotografar! (...) Deviam ser oitenta fotos, que eu
244
MENDONÇA, Sonia Ribeiro. Op. cit. p. 54
212
pensei que não dava para fotografar nem vinte. Toda a
Willys era apenas um salão. Ele me deixou oitenta fotos.
Não tinha nada de uma parecida com a outra.245
O entusiasmo do publicitário no depoimento expressa o efeito que tinha este
processo de embelezamento que consistia a fotografia industrial de Flieg. Ao olhar
uma tomada do salão da fábrica da Willys (fig. 3.3.4), dificilmente veremos ali
algum índice de pequenez. Talvez aquele seja quase que o espaço todo interno da
planta, mas é tratado na imagem como uma ala, temos a sensação que as instalações
eram muito maiores. Há uma grande concentração de elementos no local, há muitos
operários (possivelmente boa parte do quadro de empregados da empresa estava
mobilizada nesta foto), eles estão em atividades variadas, há movimento,
dinamismo. Tudo isso reverbera e ocupa o espaço, o amplia.
Fig. 3.3.4
Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954.
Esta foto exemplifica a meticulosidade de Flieg. Tudo na imagem tem um
lugar pensado e definido. Há claramente uma preparação. Ele conta que certa vez
algum funcionário da Mercedes Benz teria comentado: “o Flieg é aquele que
quando chega na fábrica a gente tem de parar a produção”. Flieg visitava os
espaços antes de fotografar, procurava entender o funcionamento das coisas,
245
Paulo A. Nascimento durante depoimento de Flieg no Museu da Imagem e do Som. São Paulo,
213
conversava com engenheiros, técnicos, operários e quem mais fosse necessário.
Cada detalhe era checado, iluminação, equipamento. “Os senhores querem oitenta
fotos, pode ser que eu tire 85. Mas, não pode chutar, realmente não se pode chutar.
Cada pose deve ser pensada, antes deve ser montada”. Tudo deveria estar em
perfeita ordem, sem bitucas de cigarro, pedia que limpassem e se jogavam água
deixando o “chão, que devia ser uniforme, (...) com manchas d’água”, ele depois
“podia retocar esse chão de fábrica jogando pó ou varredura”. Os funcionários que
fossem aparecer nas fotos deveriam estar barbeados, o uniforme limpo “e que não
seja passado demais, se não, não fica natural” 246
.
Paulo Nascimento ainda conta que, em 1956, quando a Willys norte-
americana veio para efetivamente se instalar no Brasil, ele recebeu um telefonema
de Walter Loch que solicitava as fotos que haviam que haviam sido feitas, porque o
todo-poderoso Hickman Price Jr. gostaria de vê-las. Até então, a publicidade da
montadora deveria ficar a cargo de uma agência norte-americana. Nascimento fez
questão de levar pessoalmente as imagens até ao executivo:
Lá vou eu com as fotos (...). O homem abriu, caiu
duro e me deu a chance de vender o meu peixe. (...) O
homem gostou tanto das fotos dele que eu peguei a conta e
a Willys virou a maior conta do Brasil e foi pro brejo o
meu sonho de uma agência pequena.247
A P.A. Nascimento criou campanhas ontológicas para a Willys. Em uma
delas, idealizada por Fritz Lessin e fotografada por Flieg, o processo de
nacionalização da produção automobilística, componente central do discurso
institucional das multinacionais no Brasil, deveria ser mostrado visualmente. Assim,
todas as peças utilizadas em um Jeep, que segundo Paulo Nascimento eram 3.860, e
iam de um parafuso a uma carroceria, foram organizadas em um galpão e cada uma
delas pintada em uma cor que indicaria o prazo para sua nacionalização, conforme
assinalado numa legenda ao lado da foto.
Em 1960 Flieg fez um trabalho para a Peterco Comércio e Indústria de
Eletricidade Ltda., que ficava na rua Pelotas, na Vila Mariana. A reportagem foi
1981. 246
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 247
Idem.
214
encomendada com a finalidade de ser anexada a um relatório que serviria para pedir
um financiamento na Alemanha para a construção de uma nova fábrica. As
instalações da rua Pelotas eram muito simples e novamente caberia a Flieg
“modernizar” um pouco aquilo lá. A série de fotos procura valorizar o trabalho, no
geral, mostram muitos funcionários concentrados (fig. 3.3.5) e uma diversidade de
atividades. Embora alguns espaços tenham sido “ampliados”, como na imagem aqui
reproduzida, em muitos, transparece as dimensões não muito amplas, em alguns
casos, improvisações com tapumes. Isso era muito pertinente à finalidade das fotos,
mostrar o trabalho valorizado, moderno, num espaço que não é mais condizente, por
isso a importância do investimento para um novo prédio. As imagens surtiram efeito
nos alemães que concederam o financiamento à Peterco248
. Uns dois anos mais
tarde, Flieg foi chamado para fotografar as atividades da nova fábrica em Santo
Amaro.
Fábrica da Peterco, na rua Pelotas. São Paulo, 1960.
Fig. 3.3.5
Na reportagem da pequena indústria química QEEL, Flieg também colocou o
foco no trabalho. Há uma panorâmica de um laboratório (fig. 3.3.6), numa bonita
perspectiva, que cria uma noção de amplitude incrível. Todas as poses estão bastante
orquestradas de forma a ocupar bem o espaço. Inclusive, o rapaz no primeiro plano
não era funcionário da empresa, era o assistente de Flieg colocado ali para preencher
a composição idealizada pelo fotógrafo.
248
Um dos proprietários da Peterco haveria comentado, tempo depois, que os alemães teriam ficado
muito impressionados com a qualidade das fotos e isso abriu um grande caminho para as
negociações.
215
Fig. 3.3.6. Laboratório da indústria química QEEL. São Paulo, [década de 1950].
Operário em destaque
Nas reportagens industriais, uma constate são as cenas que colocam em foco
um ou mais trabalhadores. Na cobertura da Willys, há uma imagem de quatro
operários trabalhando na montagem de um jipe (fig. 3.3.7). Cada um cumpre uma
função, evidenciando a especialização do trabalho na linha de montagem. Pouco se
vê de suas expressões. Como ressaltam Vânia Carneiro de Carvalho e Solange
Ferraz de Lima em suas análises de fotos que seguem o mesmo esquema, nos
álbuns comemorativos do IV Centenário de São Paulo, “o corpo suplanta o rosto e
acoplado a ele assumem importância o instrumento de uso profissional, os
uniformes, o gesto indicativo de profissão, ou seja, tudo aquilo que indique
atividade, melhor dizendo trabalho”249
.
Fig. 3.3.7. Fábrica da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954
249
LIMA, Solange Ferraz de; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia e cidade: da razão
urbana à lógica de consumo – Álbuns de São Paulo (1887-1954). Campinas: Mercado de Letras; São
Paulo: Fapesp, 1997. p. 186.
216
Há, assim, uma tipificação do trabalhador que passa a cumprir na imagem o
papel de elemento que compõe a força de produção e não de sujeito. As poses
respondem a um determinado arranjo que visa a composição. O tratamento
tipológico não confere aos retratados, vida fora da representação, eles só se
materializam como imagem. Homem e máquina são componentes de um mesmo
mecanismo. Isto fica muito evidente na foto do mês de dezembro do calendário da
Pirelli (fig. 3.3.3). Efetua-se, assim, uma estetização do trabalho alienante como
maneira do capital industrial adicionar um tempero humano em sua auto-imagem,
sem expor as contradições sociais.
Em algumas coberturas industriais, de áreas de menor automatização, o
trabalho artesanal impera e é valorizado. Um exemplo é a foto para a indústria de
calçado Clark. Flieg enquadrou apenas as mãos de um trabalhador que, com auxílio
de um molde, cortam o couro no processo de produção de um sapato (fig. 3.3.8). A
fragmentação do corpo, que na imagem fica reduzido às mãos, despersonaliza o
artesão e novamente o tipifica. As mãos funcionam como instrumentos para o
desenvolvimento de uma habilidade e não como expressão da personalidade.250
Fig. 3.3.8 Fig. 3.3.9
Cenas de trabalho: Fábrica de calçado Clark e Cristaleria Luzitana. São Paulo, s/d.
250
Gostaria de ressaltar aqui que a fragmentação do corpo opera uma despersonalização do sujeito
neste caso específico analisado, dentro deste contexto particular. Isso não deve ser tratado como uma
lei. Existem trabalhos que enfocam partes do corpo e as dotam de grande expressividade e
subjetividade, como é o caso, por exemplo, do trabalho de Tina Modotti, Hands of the puppeteer, de
1929.
217
Flieg atendia com freqüência indústrias de vidro e cristal como a Nadir
Figueiredo, Cristais Prado e a Cristaleria Luzitana. Ele conheceu bem o processo de
produção de vidro e fez trabalhos bastante inspirados neste campo. Um deles foi a
cobertura das etapas de feitura de objetos de vidro na Cristaleria Luzitana. Numa
destas imagens, é mostrada uma das etapas finais da produção, em que um
funcionário segura a cana com a peça pronta mas ainda incandescente, outro gira,
com uma vara, uma jarra para esfriá-la e um terceiro funcionário que aguarda
segurando também uma vara (fig. 3.3.9). A cena tem cores e vitalidade incríveis, o
movimento das peças, o brilho do vidro, o tom levemente alaranjado da peça ainda
quente combina com a iluminação que entra pela pequena janela ao fundo e trabalha
contrastes bastante equilibrados de áreas muito escuras e muito claras. Como nas
outras imagem, a dimensão subjetiva dos operários inexiste, o que ficam reveladas
são suas habilidades manuais.
As três imagens operam com a tipificação do trabalhador, no entanto, na
indústria automobilística, o foco é no processo automatizado, na tecnologia,
enquanto, nas outras duas, no aspecto artesanal, das habilidades humanas.
O monumental
Os ambientes industriais remetem a um ideal de grandeza espacial. Como já
foi dito, as indústrias em implantação da década de 1950 tiveram de ser
redimensionadas nas fotografias para terem sua área ampliadas ilusoriamente.
Agora, o que dirá das plantas que eram realmente grandes obras de engenharia,
como por exemplo, as usinas.
Na década 1970, Flieg fez vários trabalhos de cobertura de usinas
hidroelétricas e termoelétricas, que começaram a ser construídas e postas em
funcionamento neste período, como parte da lógica econômica da ditadura militar e
de seu projeto de “Brasil Potência”. A ampliação do parque industrial no sudeste do
país – o “milagre econômico” – havia resultado no aumento de demanda por energia
elétrica.
Além das obras energéticas do governo militar, a Companhia Brasileira de
Alumínio (CBA), de José Ermírio de Moraes, construiu um complexo de usinas no
vale do rio Juquiá no interior do estado de São Paulo. Flieg, que fizera a coberta da
218
CBA, quando esta foi inaugurada, em 1955, foi chamado para fotografar as
hidroelétricas em 1975. Uma amostra da noção de monumentalidade construída nas
imagens destas obras pode ser observada em uma vista geral da barragem da usina
França (fig. 3.3.10). Fotografada do alto, dá um panorama com a barragem em
primeiro plano, na seqüência vem o rio com mata às margens. A composição oblíqua
permite que se visualize melhor a barragem com o rio em perspectiva, reforça a idéia
da obra de contenção de águas, logo de próprio domínio da natureza pelo homem
através da engenharia moderna. Esta noção não aparece apenas nesta imagem, na
mesma reportagem, várias fotos privilegiam o ambiente circundante às usinas com
matas, o rio e as construções se impondo em meio à natureza hostil ou em cenas
também das águas jorrando com a abertura das comportas. Tudo isso é mostrado
explorando ângulos, fotografou as barragens de baixo para cima, de cima para baixo,
explorou detalhes de maquinário, formas curvas e retas, estruturas metálicas etc.
Fig. 3.3.10
Barragem da usina França. Vale do rio Juquiá, 1975.
Em 1972, Flieg havia fotografado a recém-inaugurada usina de Jupiá. As
fotos da reportagem são vistas aéreas do local, detalhes dos equipamentos, sala de
219
comando, subestação e vila de funcionários. O conjunto procura destacar os vários
aspectos do complexo, mas sempre realçando a monumentalidade da obra de
engenharia. Há um foto do interior da enorme construção onde ficam as turbinas
(fig. 3.3.11). Flieg fotografou de um nível alto com a objetiva paralela ao chão. Há
uma grande profundidade, os elementos em repetição – vigas nas paredes, turbinas
etc. -- reforçam a amplificação do espaço simétrico que se afunila ao fundo. Existem
duas pessoas no centro do galpão, que poderia servir de escala, mas são pontos,
quase se desintegram na imensidão do local.
Fig. 3.3.11 Fig. 3.3.12
Usina de Jupiá e barragens da usina de Ilha Solteira sendo erguida, 1972.
Nesta mesma viagem, o fotógrafo foi também fotografar a usina de Ilha
Solteira que estava em construção. Nesta hidroelétrica, Flieg realizou o
acompanhamento de obra mais sistemático que já havia feito. De 1972 a 1975,
quando foi posta em funcionamento, ele cobriu anualmente os estágios das obras.
Em 1972, há uma foto das barragens sendo erguidas (fig. 3.3.12). Há operários no
chão em primeiro plano, aos pés das barragens e nos andaimes, a escala humana é,
assim, escamoteada uma vez que há alteração nas proporções devido às várias
colocações dos trabalhadores que aparecem na imagem. O uso de grande-angular
para permitir a tomada de baixo para cima a uma distância relativamente curta
também causa deformações, mas acentua a perspectiva. Desta forma, a
monumentalidade é valorizada, mesmo com a desproporção de escalas.
Na reportagem de 1975, com a planta já em funcionamento, Flieg fotografou,
a partir do interior da sala de comando, através da extensa série de vidraças, um
220
panorama da usina (fig. 3.3.13). A parte interna foi totalmente escurecida, inclusive
as duas figuras humanas, que se tornaram vultos, carregando o contraste com o
exterior. O aspecto monumental é acentuado numa composição bastante criativa que
valoriza a horizontalidade.
Fig. 3.3.13
Usina de Ilha Solteira, 1975.
Muitas formas
Andaimes, gruas, torres, vigas, coifas, grades, pontes, tubulações, guindastes
etc. O metal, principal material do ambiente industrial, ganha formas das mais
variadas. As estruturas metálicas são o emblema da indústria e da engenharia. A
fotografia valorizou, como nenhum outro meio de representação, estes componentes
e os elevaram à condição de ícones da modernidade, ou melhor, do espaço moderno
das fábricas. Germaine Krull, em seu texto que acompanhava algumas fotos
publicadas na revista Photographie für alles, em 1926, apresenta-as como “minha
sensibilidade e meu olhar diante destas estruturas metálicas características de
nossa época”.251
Nas reportagens industriais de Flieg, as estruturas em metal são fartamente
enfocadas. Composições que enfatizam as qualidades abstratas e formais em termos
das imagens faziam parte do repertório do fotógrafo, como pode ser observado na
foto da torre da caixa d’água da Willys, tomada a partir do topo da própria estrutura
251
KRULL, Germaine. Les voies de la photographie moderne. In: LUGON, Olivier (org.). Op. cit. p.
165.
221
(fig. 3.3.14). O desenho de formas curvas e retas mistura-se com as sombras, há
contraste que uniformiza os tons escuros e claros, o que reforça a abstração. O
intuito de Flieg, provavelmente, passava pelo desejo de experimentar composições,
mas que, dentro do trabalho comercial encomendado, responde também à construção
de imagens que celebram simbolicamente o industrialismo, ao transformar suas
formas em expressão de um ideal estético.
Fig. 3.3.14 Fig. 3.3.15
Torre da Willys-Overland do Brasil. São Bernardo do Campo, 1954; cobertura do Ginásio do Ibirapuera. Foto
encomendada pela Companhia Brasileira de Alumínio. São Paulo, 1956.
Em 1956, a Companhia Brasileira de Alumínio pediu que Flieg fotografasse
a obra de cobertura do ginásio do Ibirapuera. Numa das fotos resultantes deste
trabalho (fig. 3.3.15), a estrutura circular tem tratamento apoteótico com o espaço
monumental, a enorme cobertura em metal, ainda não toda forrada, que permite a
passagem e luz em graus diferentes em cada trecho, formando um espetáculo de
sombras no centro do ginásio e nas arquibancadas. Pela fina armação, que passa
pelo orifício central da cobertura, sobem alguns trabalhadores, um bem ao alto. Eles
são fundamentais como escala, já que os que estão no solo, quase se perdem em
meio à estampa de sombras. A imagem é uma exaltação da engenharia e do uso do
metal nas grandes obras.
222
Sobre as estruturas metálicas, gostaria também de apresentar um foto que
Flieg fez de um forno de incineração de lixo em São Paulo (fig. 3.3.16). Numa área
interna estreita e com pé-direito alto, ele deu força, numa composição muito
simétrica, ao desenho das estruturas e trabalhou com tonalidades mais claras o que
conferiu uma suavidade impensável a um conjunto tão carregado de elementos em
metal pesado. Nesta reportagem, que tinha como objeto um local que lidava com
lixo, Flieg quis construir um ideal de limpeza. Assim, esta foto, além de valorizar as
formas estruturais, apresenta um ambiente de assepsia total.
Fig. 3.3.16
Interior de prédio onde funcionava um incinerador de lixo. São Paulo,
Outra marca da fotografia industrial é o fogo, nas caldeiras e soldas. Há um
exemplo do uso de materiais incandescentes numa foto da Pirelli, publicada no
calendário de 1949 (fig. 3.3.17). O metal em brasa tem forma de serpentina que
contrasta o chão mais escuro. Há um equilíbrio luminoso muito grande na imagem.
Na fábrica de cimento Votorantin, Flieg fotografou a partir de uma pequena janela, o
interior de um alto-forno (fig. 3.3.18). Há em destaque às chamas do fogo que
aquecem o forno, bem ao centro da imagem. A foto tem consistência turva e, nas
paredes do forno, os blocos de tijolos parecem totalmente desalinhados e tortos. Este
efeito foi causado pelas ondas de calor dentro da construção cilíndrica. Flieg
conseguiu, assim, não apenas fotografar o fogo, como o próprio calor, elemento
fundamental no processo de produção industrial. Esta é uma imagem que carrega
com clareza múltiplos enfoques: o científico, caracterizado pelo efeito ótico gerado
223
pelo calor; a experimentação artística, do ponto de vista da composição e das formas
autênticas, e promocional, pois valoriza a tecnologia industrial.
Fig. 3.3.17 Fig. 3.3.18
Fábrica da Pirelli, 1948; interior de um alto-forno na fábrica de cimento Votorantin, s/d.
Por fim, a representação da eletricidade que tem uma de suas concretização
em imagem dentro da visualidade da fotografia moderna, através dos componentes
de rede elétrica. Flieg fotografou muito estes materiais nas usinas e em vários
trabalhos de clientes como a Brown Boveri e a GIE que atuavam justamente na
produção destes equipamentos. Em Jupiá, por exemplo, há uma foto de um trecho de
uma subestação de retransmissão elétrica (fig. 3.3.19) em que ele explora a estampa
formada pela repetição de elementos sobrepostos.
224
Subestação na usina de Jupiá, 1972.
Fig. 3.3.19
Todos esses expedientes serviam para a constituição de imagens-símbolo do
processo industrial. A exploração de formas, texturas, enquadramentos, ângulos e
outros componentes técnicos da fotografia visavam atingir resultados esteticamente
elaborados. Estas representações que idealizam o universo urbano-industrial, têm
suas raízes já no século XIX, encontram um caminho de desenvolvimento no século
XX, a partir de algumas experiências vinculadas à Nova Objetividade alemã e à
Nova Visão, desde a década de 1920. Este repertório visual que começou a ser
criado foi logo absorvido pela própria indústria, que estava na gênese do processo.
No Brasil, o desenvolvimento de uma fotografia industrial nos termos
modernos começou efetivamente a partir da década de 1940 e Flieg logo se destacou
como um dos principais profissionais a atuar neste campo. Suas fotos apresentam
uma grande idealização do espaço da indústria. Exemplos como o da colocação de
um “modelo” na fotografia do laboratório, dos rostos barbeados e os macacões
limpos denunciam o artifício e expõem o limite tênue entre realidade e ficção nessas
fotografias. Benjamin cita uma passagem de Bertold Brecht:
Nunca a simples reprodução da realidade
consegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das
fábricas Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre essas
instituições. A verdadeira realidade transformou-se na
realidade funcional. As relações humanas, reitificadas –
numa fábrica, por exemplo --, não mais se manifestam. É
225
preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de
fabricado.252
As fotos mascaram o aspecto rudimentar da indústria nascente dos anos 50 e
projetam o desejo de uma auto-imagem de modernização. Fazem o elogio da
monumentalidade das obras do “Brasil Potência” e aparam as arestas do conflito
social na representação homogênea do trabalho e do trabalhador. São imagens
encomendadas e logo concebidas como bandeiras dos interesses do capital
industrial.
No entanto, o valor destas imagens olhadas na perspectiva de hoje extrapola
os limites de seu caráter promocional. Elas são a consolidação estética de um ideal
de modernidade que foi adaptado para o Brasil em alguns momentos da história do
século XX. Além disso, ao apresentarem o artifício, nos denunciam sua própria
condição de discurso. São idealizadas e operam no campo da ideologia, como
imagens de outras naturezas também o são. Mas, nem por isso, ficam
descredenciadas para servir como referencial documental sobre as épocas retratadas.
Muito pelo contrário, são a expressão muito privilegiada da industrialização
brasileira, tanto do ponto de vista técnico, que mesmo com toda idealização, aparece
registrado ali, como da simbologia que se buscou se construir em torno dela,
transparecendo inclusive as contradições inerentes ao processo histórico particular a
que se referem.
3.4. Fotografia e publicidade: a celebração dos objetos
Certa vez, Heinz Kamnitzer, amigo de Flieg e proprietário da fábrica
Ferramentas para Indústrias Heinz, disse ao fotógrafo que precisava produzir uma
foto com algumas peças, mas achava o custo de produção muito alto. Flieg explicou
que se gastasse mais para se obter uma fotografia limpa, muito bem definida, isso
eliminaria o retoque americano, que seria mais dispendioso, além das peças não
perderem, desta forma, sua naturalidade. Heinz concordou e Flieg fez a foto (fig.
3.4.1). As oito peças foram colocadas sobre uma superfície de vidro e com um fundo
252
Bertold Brecht apud BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotgrafia. In:______. Op. cit. p.
106.
226
liso. Na foto resultante, toda uma gama de tons claros e escuros sobrepõe-se
definindo as formas, volumes e contornos, o brilho dá a consistência do metal. Todo
este trabalho de meticulosidade técnica para fotografar atento às características
formais dos objetos e materiais valorizara os produtos, permitindo que a foto fosse
impressa diretamente no folheto de propaganda da empresa, com um resultado bem
razoável.
Peças Heinz. São Paulo, s/d .
Fig. 3.4.1
Isto aconteceu na década de 1940, o uso do retoque americano ainda era uma
constante. A fotografia que começava a ser incorporada ao fazer publicitário no
Brasil, ainda era vista com certo desconforto por boa parte dos profissionais da área
e dos anunciantes. O paradigma da precisão técnica ainda era o desenho, por isso
recorriam ao retoque americano que aproximava a imagem fotográfica do traço,
como a gravura havia feito durante muitas décadas.
A impressão direta de fotografia era possível desde 1880, quando apareceu o
processo de impressão do meio-tom (halftone). No entanto, a utilização da fotografia
pela publicidade não aconteceu na seqüência. A recusa à fotografia pelos
publicitários se dava nas duas pontas: se por um lado, ela era técnica demais para
alcançar a fruição artística do desenho253
, por outro, não tinha a precisão do traço
253
A principal referência de estilo utilizada pela publicidade do século XIX foi o Art-Nouveau.
227
para a reprodução dos detalhes técnicos na impressão. Assim, o uso da fotografia na
publicidade do século XIX foi bastante irrisório.
Ao se adentrar no século XX, a imagem fotográfica ganhou um pequeno
espaço na publicidade, mas tinha um caráter meramente ilustrativo e um padrão de
qualidade, no geral, muito baixo. O primeiro gênero fotográfico a ser incorporado de
maneira mais sistemática à propaganda foi o retrato. Na chamada publicidade
testemunhal, que consistia na utilização de uma personalidade – que muitas vezes
era o próprio dono da empresa que estava anunciando – para recomendar o uso do
produto, uma imagem do “depoente” era impressa junto ao texto.
Raúl Éguizabal ressalta que “os escassos exemplos fotográficos na
publicidade norte-americana, durante os primeiros anos do século XX, continuavam
a seguir as regras da estética mais ortodoxa, quando não da vulgaridade”254
. A
partir da década de 1910, o Art-Nouveau foi abandonado pelos publicitários que
começaram a voltar o foco para os atributos do produto que até então “permanecia
escondido entre ornamentos”255
. Nos anos 20, com as experiências de vanguarda no
campo fotográfico iriam apontar o caminho pelo qual a publicidade posteriormente
seguiria.
(...) os fotógrafos mais vanguardistas descobriram
o valor documental em suas imagens, não à maneira de um
realismo social carregado de intenções críticas, e sim como
valor objetivo, como documento desnudo. Os anunciantes
apreciaram o valor de exibição deste tipo de fotografia e a
submeteram a seus interesse publicitários. Ao fim e a
cabo, o que se apreciava na imagem publicitária era seu
valor documental e sua originalidade e a nova fotografia
estava em condições de oferecer ambos.256
No Brasil, o domínio absoluto da ilustração a traço deu-se, pelo menos, até a
década de 1930, época em que as agências estrangeiras começaram a chegar ao país,
principalmente em São Paulo257
. Segundo Chico Albuquerque, até este momento, a
fotografia publicitária era “limitada a fotos de objetos e produtos”258
. Os trabalhos
254
ÉGUIZABAL, Raúl. Op. cit. p. 13. 255
NESBIT, Molly. Op. cit. p. 112. 256
ÉGUIZABAL, Raúl. Op. cit. p. 13. 257
A J. Walter Thompson foi instalada no Brasil em 1929; a N. W. Ayer-Son, em 1931; a McCann-
Erickson, em 1935; a Lintas, em 1937, e a Grant, em 1939. REIS, Fernando. São Paulo e Rio: a
longa caminhada. In: BRANCO, Renato Castelo; MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando
(orgs.). História da propaganda no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1990. p. 308. 258
ALBUQUERQUE, Francisco. A fotografia publicitária. In: BRANCO, Renato Castelo;
MARTENSEN, Rodolfo Lima; REIS, Fernando (orgs.). Op. cit. 168.
228
eram realizados, em geral, por fotógrafos que atuavam em vários campos, não havia
a especialização. Quando intencionavam utilizar fotografias, as agências geralmente
recorriam a imagens compradas nos Estados Unidos, com modelos norte-
americanas. Ricardo Ramos narra, inclusive, um caso anedótico a esse respeito,
acontecido nos anos 1930:
Em São Paulo, nos começos da Ayer, somente se
usava desenho como ilustração de anúncio. Cansado de
arte a traço, Charles Dulley passou a comprar fotos em
Nova York. Na maioria, os modelos das fotografias que
vinham eram mulheres bonitas, sem dúvida, mas quase
todas louras. E havia uma necessidade óbvia de morenas.
Então foi posto um anúncio no Estado, em sua nascente
página de classificados. “Jovens bonitas, morenas, para
trabalho fácil e bem pago.” Dia seguinte, dois “secretas”
visitaram a agência: queriam saber qual era aquele trabalho
fácil.259
O incremento do uso da fotografia na propaganda brasileira é creditada à
Thompson. Segundo Fernando Reis, o primeiro fotógrafo que passou a prestar
serviços à agência foi Henrique Becherini, que é apontado por Albuquerque, como
também por Flieg, como um dos primeiros a realmente se especializar no campo
publicitário.
Em pouco tempo, clientes como a General
Motors, a Goodrich, a Atlantic, a Blue Star Lines e a
Refinações de Milho Brasil passaram a ostentar fotografias
de Becherini em seus anúncios. A primeira campanha teria
sido feita para a GM, com testemunhais de altas
personalidades brasileiras. E o cachê de cada um teria sido
um Chevrolet...260
No entanto, foi realmente na década de 1940 que começou a haver um
espaço um pouco mais consolidado para a fotografia no campo da propaganda, e
fotógrafos como Chico Albuquerque, Peter Scheier e Hans Gunter Flieg, além do
próprio Becherini e talvez uns poucos mais, firmaram-se na área.261
A qualidade de
impressão nas revistas e jornais da época, de modo geral, não era boa. Dos diários,
o que tinha um padrão um pouco melhor era A Gazeta. Entra as revistas ilustradas, o
principal veículo era O Cruzeiro. O semanário, rodado em rotogravura, tinha a
259
RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação: pequena história da propaganda no Brasil. São
Paulo: Atual, 1985. p. 43. 260
REIS, Fernando. Op. cit. p. 311. 261
ALBUQUERQUE, Chico. Op. cit. p. 168.
229
grande inovação de imprimir anúncios em cores, mas o inconveniente de não
imprimir preto, a cor básica era o sépia.
Os anos 1940 e 1950 são apontados por Renato Ortiz como momento da
configuração, ainda que incipiente, de uma indústria cultural no Brasil. Incipiente
porque, segundo Ortiz, o conceito de indústria cultural introduzido por Adorno e
Horkheimer não poderia ser integralmente aplicado aqui. Faltava à indústria
brasileira neste momento um elemento fundamental dentro do conceito
frankfurtiano, o chamado caráter integrador, que é na verdade a idéia da indústria
cultural como um centro em torno do qual a produção cultural estaria articulada. A
padronização que a produção cultural poderia operar seria possível somente se
apoiada a um “conjunto de mudanças sociais que estendem as fronteiras da
racionalidade capitalista para a sociedade moderna num mesmo sistema”262
. O
Brasil de então, apesar da centralização marcada do Estado Novo, não teria ainda
rompido com uma política de localismo. Assim, “a idéia de um centro onde se
agrupam as instituições legítimas (...) fundamental para que se possa falar de uma
sociedade de massa no interior da qual operam as indústrias culturais”263
encontrava-se debilitada no caso brasileiro.
A falta de integração nos vários ramos da indústria cultural e de uma
estrutura empresarial própria estaria na raiz da idéia de rudimentaridade e
improvisação comumente referida nos depoimentos de profissionais da época, que
normalmente creditam esta característica ao caráter de “pioneirismo” das
experiências. Flieg narra, que no caso dos modelos, não existia, de modo geral, nas
décadas de 1940 e parte de 1950, pagamentos fixos de cachês, contratos de uso de
imagem, com prazos de validade. Havia algum pagamento combinado “de boca”,
sem maiores formalizações. O recrutamento também, na maior parte das vezes,
dava-se entre conhecidos do fotógrafo ou de algum funcionário da agência ou da
empresa anunciante.
Há um caso, por exemplo, de um trabalho em que Flieg precisava de uma
modelo para um folheto dos colchões Probel. Ele estava com dificuldades para
conseguir uma moça para a foto e comentou isso com um conhecido que era, na
época, diretor da Nestlé. Então, o amigo disse para que Flieg fosse um dia no seu
escritório porque tinha algumas secretárias bonitas que talvez pudessem aceitar o
262
ORTIZ, Renato. Op. cit. p. 49. 263
Ibid.
230
trabalho. Do lado de fora do prédio, debaixo de chuva, o fotógrafo foi lá para olhar
pela janela, ver se estava de acordo, sem que as moças percebessem, evitando
abordagens diretas que poderiam ser mal recebidas. Também para fotos das malhas
Nitco, o anunciante disse a Flieg e Carlos Prósperi da McCann-Erickson que fossem
até a fábrica e escolhessem uma das operárias como modelo.264
Nestes primeiros tempos de sua atuação na área publicitária, o fotógrafo
também conta que não se falava em produção. Os modelos, no geral, não eram
maquiados, o que muitas vezes obrigava o uso de retoques. Objetos, móveis e outros
acessórios de cena também eram conseguidos domesticamente. Nesta mesma foto da
Probel, levou uma cama de sua casa para o estúdio. Num trabalho com misturas para
pudim da Oetker, as fotos foram feitas em 35 mm na casa de Gerhard Wilda, da P.
A. Nascimento, com os alimentos preparados pela esposa do publicitário.
São várias as histórias como estas. Renato Ortiz diz que estes “casos”, muitos
de natureza anedótica, são tão freqüentes nos relatos de profissionais da época que
não podem ser tratados como fatos ocasionais, nem apenas como recurso narrativo
dos depoentes.
Nessa fase de pioneirismo, onde as coisas ainda
estão por construir, a iniciativa individual é fundamental,
ela é parte integrante das estruturas que “funcionam mal”.
A improvisação é nesse sentido uma exigência da época.
As anedotas denotam essa incongruência entre “ter que
funcionar” e “funcionar bem”, tornando cômica a tensão
entre as duas forças que em princípio deveriam fazer parte
da mesma unidade.265
É, assim, nestes primeiros passos da modernidade brasileira, que a fotografia
publicitária floresceu, absorvendo modelos vindos de fora e os adaptando às
contingências locais, que exigiam uma criatividade particular266
.
Com relação aos tipos de trabalho em publicidade, Eguizábal divide a
fotografia publicitária em três gêneros mais recorrentes: retrato, paisagem e still-life.
No caso dos retratos, como já tratei no capítulo 2 da prática retratista de Flieg de
maneira geral, não entrarei aqui no mérito publicitário deste gênero. Com relação às
paisagens, vale a mesma observação, além do fato de não ser identificável uma
produção significativa de vistas destinadas à publicidade comercial convencional, ou
264
Depoimento de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred Jordan, Paulo A.
Nascimento, Eduardo Castanho. Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1981. 265
ORTIZ, Renato. Op. cit. p. 97. 266
Não entrarei aqui no mérito da discussão teórica sobre o conceito da criatividade. Isso pode ser
encontrado em: ORTIZ, Renato. Op. cit. pp. 97-110.
231
seja, associada a um produto. Assim, o objeto com trabalharei neste item é still-life
publicitário.
Still-life é uma composição com um ou mais objetos de uso cotidiano, de
pequeno porte, como alimentos, utensílios de cozinha, relógios, produtos de
perfumaria, objetos decorativos, flores, livros, garrafas de bebidas, eletroeletrônicos
portáteis, ferramentas diversas, peças de vestuário, jóias e mais toda sorte de artigos
inumeráveis. Em português, o termo encontra correspondência na natureza-morta.
No entanto, na terminologia fotográfica, opta-se pelo uso da expressão em inglês,
enquanto a natureza-morta refere ao gênero na pintura.
Apesar de alguma referência na Antigüidade, a natureza-morta tem origem
no Renascimento. Até final do século XIX, foi considerada como um gênero menor
dentro do panteão da pintura, que tinham no retrato e na paisagem suas mais nobres
representações. Mesmo assim, muitos artistas notabilizaram-se pintando motivos
inanimados, enquanto outros notáveis, em algum momento, experimentaram estas
composições267
. O país que mais produziu naturezas-mortas foi a Holanda no século
XVII, como também “nenhum outro ramo da pintura revela mais claramente a
devoção dos holandeses ao visível”268
. Os motivos mais recorrentes nestas pinturas
eram os alimentos, utensílios de mesa e cozinha e os vasos de flores. As imagens
celebravam a abundância da burguesia dos Países Baixos, desfilando uma enorme
variedade de texturas que remetem a uma infinidade de materiais (metal, cristal,
veludo, seda, tapeçaria, porcelana, madeira etc), sabores, cheiros, cores, ou seja,
avivavam os cinco sentidos do espectador, ao mesmo tempo, que afirmavam “a
riqueza do proprietário e seu habitual estilo de vida”269
e, desta forma, criavam um
ideal baseado na posse de objetos, que eram um estímulo ao consumo.
Cézanne e depois o Cubismo trabalharam as questões formais na natureza-
morta, rompendo com a simbologia do desejo. A fotografia dos anos 20 recupera o
gênero através principalmente da corrente da Nova Objetividade e da fotografia
direta norte-americana. A publicidade tem papel fundamental nesta renovação da
fotografia da década de 1920. Na Alemanha, por exemplo, “uma ala da burguesia
industrial, organizada no Deutscher Weerkbund, apoiou a mentalidade inventiva da
267
É possível que a primeira natureza-morta pintada por artista de reputação tenha sido a Cesta de
frutas, de Caravaggio, de 1595-1600. EGUIZÁBAL, Raúl . Op. cit. p. 179. 268
SLIVE, Seymor. Op. cit. p. 277. 269
BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 101.
232
vanguarda para revolucionar a publicidade estacionada no nível do século XIX”.270
Fotógrafos como Albert Renger-Patzsch, Hans Finsley, Aenne Biermann, Umbo,
entre outros, trabalharam a fotogenia dos objetos cotidianos da sociedade industrial,
em fotografias extremamente bem cuidadas do ponto de vista técnico e de
composição. Nos Estados Unidos, um pouco mais desvinculado da publicidade, Paul
Strand explorou a geometria, bem como os brilhos metálicos, de objetos produzidos
industrialmente. Edward Weston ressaltou formas, volumes e texturas de verduras e
de um vaso sanitário.
Iluminação cuidada para cada tipo de objeto, fundos em geral neutros,
pesquisa de materiais e muitas técnicas e expedientes eram preocupações essenciais
desses fotógrafos. Assim, esta fotografia dos anos 20 voltou-se ao cuidado artesanal
na produção que visava primordialmente obter a beleza a partir da precisão e nitidez
das imagens. São fotos dotadas de um despojamento retórico que jogam todo o peso
nos aspectos sensoriais da representação. Instaurava-se o padrão que respondia às
necessidades fundamentais da publicidade, na qual a fotografia de objetos tem
algum uso nos catálogos de venda, já desde o século XIX, e aparições esporádicas
em anuários e anúncios publicitários.271
O still-life publicitário produz-se em um plano de
simbolização muito baixo e de compreensibilidade muito
alto. Apesar de serem acompanhadas normalmente por
elementos verbais, a situação comunicativa não permite
com freqüência o detalhe da leitura, por isso a imagem
deve ser auto-suficiente e inteligível.272
Flieg, ainda nos tempos em que trabalhava na gráfica Niccolini, já começou a
praticar composições com produtos da área farmacêutica (fig. 3.4.2). Estas fotos
eram geralmente destinadas à produção de materiais gráficos de divulgação de
laboratórios, como catálogos, folhetos e mata-borrões distribuídos a médicos. Há
nestas imagens uma preocupação de composição e de tratamento dos objetos
fotografados, até então, ainda não muito comum no cotidiano da publicidade
brasileira.
270
INSTITUT FÜR AUSLANDSBEZIEHUNGEN. A Fotografia na República de Weimar:
catálogo. Bonn, 1979; São Paulo (Paço das Artes), 2000. p. 11. 271
SOBIESZEK, Robert. Op. cit. pp. 16-23. 272
EGUIZÁBAL, Raúl . Op. cit. p. 179.
233
Fig. 3.4.2. .
Comer com olhos
A fotografia de alimentos é uma das principais vertentes dos still-lifes. Como
na natureza-morta pictórica objetivam “excitar nosso apetite, situando-nos em um
cenário complacente com a gula”. A abundância é um imperativo neste campo.
Refrigeradores devem sempre estar cheios, as mesas postas devem trazer variedade
de alimentos, carrinhos de supermercados repletos de compras. Como destaca
Eguizábal, a publicidade trabalha com a idéia de excesso, não só de objetos, como
de signos, se a felicidade está associada à acumulação, o vazio transforma-se em
uma zona perigosa, o horror vacui que as pinturas barrocas já pregavam.
Fig. 3.4.3
Chocolates Soksen. Foto para seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956.
234
Numa foto, de 1956, dos chocolates Soksen (fig. 3.4.3), para a coluna de
Suzanne de Manet, na revista Casa & Jardim273
, Flieg para apresentar os dois
produtos – chocolate em pó e em barra – colocou-os em meio a uma mesa posta, que
concentra vários elementos que preenchem a imagem. A toalha branca dá textura ao
fundo, sem comprometer a visualização dos elementos principais. Na xícara, as
variações tonais indicam o chocolate dissolvido em leite, biscoitos com rugosidade,
prato, embalagens em papel com a marca dos produtos, o brilho do papel metálico,
as barras, no canto superior esquerdo, aparece um pouco a peça em aço inox. Há,
assim, uma fartura de objetos, texturas, tonalidades, vários tipos de materiais, que ao
mesmo tempo em que preenchem os espaços da imagem, transmitem várias
impressões sensoriais. A tomada por cima permite a valorização destes elementos e
o enquadramento que fraciona alguns dos objetos dá a idéia de que há muito mais
coisa no extraquadro.
Uma campanha para o óleo Delícia, idealizada pela agência P. A.
Nascimento, trazia em um dos anúncios (fig. 3.4.4), uma foto de uma tábua de carne
repleta de legumes e uma faca colocada de maneira atravessada, novamente dando a
idéia de abundância. Há, neste caso, um trabalho intenso com as cores e suas
impressões visuais que reforçam a idéia de fartura. O trabalho de iluminação deixa
alguns legumes com bastante brilho. Este é outro expediente muito comum na
fotografia de alimentos, o lustre das cascas de frutas e legumes dá um aspecto
saudável, há também uma identificação com a limpeza. E aqui neste anúncio
trabalhou-se com a associação direta dos legumes com o óleo que tem sua lata
aparecendo logo à frente, relação que se apóia na idéia de “alimentos que fazem bem
à saúde”. Há outro anúncio desta campanha, com mesmo layout, no qual a imagem
mostra uma mesa posta, com um prato feito com vários tipos de alimento. Neste
caso, a imagem serve para aguçar o paladar, estabelecendo a relação do sabor
agradável da comida com o óleo.
273
Entre 1955 e 1956, Flieg realizou as fotos para a coluna de Suzanne de Manet, na revista Casa &
Jardim. Na seção, sua autora “recomendava” alguns produtos, dando uso publicitário a um espaço
apresentado como de conteúdo editorial.
235
Fig. 3.4.4 Fig. 3.4.5
Anúncio do óleo Delícia. Agência P. A. Nascimento. São Paulo, s/d; Açúcar União. Foto para seção de Suzanne
de Manet, 1956.
Outra foto do açúcar União para a coluna de Suzanne de Manet (fig. 3.4.5)
traz um bolo, do qual já foi tirado um pedaço, os utensílios que teriam sido
utilizados para a sua feitura – vasilhas, xícara, batedor e colher de pau – e o pacote
de açúcar aberto. Novamente, a composição mostra uma preocupação com a
ocupação do espaço com materiais de variados aspectos. As sombras também
ajudam a preencher os vácuos, sem se imporem aos objetos e ajudando a dotar a
imagem de maior naturalidade.
Vale só lembrar que, nessas épocas, não havia a especialização que existe
hoje na fotografia de alimentos, com a produção de “mocapes” (modelos em resina
ou outro material para representar os alimentos na foto) e com o trabalho de
profissionais especializados na pesquisa e produção deste tipo de “culinária”,
voltada a acentuar as qualidades visuais. Flieg, como os outros fotógrafos da época,
trabalhavam em bases artesanais e domésticas, fotografam o alimento mesmo, sem
maiores subterfúgios ou tratamentos especiais de produção, qualquer eventual
interferência material no objeto a ser fotografado dava-se mais por “intuição” do
fotógrafo, na base da tentativa e erro, do que propriamente na existência de um
conhecimento sobre o assunto.
236
The way of life
As cenas com o bolo do açúcar União e a tábua com legumes do óleo
Delícia, apresentadas acima, fazem referência ao preparo dos alimentos. Este tema
foi muito explorado pela publicidade dos anos 50 e remetia ao estereótipo da mulher
que se realizava nos afazeres doméstico, apregoado pelo conjunto de imagens
idealizadas sobre a felicidade de ser de classe média norte-americana que ficou
conhecido como o “american way of life”. Este conjunto de representações,
transformadas em valores morais, foi veiculado pelos meios de comunicação de
massa e se utilizava do choque entre a assepsia e prosperidade das residências dos
subúrbios nos Estados Unidos com o pauperismo desolado da Europa pós-guerra. O
modo de vida americano associava o consumo com uma vida bem sucedida – como
sempre foi feito na pintura – mas voltaram o foco para a classe média. Assim, os
principais ícones deste modelo foram os objetos de uso doméstico, principalmente
os eletrônicos, e o ideal feminino construído foi o da dona de casa, para quem estas
imagens da publicidade do açúcar e do óleo eram destinadas.
A imagem publicitária trabalha com a projeção de alguns modelos. A
utilização de determinados produtos é relacionada a certos estilos de vida. Desta
maneira, fumar o cigarro tal lhe permite uma vida de aventuras, usar determinado
relógio coloca o homem no centro do poder, a mulher que passa tal batom terá todos
os refletores voltados para ela e assim por diante. Além do uso de retratos para este
tipo de atribuição de status na publicidade, o still-life também é muito utilizado. O
expediente mais usual para isso é colocar o produto anunciado junto a outros
objetos que reforçam a idéia que se quer passar.
Numa imagem para uma campanha dos chapéus Ramenzoni (fig. 3.4.6),
Flieg colocou o produto em meio a objetos que remetem a pratica fotográfica – a
câmera (foi usada a Leica), filtros, objetiva, o fio de um disparador e fundos
coloridos. Este e os outros anúncios da campanha da Ramenzoni associavam cada
chapéu a um estilo, representado por uma caracterização profissional do homem que
os utilizaria. O modelo Panamá “para os dias de calor” era um dos produtos mais
informais da linha, logo foi relacionado a uma profissão condizente. Outro modelo
de feltro, por exemplo, foi colocado junto a uma mala de executivo em outra peça da
campanha.
237
Fig. 3.4.6 Fig. 3.4.7
Anúncio do chapéu Ramnzoni. São Paulo, s/d; Cocktail Seagers. Foto para seção de Suzanne de Manet. São
Paulo, 1956.
No caso da foto do Cocktail Seagers para a seção de Suzanne de Manet (fig.
3.4.7), fazem parte da composição uma garrafa do produto, dois copos servidos com
a bebida, um sapato feminino de salto alto e uma rosa. Há um claro apelo à
sensualidade expressa pelo sapato, pela rosa e o par de copos. Mas estes elementos
também fazem parte do repertório de simbologia relacionada à sofisticação dentro da
sintaxe da fotografia publicitária. Os copos estão umedecidos, respondendo também
ao modelo de representação das bebidas no still-life publicitário.
Beber frio é também um luxo fundamental do
mundo moderno. Beber frio é beber civilizadamente e o
formato on the rocks de consumo americano das bebidas
impôs-se nitidamente aos antiquados copos aquecidos ou
ao gesto parcimonioso de saborear um bom conhaque ou
um rum. As bebidas frias se bebem mais rápido e isso é
também uma imposição da acelerada vida do homem pós-
industrial.274
Existe também um tipo de trabalho realizado por Flieg, que embora não se
enquadre na noção estrita de um still-life, deve ser destacado aqui. É a fotografia de
mobiliário residencial. Nos anos 50, o já referido boom imobiliário levou a classe
274
EGUIZÁBAL, Raúl. Op. cit. p. 185.
238
média das casas para os apartamentos. A área menor dos novos espaços, bem como
a dificuldade em transportar os móveis pesados em madeira maciça pelas escadarias
por cinco, dez, quinze andares começou a exigir um novo padrão de movelaria. O
arquiteto José Zanini Caldas teve uma das primeiras iniciativas neste sentido no
Brasil, ao lançar em 1950 uma linha de móveis mais populares, feitos em madeira
compensada com algum revestimento em fórmica, lonita ou plástico. Os móveis
mais leves eram concebidos já tendo em mente os pequenos espaços das novas
residências.
Flieg teve contanto intenso com Zanini e fotografou grande parte de suas
peças para os anúncios e material gráfico como cartazes da marca. Fez fotos de
peças isoladas, como cadeiras, luminárias etc., e principalmente de ambientes
montados. Houve um caso, inclusive, que devido à dificuldade que estava tendo para
iluminar o cenário de uma sala de estar montada dentro do galpão da fábrica, em São
José dos Campos, Flieg não teve dúvida e mandou montar tudo ao ar livre. Assim,
fez a foto, utilizando luz natural275
.
Fig. 3.4.8
Móveis Zanini. São José dos Campos, década d 1950.
Essas composições de espaços traziam além dos móveis outros elementos
(fig. 3.4.8) como tapetes, pinturas nas “paredes”, eventualmente quadros, janela com
cortinas ou persianas, vasos e outros elementos decorativos, plantas etc. Além disso,
alguns objetos de uso cotidiano, sem funções propriamente de decoração, eram
275
“Tirando uma pequena sombra que se fez no canto da parede, o resultado ficou bem aceitável”.
Depoimento de Hans Gunter Flieg à autora. São Paulo, 17 jul. 2002.
239
colocados nos cenários. Nessa foto mostrada, há livros e discos na estante baixa,
revistas, copo, garrafa de uísque e cinzeiro com charuto na mesinha, e no chão um
par de sapatos, jornal e um cachorro de pelúcia. Estes elementos simulam um modo
de vida, constroem uma imagem de que estes móveis “modernos e práticos” podem
criar ambientes confortáveis, totalmente condizentes a um estilo sofisticado e
atualizado. Na configuração de cena, o único elemento que falta é o homem – os
objetos indicariam uma presença masculina - sentado, despertando, desta forma, um
desejo no observador em adentrar naquele espaço pronto para ser habitado. Há de
notar, que pelo menos aos nossos olhares de hoje, a cena soa um pouco fake, está um
pouco arranjada demais, reforçada ainda pela curiosa figura do cachorro de
brinquedo desempenhando o papel de um animal de verdade. A falta de escala
poderia até sugerir que se trata de uma casa de bonecas, por exemplo. Mas, talvez,
esta impressão esteja um pouco dentro do espírito e da lógica publicitária, uma vez,
que ela trabalha com a idéia de espaços ideais e não propriamente reais.
Materiais e fundos
Além de Zanini, Flieg teve outros clientes do setor moveleiro, como a Cimo,
Paraná, a Mobília Contemporânea e a Fortlit. Desta última, ele fotografou muito
para a seção de Suzanne de Manet. Em uma destas fotos (fig. 3.4.9) há uma cadeira
junto a uma mesa baixa sobre a qual está uma esfera de vidro. Em praticamente
todas as imagens dos móveis Fortit, Flieg trabalhou com enquadramentos que
fracionam os móveis como recurso que acentuava a idéia de linhas sofisticadas e
arrojadas. Nessa imagem mostrada, há um grande trabalho de valorização de
materiais, a pelagem do tapete, a madeira da estrutura da cadeira, o veludo do
assento, a palha trançada do encosto, o vidro da esfera, o mármore do tampo da
mesa e o laqueado do pé.
240
Fig. 3.4.9
Móveis Fortlit. Foto para seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956
Aqui, gostaria de fazer um paralelo com a análise que John Berger faz do
quadro Os Embaixadores, de 1533, de Hans Holbein:
Cada centímetro do quadrado da superfície desse
quadro, ainda que permanecendo puramente visual, faz um
apelo, como que recruta, o sentido do tato. O olho
movimenta-se do pêlo à seda, ao metal, à madeira, ao
veludo, ao mármore, ao papel, ao feltro, e, cada vez, o que
o olho percebe já se encontra traduzido, dentro da própria
pintura, na linguagem da sensação tátil. 276
Berger relaciona estas superfícies ao trabalho de tecelões, bordadeiras,
tapeceiros, ourives, marceneiros, entre outros. A pintura exalta as habilidades e com
isso dá ênfase ao delírio sensorial que o dinheiro pode comprar. Transpostas para o
universo industrial, e guardando às devidas condições históricas, estas considerações
fariam o mesmo sentido se aplicadas à fotografia dos móveis Fortlit. A valorização
visual e tátil dos objetos, obtida através de uma apurada e atenta preparação técnica,
transforma os materiais em existências autônomas que tem particularidades e
emprega trabalho especializado. O apuramento técnico e artesanal constrói a idéia de
refinamento a que os artigos de luxo estão sempre associados. Há prazer ali, prazer
em ver, prazer em tocar, prazer em possuir.
276
BERGER, John. Op. cit. p. 92.
241
Fig. 3.4.10 Fig. 3.4.11
Pratas Spam. São Paulo, s/d; objetos em palha e vime. Jacareí, 1974.
Cada material tem suas particularidades, então para cada um existem
algumas qualidades a se destacar na fotografia. De modo geral, o brilho, a simetria e
a uniformidade nas superfícies dos materiais que compõem os objetos
industrializados são ressaltados (fig. 3.4.10). Em contraste, nos objetos artesanais, o
trabalho e as habilidades empregados ali devem ficar evidentes. Uso como exemplo,
que apesar de não ter sido produzido com intenções publicitárias é válido aqui, uma
composição com objetos de vime e palha que Flieg fotografou no mercado de
Jacareí, em 1974 (fig. 3.4.11). Os objetos têm aspecto rústico, a variedade de
subtons destaca isso, as formas têm um padrão, mas são irregulares, o aspecto
manufaturado é claro aí, dotando as cestas de uma aura de autenticidade.
Flieg tem trabalhos que se tornaram referências na fotografia de cristais. Sua
primeira encomenda foi para os Cristais Prado, em 1947. A cristaleria era proprie-
dade de Jorge da Silva Prado e da esposa Marjorie, que tinham também a
Publicidade Prado277
. O chefe de estúdio da agência era o jovem Fred Jordan. Certo
dia, Jordan telefonou a Flieg perguntando se ele estaria interessado em tentar umas
fotos de cristais para a Prado. O modelo para este trabalho eram uns catálogos da
sueca Orrefors, que eram referência neste campo. Além de Flieg, outros fotógrafos
importantes fizeram experiências com cristais e enviaram para a Prado, entre eles
277
Não encontrei referência sobre a Publicidade Prado na bibliografia sobre história da propaganda
brasileira. Segundo Flieg, a pequena agência atendia além dos Cristais Prado, a Móveis Prado que
surgiu um pouco mais tarde, a Alumínio Rochedo e chegou a ter a conta da Coca-Cola.
242
Henrique Becherini, Gabriel Zellaui com Benedito Duarte e Gregori Warchavchik.
Flieg tinha muita familiaridade com o universo dos cristais, relativo à convivência
que teve na infância, e a possibilidade de trabalhar com este material lhe seduzira
muito. Assim, ele produziu uma foto composta com várias peças e “ganhou a
concorrência” da Prado, vindo a constituir fama de especialista na fotografia de
cristais.
Fig. 3.4.12
Cristais lapidados por Mario Seguso. São Paulo, 1964.
Uma de suas fotos mais famosas foi feita em 1964, com dez peças em cristal
lapidado por Mario Seguso, de Poços de Caldas (fig. 3.4.12). A imagem impressiona
por manter uma reprodução rica, com detalhes da lapidação bastante nítidos,
ressaltando o trabalho humano despendido ali e o aspecto artesanal dos objetos, isso
sem comprometer a transparência, atributo fundamental do cristal, de sua pureza e
refinamento. Para essa foto, Flieg colocou as peças sobre uma superfície de vidro,
técnica talvez introduzida por ele no Brasil, que não produz sombras e garante um
brilho translúcido ao conjunto da imagem, além de deixar o visual “leve”, com a
idéia de que as peças estão flutuando no ar. Flieg sempre foi muito cuidadoso no
tratamento dos tipos de material que fotografava. Se adquiriu certa especialização no
campo dos cristais, não descuidou dos tantos outros que lhe apareceram à frente nos
243
mais de quarenta anos que esteve atuante. Em 1955, por exemplo, fotografou um
arranjo de fibra de vidro (fig. 3.4.13). Explorou a tonalidade do branco perolado que
ressalta o brilho e as formas arredondas na colocação das fibras. Mesmo objetos
mais ordinários, como, por exemplo, um frasco plástico de um hidratante solar
(fig.3.4.14), tinham textura, brilho e cores muito tratados e valorizados ao serem
fotografados.
Fig. 3.4.13 Fig. 3.4.14
Fibra de vidro e hidratante solar Tropi Tan. São Paulo, s/d.
Além do trabalho com materiais, outro elemento fundamental no still-life á a
colocação de fundos. O uso preferencial, não só nos trabalhos de Flieg, mas como na
fotografia publicitária, de modo geral, é dos fundos neutros, para que não haja risco
dos objetos perderem o destaque. No entanto, em alguns casos, o uso de um fundo
decorado estabelece ou reforça a significação que se busca construir em torno do
produto. O cadeado Arteb (fig. 3.4.15), por exemplo, que ele fotografou em 1956
para a coluna de Suzanne de Manet, está sobre um vidro com um fundo composto
por páginas de jornal em que lê manchetes sobre casos de roubos a residências e
estabelecimentos comerciais. A colocação do vidro permitiu que se marcasse uma
separação espacial entre o objeto e o fundo, de modo a “estampa” do jornal não
quebrasse o destaque no cadeado.
244
Fig. 3.4.15 Fig. 3.4.16
Cadeado Arteb e Cinzano. Fotos para a seção de Suzanne de Manet. São Paulo, 1956.
Outro é exemplo é uma foto do Cinzano (fig. 3.4.16), em que Flieg utilizou
de fundo uma foto com praia e coqueiros, acrescentando ainda um pouco de areia e
conchas espalhadas próximas às garrafas da bebida, dando a idéia do produto
inserido no cenário, parte dele, diferente da distância estabelecida no still do
cadeado. Aqui, houve o recurso ao estereótipo da paisagem exótica identificada com
os cenários tropicais. É curioso notar como estas paisagens estereotipadas pelo “afã
de possessão, tão tipicamente europeu e caracteristicamente burguês”278
encontrem
eco no hemisfério sul, em países em que praias com coqueiros não são propriamente
cenários raros.
A associação do produto com uma paisagem acontece nos termos em que a
natureza apresentada sofre um processo de reificação, convertendo-se em um bem a
ser possuído como nos cartões-postais, onde o desejo se dá apenas sobre a
representação, o que remonta aos modelos pitorescos de inspiração romântica.
Assim, a colocação das garrafas do vermute em meio a um cenário serve para
reforçar o desejo de possessão (desejar a bebida é desejar uma experiência estética e
sensorial ligada ao exotismo).
O fundo, muitas vezes, tem a função mais compositiva do que propriamente
significativa. Há um bonito still-life que Flieg fez para a reportagem da indústria
química Qeel (fig. 3.4.17). Há um vidro de uma substância no primeiro plano focado
e, de fundo, Flieg usou outros objetos de laboratório e elementos químicos com
278
EGUIZÁBAL, Raúl. Op. cit. p. 218.
245
menor nitidez, o que acaba por estabelecer uma distinção entre o objeto em foco e os
demais, que, assim, convertem-se em cenário. É claro que há uma carga significativa
na composição – a referência ao ambiente do laboratório, alusão à ciência que
valorizada no campo em que a empresa atuava etc. –, mas ela não é tão direta como
nos dois exemplos anteriores. O que se trabalhou aqui foi a imagem institucional da
indústria química e não propriamente a valorização de um produto específico, por
isso, Flieg usou um recurso que dá ênfase à elaboração em termos visuais e mantém
a significação um pouco mais difusa do que habitualmente se utiliza na fotografia
publicitária.
Fig. 3.4.17
Frascos de substâncias da indústria química Qeel. São Paulo, [década de 1950].
A publicidade trabalha com recursos retóricos bastante convencionados e
codificados. O meio para uma comunicação rápida seria o de recorrer a soluções que
o receptor já conhece, o que na arte já havia sido resolvido com os esquemas de
imagens parciais e estruturas simples, como definiu Jacques Aumont279
. Assim, o
principal referencial da fotografia publicitária é a arte, especialmente, a pintura.
Como Berger ressaltara, “a publicidade compreendeu, com efeito, a tradição da
pintura a óleo (...). Ela captou as implicações do relacionamento existente entre a
279
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 2000.
246
obra de arte e seu espectador-proprietário e com eles tenta persuadir e adular o
espectador-comprador”.280
O alto grau de convenção da imagem publicitária criou a idéia de que os
fotógrafos desta área são profissionais de alto nível técnico, mas não exatamente
inventivos. Eles recebem, na maior parte das vezes, a concepção visual já pronta,
nos layouts produzidos pelos editores de arte. Seriam, assim, meros reprodutores de
idéias alheias. Não caberia aqui tentar examinar a natureza e os termos do
relacionamento entre o pessoal de criação das agências e fotógrafos. No entanto, no
que se refere à experiência de Flieg neste campo, tanto por seus depoimentos, quanto
pelas marcas deixadas nas imagens, o esquematismo não representou o afastamento
do fotógrafo dos motivos fotografados. Os objetos, formas, materiais e texturas
sempre exerceram grande fascínio em Flieg. Ele foi um exímio observador dos
produtos materiais do trabalho humano. Isso lhe deu uma sensibilidade ímpar para
compreender a natureza dos materiais. Não havia acasos, todos os efeitos eram
pensados e planejados, o que pode ser verificada no preciosismo de suas fotos. Desta
forma, por mais predefinidas que fossem as encomendas nesta área, a visão pessoal
do fotógrafo está presente, expresso na acuidade de seu modo artesanal de conceber
as imagens.
280
BERGER, John. Op. cit. p. 137.
247
Considerações finais
A história da produção fotográfica está intimamente ligada ao confronto de
culturas. O correspondente, o turista ou o exilado: fotografia é desbravamento. O
fotógrafo Christian Simonpietri, em um depoimento para um programa de televisão,
fala sobre sua experiência ao retratar o massacre de rebeldes bengalis por militares
paquistaneses: “diante de tal atrocidade, a gente se refugia por trás da câmera
fotográfica que, nessas horas difíceis, vira uma espécie de escudo. A gente desliga
da vida, fica escondido e só vê com um olho, o outro fica fechado”.
Estas noções da câmera fotográfica como bússola e escudo fizeram da
fotografia a atividade dos viajantes. Ao mesmo tempo que protege, revela. Voltando
às palavras de Simonpietri (“a gente se refugia por trás da câmera fotográfica” ), o
ato de segurar um aparelho fotográfico é uma tentativa de se refugiar de uma
realidade a qual não conseguimos dominar. O fotógrafo é um refugiado, que retorna
ao exílio em cada clique.
Ao olhar o mundo pelo visor, tem-se a sensação de poder. Susan Sontag disse
que “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada”281
. A imagem resultante é a
expressão da realidade que no momento da tomada só pertenceu ao fotógrafo, a mais
ninguém. “São múltiplas, pois, as realidades da fotografia”282
, tão múltiplas quanto
as experiências dos sujeitos. Um destes sujeitos, Hans Gunter Flieg, cruzou o
Atlântico para sobreviver e contribuiu técnica, estética, histórica e profissionalmente
para a construção da idéia do Brasil moderno através da fotografia.
Ele fotografou São Paulo em modernização, ora acompanhando sua lógica,
ora distanciando-se e questionando alguns aspectos do processo. Celebrou os
arranha-céus e, ao mesmo tempo, lançou olhares penalizados frente à destruição do
espaço público regida unicamente pela força do capital. Encontrou, no meio da
metrópole, reminiscências de um passado que sobrevivia ao turbilhão moderno.
Mostrou uma cidade, em que todas as suas contradições e tempos, davam-lhe
vitalidade.
Em suas viagens pelo Brasil, produziu imagens que traziam a latência de um
olhar eurocêntrico que se relacionava esteticamente com as paisagens tropicais de
acordo com o ideário ocidental formado aos moldes românticos e que permeou
281
SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio de Janeiro: Arbor,1981. p.4. 282
KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. p. 38.
248
grande parte da iconografia dos viajantes que chegaram ao Brasil desde os tempos
coloniais. Mas, por outro lado, ultrapassou este limite, indo em busca de um
entendimento mais visceral do país. Quis ir às origens e o principal meio que
encontrou para isso foi através da história. Leu, viajou e fotografou aspectos da
história brasileira, uma história também vital, em que tempos diversos cruzam-se,
chocam-se e harmonizam-se.
Frente ao outro, aos habitantes dessa terra, Flieg captou estereótipos e
arquétipos criados pela cultura ocidental. Mas, novamente, não se restringiu a isso.
Foi além e se aproximou de seus retratados, fossem eles clientes da burguesia
paulistana, modelos publicitários ou rostos anônimos na multidão. Ao ver o outro,
identificou a riqueza da diversidade e isso foi primordial para sua própria inserção
no contexto brasileiro.
A experiência particular de Hans Gunter Flieg reafirma que não podemos
falar em um olhar eurocêntrico de mão única dentro da história das artes visuais no
Brasil. A bagagem européia vai para o mesmo tubo de ensaio das circunstâncias
históricas, das tradições e das transformações locais, criando uma nova visão de
mundo e reafirmando uma identidade cultural híbrida para o Brasil, fruto de variadas
misturas de culturas.
A maior parte da produção de Flieg estava vinculada ao mercado de bens
simbólicos. O fotógrafo destacou-se no campo da publicidade e da fotografia
industrial, iniciando sua atuação em meados da década de 1940. Nesse período,
começou a se estruturar uma indústria cultural no Brasil, o que acarretou uma
demanda por profissionais e propostas renovadas, em comparação ao que se
praticava no país até então. Os novos caminhos que passaram a ser trilhados pela
fotografia comercial no Brasil, neste momento, têm como modelo central as
propostas estéticas geradas em meio aos movimentos de vanguarda, a partir dos anos
1920, principalmente, na Europa e nos Estados Unidos.
Na fotografia de arquitetura, Flieg incorporou conceitos não apenas da Nova
Visão fotográfica, como também das propostas modernas de arquitetura da primeira
metade do século XX. Fotografou fachadas, interiores, maquetes, projetos e fez
montagens. A aplicação comercial das imagens que produziu exigia uma visualidade
atualizada, mas, ao mesmo tempo, eficaz do ponto de vista da comunicação
promocional. Assim, o fotógrafo trabalhou dentro de um amplo espectro de estilos e
249
concepções, criando imagens que mesclam as idéias socializantes da arquitetura e da
fotografia modernas com os interesses do mercado imobiliário local.
Flieg foi um dos mais destacados fotógrafos de indústria no Brasil.
Novamente, o modelo eram as experiências praticadas neste campo, principalmente,
na Alemanha e nos Estados Unidos, a partir da década de 1920. Suas imagens eram
calcadas num preparo e tratamento técnico impecáveis, no sentido de “embelezar” o
ambiente industrial. O artifício, no entanto, denuncia a idéia que se buscou construir
do processo de industrialização brasileiro, marcado pela “maquiagem” dos aspectos
rudimentares da indústria nascente dos anos 1950 e da exaltação da
monumentalidade das grandes obras da década de 1970.
No campo publicitário, a valorização dos objetos pregada pelos fotógrafos
ligados à Nova Objetividade alemã e das vanguardas norte-americanas foi ao
encontro das necessidades da propaganda em exaltar as qualidades das mercadorias.
Flieg, cuidadoso e observador com relação aos materiais e às composições, produziu
still-lifes de grande qualidade técnica e estética, deixando assim sua marca pessoal
nas, geralmente, esquemáticas fotografias publicitárias.
A atividade da fotografia serviu a Hans Gunter Flieg como meio de
sobrevivência. O conhecimento prévio, uma certa sensibilidade visual e noção de
composição, aliado à questão da “universalidade da linguagem” e a emergência de
um mercado ávido por imagens, fizeram da fotografia uma atividade bastante
conveniente ao imigrante alemão recém-chegado. Esta função primordial da
fotografia como meio de sobrevivência que caracterizou não só a trajetória de Flieg
como de grande parte dos fotógrafos modernos abria muito o campo de atuação.
Então, verifico que Hans Gunter Flieg não foi ator isolado neste cenário, mas
sem dúvida teve um papel que merece ser destacado. Sua preocupação “artesanal”
com o preparo das produções talvez seja caso único na fotografia brasileira, pelo
menos, em tais proporções. Flieg ajudou a marcar uma nova postura no ambiente da
fotografia brasileira: fotografia não era atividade para aventureiros, era preciso ter
conhecimento, formação técnica e cultural.
250
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MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO. Coleção Pirelli de Fotografias, 3. São
Paulo: Masp, 1993.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria de Estado da Cultura. Comissão de Fotografia e
Artes Aplicadas. Arquivo Fotográfico Hans Gunter Flieg. São Paulo, 1980.
(Série Cadernos de Fotografia , 3)
Outras fontes:
DEPOIMENTO de Hans Gunter Flieg a Boris Kossoy, Moracy de Oliveira, Fred
Jordan, Paulo A. Nascimento, Eduardo Castanho – Museu da Imagem e do
Som, São Paulo, 1981.
DEPOIMENTO de Hans Gunter Flieg a Daniela Palma – São Paulo, 2002.
DEPOIMENTO de Hildergard Rosenthal a Boris Kossoy, Hans Gunter Flieg,
Moracy de Oliveira e Eduardo Castanho – Museu da Imagem e do Som, São
Paulo, 1981.
DEPOIMENTO de Curt Schulze a Gery Schulze, Ricardo Lua e Ivan Negro Ísola –
Museu da Imagem e do Som, São Paulo, 1984.
ENTREVISTA de Hans Gunter Flieg a Gaby Beck e Paulina Faiguenboim –
Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo, 1993.
INSTITUTO CULTURAL ITAÚ. Enciclopédia de Artes Visuais. São Paulo: ICI.
Disponível em: <http://www.itaucultural.org.Br/index.cfm?cd_pagina=162>.
Acesso em: 10 jun. 2002.
IRMÃOS de navio: Histórias da Imigração Judaica para o Brasil. Roteiro e direção:
Sergio Oksman. Texto: Roney Cytrynowicz.São Paulo: Videofato, 1994 . 1
fita de vídeo, VHS, son., color.