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1 A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E O CONCEITO DE INTERDISCURSO: SUA PERTINÊNCIA PARA O ESTUDO DE NARRATIVAS PÓS-COLONIAIS Anna Elizabeth Balocco O estudo do discurso pressupõe o estudo da linguagem num contexto social, uma proposição que levanta a questão das relações entre práticas discursivas e práticas sociais. A natureza destas relações é uma das questões mais candentes na Análise do Discurso e nos estudos sobre ideologia. A identidade, a subjetividade, a ideologia, as representações que fazemos sobre quem somos e como atuamos no mundo social são afetadas, em grande medida, pelos discursos que circulam no tecido social e cultural que nos cerca. Em algumas posições extremadas de correntes pós-estruturalistas, argumenta-se que a realidade, ou o fato social, dilui-se frente à hegemonia do discurso na sociedade contemporânea. Alinhando-se a críticas a esta posição, vindas de diferentes campos teóricos, a Análise Crítica do Discurso dá importância a instâncias sociais e discursivas, e rejeita a noção de que tudo é discurso, ou de que o discurso é anterior a toda realidade externa (Eagleton, 1991:219). Na Análise Crítica do Discurso, o discurso é tomado em duas dimensões: na primeira dimensão, o discurso é entendido (no sentido de Foucault) como representação de práticas sociais. Já na segunda dimensão, o discurso é visto como, ele mesmo, uma prática social, ou uma prática de produção de sentidos (Chouliaraki & Fairclough, 1999:45). Transportando esta concepção de discurso em duas dimensões para o estudo de textos ficcionais, temos as seguintes proposições. Se como representação de práticas sociais, o texto ficcional atualiza discursos em circulação na nossa cultura, como prática social ele tem importante função simbólica na construção de perspectivas ou visões de mundo compartilhadas. Ao definir posições de leitura para leitores implícitos, ou ideais, que leitores concretos podem ocupar ao atribuirem sentido ao que lêem, o texto ficcional trabalha no sentido de criar uma comunidade de leitores (Avallon, 1999). E é este compartilhamento de perspectivas, este contrato simbólico, que preside à construção imaginativa, ideológica e política de discursos de determinada feição. Nesta apresentação, ocupamo-nos de um texto ficcional, o conto Myself in India, da escritora alemã Ruth Prawer Jhabvala (1996), com foco na noção de posição discursiva híbrida do sujeito pós-colonial, tal como formulada por Homi Bhabha (1994). Nosso argumento é o de que a concepção de discurso em duas dimensões permite abandonarmos visões rígidas da ideologia, baseadas em oposições binárias entre colonizador e colonizado; Ocidente e Oriente, inferior e superior, forte e fraco. É a partir de uma visão de discurso em duas dimensões que podemos explorar a complexidade e a ambivalência da identidade do sujeito pós-colonial. UERJ.

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A ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E O CONCEITO DE INTERDISCURSO: SUA PERTINÊNCIA PARA O ESTUDO DE

NARRATIVAS PÓS-COLONIAIS

Anna Elizabeth Balocco∗

O estudo do discurso pressupõe o estudo da linguagem num contexto

social, uma proposição que levanta a questão das relações entre práticas discursivas e práticas sociais. A natureza destas relações é uma das questões mais candentes na Análise do Discurso e nos estudos sobre ideologia. A identidade, a subjetividade, a ideologia, as representações que fazemos sobre quem somos e como atuamos no mundo social são afetadas, em grande medida, pelos discursos que circulam no tecido social e cultural que nos cerca.

Em algumas posições extremadas de correntes pós-estruturalistas, argumenta-se que a realidade, ou o fato social, dilui-se frente à hegemonia do discurso na sociedade contemporânea. Alinhando-se a críticas a esta posição, vindas de diferentes campos teóricos, a Análise Crítica do Discurso dá importância a instâncias sociais e discursivas, e rejeita a noção de que tudo é discurso, ou de que o discurso é anterior a toda realidade externa (Eagleton, 1991:219).

Na Análise Crítica do Discurso, o discurso é tomado em duas dimensões: na primeira dimensão, o discurso é entendido (no sentido de Foucault) como representação de práticas sociais. Já na segunda dimensão, o discurso é visto como, ele mesmo, uma prática social, ou uma prática de produção de sentidos (Chouliaraki & Fairclough, 1999:45).

Transportando esta concepção de discurso em duas dimensões para o estudo de textos ficcionais, temos as seguintes proposições. Se como representação de práticas sociais, o texto ficcional atualiza discursos em circulação na nossa cultura, como prática social ele tem importante função simbólica na construção de perspectivas ou visões de mundo compartilhadas. Ao definir posições de leitura para leitores implícitos, ou ideais, que leitores concretos podem ocupar ao atribuirem sentido ao que lêem, o texto ficcional trabalha no sentido de criar uma comunidade de leitores (Avallon, 1999). E é este compartilhamento de perspectivas, este contrato simbólico, que preside à construção imaginativa, ideológica e política de discursos de determinada feição.

Nesta apresentação, ocupamo-nos de um texto ficcional, o conto Myself in India, da escritora alemã Ruth Prawer Jhabvala (1996), com foco na noção de posição discursiva híbrida do sujeito pós-colonial, tal como formulada por Homi Bhabha (1994). Nosso argumento é o de que a concepção de discurso em duas dimensões permite abandonarmos visões rígidas da ideologia, baseadas em oposições binárias entre colonizador e colonizado; Ocidente e Oriente, inferior e superior, forte e fraco. É a partir de uma visão de discurso em duas dimensões que podemos explorar a complexidade e a ambivalência da identidade do sujeito pós-colonial.

∗ UERJ.

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UMA TEORIA DO DISCURSO EM DUAS DIMENSÕES

Se, nos termos de Bhabha (1994:13), o “local da cultura” pode ser definido como uma posição discursiva híbrida, fundada nas mútuas contaminações entre colonizadores e colonizados, então precisamos de um aparato teórico que possibilite o pensamento sobre como se constroi esta posição discursiva híbrida.

Uma teoria do discurso em duas dimensões faz referência tanto à forma como o sujeito pós-colonial é afetado por valores sociais ou sentidos em circulação na sua cultura (por exemplo, pelos discursos, ou representações, sobre colonizados e colonizadores), quanto às formas através das quais este mesmo sujeito capta estes sentidos e os transforma a partir de determinada posição enunciativa, ou lugar de fala.

A ênfase na dimensão estrutural do discurso permite explorarmos as estruturas discursivas, os sentidos, ou significados socias, que afetam o sujeito pós-colonial (como dizíamos acima, os discursos, ou representações, sobre os povos colonizados, por exemplo). Por outro lado, a ênfase na dimensão interacional do discurso permite investigarmos a forma como este sujeito, em determinada situação de enunciação, em vista de uma história pessoal (e discursiva) de determinado tipo, constroi sentidos a respeito de suas relações com o colonizador. Um sujeito pós-colonial indiano educado na Inglaterra, por exemplo, e um sujeito pós-colonial indiano que não tenha tido a mesma experiência social construirão sentidos diferentes a respeito da experiência colonial britânica na Índia.

Se a primeira dimensão do discurso permite explorarmos como a voz do sujeito pós-colonial responde ou dialoga com os sentidos sociais em circulação na sua cultura, num determinado ponto da história, lidando com os aspectos mais estáveis de sua identidade, ou subjetividade (a sua memória discursiva), a segunda dimensão aponta para aspectos mais dinâmicos de sua identidade, à medida que é nesta dimensão que sua voz trabalha sentidos pré-construídos, interpretando-os de determinada posição enunciativa.

O CONCEITO DE INTERDISCURSO

Uma noção central para a Análise Crítica do Discurso é a noção de interdiscurso, que remete àquilo que Eni Orlandi (2001) chama de “a memória do dizer”, ou o conjunto de significados sociais em circulação em determinado grupo social, em certa época. Estamos lidando portanto com um construto privilegiado para o estudo da identidade, da subjetividade e da ideologia: é no plano do interdiscurso que se encontram traços da forma como o sujeito é “interpelado” pela ideologia (na expressão memorável de Althusser): como ele é chamado a selecionar, dentre os significados sociais em circulação na sua cultura, em determinando momento histórico, aqueles que constituirão o seu próprio discurso.

No caso da narrativa de que nos ocupamos, interessa investigar como determinados sentidos são construídos no universo representado

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ficcionalmente, mediante análise da voz da narradora. As perguntas que orientam as análises são portanto as seguintes: que vozes abstratas, circulando no contexto de cultura, que discursos ou formações ideológicas, ecoam na fala da narradora? De que forma estas vozes abstratas, ou discursos, são captadas pela narradora e re-investidas em função das características específicas de sua situação enunciativa? O CONTO MYSELF IN INDIA

O conto Myself in India, narrado em primeira pessoa, apresenta um sujeito pós-colonial, uma mulher de origem européia, que constrói sua identidade enfatizando a diferença: “Eu tenho vivido na Índia a maior parte da minha vida adulta. O meu marido é indiano e também o são os meus filhos. Eu não sou, e menos ainda a cada ano”1, diz a narradora no início do conto.

Embora não seja indiana (a narradora indica apenas que é “da Europa Central”, sem dizer exatamente de onde), a sua experiência na Índia é tematizada desde o início do conto: “A Índia provoca reações muito fortes nas pessoas. Algumas pessoas a odeiam, outras a amam, a maior parte delas tanto a odeia quanto a ama.”2

No seu caso, a experiência de vida naquele país configura-se como um caso de “sobrevivência na Índia”, embora a narradora admita que a sua reação ao país localiza-se no âmbito da terceira alternativa indicada acima: tanto sente-se atraída, quanto abatida, pelos problemas daquela cultura. Para a narradora, este é um “ciclo” comum a vários europeus que se deslocam para a Índia: “Eu passei por este ciclo tantas vezes que agora me vejo como atada a uma roda que se move continuamente e às vezes estou no lado superior da roda, outras vezes estou no lado inferior”3.

Outro elemento de sua identidade ou subjetividade (e de sua posição enunciativa), destacado no início do conto pela narradora, é a sua condição de mulher: “Sou irritável e tenho nervos fracos”4. Este enunciado imediatamente projeta um determinado tipo de representação para a narradora: a justaposição dos termos irritabilidade e nervos fracos é característica do discurso patriarcal, no interior do qual os termos remetem ao “comportamento feminino”.

Observa-se ainda que o enunciado é inserido em trecho em que a narradora, de alguma forma, tenta justificar sua dificuldade em adaptar-se ao país: "Sei que sou o tipo de pessoa errada para viver aqui [= na Índia]"5.

Dando seqüência à sensação de inadequação, a narradora observa que se sente isolada na Índia: "Vivo na capital, onde há tanta coisa acontecendo. (...) No entanto, todos os meus momentos são desinteressantes. Por quê? É minha culpa, eu sei"6. A partir daqui a narradora vai descrever as pessoas com quem acha que "deveria" se relacionar: “Deixe-me tentar descrever uma mulher indiana ocidentalizada com quem eu deveria ter muito em comum e cuja companhia eu deveria apreciar.”7

Este fragmento discursivo sugere a forma como o discurso patriarcal recorta a fala da narradora: a modalização deôntica, no eixo do dever, indica uma dimensão normativa que estabelece parâmetros para o comportamento da mulher. Segundo a narradora, espera-se que ela aprecie a companhia da indiana por várias razões: por sua condição de mulher (“Ela [conversa; socializa-se] da forma como sabe que as mulheres educadas devem

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conversar, socializar-se”8); por sua ocidentalização (sua formação européia: “Ela estudou em Oxford ou Cambridge or em alguma universidade americana conceituada"9); e, fundamentalmente, por sua perspectiva ocidental em relação à Índia (“Eles [a indiana e sua família] sempre tiveram um estilo de vida ocidental, com comida ocidental e uma admiração pela cultura ocidental”)10.

No entanto, apesar destas expectativas em relação a seu comportamento, a narradora admite que se sente oprimida na Índia e diz que “para permanecer [na Índia] e suportar [a vida ali] é preciso ter uma missão”11. O que temos diante de nós não é simplesmente uma questão lexical, ou de escolha de vocabulário, envolvendo o uso de missão ao invés de objetivo, ou ideal (“é preciso ter um objetivo, ou um ideal para morar na Índia”). Estamos lidando com um fato do discurso: com a forma como o termo missão alinha este enunciado a um conjunto de outros enunciados que constroem representações de determinado tipo sobre o fenômeno da colonização britânica na Índia.

O termo missão faz parte de um discurso, ou formação discursiva, que vê a experiência da colonização britânica na Índia, da perspectiva dos colonizadores.

No entanto, embora contenha elementos do discurso colonialista britânico do século XIX, que historicamente se confunde com o discurso missionário (Grigoletto, 2002:97), a voz da narradora não é constituída exclusivamente por este discurso. Em determinado ponto da narrativa, a narradora faz a seguinte afirmação: “Eu não estou mais interessada na Índia. Aquilo que me interessa agora é eu mesma na Índia”12. Observe-se que este é o título do conto: Myself in India.

Esta formulação discursiva constroi um sentido oposto ao anterior, que acabamos de comentar. O primeiro constroi a experiência do sujeito pós-colonial a partir do discurso colonialista britânico, que “vê” a Índia “de fora”, por assim dizer. O discurso da colonização como missão é um discurso que mobiliza fundamentalmente sentidos provenientes do discurso evolucionista da cultura ocidental, que posiciona as culturas européias como superiores (em termos de civilização e progresso) e as dos povos colonizados como inferiores, numa escala evolucionista (Grigoletto, op. cit.). O que na verdade é uma relação de controle ou dominação apresenta-se, no discurso, como uma relação de “doação” (os povos superiores “doam” sua civilização aos colonizados).

Já o segundo sentido, construído na formulação discursiva “eu mesma na Índia”, abandona a perspectiva exterior sobre a Índia, a perspectiva do Ocidente sobre o Oriente, e constroi a experiência do sujeito pós-colonial como localizada na Índia, como construída a partir de determinada posição enunciativa: o marcador espacial (“na Índia”) sinaliza o deslocamento do ponto de vista da metrópole para a colônia. Por outras palavras, o marcador sinaliza um lugar de fala que não é ocidental, pura e simplesmente, embora a narradora seja européia.

Do ponto de vista de seu interdiscurso, portanto, a voz da narradora atualiza discursos, ou formações discursivas, em competição, que sugerem as contradições nas experiências sociais do sujeito pós-colonial. No caso deste conto, as contradições sugerem a mudança de uma visão da colônia a partir da perspectiva e dos significados sociais construídos na metrópole (que

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são sentidos estabilizados na relação colonial, no discurso colonial), para uma visão do europeu na colônia, mergulhado nos significados sociais em circulação naquele espaço híbrido, naquilo que Mary Louise Pratt (apud Mills, 1997:121) chama de uma “zona de contacto”, ou seja, um espaço onde diferentes culturas se encontram e freqüentemente entram em conflito.

A par de sinalizar o deslocamento do ponto de vista da metrópole para a colônia, a formulação discursiva "myself in India" cria um espaço discursivo em que a experiência pós-colonial é inscrita no discurso da mulher, ou "traduzida" (Bhabha, 1994:25) em termos da experiência feminina. É esta perspectiva que leva a narradora a uma compreensão da Índia, não em termos abstratos, como em muito discurso sobre a Índia a partir de uma visão eurocêntrica e pretensamente "universalista" (Said, 2001:19), mas em termos de uma vivência concreta, como sugere o fragmento a seguir:

Tenho uma casa agradável, faço o possível para viver de forma agradável. Fecho as janelas, abaixo as persianas, ligo o ar-condicionado; leio muitos livros, dando preferência aos grandes mestres do romance. Todo o tempo sei que estou nas costas deste grande animal de pobreza e atraso. Não dá para fingir.13

Sobressai da formulação discursiva em inglês não somente a imagem da Índia como um "animal de pobreza e atraso", mas principalmente a construção do sentido de contacto físico, através do uso da formulação "on the back of". "On" é usado para expressar "contacto direto entre as superfícies de dois corpos físicos" e contrasta com "in", que relaciona dois corpos físicos numa relação de inclusão.

Esta formulação remete a, e reforça, uma formulação anterior, que também fala da miséria na Índia: "Não há sentido em se fazer um catálogo dos horrores com os quais se vive, nos quais se vive [= na Índia], como nas costas de um animal." (grifo da autora)14.

A expressão usada ("the horrors on which one lives") constrói o sentido de uma experiência concreta dos problemas daquele país, por seu destaque à noção de contigüidade física. Se o discurso eurocêntrico sobre a Índia apresenta-se como um discurso que visa "conter" aquele país, no sentido de construí-lo como um objeto de conhecimento, o discurso da narradora configura-se como uma tentativa de compreender a Índia "no contacto" com aquele país. A narradora encontra-se "nas costas de um animal", cuja respiração e temperatura ela não pode deixar de sentir.

Se as noções de "pobreza" e "atraso" acomodam-se no interior do discurso colonialista europeu (que, como já apontado, naturaliza as idéias de que algumas nações são superiores e outras inferiores), o mesmo não ocorre quando se constroi uma posição de fala fora deste discurso, como é o caso do conto que ora examinamos. Embora haja traços do discurso colonialista na fala da narradora, como foi argumentado, a mesma atualiza formações discursivas em competição.

O conto portanto encena a profunda divisão da narradora e tematiza ainda a sua perspectiva sobre a Índia: uma perspectiva fundada, não a partir de uma visão "universalista" (que é aquela do homem europeu), mas a partir de uma vivência singular e concreta na Índia, às margens de processos decisórios.

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CONTRIBUIÇÕES PARA OS ESTUDOS DE NARRATIVAS PÓS-COLONIAIS

As vozes pós-coloniais caracterizam-se fundamentalmente por sua heterogeneidade discursiva: por conterem traços de discursos dominantes (produzidos da perspectiva dos colonizadores) e de discursos não-dominantes. E estamos entendendo o termo “vozes pós-coloniais” de forma abrangente: os europeus, no espaço ficcional da literatura pós-colonial, tanto quanto os povos colonizados, representam-se como divididos, ou cindidos, o que sugere que o discurso não pertence a determinado grupo social, mas circula entre os diferentes participantes da cena discursiva. A noção de mútuas contaminaçoes formulada por Homi Bhaba pode ser vista, do ponto de vista de uma teoria do discurso, como fazendo referência à forma (ou às diferentes formas) como o discurso circula na sociedade: ele circula em duas direções.

É neste sentido que a Análise Crítica do Discurso oferece um aparato teórico para lidar com questões e temas pós-coloniais: ao focalizar a heterogeneidade constitutiva do discurso; a forma como um texto ou narrativa se constitui como discurso, ou seja, a partir de diferentes formações discursivas; ao dar atenção às formas de captação e ressignificação do discurso a partir de determinadas posições enunciativas, a Análise Crítica do Discurso apresenta-se como um dispositivo teórico forte para a análise de narrativas pós-coloniais.

Retornamos à forma como começamos: à questão da dupla dimensão do discurso, como representação de práticas sociais e como, ele mesmo, uma prática social. Como representação de práticas sociais, o texto ficcional que comentamos atualiza discursos em circulação em nossa cultura, neste momento histórico. Um deles é o discurso colonial britânico, localizado no âmbito mais abrangente daquilo que Edward Said chamou de “orientalismo”, um discurso ou um conjunto de enunciados (na formulação de Foucault) produzido pela cultura européia, que definiu um lugar para o Oriente e legitimou práticas sociais de dominação e controle.

Em vários segmentos do conto, a narradora faz referência à Índia como um assunto, como um tópico de conversa em ocasiões sociais. Ela diz:

A Índia é um assunto sobre o qual muito pode ser dito, e a partir de diferentes

pontos de vista – social, econômico, político, filosófico: trata-se de um assunto fascinante, qualquer que seja o olhar lançado sobre ela15.

Aqui a Índia é reificada, transformada num discurso abstrato. Do ponto de vista interdiscursivo, este segmento remete à noção de orientalismo como discurso – ou dos diversos discursos produzidos pelo Ocidente sobre o Oriente, que têm como traço principal a elisão de seu lugar de fala. Os discursos sobre o Oriente apresentam-se como emanados de um lugar de fala trans-histórico, de uma perspectiva “universalista”, embora emanem daquilo que Said chama de “uma consciência européia soberana, de cuja inconteste centralidade surgiu um mundo oriental” (Said, 2001:19).

Se como representação de práticas sociais, o texto ficcional que analisamos atualiza discursos em circulação na nossa cultura hoje, como

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dizíamos, como prática social, por outro lado, ele cria sentidos sobre a experiência social de sujeitos europeus na Índia. Constroi-se, neste universo ficcional, um lugar de fala híbrido, que se por um lado mobiliza sentidos estabilizados no discurso colonial, ou discursos produzidos sobre a Índia pelo Ocidente, por outro cria sentidos sobre a Índia como uma experiência social, cria sentidos sobre a forma como pessoas concretas, neste caso uma mulher, vivenciam o Oriente. O texto ficcional, visto como prática de produção de sentidos, cria, portanto, novos contratos simbólicos, novas representações de experiências ou práticas sociais.

No caso do conto que ora examinamos, firma-se um contrato simbólico que inaugura, não mais um discurso sobre a Índia, mas um discurso produzido na Índia, de determinada perspectiva enunciativa: myself in India.

BIBLIOGRAFIA AVALLON, J. A imagem, uma arte de memória? IN: ACHARD, P. et alii.

Papel da memória. Campinas, Pontes, 1999. BHABHA, H. K. The location of culture. London, Routledge, 1994. CHOULIARAKI, L & FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking

Critical Discourse Analysis. Edinburgh, Edinburgh University Press, 1999.

EAGLETON, T. Ideology: an introduction. London, Verso, 1991. GRIGOLETTO, M. A resistência das palavras: discurso e colonização

britânica na Índia. Campinas, Unicamp, 2002. JHABVALA, R.P. Myself in India. IN: THIEME, J. (org.) The Arnold Anthology

of Post-Colonial Literatures in English. London, Arnold, 1996. MILLS, S. Discourse. London, Routledge, 1997. ORLANDI, E. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos.

Campinas, Pontes, 2001. SAID, E.W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. Ed. original inglesa 1978.

NOTAS 1 Minha tradução do original, em inglês: (“I have lived in India for most of my adult life. My husband is Indian and so are my children. I am not, and less so every year.”) 2 No original, em inglês: “India reacts very strongly on people. Some loathe it, some love it, most do both.” 3 No original: “I have been through it so many times that now I think of myself as strapped to a wheel that goes round and round and sometimes I´m up and somestimes I´m down.” 4 Cf. no original em inglês: “I am irritable and have weak nerves”. 5 No inglês: "I know I am the wrong type of person to live here."

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6 No original: "I live in the capital where so much is going on. (...) Yet all my moments are dull. Why? It is my own fault, I know. (...)" 7 No original: “Let me try and describe a Westernised Indian woman with whom I ought to have a lot in common and whose company I ought to enjoy..” 8 Cf. o original em inglês: “She is only making conversation in the way she knows educated women have to make conversation 9 No inglês: “She has been to Oxford or Cambridge or some smart American college”. 10 No original: "They have always lived a Western-style life, with Western food and an admiration for Western culture." 11 "To stay and edure, one should have a mission and a cause (...)." 12 "However, I must admit that I am no longer interested in India. What I am interested in now is myself in India (...)." 13 No inglês: "I have a nice house, I do my best to live in na agreeable way. I shut all my windows, I let down the blinds, I turn on the airconditioner; I read a lot of books, with a special preference for the great masters of the novel. All the time I know myself to be on the back of this great animal of poverty and backwardness." 14 No orignal: "(...) there is no point in making a catalogue of the horrors with which one lives, on which ones lives, as on the back of na animal. (...)". 15 Em inglês: "It [= India] is a topic on which a lot of things can be said, and on a variety of aspects − social, economic, political, philosophial: it makes fascinating vieweing from every side."