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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE FILOSOFIA DISCIPLINA: TÓPICOS DE FILOSOFIA II - HERMENÊUTICA RESENHA A ORDEM DO DISCURSO, DE MICHEL FOUCAULT Por Caius Brandão Graduando do Curso de Filosofia Universidade Federal de Goiás

Foucault - Resenha Ordem Do Discurso

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Resenha da Ordem do Discurso, de Michel Foucault, sob a perspectiva do posicionamento político do filósofo.

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Page 1: Foucault - Resenha Ordem Do Discurso

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

FACULDADE DE FILOSOFIA

DISCIPLINA:

TÓPICOS DE FILOSOFIA II - HERMENÊUTICA

RESENHA

A ORDEM DO DISCURSO,

DE MICHEL FOUCAULT

Por Caius BrandãoGraduando do Curso de Filosofia

Universidade Federal de Goiás

Goiânia, GO, Brasil

Junho de 2010

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A Ordem do Discurso, de Michel Foucault

A biografia de Michel Foucault nos revela um pensador que não se manteve

alheio às questões políticas e sociais que tecem a história da humanidade... uma história

marcada por lutas e dominações entre diferentes estratos de nossas sociedades. Para

Foucault, não seria suficiente denunciar que por trás de um aparelho estatal existe uma

classe dominante. Crítico da suposta centralidade do poder estatal, ele reconhece que o

poder político é exercido mediante uma pluralidade de centros e pontos de apoio

invisíveis e desconhecidos. Desta forma, a tarefa que ele assume como intelectual é a de

localizar e expor os diferentes pontos de atividades do poder; os lugares e as formas nas

quais a dominação é exercida. Sob a perspectiva deste compromisso político de

Foucault reside uma possibilidade de compreensão da palestra proferida por ele em sua

aula inaugural no Collège de France, em 1970, intitulada “A ordem do discurso”.

Apenas um ano após assumir a prestigiosa cadeira que antes pertencia ao já

falecido Jean Hyppolite, Foucault participou de um debate com Noam Chomsky,

Human Nature: Justice versus Power (Natureza Humana: Justiça versus Poder),

facilitado pelo filósofo holandês Fons Elders. Quando questionado por Elders acerca do

seu interesse pela política, Foucault responde que “a essência de nossas vidas consiste,

afinal, no funcionamento político da sociedade na qual nos encontramos” 1 [tradução

nossa]. Oportunamente, salientamos que democracia, para Foucault, é o efetivo

exercício de poder por uma população que não é dividida, nem hierarquicamente

ordenada em classes sociais. Foucault prossegue:

“É óbvio que estamos vivendo sob um regime ditatorial de classes, sob um poder de classe que se impõem pela violência, até mesmo quando os instrumentos de tal poder são institucionais e constitucionais. (...) Eu admito não ser capaz de definir, nem mesmo por razões ainda mais fortes de propor, um modelo ideal de funcionamento de nossa sociedade científica e tecnológica. (...) Por outro lado, uma tarefa que me parece imediata e urgente, acima de qualquer outra coisa, é essa: Deveríamos indicar e demonstrar, até mesmo quando estiverem escondidas, todas as relações de poder político que controlam, oprimem e reprimem o corpo social.” 2 [tradução nossa]

A princípio, algumas instituições, diferentemente da polícia, do exército e do

tribunal judiciário, não demonstram nenhuma relação com o poder político. Por

1 FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível em

http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010

2 Idem.

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exemplo, a Universidade ou o sistema educacional como um todo podem parecer fazer

nada mais do que simplesmente disseminar conhecimento. Mas, na visão de Foucault,

“elas são feitas para manter certa classe social no poder; e para excluir os instrumentos

de poder de outra classe.” 3

No capítulo IV da “Microfísica do poder” – Os intelectuais e o poder - Conversa

entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, Foucault nos deixa clara a sua posição política,

conforme podemos observar no seguinte trecho:

“Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte deste sistema de poder, a idéia de que eles são agentes da "consciência" e do discurso também faz parte desse sistema. O papel do intelectual não é mais o de se colocar "um pouco na frente ou um pouco de lado" para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da "verdade", da "consciência", do discurso.” 4

Portanto, não é trivial a tese de que Foucault tenha feito exatamente isto – lutar

contra uma forma de poder, ao colocar em pauta a ‘ordem do discurso’ em sua aula

inaugural no Collège de France. Se o papel da Universidade é manter certa classe social

no poder; e se é verdade que a instituição deva que ser atacada em seu âmago para ser

destruída, então, cogitar a subversão da ordem do discurso parece ter sido mesmo a

melhor estratégia para questionar o papel de uma instituição de ensino. Tanto a

Universidade, quanto a família, o manicômio e a prisão são instituições que foram alvo

da genealogia do poder que Foucault desenvolve ao longo da sua vida de trabalho. Para

ele, essas lutas contra o poder são apenas regionais... e as únicas possíveis.

Vejamos o que Foucault tem a dizer sobre o poder, enquanto discute o papel do

intelectual em seu debate com Deleuze:

Existe atualmente um grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde o exerce? Atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que mãos ele passa e onde ele se reinveste, mas o poder... Sabe-se muito bem que não são os governantes que o detêm. Mas a noção de "classe dirigente" nem é muito clara nem muito elaborada. "Dominar", "dirigir", "governar", "grupo no poder", "aparelho de Estado", etc.. é todo um conjunto de noções que exige análise. Além disso, seria necessário saber até onde se exerce o poder, através de que revezamentos e até que instâncias, freqüentemente ínfimas, de controle, de vigilância, de proibições, de coerções. Onde há poder, ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com

3 Idem.4 FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979. (p. 71)

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uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.” 5

Em “A ordem do discurso”, Foucault nos fala deste mesmo poder e o relaciona

com aquilo que seria um processo ordenado de produção de discursos em nossas

sociedades. Os discursos cotidianos são mais efêmeros do que os “discursos sérios” da

instituição, tais como o da medicina, da psiquiatria e da política. Para Foucault, “o

discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação,

mas aquilo pelo que se luta, o poder que queremos nos apoderar.” 6

Ora, com tamanho desafio a sua frente, Foucault não poderia fazer outra coisa,

senão abandonar a hermenêutica e tomar o discurso como prática social. Ele então se

coloca acima do nível da proposição de um texto para analisar o discurso enquanto um

‘acontecimento’ que se dá mediante condições de possibilidades e regras pré-

estabelecidas.

Em “A ordem do discurso”, o ponto de partida de Foucault é a seguinte hipótese:“Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.” 7

Foucault identifica e analisa três grupos de procedimentos de controle, seleção,

organização e redistribuição da produção dos discursos, a saber: os sistemas de exclusão

externos e internos ao discurso, bem como as regras impostas aos sujeitos.

Fazem parte dos mecanismos de exclusão externos ao discurso a interdição, a

separação ou rejeição e a “vontade de verdade”. O primeiro, a interdição, talvez seja o

mais conhecido. Ele se refere ao tabu do objeto, ao ritual da circunstância e ao direito

privilegiado daquele que fala. Temos então, três modos de interdição ao discurso que se

cruzam, se reforçam ou se compensam mutuamente. A interdição revela, desde já, a

relação entre o discurso e o poder. Além da dela, temos também a separação (ou

rejeição) do discurso do louco a partir da oposição entre razão e loucura. Um terceiro

sistema de exclusão externo ao discurso é a vontade de verdade. Ele se configura como

um modo de separar o verdadeiro do falso, imposto pelas instituições a partir de

critérios arbitrários e ancorado por meras contingências históricas.

Já nos procedimentos de exclusão internos, temos os discursos mesmos

exercendo o seu próprio controle. Levando em conta a dimensão do acontecimento e do

5 Idem. 6 FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France. Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola: 1996. (p. 10)7 Idem. (p. 8)

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acaso do discurso, Foucault considera que tais procedimentos internos funcionam como

princípios de rarefação do discurso (classificação, ordenação e distribuição). O primeiro

destes princípios é o comentário, cuja função é revelar aquilo que se encontra

articulado, mas não explicitado no texto original. Para Foucault, o comentário “conjura

o acaso do discurso, fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto, mas

com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado.” 8 O segundo

tipo de procedimentos internos, o princípio do autor, é complementar ao do comentário.

Foucault aqui se refere não ao sujeito que fala ou escreve o discurso, mas ao princípio

de “agrupamento do discurso”, ou seja, um lócus de unidade e de significações que

também oferece um foco de coerência. Tal como o comentário, o autor também limita o

acaso do discurso, mas não “pelo jogo de uma identidade que teria a forma da repetição

e do mesmo”, mas sim “pelo jogo de uma identidade que tem a forma da

individualidade e do eu”. 9 Por fim, Foucault identifica o último tipo de procedimento

de limitação interno ao discurso: a disciplina. Em oposição ao princípio do comentário,

o qual se refere a um sentido a ser recuperado ou identidade que necessita ser repetida, a

disciplina reúne aquilo que é pré-estabelecido como sendo necessário para a produção

de novos enunciados. “Para que haja disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade de

formular, e de formular indefinidamente, proposições novas.” 10 O domínio de objetos,

um conjunto de métodos, um corpus de proposições verdadeiras, um jogo de definições,

regras, técnicas e instrumentos constituem um sistema autônomo chamado de disciplina.

É desta forma que Foucault reúne os princípios do autor, do comentário e da disciplina

para expor as funções restritivas e coercitivas no interior do discurso.

Além dos sistemas externos e internos de exclusão, temos também a imposição

de regras aos sujeitos do discurso constituindo os grupos de procedimentos de controle,

seleção, organização e redistribuição da produção dos discursos. Estas regras não tratam

de evitar o acaso de sua aparição ou controlar o poder do discurso, mas sim de

“rarefação, desta vez, dos sujeitos que falam; ninguém entrará na ordem do discurso se

não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” 11

Fazem parte deste grupo de regras ao sujeito que fala: a) os rituais da palavra – eles

determinam propriedade singulares e papéis preestabelecidos, tais como aos sujeitos dos

discursos religiosos, judiciários e políticos; b) as sociedades de discurso – são aquelas

8 Idem. (p. 25)9 Idem. (p. 29)10 Idem. (p. 30)11 Idem. (p. 37)

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sociedades que fazem circular internamente os discursos que elas próprias conservam

ou produzem. Elas também os distribuem com base em regras restritivas, evitando a

permutabilidade e a apropriação de segredos técnicos ou científicos; c) os grupos

doutrinários – são aqueles que exigem um sentimento prévio de identificação ou de

pertença a uma classe social, status, nacionalidade, resistência, aceitação, etc. Desta

forma, eles associam as pessoas a certos tipos de discurso e lhes proíbem todos os

outros; e d) as apropriações sociais – o melhor exemplo são os sistemas de educação, na

medida em que eles representam uma estratégia política eficaz para a manutenção ou

modificação da apropriação dos discursos, diante dos saberes e poderes que lhes são

peculiares.

Para a análise dos três grupos de procedimentos de exclusão que atingem o

discurso, Foucault propõe a realização de três tarefas, a saber: questionar a vontade de

verdade; restituir o caráter de acontecimento do discurso; e suspender a soberania do

significante. Na realização destas tarefas, Foucault ainda observa alguns princípios

metodológicos. São eles: da inversão – este princípio trata da necessidade de se

reconhecer “o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” 12; da

descontinuidade – “os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se

cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” 13; da especificidade – o

mundo não é cúmplice do nosso conhecimento. Devemos concebê-lo como uma

“violência que fazemos às coisas”; da exterioridade – devemos nos situar num nível

acima do núcleo interior do discurso para, a partir de sua aparição e regularidade, passar

às suas condições externas de possibilidade.

No início da sua aula inaugural, Foucault diz que não queria ter de entrar na

ordem do discurso, mas a instituição o tranqüiliza, afirmando que não tem com que se

preocupar: “estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis.”

Felizmente, ao decifrar esta ordem, Foucault também nos mostra a possibilidade de

subverter suas leis.

12 Idem. (p. 51)13 Idem. (p. 52)

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Referências Bibliográficas:

FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso – Aula inaugural no College de France.

Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo. Ed. Loyola: 1996.

______________ Microfísica do Poder. São Paulo: Ed. Graal, 1979.

Transcrição de Debate

FOUCAULT, M. e CHOMSKY, N. Human nature: justice versus power. Disponível

em http://www.chomsky.info/debates/1971xxxx.htm . 20/05/2010