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Dissertação apresentada ao programa de pós-graduação, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras.Orientanda: Ana Paula CardosoOrientadora: Profa. Maria Augusta Bernardes Fonseca W. Abramo.
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA
FOTOGRAFIAS VERBAIS E DILOGOS ENTRE ARTES:
PAU BRASIL, FEUILLES DE ROUTE E DESENHOS DE TARSILA
Ana Paula Cardoso
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao, do
Departamento de Teoria Literria e Literatuta Comparada
da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de
Mestre em Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Augusta Bernardes Fonseca W. Abramo
So Paulo
2006
CARDOSO, ANA PAULA
2006
2UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA
FOTOGRAFIAS VERBAIS E DILOGOS ENTRE ARTES:
PAU BRASIL, FEUILLES DE ROUTE E DESENHOS DE TARSILA
Ana Paula Cardoso
So Paulo
2006
3Aos meus pais, Ana e Paulo.
Ao Antonio, sempre.
4AGRADECIMENTOS
Agradeo minha orientadora, que pelo dilogo me ajudou a estabelecer os rumos da
pesquisa e assim concluir esta dissertao. Aos professores Gloria Carneiro do Amaral e
Joaquim Alves de Aguiar, pelas leituras da qualificao. s contribuies diretas e indiretas
de Eugnio Bucci, Fernanda Rodante, Alessandra Cardoso e Ftima Cardoso. Aos colegas
de trabalho pela boa vontade durante o perodo de redao final. Agradeo especialmente a
Antonio Rodante, pela pacincia e apoio.
5RESUMO
A dissertao trata de Pau Brasil, de Oswald de Andrade, e Feuilles de Route: I. Le
Formose e II. Sao-Paulo, de Blaise Cendrars, e pretende verificar como a cidade de So
Paulo em sua condio particular no contexto da modernidade brasileira transformada
em matria potica nessas obras. Em contraponto aos elementos do cosmopolitismo da
metrpole, apresenta-se a vida rural no ambiente das fazendas do interior do Estado. Com
base na anlise das obras, procuro avaliar a potica dos autores em suas relaes com a
metrpole, considerando ainda temticas associadas a outras questes da modernidade,
como o progresso x a natureza e o tema da viagem. Na recomposio dos projetos poticos
dos autores nas obras estudadas, os desenhos elaborados por Tarsila do Amaral para ambas
produes poticas sero considerados como um ponto-chave.
ABSTRACT
This dissertation examines Oswald de Andrades Pau Brasil, and Blaise Cendrars Feuilles
de Route: I. Le Formose and II. Sao-Paulo, and intents to verify how So Paulo has been
in its particular condition in the context of Brazilian modernity transformed in poetic
subject in these works. In contrast to the elements of metropolis cosmopolitism, presents
the rural life in inner state farms. Based on work analysis, I attempt to evaluate the authors
poetic in their relationship with the metropolis, considering also a subject matter associated
to other modernity issues, like progress x nature and the travelling theme. In rearrangement
of poetic projects from the authors in the studied works, the drawings created by Tarsila do
Amaral for both poetic produtions are considered key-points.
Palavras-chave
Pau Brasil, Feuilles de Route, poesia modernista, dilogo entre linguagens artsticas, So
Paulo.
Key-words
Pau Brasil, Feuilles de Route, modernist poetry, dialogue among artistic languages, So
Paulo.
6NDICE
PARCERIA POTICA .....................................................................................................p.07
Composio das obras ...........................................................................................p.12
PARTE 1 SO PAULO ANUNCIADA........................................................................p. 20
Oswald retorna a So Paulo ................................................................................. p. 20
Viso da cidade ................................................................................................... p. 30
A estrutura do poema anncio de so paulo .....................................................p. 36
As faces de So Paulo novos anncios Blaise Cendrars.................................p. 45
Enfim, So Paulo ..................................................................................................p. 50
So Paulo, capital do modernismo brasileiro .......................................................p. 55
PARTE 2 ENCONTRO DAS ARTES ..........................................................................p. 65
Visualidade em Le Formose Blaise Cendrars e Tarsila do Amaral.................. p. 73
Visualidade em Pau Brasil Oswald de Anadrade e Tarsila do Amaral............ p. 96
DILOGOS EM CONSTRUO ................................................................................p. 120
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...........................................................................p. 122
7Do mar dez lguas pouco mais ou menos, a duas lguas de
uma povoao de Joo Ramalho a que chamam Piratininga,
(...) ajuntamos todos os que Nosso Senhor quer trazer sua
Igreja (...) e vai se fazendo uma formosa povoao.
Jos de Anchieta
Parceria potica
Depois da agitao no meio cultural provinciano da cidade de So Paulo, provocada
pela Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922, que inaugurou a fase dinmica do
movimento, segundo a denominao de Antonio Candido1, Oswald de Andrade vai a Paris
(1923), onde, acompanhado de Tarsila do Amaral, conhece Blaise Cendrars, entre outros
expoentes da vanguarda europia. A partir de ento, um dilogo esttico intenso, de
interesses mtuos, se estabelece entre eles.
Este trabalho pretende analisar alguns pontos de confluncia e de distanciamento
esttico entre o poeta brasileiro, em busca do brasileiro de nossa poca, para quem
nossas deficincias (recalques histricos, sociais, tnicos, por sermos um povo de origem
cultural europia, mas etnicamente mestio), supostas ou reais, so interpretadas como
superioridades2, e o europeu, despaisado (de origem sua, grande viajante estabelecido em
Paris), que, depois de conhecer o Brasil (esteve trs vezes no pas, em 1924, 1926 e 1927-
28), elegeu-o como a sua segunda ptria espiritual3.
1 CANDIDO, Antonio, e CASTELLO, Jos Aderaldo. Presena da Literatura Brasileira: Modernismo,histria e antologia. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997. 10 edio, p. 18.
2 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945, in Literatura e Sociedade. So Paulo,Publifolha, 2000, p. 110.
3 Cendrars usa a expresso em La voix du sang, de Trop cest trop. O texto dedicado a Paulo Prado. Otrecho traduzido por Teresa Thiriot faz parte de CENDRARS, Blaise Etc..., Etc...(um livro 100% brasileiro),So Paulo, Perspectiva, Secretaria de Cultura, Cincia e Tecnologia, 1976, p. 110. Minha presena lhe faziabem e o diletante se pusera de novo a escrever. Foi Prado quem me iniciou na Histria do Brasil e meinculcou o amor do seu povo e do seu pas, e foi tal a sua influncia que hoje considero Brasil como minhasegunda ptria espiritual.
8De um lado, o escritor preocupado em promover a revoluo cultural de um pas
novo, cuja abolio da escravatura era relativamente recente e a industrializao dava os
primeiros passos, especialmente em So Paulo. De outro, o expoente da vanguarda
europia, avesso ao enquadramento nos ismos to em voga na poca, sem bandeira
vanguardista, em oposio ao que foi Marinetti, no Brasil.
Como objeto de anlise selecionamos a obra Poesia Pau Brasil4, de Oswald de
Andrade, e o projeto Feuilles de Route5, de Blaise Cendrars, contemporneos e exemplares
do dilogo potico entre os dois autores e do problema dele decorrente, alm de trazer
tona suas diferenas pautadas pela dialtica entre o local e o universal que, segundo
Candido, uma lei de evoluo da nossa vida espiritual , presente na obra do primeiro.
Esse processo de evoluo encontra razes na formao da literatura e da cultura brasileiras
e, na anlise de Antonio Candido, tem dois perodos de grande importncia: o Romantismo
e o Modernismo. No mbito da literatura o primeiro soube criar uma literatura de temtica
local, ao elevar o ndio e a natureza brasileiros a temas preferenciais. Segundo o crtico, o
Romantismo teve, entre outros, o grande mrito de abrir caminho para a consolidao do
sistema literrio brasileiro. J o Modernismo representa o movimento de maior
originalidade de nossa literatura, pois apesar do forte componente localista soube
incorporar o elemento externo, transpondo-o em obras de grande criatividade e qualidade.6
Alguns pontos do pensamento de Candido so particularmente importantes para a
construo de um juzo crtico sobre o Modernismo. Por exemplo: entender como a
realidade social se transforma em estrutura literria, ou seja, como o fator externo se torna
4 Para este trabalho foram consultadas a edio fac-similar da primeira edio, de 1925, lanada pela editorafrancesa Au Sans Pareil, in Caixa Modernista, So Paulo, Imesp, 2003, org. Jorge Schwartz; a 2 edio dePau Brasil, pela Editora Globo, So Paulo, 2003 (Obras completas de Oswald de Andrade); Poesias ReunidasO. de Andrade. Rio de Janeiro, Ed. Civilizao Brasileira / Ministrio da Educao e Cultura, 1972; e a Tesede Doutoramento em Literatura Brasileira de Dila Zanotto Manfio, apresentada Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas, Poesias Reunidas de Oswald de Andrade: edio crtica, 1992.
5 Utilizei a primeira edio do primeiro volume do projeto, Le Formose, de 1924, lanada pela Au SansPareil; a edio de Au coeur du monde Posies compltes 1924-1929, Ed. Gallimard, 2002; e a dissertaode mestrado de Reto Melchior Blaise Cendrars: Feuilles de route - um estudo crtico e comentado, 1997. Paraos poemas sobre So Paulo, consultei tambm a verso fac-similar do catlogo da exposio de Tarsila doAmaral em 1926, em Paris, in Caixa Modernista, So Paulo, Imesp, 2003, org. Jorge Schwartz; e Brsil, deshommes sont venus, Dessins de Tarsila do Amaral, Fata Morgana, 2003.
6 Essa idia foi exposta pelo autor em obras como Formao da Literatura Brasileira (1957), Literatura eSociedade (1965) e mais recentemente em Iniciao Literatura Brasileira (1999).
9elemento interno da obra literria7; o trip do sistema literrio (autor, obra, pblico) em
interao dinmica; e a dialtica do universal e do particular.
Na terceira parte de Iniciao literatura brasileira, o autor afirma que aps o
perodo do Romantismo o sistema literrio brasileiro apresenta-se configurado e maduro. O
pas conta com um nmero razovel de escritores, exprimindo-se atravs de veculos que
asseguram a difuso dos escritos e reconhecendo que, a despeito das influncias
estrangeiras normais, j podem ter como ponto de referncia uma tradio local.8 E aponta
como sinal desse amadurecimento a obra de Machado de Assis, devido, entre outras
caractersticas, a sua dimenso universal.9
Este trabalho, voltado para a poesia de Oswald de Andrade em Pau Brasil e de
Blaise Cendrars em Feuilles de Route: I. Le Formose e II. Sao-Paulo, pretende verificar
como a cidade de So Paulo em sua condio particular no contexto da modernidade
brasileira transformada em matria potica nas obras citadas. Em contraponto aos
elementos do cosmopolitismo da metrpole, apresenta-se a vida rural no ambiente das
fazendas do interior do Estado. Apesar da associao ao passado colonial e escravocrata,
eram motores da economia cafeeira, em grande parte responsvel pela modernizao da
cidade em contraposio com outro eixo do crescimento urbano, o da modernidade
industrial. Quais os recursos poticos usados nessa transposio? Com base na anlise das
obras, procuro avaliar a potica de Oswald de Andrade e de Blaise Cendrars em suas
relaes com a metrpole, considerando ainda temticas associadas a outras questes da
modernidade, como o progresso x a natureza e o tema da viagem. Pelo levantamento desses
7 O conceito de passagem do elemento externo para o interno que s o exame da forma capaz de detectar seorigina na obra do socilogo Roger Bastide. O crtico destaca como base de sua concepo de literaturabrasileira um artigo do professor em que esse mtodo bastidiano aplicado obra de Machado de Assis,Machado paisagista (1940). Nele, Roger Bastide mostra que Machado (at ento considerado pouconativista por falar pouco da paisagem brasileira) fundira a paisagem na fatura esttica das obras, internalizaraa natureza. O ensaio foi reeditado na seo Arquivo, da Revista USP, n. 56, dezembro/ fevereiro 2002-2003, p. 192-2002.
8 CANDIDO, Antonio. Iniciao literatura brasileira, So Paulo, Humanitas, 1999, 3 edio, p. 52.
9 Antonio Candido acredita que Machado de Assis tenha sido o primeiro escritor a ter conhecimento real doprocesso literrio brasileiro, e cita em Iniciao literatura brasileira o famoso ensaio Instinto denacionalidade (1873), como exemplo dessa conscincia, no qual o autor faz um balano das tendnciasnacionalistas, sobretudo o indianismo, mostrando que a absoro nos temas locais foi um momento a sersuperado, e que a verdadeira literatura depende, no do registro de aspectos exteriores e modismos sociais,mas da formao de um sentimento ntimo que, embora fazendo do escritor um homem do seu tempo e doseu pas, assegure a sua universalidade, p. 55.
10
elementos e levando em considerao o estatuto que a metrpole tropical, em crescimento e
cheia de contrastes adquire em cada obra, procurarei estabelecer correspondncias e
dissociaes na concepo da modernidade de ambos os poetas. Para isso, reconstituiu-se
em parte o itinerrio de cada um dos viajantes. Nessa recomposio dos projetos poticos
dos autores nas obras estudadas os desenhos elaborados por Tarsila do Amaral para ambas
produes poticas sero considerados como um ponto-chave.
A anlise da relao entre elementos poticos e aspectos visuais das obras
fundamental para a sua interpretao, j que se insere num contexto maior da modernidade,
em que o dilogo entre artes plsticas e literatura foi to profcuo, como explica Mrio Praz
ao analisar a obra de Gertrude Stein: Slidos e profundidade diziam respeito tanto a
Flaubert como a Czanne, mas no, a essa altura, a Gertrude Stein ou Picasso. A mudana
para a geometria plana era um avano em matria de simplicidade e finalidade, rumo ao
elementarismo absoluto. Ele contm alguns motivos de interesse para a pintura e a literatura
do futuro, como por exemplo o emprego das letras do alfabeto, a simples justaposio de
objetos heterogneos, o uso de um objeto reconhecvel em meio a abstraes.10
Outro exemplo seria Apollinaire, com Calligrammes. Quanto aos autores estudados
neste trabalho, basta citar duas obras: Cendrars j havia lanado fazia anos La Prose du
Transsibrien, inteiramente ilustrado por Sonia Delaunay; e Oswald de Andrade, alm de
estar fortemente ligado ao ambiente das artes plsticas desde antes da Semana de Arte
Moderna (e depois dela ter formado com poetas e pintoras o grupo dos cinco Mrio de
Andrade, Anita Malfati, Tarsila do Amaral e Menotti del Picchia), como se pode
depreender do prprio Manifesto da Poesia Pau Brasil, lanaria em 1927 o Primeiro
caderno do aluno de Poesia Oswald de Andrade, com capa de Tarsila e desenhos do
prprio autor.
Mrio de Andrade, em texto para a Primeira Exposio de Arte Moderna Pintura,
Escultura, Arquitetura, da Sociedade Pr Arte Moderna (Spam), que teve lugar em So
Paulo, em abril/maio de 1933, faz um breve levantamento das caractersticas da arte
moderna, especialmente da pintura, como reao ao impressionismo. Segundo ele, a arte
da pintura composta de trs elementos primrios: o espectador, o artista e o quadro. O
espectador o elemento gerador da obra-de-arte. O artista o elemento criador. O quadro
11
a criatura. Cada qual desses elementos tem sua funo particular: do espectador deriva a
compreensibilidade da obra-de-arte, do artista a expresso, do quadro a tcnica.11
Define o artista como primeiro espectador da prpria obra. Como espectador, o
artista percebe, se explica e compreende os fenmenos da natureza e da vida. e ento
exprime a sua compreenso do mundo na obra-de-arte servindo-se da tcnica que a obra
exige, e nos dando um objeto novo, o quadro, que por nossa vez temos de compreender na
sua mltipla manifestao filosfica, sentimental e tcnica.12
A partir da, passa a analisar a relao entre a natureza e a obra. A natureza, a vida
nada tem que ver IMEDIATAMENTE com a arte da pintura, ou qualquer arte. Ela
anterior e transcende ao fenmeno da pintura. Si faz parte do quadro, no faz parte da
pintura. E si faz parte do quadro porqu o artista, o quadro e o espectador, isto ,
expresso, tcnica e compreenso, participam da natureza, so fenmenos vitais. Mas na
pintura a natureza no existe. No existe a sua objetividade. Suas necessidades, suas
precariedades, seus benefcios no existem. Existe sim, e apenas, uma compreenso
particular dela, que tanto pode ser de ordem social, como de ordem individual.13
Para ele, os trs elementos essenciais da pintura artista, obra e espectador , esto
em constante embate, e justamente dessa guerra que advm a transformo da arte de
pintar. A preponderncia do artista (o elemento expressivo) leva arte expressionista e ao
individualismo; a do quadro, ao construtivismo; a do espectador, conduz s obras realistas e
socialistas.
Antonio Candido, no ensaio O Escritor e o Pblico, retoma o estudo dessas
relaes no mbito da literatura ao analisar a ligao entre autor, obra e pblico. Se a obra
mediadora entre o autor e o pblico, este o mediador entre o autor e a obra, na medida
em que o autor s adquire plena conscincia da obra quando ela lhe mostrada atravs da
reao de terceiros. Isto quer dizer que o pblico condio do autor conhecer a si prprio,
pois esta revelao da obra a sua revelao. Sem o pblico, no haveria ponto de
10 PRAZ, Mrio. Literatura e artes visuais. Trad. Jos Paulo Paes. So Paulo, Cultrix, 1982, pp. 218-9.11 Fundada em 1932 por um grupo de artistas, intelectuais e interessados na rea, A Sociedade Pr ArteModerna tinha como objetivos aproximar artistas e pessoas interessadas em arte, e promover exposies,concertos e conferncias.
12 Idem.
13 Idem.
12
referncia para o autor, cujo esforo se perderia caso no lhe correspondesse uma resposta,
que definio dele prprio.14
Com isso em vista, dissertao ser dividida, portanto, em duas partes: a primeira
dedicada propriamente s diferentes representaes poticas de So Paulo em Pau Brasil e
Feuilles de Route; e a segunda presena dos desenhos de Tarsila como elemento de
unidade (e tambm de distanciameto) entre os projetos de Oswald de Andrade e Blaise
Cendrars.
Composio das obras
Depois da estada em 1923 com Tarsila do Amaral, em Paris, cidade classificada por
Paulo Prado, intelectual participante e mecenas do modernismo brasileiro, como o umbigo
do mundo15, em 18 de maro de 1924, Oswald de Andrade, de retorno a So Paulo, lana
o Manifesto da Poesia Pau Brasil no Correio da Manh carioca, no qual fundamenta
uma nova concepo potica, inspirada nas correntes literrias da vanguarda europia
(especialmente da Frana e da Itlia), mas adaptada s condies (sociais, poltico-
econmicas e culturais) especficas do Brasil no incio do sculo 20. No manifesto,
Cendrars citado como colaborador:
Uma sugesto de Blaise Cendrars : Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um
negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos far partir na
direo oposta ao vosso destino.16
No ano seguinte, 1925, publica o livro de poemas Pau Brasil, que pe em prtica as
idias divulgadas no manifesto, marcadas pela recusa a formas poticas consagradas,
14 CANDIDO, Antonio. O Escritor e o Pblico, ob. cit., 2000, p. 69.
15 A expresso usada por Paulo Prado no prefcio de Pau Brasil.
13
cristalizadas pela esttica parnasiana (S no se inventou uma mquina de fazer versos
j havia o poeta parnasiano)17 , ao falar difcil, ao academismo e morbidez romntica.
Em oposio, prope ver com os olhos livres, a no-frmula para a expresso da
contemporaneidade, ou, ainda, recursos literrios que surjam da destruio do passado
recente retrgrado, como a sntese, o equilbrio, a objetividade, a inveno, a viso
inaugural, a ironia, o humor. Em suma: uma revoluo no modo de ver e de representar a
realidade brasileira. Nesse projeto, fazia todo o sentido buscar razes culturais do povo
brasileiro nos textos de cronistas coloniais, como representantes da primeira viso da
populao autctone, da viso de descoberta, e mistur-la ao caldeiro formado na So
Paulo dos anos 20, com as mltiplas influncias culturais e lingsticas da imigrao e do
negro.
Haroldo de Campos, em seu estudo Uma potica da radicalidade18 aponta como
caracterstica da poesia de Oswald de Andrade o seu radicalismo, a ruptura que produziu na
concepo do fazer potico, desprezando as regras formuladas no passado. Um dos meios
para isso foi a adeso ao verso livre que permitiu ao autor exercer seu gnio potico ele
prprio chegou a confessar ser incapaz de contar slabas.
Pau Brasil tem nove grupos de poemas, ou partes: Histria do Brasil, Poemas da
colonizao, So Martinho, RP1, Carnaval, Secretrio dos amantes, Postes da
Light, Roteiro das Minas e Loyde Brasileiro. O volume iniciado por dois poemas
soltos, escapulrio, de apenas cinco linhas, e falao, que contrasta com o primeiro e de
modo geral com as demais composies pela extenso, pela disposio na pgina e pelo
sinais de pontuao, inexistentes no restante da obra. So 60 pontos finais encerrando frases
poticas, numa verso reduzida do prprio manifesto. So Paulo est presente em vrias
partes da obra de Oswald de Andrade. J na primeira parte, Histria do Brasil h o poema
prosperidade de so paulo, que exalta o crescimento da ento vila pelo afluxo de
populaes indgenas. No poema seguinte, carta, no h meno cidade ou regio em
que se encontra, mas trata da comunicao de uma expedio de Ferno Dias Paes, em
16 ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil, Rio de Janeiro, Correio da Manh, 18 de marode 1924.17 ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil, in Correio da Manh, 18 de maro de 1924.
18 CAMPOS, Haroldo. Uma potica da radicalidade, in ANDRADE, Oswald. Pau Brasil, Obras Completas,So Paulo, Globo, 2003, 2 ed., p 7.
14
busca de esmeraldas, que partiu do planalto de Piratininga. So Paulo , portanto, o ponto
de partida para a viagem-aventura do Bandeirante. Logo no incio de Poemas da
colonizao, o poema a transao faz aluso s terras paulistas, onde floresceria a
lavoura do caf nos dois ltimos versos.
O fazendeiro criara filhos
Escravos escravas
Nos terreiros de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginrias
Onde nasceria a lavoura verde do caf
A imagem da plantao de caf associada a uma previso de futuro, a terras cujo
potencial naquele momento histrico ainda fazia parte do imaginrio, mas que
posteriormente forneceriam as divisas necessrias para o enriquecimento do Estado de So
Paulo, por meio da exportao do caf. O grupo seguinte, de 15 de poemas, dedicado
vida na rea rural do interior do Estado de So Paulo. O ttulo So Martinho originado
do nome de uma das fazendas de Paulo Prado, uma das propriedades visitadas por Cendrars
durante sua primeira viagem ao Brasil, na companhia de Oswald de Andrade.19 A viagem
pelo trem noturno de So Paulo para o Rio de Janeiro para mostrar ao visitante
estrangeiro a festa popular do carnaval est representada em RP1. A caravana a Minas,
que tambm parte de So Paulo, com o intuito de levar o poeta franco-suo para conhecer
a comemorao da Semana Santa nas cidades histricas daquele Estado, retratada em
Roteiro das Minas. A cidade tambm destino de viagem, na ltima parte da obra,
Loyde Brasileiro. Oswald de Andrade dedica a parte Postes da Light de seu
cancioneiro, de 20 poemas, cidade e seus aspectos da vida urbana moderna. Em texto
19 Alexandre Eulalio descreve uma srie de cenas registradas em fotografias das visitas de Cendrars afazendas de seus amigos paulistas, como a Santo Antnio, em Araras, SP, pertencente a dona Olvia Guedes
15
de balano do modernismo brasileiro publicado na revista Anhembi, em 1954, o agitador do
movimento comenta a importncia da cidade para o surgimento do fenmeno modernista de
22:
Se procurarmos a explicao do porqu o fenmeno modernista se processou em
So Paulo e no em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma conseqncia
da nossa mentalidade industrial. So Paulo era de h muito batido por todos os ventos da
cultura. No s a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indstria, com sua
ansiedade do novo, sua estimulao do progresso, fazia com que a competio invadisse
todos os campos de atividade. (...) Assim, um conjunto feliz de circunstncias, entre as
quais a presena entre ns de dois bons padrinhos, Graa Aranha e Paulo Prado, fez eclodir
a Semana no ano em que se comemorava o primeiro centenrio da independncia
nacional.20
No ensaio, Oswald viajante (1954), escrito aps a morte do autor, Antonio
Candido salienta a importncia do tema da viagem para Oswald de Andrade. Para a sua
personalidade, sabemos que foi decisiva a experincia da Europa, antes e depois da guerra
de 1914. Na sua obra, talvez as partes mais vivas e resistentes sejam as que se ordenam
conforme a fascinao do movimento e a experincia dos lugares.21
A viagem era um meio de conhecer o Brasil, presente na distncia, ou ainda
translao mgica de um ponto a outro, cada partida suscitando a revelao de chegadas
que so descobertas.22 O crtico transpe a importncia do movimento na constituio do
estilo de viajante da escritura de Oswald de Andrade, impaciente em face das empresas
demoradas; criador quando conforma o tema s iluminaes breves do que ele prprio
chamou o seu estilo telegrfico.23
Penteado, e So Martinho e Santa Veridiana, de Paulo Prado. In A aventura brasileira de Blaise Cendrars,So Paulo, Imprensa Oficial, Edusp, 2001, 2 edio revista e ampliada por Carlos Augusto Calil.20 ANDRADE, Oswald. O modernismo, in Esttica e Poltica, So Paulo Editora Globo, 1991, p. 127.Originalmente o artigo foi publicado na revista Anhembi, So Paulo, n 49, 1954.
21 CANDIDO, Antonio. Vrios Escritos. So Paulo, Duas Cidades, 3 edio revista e ampliada, 1995, p. 61.
22 Idem, p. 63.
23 Idem, ibidem.
16
Blaise Cendrars, poeta franco-suo, sediado em Paris, era admirado por Oswald de
Andrade e por outros modernistas brasileiros, que conheciam seus poemas longos em verso
livre, como Les Pques New York e La Prose du Transsibrien et de la petite Jehanne
de France, e sua atividade na efervescncia cultural de Paris. O encontro de Oswald de
Andrade e Cendrars relatado por Mrio de Andrade em carta a Manuel Bandeira de 22 de
maio de 1923: Sabes do Oswaldo? Est em Paris amigo de Cendrars, Romains, Picasso,
Cocteau etc. Fez uma conferncia na Sorbonne em que falou de ns!!! No
engraadssimo?24
No incio de 1924, Cendrars parte para o Brasil a bordo do Formose, primeira
viagem longa desde 1912, viagem que seria decisiva para a sua carreira literria. Os
amigos brasileiros o precedem, e o poeta calejado parte ao encontro deles. A bordo do
Formose o viajante compe esse dirio de viagem que, atravs da nova objetividade de
certo lirismo despido, realiza verdadeira revoluo no verso cendrarsiano. Uma experincia
literria nova, que exercer grande influncia sobre os companheiros mais jovens, aos quais
ele alis dedica esses poemas escritos em trnsito.25
De sua parte, Blaise Cendrars comea a escrever Feuilles de Route a bordo do navio
Le Formose, rumo ao Brasil, em 1924, em viagem a convite de Paulo Prado.26
Le Formose torna-se ttulo do primeiro livro de um projeto que abarcaria cinco
volumes (conforme o autor relatou em carta a seu editor), definidos inicialmente como:
I Le Formose; II So-Paulo; III Rio-de-Janeiro; IV A la Fazenda; V Des
Hommes sont venus.27
O projeto inicial no chegou a se concretizar. Feuilles de Route composto de 3
partes (I. Le Formose, II. So Paulo e III).28
24 MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondncia Mrio de Andrade e Manuel Bandeira, So Paulo,Edusp/IEB, 2000. p. 92.
25 CENDRARS, Blaise. ob. cit., 1976, p. 91.
26 EULALIO, Alexandre, ob. cit., p. 28.
27 EULALIO, Alexandre, ob. cit., p. 277.
28 Alexandre Eulalio cita ainda mais uma variante do projeto, comportando sete brochuras: I. Le Formose, II.So Paulo, III. Le Carnaval Rio Les vieilles glises de Monas, IV. la fazenda, V. Des hommes sontvenus, VI. Sud-amricaines, VII. Le Gelria, ob. cit., p. 296.
17
A primeira, relatando as impresses de viagem ao novo continente e a chegada a
So Paulo, foi publicada em 1924, em Paris, pelas edies Au Sans Pareil, com ilustraes
de Tarsila. A mesma editora lana em 1925 o livro de Oswald de Andrade, tambm
ilustrado pela pintora paulista.
A parte do projeto potico de Cendrars exclusivamente dedicada cidade de So
Paulo inicialmente publicada no catlogo da exposio de Tarsila do Amaral em Paris em
1926.29
Trata-se de um pequeno conjunto de poemas. O ltimo e o mais longo deles recebeu
o ttulo Saint-Paul e apresenta a paixo do poeta pela cidade, numa declarao em
primeira pessoa, seu canto de amor pela capital paulista, como se pode notar pelo incio do
poema:
SAINT-PAUL
J' adore cette ville
Saint-Paul est selon mon coeur
Ici nulle tradition
Aucun prjug
Ni ancien ni moderne30
(...)
Na obra Brsil, des hommes sont venus31, de 1952, os poemas esto reunidos sob o
ttulo Pome la Gloire de Saint Paul, como se fossem um s. A disposio segue outra
ordem e h um acrscimo em relao verso de 1926: o poema Les bruits de la ville.
Tous les bruits
29 Para a anlise, uso como texto de base a verso fac-similar do catlogo da exposio de Tarsila do Amaralem 1926, em Paris, in SCHWARTZ, Jorge (org.), ob. cit.
30 Adoro esta cidade/ So Paulo do meu corao/ Aqui nenhuma tradio/ Nenhum preconceito/ Antigo oumoderno. Trad. de Teresa Thiriot, in CENDRARS, Blaise, ob. cit., 1976, p. 64.
31 CENDRARS, Blaise. Brsil, des hommes sont venus, Dessins de Tarsila do Amaral, Fata Morgana, 2003.(Contm: Pome la gloire de Saint-Paul; Des hommes sont venus: I. Le Paradis, II. Caramur, III. Post-scriptum, IV. Notes; Lgendes; Promenade matinale.)
18
Le renclement de bennes qui se vident
Le rire des jeunes filles
La cadence multiplie des charpentiers de fer sur leurs chafaudages
(...)32
O poema Les klaxons lectriques, que no catlogo o terceiro, no livro vem em
seguida ao texto acrescido. Alm disso, a ltima palavra do poema foi trocada. Em vez do
adjetivo ouverts incluso na verso de 1926, trocado por libre, no singular. O ltimo
trecho, que corresponde ao poema Saint-Paul encerrado pelo substantivo Azulejos,
como um verso acrescido verso de 1926, em portugus e grifado.
Cabe ressaltar o curto espao de tempo entre a publicao do Manifesto da Poesia
Pau Brasil (18 de maro de 1924), de Oswald de Andrade, do prefcio de Paulo Prado a
Pau Brasil (maio de 1924), de Feuilles de Route: I. Le Formose (1924) os outros dois
volumes saram em 1926 e 1927 e de Pau Brasil (1925). Em segundo lugar, durante a
primeira viagem de Cendrars ao Brasil houve uma intensa convivncia entre os poetas.
Assim, possvel levar em conta a hiptese de que ambos conhecessem, pelo menos em
parte, a produo potica de cada um no momento.
Haroldo de Campos, em Uma potica da radicalidade, discute a possibilidade de
Cendrars ter lido parte dos poemas de Pau Brasil.33 Manuel Bandeira, em carta a Mrio de
Andrade de 19 de setembro de 1925, vincula a tcnica de Oswald de Andrade e de outros
poetas brasileiros de ento poesia produzida na Europa naquele perodo, mais
especificamente a recursos empregados por Blaise Cendrars em Kodak (livro de poemas
anterior a Feuilles de Route 1- Le Formose): A tcnica de Formose estava comeada em
Kodak. (...) Nem Oswald nem Srgio to pouco faziam nada assim. A tcnica de ambos foi
tirada de Cendrars: inegvel e para isso estou pronto a bancar o crtico documentado
com datas (...) Sem dvida isso no tem importncia, pois a tcnica admirvel, tem carter
clssico e serviu maravilhosamente s necessidades de expresso do Oswald.34
32 Todos os barulhos/ Os resmungos dos basculantes que se esvaziam/ O riso das jovens / A cadnciamltipla dos ferreiros em seus andaimes (...)/ [Trad. livre da A.]33 CAMPOS, Haroldo. Uma potica da radicalidade, in ob. cit., 2003, p. 44.
34 MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondncia Mrio de Andrade e Manuel Bandeira, So Paulo,Edusp/IEB, 2000, p. 241.
19
Nesse contexto, significativo o fato de o nome de Oswald de Andrade figurar na
dedicatria de Feuilles de Route (o livro dedicado aos amigos brasileiros, listados
nominalmente) e o de a primeira edio de Pau Brasil ser dedicada ao poeta suo (A
Blaise Cendrars por ocasio da descoberta do Brasil). Nas edies seguintes, o nome de
Cendrars omitido (escreve, simplesmente, Por ocasio da descoberta do Brasil).35
Outros pontos em comum entre as obras so a utilizao de textos histricos como
matria potica, o emprego de procedimentos poticos similares (como a colagem, o poema
curto, substantivo, a ironia, o simultanesmo de imagens e o humor muito mais acentuado
em pau Brasil), a adoo de certo primitivismo apesar de terem concepes diferentes. Para
Cendrars o tema muito ligado ao exotismo da descoberta de culturas primitivas. Para
Oswald de Andrade era um recurso para interpretar a ambigidade cultural brasileira. Na
nossa cultura h uma ambigidade fundamental: a de sermos um povo latino, de herana
cultural europia, mas etnicamente mestio, situado no trpico, influenciado por culturas
primitivas, amerndias e africanas.36 Antes desse perodo, essa condio era, de modo
geral, incorporada literatura sob a forma da idealizao (como o caso do ndio de
costumes europeus). Com o modernismo a situao muda. O primitivismo agora fonte de
beleza e no mais empecilho elaborao da cultura. Isso na literatura, na pintura, na
msica, nas cincias do homem.37
35 Sobre as edies consuladas ver nota 4 deste trabalho. Para a reproduo dos poemas para anlise useicomo a a 2 edio de Pau Brasil, pela Editora Globo, So Paulo, 2003.
36 CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945, in ob. cit., 2000, p. 110.
37 Idem, ibidem.
20
Parte 1- So Paulo anunciada
Oswald retorna a So Paulo
Em Pau Brasil, Oswald de Andrade reserva a ltima parte, chamada Loyde
Brasileiro38 , ao seu caderno de viagem sobre a travessia LisboaSantos, uma srie de 12
poemas dos quais dez tm como temtica direta o Brasil sob a forma de um roteiro
histrico-literrio e geogrfico rumo modernidade e dois poemas sobre So Paulo (canto
de regresso ptria e anncio de so paulo). A aluso Companhia de Navegao Lloyd
Brasileiro, com direito a sotaque abrasileirado da grafia Loyde em vez de Lloyd, ressalta a
disposio de situar o pas no mapa da modernidade econmica. O navio que transporta o
poeta em seu retorno terra natal no de classe turstica, nem o meio eleito pelas
famlias abastadas para fazer a travessia Europa-Brasil. Trata-se de um navio mercante,
transportando bens de consumo e um oceano de oportunidades de negcios entre os portos
de continentes diferentes. A nau do sculo 20, alheia ao apelo das belezas naturais e ao
exotismo, desenvolvimentista, trazendo crescimento econmico. Mas no se pode
esquecer do aspecto mercantilista envolvido, em que o interesse comercial e a busca de
vantagens financeiras se impem para uma elite em detrimento do restante da populao,
que continua separada daquela por um abismo que pode ser demonstrado disposio
geogrfica dos grupos sociais pela cidade de So Paulo no incio do sculo 20. De um lado,
o luxo das manses da Avenida Paulista e do bairro de Higienpolis; de outro, a populao
pobre, ocupando reas perifricas, sem assistncia do poder pblico.
Dadas a condio vulnervel das vrzeas e as anfractuosidades dos rios que
cingiam os arredores da cidade, bem como o sistema de represas e barragens da Light,
mantido sempre deliberadamente no seu nvel mximo, qualquer precipitao mais intensa
na estao chuvosa redundava em cheias que submergiam o casario humilde das plancies.
38 O ttulo refere-se Companhia de Navegao Lloyd Brasileiro, criada em 1892 e extinta 100 anos depois.Surgiu da fuso de diversas armadoras nacionais, para atender s necessidades do comrcio interno e externo,alm de competir com as concorrentes estrangeiras. O Lloyd Brasileiro foi a maior companhia de navios decarga geral da Amrica do Sul, com 63 embarcaes.
21
Sua concentrao nessa rea se dava justamente pelos preos mais baixos dos terrenos e
aluguis nas reas alagadias. Logo no incio de janeiro de 1919, os temporais vieram com
uma violncia implacvel. As enchentes foram torrenciais. Ao redor da rea de confluncia
dos rios Tamanduate e Tiet, densamente povoada, as conseqncias do dilvio foram
calamitosas.39
Em Loyde Brasileiro, a voz do poeta tem posio de destaque, ao registrar
impresses da travessia como num dirio de viagem potico. No entanto, o lirismo
comumente associado expresso em primeira pessoa ganha vis irnico como modo de
expresso da viso crtica de Oswald de Andrade. O autor se apropria da linguagem da
tradio literria e a associa a elementos atuais da realidade nacional, num processo de
dessacralizao da poesia, atravs do despojamento da aura de objeto nico que
circundava a concepo potica tradicional. Essa aura, que nimbava a apario radiante da
poesia como um produto para a contemplao, foi posta em xeque, mostra-nos Walter
Benjamin, com o desenvolvimento dos meios de reproduo prprios da civilizao
industrial (tcnicas de impresso, fotografia e sobretudo o cinema)40
Essas caractersticas so patentes desde o poema de abertura, canto do regresso
ptria, uma pardia do texto de Gonalves Dias, Cano do Exlio (1843), expresso
mxima do nacionalismo romntico brasileiro sob a forma de poesia, tanto que teve versos
incorporados ao Hino Nacional (Nossos bosques tm mais vida/ Nossa vida mais amores.).
Trata-se de um dos smbolos nacionais, assim como a bandeira brasileira empregada como
ilustrao de capa do volume.
Como ensina Antonio Candido, o nacionalismo e o Romantismo so correntes
independentes, mas foram aliados decisivos no processo de valorizao da individuao
nacional como expresso literria:
39 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos20. So Paulo, Companhia das Letras, 2003, 3 reimpresso, p. 29.
40 CAMPOS, Haroldo. Uma potica da radicalidade, in op., cit., 2003, p. 25. O texto em que WalterBenjamin trata da questo LOeuvre dart au temps de ses techniques de reproduction, in Oeuvres choises.Trad. Francesa: Paris, Julliard, 1959.
22
O Romantismo brasileiro foi (...) tributrio do nacionalismo; embora nem todas as
suas manifestaes concretas se enquadrassem nele, ele foi o esprito diretor que animava a
atividade geral da literatura. Nem de espantar que assim fosse, pois sem falar da busca das
tradies nacionais e o culto da histria, o que se chamou em toda a Europa despertar das
nacionalidades, em seguida ao empuxe napolenico, encontrou expresso no Romantismo.
Sobretudo nos pases novos e nos que adquiriram ou tentaram adquirir independncia, o
nacionalismo foi manifestao de vida, exaltao afetiva, tomada de conscincia, afirmao
do prprio contra o imposto. Da a soberania do tema local e sua decisiva importncia em
tais pases, entre os quais nos enquadramos.41
Ainda segundo Antonio Candido, no panorama da primeira fase romntica, destaca-
se Gonalves Dias, que, alm do intuito nacional, tem como trao peculiar a difcil
coexistncia da medida com o vigor, num tempo em que os temperamentos literrios mais
poderosos se realizavam pelo transbordamento, e cita a Cano do Exlio como
representante do seu ideal literrio; beleza na simplicidade, fuga ao adjetivo, procura da
expresso de tal maneira justa que outra seria difcil.42 Outro aspecto relevante da escolha
desse poema para a pardia da abertura de Loyde Brasileiro justamente o fato de ser
muito conhecido no segundo decnio do sculo 20, pois teve antes, j havia servido
como matria potica a outros poetas, como Casimiro de Abreu, em Cano do Exlio I,
de 1855 (Onde canta nos retiros / Seus suspiros, / suspiros do sabi!), e Meu lar, de
1857 (Eu quero ouvir na laranjeira, tarde, Cantar o sabi!).
Reproduzo o poema de Gonalves Dias:
Cano do Exlio
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabi;
As aves, que aqui gorjeiam,
No gorjeiam como l.
41 CANDIDO, Antonio. Formao da literatura brasileira, Belo Horizonte Rio de Janeiro, Itatiaia, 1997, 8ed., vol. 2, p.15.
42 Idem, ob. cit., p. 71.
23
Nosso cu tem mais estrelas,
Nossas vrzeas tm mais flores,
Nossos bosques tm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, noite,
Mais prazer encontro eu l;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabi.
Minha terra tem primores,
Que tais no encontro eu c;
Em cismar sozinho, noite
Mais prazer encontro eu l;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabi.
No permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para l;
Sem que desfrute os primores
Que no encontro por c;
Sem quinda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabi.43
Adlia Bezerra de Meneses, em seu estudo comparativo de Canes de Exlio da
literatura brasileira, compreendendo desde composies poticas romnticas, passando por
poemas de Oswald de Andrade e Murilo Mendes, at chegar a exemplos mais recentes,
como a cano Sabi, de Chico Buarque e Antnio Carlos Jobim, salienta a condio
paradigmtica que o poema de Gonalves Dias assumiu para as geraes posteriores,
tornando-se um clich literrio.
43 DIAS, Antnio Gonalves. Cano do Exlio. In Poesias americanas, v. 1-4; 19-24.
24
(...) o clich funciona como uma espcie de citao, uma referncia a certa
manifestao da cultura. Isso porque ele no autnomo, mas traz consigo,
inevitavelmente, o seu contexto. No entanto, o deslocamento empresta-lhe um sentido
completamente diferente. Trata-se aqui da articulao de dois contextos: o do poema de G.
Dias (Romantismo) e o do poema de Oswald de Andrade (Modernismo; Movimento Pau
Brasil), em que se instaura uma dialtica destruio/construo, inerente a toda pardia.44
Segue o poema de Oswald de Andrade:
canto do regrasso ptria
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
No cantam como os de l
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de l
No permita Deus que eu morra
Sem que volte para l
No permita deus que eu morra
sem que volte pra So Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de So Paulo
44 MENESES, Adlia Bezerra de. As Canes de Exlio, in BOSI, Viviana et alii (orgs.). O poema: leitorese leituras, So Paulo, Ateli Editorial, 2001, p. 119.
25
A autora cita os processos de ruptura de linguagem e de re-orientao temtica
como elementos da pardia realizada por Oswald de Andrade. Mas alguns elementos do
poema romntico so mantidos, acentuando o dilogo entre passado e presente, como o
metro heptasslabo que garante a referncia ao ritmo do poema original e a recuperao
de versos com pequenas modificaes. Em No permita Deus que eu morra / Sem que
volte para l, Oswald suprime o pronome pessoal de primeira pessoa no segundo verso,
existente no poema de Gonalves Dias.
Na ltima quadra de canto de regresso ptria, Oswald de Andrade apresenta
uma declarao de amor cidade de So Paulo. No se trata mais da comunho com a
natureza, do saudosismo nem do nacionalismo presentes na esttica romntica. O que se v
a efervescncia da metrpole moderna em constante mutao. Na estrofe os versos
incorporados da Cano do Exlio reaparecem com mais uma modificao: a preposio
para substituda pela variante coloquial pra.
No permita Deus que eu morra
Sem que volte pra So Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de So Paulo
A saudade do poeta se volta a elementos urbanos, numa idia de predomnio do
mundo da cultura45 sobre o da natureza, como o caso da referncia Rua 15, local das
casas bancrias, e ao progresso da cidade em crescimento. O poema, metrificado,
emblemtico da relao do poeta com a cidade e de sua transformao em matria potica.
Fica tambm o registro de que o poema tem tom de crtica, mas no deixa de ser um tipo de
homenagem a Gonalves Dias, pois faz uma releitura da idia de que minha terra
diferente presente no texto romntico, atualizando-a. Esse processo de atualizao pode
ser percebido em vrios aspectos de canto de regresso ptria. Primeiramente, o poema
mais enxuto que Cano do exlio: Oswald de Andrade emprega quatro estrofes,
enquanto a composio de Gonalves Dias tem cinco. Alm disso, o poeta modernista
45 Idem, ob. cit., p. 120
26
repete versos quase inteiramente, como se d em vrio poeta modernista constri um
poema seja nas imagens, seja na sonoridade simplificada pelas repeties (, seja no
emprego de um vocabulrio mais coloquial Carrega uma estrofe em que a cidade de So
Paulo apresentada como smbolo da modernidade, ao sul do equador, por intermdio da
Rua 15, o movimentado centro dos negcios e das finanas da metrpole no incio do
sculo 20. Da perspectiva eufrica da modernidade, ento, o poeta vislumbra a cidade
industrial como parque de transformao, propcio ao arejamento de idias, s mudanas
de valores, assim tirando o pas do atraso. Animado por essas perspectivas, So Paulo ser a
cidade-tema, louvada em canto do regresso ptria.46
Os poemas seguintes de Loyde Brasileiro tratam da partida do eu do poema, que
deixa o Velho Mundo que por ter se dado de Lisboa, aproxima esta seo da primeira de
Pau Brasil, Histria do Brasil, iniciada por um excerto da carta de Caminha ao rei de
Portugal, num movimento geograficamente circular47 , da travessia ocenica, de pontos de
parada na costa brasileira, de aspectos geogrficos, de dados histricos e de novas
paisagens urbanas. A proximidade do espao fsico da terra natal se d com a viso do
arquiplago de Fernando de Noronha (em decorrncia da sua posio geogrfica, uma das
primeiras terras localizadas no Novo Mundo. Sua descoberta, em 1503, atribuda ao
navegador Amrico Vespcio). Os portos seguintes so as capitais Recife, Salvador e Rio
de Janeiro, cidades-chave para a histria poltica e econmica brasileira, durante os
perodos da Colnia, do Imprio e da Repblica ainda recente.
Alm da reverberao do tom irnico-sentimental do incio da seo, percorrem
esses poemas marcas do convvio no mesmo espao fsico da tradio histrico-literria e
do progresso citado no canto do regresso ptria. O autor emprega construes
sintticas e termos que oscilam entre passado e presente, encurtando distncias e
expressando a posio singular do Brasil no contexto da modernidade questo
fundamental no projeto esttico de Oswald de Andrade.
Como exemplo dessa relao, cito uma estrofe longa de recife:
46 FONSECA, Maria Augusta. Ta: e no Cancioneiro Pau Brasil, in Literatura e Sociedade, SoPaulo, Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada, Faculdade de Filosofia, Letras e CinciasHumanas, Universidade de So Paulo, n 7, 2003-2004, p. 136.
27
[...]Ruas imperiais
Palmeiras imperiais
Pontes imperiais
As tuas moradias
Vestidas de azul e de amarelo
No contradizem
Os prazeres civilizados
Da Rua Nova
Nos teus paraleleppedos
Os melhores do mundo
Os automveis
Do Novo Mundo
Cortam as pontes ancestrais
Do Capiberibe
[...]
Os trs primeiros versos, compostos cada um de duas palavras, seguem o esquema
substantivo + adjetivo e trazem como epfora o qualificativo imperiais. Mais adiante, a
partir do sexto verso, apresentado um contraponto moderno a esse excesso de Imprio:
No contradizem / Os prazeres civilizados / Da Rua Nova. A idia do convvio entre
velho e novo reiterada nos versos seguintes, que apresentam a expresso mxima da
velocidade associada poca, o automvel do Novo Mundo, percorrendo pontes ancestrais.
Alm da releitura de Gonalves Dias h outras de autores romnticos. Castro Alves
e Jos de Alencar so lembrados em poemas como versos baianos e o cruzeiro. Do
autor de O navio negreiro os versos Auriverde pendo de minha terra / Que a brisa do
Brasil beija e balana ecoam no poema versos baianos, em verso sinttica: A bandeira
nacional agita-se sobre o Brasil. Jos de Alencar lembrado no mesmo poema por
intermdio de um personagem do romance O Guarani, Robrio Dias, e no verso Romance
de Alencar /Encadernado de ouro.
47 J do ponto de vista temporal, a imagem mais prxima do movimento ascendente empreendido pelo poeta a da espiral, que associa melhor os conceitos de durao infinita, de sucesso e de simultaneidade exploradospelo poeta em Pau Brasil.
28
A seo inicia com a expresso na primeira pessoa, mas num tom antipotico. Ao
fazer uso da descrio de lugares (Situada num planalto / 2.700 ps acima do mar
anncio de so paulo) e da narrao de eventos (Os alfandegueiros de Santos /
Examinaram minhas malas contrabando) aproxima-se da pica, segundo a definio
de Anatol Rosenfeld. O gnero pico mais objetivo que o lrico. O mundo objetivo
(naturalmente imaginrio), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em
certas situaes), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este
geralmente no exprime os prprios estados de alma, mas narra os de outros seres.
Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos e est sempre presente
atravs do ato de narrar. Mesmo quando os prprios personagens comeam a dialogar em
voz direta ainda o narrador que lhes d a palavra (...)48
Nessa operao de passagem do subjetivismo ao objetivismo acentua-se o
distanciamento do objeto e a tomada de posio crtica do poeta-narrador. A introduo de
pronomes de segunda pessoa (tu, ti, teu, tua) acentuam o dilogo com a tradio histrico-
literria brasileira.
A opo pelo lxico de cunho erudito em vrios versos (como em Genuflexrio
dos primeiros potentados, de versos baianos), e a grande extenso de alguns desses
poemas (recife e versos baianos) no so comuns no conjunto de Pau Brasil. No
Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald de Andrade proclama uma poesia contrria ao
gabinetismo, ao lado doutor, e a favor das palavras do dia-a-dia, da incorporao dos
desvios da sintaxe e da morfologia da lngua portuguesa: A lngua sem arcasmos, sem
erudio. Natural e neolgica. A contribuio milionria de todos os erros. Como falamos.
Como somos. O autor tambm elege a expressividade do poema curto e da linguagem
telegrfica e do prosaico, como em assombrao: 6 horas / O Domingos Papudo / E a
besta preta / Nadando no vento; de instantneos da vida brasileira o caso de pobre
alimria, entre outras marcas poticas da modernidade.
Paulo Prado, no prefcio ao cancioneiro de Oswald de Andrade, datado de maio de
1924, procura caracterizar a poesia Pau Brasil e destaca como qualidade intrnseca a
capacidade de exprimir a poca em que foi produzida, que a eloqncia balofa e
48 ROSENFELD, Anatol. O teatro pico. So Paulo, Perspectiva, 2004, 4 ed. 2004, p. 24.
29
roagante da tradio potica nacional no representava. Nesta poca apressada de
rpidas realizaes a tendncia para a expresso rude e nua da sensao e do sentimento,
numa sinceridade total e sinttica. Le pote japonais / Essuie son couteau: / Cette fois
lloquence est morte, diz o haikai japons, na sua conciso lapidar. Grande dia esse para as
letras brasileiras. Obter em comprimidos, minutos de poesia.49
Nesse sentido, podemos perceber nos poemas dessa seo a expresso da
conscincia de Oswald de Andrade em relao posio singular do Brasil no contexto da
vitria da civilizao tecnolgica e da metrpole industrial, propagada por movimentos da
vanguarda europia, como o dadasmo e o futurismo. No Manifesto Dad 1918, Tristan
Tzara afirma: Eu gosto de uma obra antiga pela sua novidade. Ela no tem seno o
contraste que nos liga ao passado50 . E mais adiante: Que cada homem grite: h uma
grande trabalho destrutivo, negativo, a executar. Varrer, limpar.51 O futurismo de
Marinetti apregoa j no Manifesto do Futurismo, de 1909, lanado no jornal francs Le
Figaro: Ns estamos sobre o promontrio extremo dos sculos!... Para que olhar para trs,
no momento em que preciso arrombar as misteriosas portas do Impossvel?52 Rechaa
criaes humanas que preservem o passado, como bibliotecas e museus. Admirar um
velho quadro verter nossa sensibilidade numa urna funerria, em vez de lan-la adiante
pelos jatos violentos de criao e ao. Voc quer portanto estragar suas melhores foras
numa admirao intil do passado (...)?53
Oswald de Andrade assume em parte essa funo crtica dessacralizante da
vanguarda, sem esquecer que seu pas vivia um contexto de indstria incipiente, que a
economia brasileira estava ancorada na agricultura, que as elites da cidade eram formadas,
sobretudo, pela oligarquia latifundiria de base conservadora e patriarcal dessa economia
49 PRADO, Paulo. Poesia Pau Brasil, in ANDRADE, Oswald. Pau Brasil, So Paulo, Globo, 2003, 2 ed.,p. 92.
50 TELES, Gilberto Mendona. Vanguarda europia e modernismo brasileiro. Petrpolis, Editora Vozes,2000, 16 ed., p. 140.
51 Idem, ob. cit. p. 145.
52 Idem, ob. cit., p. 92
53 Idem, ob. cit., p. 93.
30
rural. Por outro lado, o intenso fluxo migratrio desde a virada do sculo segundo explica
Mrio da Silva Brito, a lei do povoamento do solo, de 1907, trouxe ao Brasil quase 1
milho de imigrantes em apenas oito anos.54 Essa massa de pessoas de nacionalidade e
cultura vria movimenta a economia e a vida nacional, que se torna mais cosmopolita.
E nenhuma cidade brasileira representa melhor do que So Paulo esse momento de
efervescncia cultural, econmica e de multiplicidade tnica do incio do sculo 20.
Tambm no plano cultural e artstico, S. Paulo apresenta sintomas de progresso, se
bem que somente atravs da ala modernista, que reage contra a apatia e o lugar-comum. A
revista Papel e Tinta, recenseando otimisticamente a situao brasileira e em especial a
paulista, apresenta-se como veculo que traduz, no setor das letras e artes, o incontido
progresso de So Paulo. [...]
So Paulo a capital do dinheiro e dos empreendimentos ousados. Seu crescimento
e sua pujana econmica, alicerados na indstria, no comrcio e na lavoura, notadamente a
cafeeira, causam admirao e at espanto, chamando a ateno do resto do Brasil e mesmo
do estrangeiro.55
Viso da cidade
So Paulo apresentada como se fosse um objeto de propaganda, feita no penltimo
poema da seo e do livro.
anncio de so paulo
Antes da chegada
Afixam nos offices de bordo
Um convite impresso em ingls
Onde se contam maravilhas de minha cidade
54 BRITO, Mrio da Silva. Histria do modernismo brasileiro Antecedentes da Semana de Arte Moderna.Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1997, 6 ed., p. 23.
55 Idem, ob. cit, p. 141.
31
Sometimes called the Chicago of South America
Situada num planalto
2.700 ps acima do mar
E distando 79 quilmetros do porto de Santos
Ela uma glria da Amrica contempornea
A sua sanidade perfeita
O clima brando
E se tornou notvel
Pela beleza fora do comum
Da sua construo e da sua flora
A Secretaria da Agricultura fornece dados
Para os negcios que a se queiram realizar
No que se refere estrutura do poema, a primeira caracterstica, aspecto a ser
destacado nesta obra de Oswald de Andrade, e tambm presena no caderno de viagem de
Blaise Cendrars, a ausncia total de pontuao. Formado por 16 versos distribudos em
trs estrofes irregulares, o poema exemplo de composio em verso livre, que fecunda
poemas de Pau Brasil.
Manuel Bandeira, em A versificao em lngua portuguesa, define o verso livre:
Desde que o poeta prescinde do apoio rtmico fornecido pelo nmero fixo de
slabas, penetra no domnio do verso livre, o qual, em sua extrema liberao, isto , quando
no se socorre de nenhum apoio rtmico, poderia confundir-se com a prosa rtmica, se no
houvesse nele a unidade formal interior, aquilo que de certo modo o isola no contexto
potico.56
A ausncia de pontuao, a irregularidade mtrica e de rima marcam a busca da
liberdade de recursos de versificao e so freqentes na obra potica de ambos os autores
desse estudo.
56 BANDEIRA, Manuel. Seleta de Prosa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, 4 impresso, p. 556.
32
Inicialmente, a poesia do modernismo, em razo mesmo do seu carter revisionista,
se desenvolve como uma forma de oposio aos valores tradicionais, impelida por um
sentimento de mal-estar e de fadiga ante o abuso de uma perfeio estratificada e as buscas
de um idealismo artificial. Repele, ento, as formas fixas, a mtrica e a rima, tal como eram
compreendidas. Adota, em contrapartida, o verso livre, utiliza-se de metros diferentes, de
vria composio silbica, funde-os, confunde-os, aplica-os heterogeneamente, e aceita a
rima ocasionalmente e, muitas vezes chega a us-la com propsitos irnicos e mesmo
satricos. O poeta aposta mais na prpria palavra, confia no poder encantatrio de cada
palavra isoladamente. Admite que uma simples palavra, habilmente encaixada ou destacada
num verso ou valendo ela s por um verso possa provocar no leitor emoo lrica, lev-
lo a evocaes e reminiscncias.57
No rumo da modernidade, o verso livre deveu-se ao simbolismo, que, apesar de
combatido pela nova gerao por causa de seu hermetismo, deixou essa conquista
posteriormente exaltada pelo futurismo na propagao das palavras em liberdade: Ns
entramos nos domnios ilimitados da livre intuio. Dou o verso livre, eis finalmente a
palavra em liberdade!58 ; e da abolio da pontuao: Abolir tambm a pontuao.
Estando supressos os adjetivos, os advrbios e as conjunes, a pontuao est
naturalmente anulada na continuidade vria de um estilo vivo, que se cria por si, sem as
paradas absurdas das vrgulas e dos pontos.59
O verso livre lembrado por Guillaume Apollinaire, no texto O esprito novo e os
poetas, resultado de uma conferncia pronunciada em 1917 e publicado no ano seguinte no
Mercure de France.
Quanto Poesia, a versificao rimada era sua nica lei, lei que sofria ataques
peridicos, mas que nada penetrava.
57 BRITO, Mrio da Silva. Poesia do modernismo. So Paulo, Civilizao Brasileira, 1968, 2 ed. revista dePanorama da poesia brasileira: o modernismo, p. 15.
58 TELES, Gilberto Mendona, ob. cit., p. 99.
59 Idem, ob. cit, p. 96
33
O verso livre deu um livre vo ao lirismo, mas foi apenas uma etapa das
exploraes que se podiam fazer no domnio da forma.60
Entre outras preocupaes, o modernismo brasileiro, na poca em que o cancioneiro
de Oswald de Andrade veio luz, mantinha uma postura de crtica corrente parnasiana,
que pregava a perfeio da forma, o retorno aos clssicos, e acabou se voltando ao
pedantismo gramatical e ao rebuscamento da linguagem, caracterizando uma postura
aristocrtica que marcou o perodo de 1880 at a dcada de 1920. Mrio da Silva Brito, em
obra que analisa os antecedentes da Semana de Arte Moderna, expe essa oposio:
Sistemtica a reao que os modernistas oferecem ao parnasianismo, cuja esttica
era tida, pela generalidade dos escritores, como a expresso mxima da poesia. O
parnasianismo, apesar dos ataques sofridos, mesmo da parte de intelectuais no
comprometidos com a reforma literria, como Joo Ribeiro e Flexa Ribeiro, entre outros,
perdurava ainda, e ainda encontrava seguidores entusiastas, dispostos a defender-lhe os
princpios e fundamentos.61
Oswald de Andrade dos mais exaltados nesse movimento de reao ao oficialismo
das letras nacionais no ano anterior ao da Semana. Mrio da Silva Brito cita textos do autor
em protesto esttica do Panteo grego, como a crnica em defesa a Paul Fort, coroado
como prncipe dos poetas franceses que cultivava o verso livre e esteve no Brasil em 1921
, em resposta a artigo de Veiga Miranda. O parnasianismo era forma, sobretudo
determinada frmula. Os jovens, adversrios da escola, cuidam, pois, de atacar as suas
regras de composio e desfazem, assim, da rima e da mtrica, principalmente da mtrica.
A visita de Paul Fort, em 1921, permite que a questo se apresente com maior nfase.62
Nesse artigo publicado no Jornal do Commercio com o nome de Paul Fort
Prncipe, Oswald de Andrade defende as ousadias formais do francs, e lana o protesto:
60 APOLLINAIRE, Guillaume. O esprito novo e os poetas. In TELES, Gilberto Mendona, ob. cit., p. 156.
61 BRITO, Mrio da Silva, ob. cit., 1997, p. 193.
62 Idem, ob. cit, p. 195.
34
A ignorncia que vai pelo nosso mundo oficial das letras inominvel. Estamos ainda em
Heredia, em Leconte.63
Essa postura de reao acarretar srias conseqncias na literatura, como explica
Antonio Candido:
Do ponto de vista da literatura, foi uma barreira que petrificou a expresso, criando
um hiato largo entre a lngua falada e a lngua escrita, alm de satisfazer o artificialismo
que satisfaz as elites, porque marca distncia em relao ao povo.64
Em Literatura e cultura de 1900 a 1945, o autor j expunha a mesma linha
interpretativa. O parnasianismo pouco trouxera de essencial nossa poesia, apesar do
grande talento de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corra ou Vicente de
Carvalho. Dera-lhe regularidade plstica maior, mas agravara a sua tendncia para a
retrica, aproximando-a do tipo de expresso prosaica e ornamental.65
Um exemplo de stira contra a tcnica de rima do parnasianismo est no poema Os
Sapos, de Manuel Bandeira, declamado por Ronald de Carvalho, na segunda noite da
Semana de Arte Moderna. A primeira estrofe elucida a relao:
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: Meu cancioneiro
bem martelado.
Num momento em que os poetas buscavam a liberdade e lutavam contra a esttica
oficial, a regularidade seja de mtrica, seja de rima e o rebuscamento de linguagem so
em princpio preteridos. Ganha espao o falar cotidiano e a temtica do presente, com a
valorizao da metrpole e seus ndices de modernidade. O conhecimento do vers libre e
63 Artigo publicado na edio de So Paulo do Jornal do Commercio de 9 de julho de 1921 e citada por Mrioda Silva Brito, in ob. cit., 1997, p. 193.
64 CANDIDO, Antonio, ob. cit., 1999, p. 61.
65 CANDIDO, Antonio, ob. cit., 2000, p. 105.
35
os contatos com o Cubismo e o Futurismo ajudaram a criao de uma nova sensibilidade e
a produo de obras de inegvel ruptura esttica. Depois, veio a reflexo, a conscincia
crtica, a laboriosa metalinguagem: as revistas Klaxon, Terra Roxa e Outras Terras
(paulistas), Esttica e os manifestos do Pau Brasil e da Antropofagia glosaram as idias da
Semana e lhes deram novos matizes de potica e ideologia que, no conjunto, formam o
legado de 22.66
Tendo em vista a importncia do contato com a vanguarda da Frana, Itlia,
Alemanha (expressionismo) e Rssia (cubofuturismo), Alfredo Bosi discorre sobre a
posio singular de So Paulo no Brasil, onde o conflito provinciano/citadino se fazia
sentir com mais agudeza, onde o processo social e econmico gerava uma sede de
contemporaneidade67
Oswald de Andrade, definido por Mrio de Andrade tempos depois, em 1942, no
seu balano sobre aquele perodo da literatura brasileira O movimento modernista, como
a figura mais caracterstica e dinmica do movimento modernista68, no apenas tem
conscincia desse conflito, mas o transforma em matria potica em Pau Brasil.
Em anncio de so paulo, vrias marcas associam a metrpole nascente
modernidade do primeiro ps-guerra. Desde o perodo da Primeira Guerra Mundial,
economias perifricas, como a brasileira, passam a desenvolver a indstria nacional e um
pas como os Estados Unidos, auxiliado pelo apoio ingls, desponta como potncia em
expanso. O Brasil, desde as primeiras dcadas do sculo 20, no ficou imune ao impacto
da ideologia do consumo e da revoluo tecnolgica norte-americana. E So Paulo logo se
tornou representante dos novos tempos. Recebeu a primeira linha de montagem da Ford no
pas, em 1919. No incio dos anos 20, por exemplo, alguns bairros da capital j contavam
com um sistema de transporte coletivo.
Na gesto de Washington Lus como presidente do estado de So Paulo comeam a
rodar os primeiros carros a gasolina. Em 1922, so instaladas em So Paulo novas linhas
postais, telegrficas e telefnicas. O cenrio urbano muda de aspecto. A cidade comea a se
66 BOSI, Alfredo. Cu, Inferno, So Paulo, Duas Cidades / Editora 34, 2 edio, 2003, p. 211.
67 Idem, ob. cit, p. 209.
68 ANDRADE, Mrio. Aspectos da literatura brasileira, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 6 edio, 2002, p.260.
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verticalizar. Os artistas brasileiros, especialmente os paulistas, foram profundamente
tocados pela chegada das novas tecnologias industriais, que abria a possibilidade de
superao do atraso econmico, poltico e cultural do pas. Ao mesmo tempo,
preocupavam-se com a identidade nacional.
A estrutura do poema anncio de so paulo
A primeira estrofe, uma quintilha, apresenta o tema: um convite s maravilhas da
cidade industrial. Ele detalhado na segunda, mais longa, com nove versos forma pouco
usada na lngua portuguesa, que pode ser definida como uma quadra e uma quintilha69. Por
intermdio de informaes de ordem topogrfica (Situada num planalto / 2.700 ps acima
do mar / E distando 79 quilmetros do porto de Santos), de salubridade (A sua sanidade
perfeita), climtica (O clima brando) e esttica (E se tornou notvel / Pela beleza fora
do comum), numa espcie de mapeamento de diferentes condies locais. Essa
valorizao serve para justificar o epteto de Chicago of South America e para assim
vender a cidade a investidores estrangeiros como terra de oportunidades para os
negcios.
O fecho se d por intermdio de um dstico que desvenda a razo do tom das duas
primeiras estrofes anteriores ou, melhor dizendo, esclarece o tipo de convite feito aos
passageiros do navio Santarm e d a chave para o entendimento do poema. O dstico,
segundo Manuel Bandeira em A versificao em lngua portuguesa, uma forma muito
usada pelo povo nos provrbios, que normalmente sintetizam uma regra social ou moral
ou traduzem um lema, um ideal.
Esse modelo de organizao de texto formado por introduo, desenvolvimento e
fecho, numa mistura de narrao e de descrio freqente nas modalidades picas, que
possuem uma estrutura narrativa, mas tambm prpria da linguagem dos panfletos, da
mensagem de contedo propagandstico.
69 BANDEIRA, Manuel. ob. cit., p. 543.
37
Textos retricos, com a finalidade de persuadir o outro, como o so os de redao
publicitria em geral curtos para sintetizar a mensagem e surpreender o possvel
consumidor , fazem uso desse tipo de composio textual. O provrbio, a mxima, por seu
poder de conciso, pela facilidade de ser lembrado, pode ser aproximado ao slogan,
modalidade da escrita publicitria, de fcil memorizao e sugestionamento, que guarda
outros interesses por trs da mensagem. No poema, o dstico final no traz nenhum
provrbio, nem mesmo uma frase de efeito guisa de fecho. Pelo contrrio, o que vemos
uma frase em prosa, numa linguagem burocrtica. Contrariamente expectativa a que o
poema, numa curva crescente, conduz o leitor, os versos finais causam estranhamento, por
explicitar o intuito do uso da linguagem da propaganda. Como um ilusionista que conta o
prprio segredo, acaba, numa inverso crtica, alertando que a publicidade baseada no
exagero, que falsifica o objeto para torn-lo mais atraente, criando um engodo, porque
subjaz divulgao das virtudes um objetivo comercial.
Na dcada de 1920, finda a Primeira Guerra Mundial, apesar das dificuldades da
reconstruo de casas, bairros e cidades inteiras, a publicidade ganha espao, ditando moda,
influenciando o gosto, fornecendo uma perspectiva otimista para o futuro, incentivando o
consumo assim contribuindo com o progresso, visto como modernizao e, com o
cinema, transforma-se em veculo dos ideais cosmopolitas.
Blaise Cendrars escreve em 1927 um texto para tratar das afinidades da poesia e da
publicidade chamado Publicit = posie70, no qual iguala-as jocosamente como meio de
comunicao: A publicidade a flor da vida contempornea; uma afirmao de
otimismo e de alegria; diverte o olho e o esprito. a mais calorosa manifestao da
vitalidade dos homens de hoje, de sua potncia, de sua puerilidade, de seu talento para a
inveno e para a imaginao, e a mais bela realizao de sua vontade de modernizar o
mundo em todos os seus aspectos e em todos os seus domnios.71
70 CENDRARS, Blaise. Publicit = poesie , in Aujourdhui, 9 Parte. Oeuvres Compltes, Paris, Denol,1991, p. 228.
71 La publicit est la fleur de la vie contemporaine; elle est une affirmation doptimisme et de gaiet ; elledistrait loeuil et lesprit. Cest la plus chalereuse manifestation de la vitalit des hommes daujourhui, deleur puissance, de leur purilit, de leur don dinvention et dimagination, et la plus belle russite de leurvolont de moderniser le monde dans tous ses aspects et dans tous les domaines. (Trad. livre da A..) . Idem,ob. cit., p. 229.
38
Essa valorizao da publicidade como veculo da modernidade um conceito que se
aproxima de uma concepo cendrarsiana, nas primeiras dcadas no sculo 20, sobre a
poesia e as artes em geral: o princpio da utilidade, no qual expe sua idia de que a
literatura (e a arte em geral) faz parte da vida.72 Com esse princpio, o autor busca afastar-se
das escolas poticas em voga, valorizando a vida pulsante das cidades.
Essa lei foi formulada pelos engenheiros. Por ela toda a complexidade aparente da
vida contempornea se ordena e torna-se precisa. (...) O princpio da utilidade talvez a
mais bela expresso da lei da constncia intelectual. ele que rege esta atividade
vertiginosa das sociedades primitivas s quais eu fazia aluso h pouco; e o homem das
cavernas que encabava o seu machado de pedra, que curvava o cabo para melhor empunh-
lo, que o polia amorosamente, que lhe dava um perfil agradvel aos olhos, agia segundo o
princpio da utilidade; submetido ao mesmo princpio, o engenheiro moderno curva
sabiamente o casco de um transatlntico de 4 mil toneladas, cavilha-o internamente para
oferecer a mnima resistncia e dar a essa cidade flutuante um perfil agradvel ao olhar.
O princpio da utilidade portanto uma lei da constncia intelectual. O princpio da
utilidade portanto um princpio esttico e talvez a nica lei esttica que conhecemos hoje
em dia e que podemos formular.73
Essa lei foi apresentada em So Paulo, durante a conferncia As tendncias
gerais da esttica contempornea, realizada no Conservatrio Dramtico e Musical, em 12
de junho de 1924,74 durante a primeira visita ao Brasil do autor. Esses dois excertos
apontam atividades-smbolo do momento para Blaise Cendrars: a publicidade e a
engenharia. Elas seriam as construtoras do presente, as divulgadoras do progresso, num
72 Marjorie Perloff trata da relao entre o poeta e a publicidade no incio do sculo 20 ao comentar olanamento do poema-pintura La Prose du Transsibrien. Mas a transformao da pgina convencionalque se acha em la Prose (...) especificamente relacionada pelo prprio Cendrars com a disposio doresplandecente quadro para anncios. (...) Os anncios luminosos e os cardpios policmicos assim quea arte e a vida esto destinadas a ficar. In O momento futurista, Trad. Sebastio Uchoa Leite. So Paulo,Edusp, 1993, pp.41-3.
73 EULALIO, Alexandre, ob. cit., p.141.
74 Alexandre Eulalio reserva um captulo para a discusso das palestras ministradas por Blaise Cendrars emSo Paulo, O braseiro de Blaise. In EULALIO, Alexandre, ob. cit., pp. 129-163.
39
momento em que a euforia diante de uma perspectiva desenvolvimentista ganhava cada vez
mais espao.
Posteriormente, o estatuto da publicidade, sua aura de inventividade e de
manifestao otimista da evoluo humana passa a ser questionada, tendo em vista o uso
poltico perverso de suas tcnicas pelo capitalismo, como embuste para convencer pela
aparncia e vender produtos desnecessrios.
Alm disso, a banalizao dessa linguagem e o desenvolvimento de tcnicas de
persuaso que minam o senso crtico do consumidor, fazem dessa tcnica de uma faca de
dois gumes. O tempo tambm mostrou que a universalizao da publicidade e do desejo de
consumir no foi acompanhado da respectiva distribuio eqitativa dos bens materiais.
Sobre as relaes entre arte e utilidade Luigi Pareyson explica que h duas teses que
discorrem sobre o problema:
Por um lado, h quem negue qualquer relao entre utilidade e beleza, concebendo-
as de modo a se exclurem mutuamente e a crescerem em medida inversamente propor-
cional. Por outro lado, h quem s v beleza na pura funcionalidade, reduzida sua
essncia. Deixando de lado os exageros, claro que, de um lado, a mera utilizao -
intolerante para com a pausa contemplativa e impaciente por atingir o objetivo - tende, de
per si, a ultrapassar o momento esttico; de outro lado, a pura funcionalidade certamente
beleza, porque a perfeita adequao de um objeto ao fim tem, indubitavelmente, o carter
de um triunfo exemplar.75
No entanto, o autor deixa claro que o problema no pode ser resolvido com a
oposio e cita a arquitetura como expresso artstica em que arte e funcionalidade
coexistem. Ora, contra estas abstraes necessrio reivindicar a possibilidade de que
uma obra se mostre aderente a um objetivo e adaptada a uma destinao sem, por isso,
sofrer menoscabo na sua qualidade artstica, j que esta se adequa quela finalidade
justamente na sua realidade de arte.76
75 PAREYSON, Luigi. Os problemas da esttica, So Paulo, Martins Fontes, 1997, 3 edio, pp. 53-4.
76 Idem, ob. cit, p. 54.
40
No Manifesto da Poesia Pau Brasil, Oswald de Andrade indica a publicidade e a
engenharia como profisses que contribuiriam ao movimento de reconstruo geral. So
convocados engenheiros, em vez de jurisconsultos, mais afeitos prtica da vida. Em outro
ponto, o autor cita o reclame (ou anncio) como meio de divulgao das invenes
contemporneas. O reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas de
indstria, da viao, da aviao. Postes. Gasmetros. Rails. Laboratrios e oficinas
tcnicas. Dentro de seu projeto esttico de poesia de exportao, ganha importncia o
emprego da frase pr-moldada do repertrio coloquial ou da prateleira literria, dos rituais
cotidianos, dos anncios, da cultura codificada em almanaque, como salienta Haroldo de
Campos, que a denomina ready made lingstico.77 Mas como a visada de Oswald crtica
no h como deixar de notar tom de ironia no enunciado. Afinal, a mensagem publicitria
tirada de sua utilizao mercadolgica para divulgar um projeto potico. Tanto que o
reclame produzido com letras gigantescas. O recurso de deslocar um objeto de uso
cotidiano e transp-lo para o campo da arte em geral, e da poesia em particular, foi muito
usado durante a primeira fase do modernismo, e a colagem recurso freqente em Poesia
Pau Brasil desde a primeira parte do volume Histria do Brasil, em que pequenos
trechos de textos histricos de exploradores so incorporados sem nenhuma adaptao
(nem mesmo ortogrfica) e, agrupados num contexto potico ganham outro significado.
Outro ponto relevante que se queria transpor o abismo entre linguagem usada no dia-a-dia
e quela empregada pela poesia, em especial a parnasiana. Nesse sentido, a valorizao da
linguagem dos anncios ou dos almanaques tinha razo de ser. A lngua sem arcasmos,
sem erudio. Natural e neolgica.78
A estrutura sinttica de anncio de so paulo o aproxima da prosa. A composio
eminentemente narrativa, com elementos coesivos, articuladores e ordenatrios
caractersticos. Tanto que seria possvel transpor o poema para um texto em prosa formado
por trs pargrafos. Seria preciso reorganizar os versos por intermdio da pontuao em
forma de perodos. Por exemplo, a primeira estrofe:
77 CAMPOS, Haroldo. Uma potica da radicalidade, in ob. cit., 2003, p. 33.
78 ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau Brasil, in Correio da Manh, 18 de maro de 1924.
41
Antes da chegada, afixam nos offices de bordo um convite em ingls onde se
contam maravilhas de minha cidade, sometimes called the Chicago of South America.
O poema de Oswald de Andrade apresenta esse apoio na prosa, como de resto
comum no verso livre, mas transforma em fora expressiva e marca ritmos diferentes com
as pausas o que passaria despercebido nela. possivel dizer que o poema mantm a
unidade formal interior, aquilo que de certo modo o isola no contexto potico.
Que vantagens, ento, tirou o verso livre do uso da prosa nos poemas? Afinal, num
aspecto real, h muito verso livre que prosa disposta de uma maneira especial, um
desvelamento dos poemas que se ocultam em cada pargrafo ou frase; em suma, a arte
exclusiva do poeta em verso livre, e no sua burla sub-reptcia, a arte da exposio, a arte
de extrair o mximo dessas potencialidades expressivas que passam sublimemente
despercebidas ao pargrafo. Ao colocar em relevo os componentes do pargrafo em versos
de comprimento varivel, o poeta tira tudo o que pode das variaes da cadncia e da
durao, torna-as fins em si mesmas, faz com que sirvam mais enunciao do que
ao.79
Passemos ao mbito da estrutura lexical. Afinal, so as palavras e suas combinaes
dotadas de significado prprio dado pelo poeta que conduzem o significado do poema. Em
O estudo analtico do poema, Antonio Candido aponta trs diferentes usos de palavras por
parte do poeta. Segundo Candido, o poeta usa palavras na acepo corrente, numa acepo
diversa da corrente, mas aceita por um grupo ou cria acepes novas. Em qualquer dos
casos, est efetuando uma operao semntica peculiar que arranjar as palavras de
maneira que o seu significado apresente ao auditor, ou leitor, um supersignificado, prprio
ao conjunto do poema, e que constitui o seu significado geral.80
79 SCOTT, Clive. O poema em prosa e o verso livre, in BRADBURY, Malcolm e Mcfarlane, James (orgs.).Guia Geral do Modernismo, So Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 295.
80 CANDIDO, Antonio. O estudo analtico do poema, So Paulo, Humanitas, 4 ed. 2004, p. 103.
42
Para Roman Jakobson a questo fundamental da poesia justamente a relao
estabelecida entre vocbulos. Ela reside nas relaes entre som e sentido. Age a cada
momento, estabelecendo entre as palavras novos nexos, metafricos ou metonmicos81
Em anncio de so paulo, privilegia-se um eixo metafrico na designao da
Paulicia: So Paulo = Chicago of South America = uma glria da Amrica
contempornea.
Um convite impresso em ingls
Onde se contam maravilhas de minha cidade
Sometimes called the Chicago of South America
(...)
Ela uma glria da Amrica contempornea
O uso do verso inteiramente em ingls (no segundo verso h a palavra offices, que
na edio de 45, aparece ofices) refora a idia da cidade industrial como chamariz dos
tempos modernos, e para o qual se voltam folhetos de propaganda escritos em ingls.82
O ttulo faz referncia publicidade, mas ambguo, j que o termo anncio tem
tanto, a acepo de notcia ou aviso por meio do qual se divulga algo ao pblico, como de
predio, prognstico, alm do sentido estrito da propaganda de mensagem que procura
transmitir ao pblico, por meio de recursos tcnicos e atravs dos veculos de comunicao,
as qualidades e eventuais benefcios de determinada marca, produto, servio ou instituio,
quando ento sinnimo de reclame. Nesse contexto, a cidade exposta como um artigo
venda, ou como marca ou empresa em que vale a pena investir. Portanto, neste caso o
anncio est voltado aos interesses do capital mais especificamente do capital estrangeiro,
pretendendo investimentos na prpria cidade.
No terceiro verso o termo anncio retomado em forma de apelo com a palavra
convite, que estranhamente est impresso em ingls, j ento a lngua funcional do
81 JAKOBSON, Roman. O que fazem os poetas com as palavras, in Colquio Letras, 02/03/1973, p. 6.
82 FONSECA, Maria Augusta. Ta: e no Cancioneiro Pau Brasil, in ob. cit., p. 136.
43
capitalismo, em oposio ao francs, a lngua da cultura tradicional. Nesse contexto, a
lngua inglesa assume papel importante no conjunto do poema, de antitradicionalismo, e
como veculo expressivo de um novo mundo, no o ingls de tradio culta, da Inglaterra,
mas o dos Estados Unidos, representante de um ideal desenvolvimentista. O uso da
tecnologia na vida cotidiana passou a refletir um ideal de felicidade inspirado na sociedade
consumista dos Estados Unidos nos anos 20. Uma mensagem que se propagou por todo o
mundo capitalista. No entanto, a visada do poeta irnica, pois esse novo mundo, essa
sociedade de consumo na verdade um privilgio de poucos na So Paulo dos anos 1920.
J no verso seguinte h uma indicao do contedo do texto em ingls. Fala de
maravilhas, de coisas extraordinrias de So Paulo. interessante notar a ambigidade
do termo que se refere tanto a algo que no se pode explicar racionalmente, como um
milagre, quanto quilo que desperta grande admirao ou assombro, em virtude de suas
realizaes, de sua perfeio, grandeza, beleza etc. Ainda no verso 4, ocorre uma
interveno da subjetividade pelo uso do possessivo minha.
O ltimo verso da primeira estrofe, escrito em ingls lngua estranha ao padro
empregado no poema , compara So Paulo com Chicago, metrpole em ascenso devido a
seu crescimento econmico. Esta seria sua equivalente na Amrica do Norte, regio do
Novo Mundo que, como o Brasil, tambm havia passado por um processo de colonizao
europia, embora de natureza diferente. O que importava em Chicago sempre podia ser
medido, contado ou pesado, fosse nos milhares de alqueires de trigo embarcado para o
leste, nos milhes de cabeas de gado transportadas de trem at os Armazns do Sindicato
para a indstria de carne ou nas toneladas de ao produzidas pelas usinas em Gary.83
Como Chicago tinha grande extenso, as t